RESENHAS
História das mulheres, da academia para os almoços de domingo
Carla Bassanezi Pinsky
Historiadora
Minha história das mulheres.
PERROT, Michelle.
São Paulo: Contexto, 2007. 191 p. (Tradução de Angela M. S. Côrrea do original Mon histoire des femmes. Paris: Éditions du Seuil/France Culture, 2006.)
Hoje a História das mulheres é uma área acadêmica consolidada. Cursos regulares, simpósios concorridos, produção intelectual farta e publicações especializadas acessíveis em bibliotecas e livrarias corroboram essa afirmação.
O caminho até sua legitimação, embora não tenha sido fácil, parece irreversível. Olhar para trás só valoriza a conquista: no século XVIII, pensadores discutiam se as mulheres eram seres humanos como os homens ou se se aproximavam mais dos animais irracionais. Elas esperaram até o final do XIX para ver reconhecido seu direito à educação e muito mais tempo para poder ingressar nas universidades. No século XX, ficou mais claro que as mulheres têm uma história, e que podem conscientemente tentar tomá-la nas mãos, com seus movimentos e reivindicações. Também se concluiu, finalmente, que a história das mulheres podia ser escrita. E que ela também ilumina e sofistica a história geral. Daí para o desenvolvimento dos estudos de gênero, considerando o caráter social e histórico das representações de feminino e masculino, foi relativamente rápido.
A hora, agora, é fazer com que um público mais amplo tenha acesso às descobertas dos pesquisadores. A História precisa sair das universidades e ganhar as ruas. A história das mulheres deve ser discutida nos salões de beleza, nos almoços de família, nas mesas de bar, nos ambientes de trabalho; deve estar presente na elaboração de políticas públicas, nas escolas, nas TVs e nas rádios.
Mais uma vez os franceses saíram na frente. Acostumados que estão à figura do "historiador público" (aquele que tem um compromisso social, assume posições políticas, vai à mídia divulgar suas idéias, procura dialogar com um público mais amplo), tiveram a feliz idéia de levar a história das mulheres aos ouvintes de rádio. Michelle Perrot, uma das pesquisadoras mais importantes do tema, foi convidada pela France Culture a participar de uma série radiofônica que, em 25 programas (de 28 de fevereiro a 1º de abril de 2005), sintetizou, "traduziu" e divulgou para um público de não-especialistas o conteúdo de mais de 30 anos de pesquisas e reflexões acadêmicas sobre as mulheres. A iniciativa, levada a cabo na voz clara e entusiasmada da própria Perrot, alcançou uma audiência extraordinária. Para perpetuar e ampliar tal sucesso, a série foi transformada em livro em março de 2006. A obra ganhou nas páginas da imprensa francesa elogios como "texto apaixonante", "resumo inteligente da história das mulheres", "sensível e pessoal como uma boa conversa ao pé do fogo". No Brasil, a Editora Contexto (a mesma de História das mulheres no Brasil e História da cidadania) rapidamente providenciou a edição em português: Minha história das mulheres.
Embora a autora (mundialmente respeitada e com muitos admiradores no Brasil) já tenha vários livros publicados em nossa língua, não há risco em afirmar que nenhum outro é tão acessível e instigante quanto esse, justamente por ter nascido de uma vontade de falar a muita gente e com coragem de assumir posições também a respeito de assuntos da atualidade.
Em Minha história das mulheres, Michelle Perrot toma a liberdade de dar uma visão pessoal de um tema sobre o qual se debruça há muitos anos. Ao mesmo tempo, mostra como essa história é de todas as mulheres; de todos nós, na verdade, já que fala também da relação com os homens, da sexualidade, da família, das representações de masculino e feminino, das classes sociais, do poder, da sociedade. Destacar as mulheres é uma forma de reforçar a idéia de que elas têm uma história, da qual são também sujeito ativo. Significa também, sem nenhuma contradição com a seriedade cobrada dos pesquisadores acadêmicos, engajar-se como militante no projeto de emancipação das mulheres da forma como faz Michelle Perrot. O eixo central da história escrita à la Perrot é o processo da crescente visibilidade das mulheres em seus combates e suas conquistas nos espaços público e privado. Para narrá-lo, a autora elege cortes temáticos que constituem os cinco capítulos do livro.
O primeiro capítulo trata do significado de escrever a história das mulheres, quando as próprias mulheres, incorporando a idéia de que sua existência é privada e sem importância, foram responsáveis pela chamada autodestruição da memória feminina, o que, somada aos silêncios impostos e às imagens distorcidas do feminino, criou toda sorte de dificuldades aos historiadores interessados no tema. Ao narrar a trajetória da legitimação acadêmica dos estudos sobre as mulheres nas universidades francesas, a autora lança mão de sua própria experiência, já que, como uma das pioneiras na área, foi testemunha ocular e privilegiada de todo esse processo que chamou de "uma revolução intelectual de primeira ordem". Otimista, fala dos avanços: o questionamento da avalanche de discursos e de imagens sobre as mulheres (muitas vezes um olhar masculino enviesado), a ruptura dos silêncios e o nascimento desse campo específico de pesquisa. Também trata das fontes e de sua acessibilidade. Descobrimos, com uma certa ponta de inveja, como os franceses têm investido recentemente em aquisições de documentos, arquivos, publicações, bibliotecas e sites sobre a história das mulheres.
No segundo capítulo, o tema é o corpo. Começando pelas "idades da vida", mostra a historicidade da questão da longevidade das mulheres (tema em que "o biológico se dissolve no existencial"), estudando desde as representações em torno do nascimento de meninos e meninas (e a prática do infanticídio de bebezinhas, existente até hoje em certos lugares) até a velhice das mulheres, passando pela educação diferenciada por sexo, a menstruação e a menopausa. Baseada em fontes diversas, que vão de dados demográficos à literatura de ficção, discorre sobre casamento, sexo, maternidade e controle da natalidade. Motivada talvez pela recente polêmica que dividiu opiniões na França entre favoráveis e contras a que garotas muçulmanas usem véu nas escolas públicas, Michelle Perrot dedica muitas páginas às representações que envolvem os cabelos das mulheres e à "longa história do véu", tratando-os como evidências nítidas dos códigos sociais envolvidos nas construções do feminino. Finaliza o capítulo com um panorama da submissão do corpo feminino; as repressões de todo tipo, estupros coletivos e "institucionalizados", prostituição, assédio sexual, violência doméstica.
A alma vem no terceiro capítulo a religião, a cultura, a educação, o acesso ao saber, a criação , trazendo à tona hereges, santas e feiticeiras, leitoras e escritoras, artistas, sábias e criadoras. As dificuldades, o desenvolvimento de práticas femininas e as conquistas contemporâneas nos campos da "alma" podem ser vislumbrados por meio da abordagem sensível de Michelle Perrot muito bem casada com o volume imenso de informações devidamente embasadas que seu livro disponibiliza.
Em O trabalho das mulheres, conhecemos o cotidiano das camponesas, os afazeres e protestos das donas-de-casa, as condições de vida das criadas e empregadas domésticas, as dificuldades e conquistas das operárias, a trajetória das professoras, o desempenho das vendedoras, a performance das atrizes. Segundo Perrot, as mulheres sempre trabalharam, mas era um "trabalho invisível", não valorizado, não remunerado. O acesso ao exercício de atividades reconhecidas e profissões remuneradas é historicamente recente, estando o trabalho das mulheres ainda longe de igualar-se ao dos homens em termos de valorização social e ganhos salariais. Além disso, conquistas femininas no espaço público, embora sejam um avanço evidente, podem revelar algumas contradições como, por exemplo, a conhecida dupla jornada de trabalho e a atual estigmatização dos afazeres domésticos.
Finalmente, no quinto capítulo, Mulheres na cidade, migramos com fugitivas e exiladas ou esperançosas trabalhadoras e militantes. Viajamos com missionárias, cientistas e aventureiras. Atravessamos fronteiras da História, redefinindo cronologias em função da especificidade da experiência histórica feminina. Em seguida, invadimos a "Cidade proibida" por meio de todas as formas de ação coletiva adotadas pelas mulheres na luta por direitos civis, políticos, sociais, com destaque para o acesso à contracepção, a liberdade sexual, o combate à violência de gênero de todo tipo, incluindo as abomináveis mutilações genitais ainda praticadas por grupos fundamentalistas.
Ao perguntar E agora?, Michelle Perrot convida a pensar a respeito da questão que perpassa todo o livro: "Como evoluiu a diferença dos sexos? Como se modificaram as partilhas entre os homens e as mulheres, suas identidades e sua hierarquia?" (p. 165). Ressalta uma vez mais a repressão sofrida pelas mulheres, mas lembra que sua história não é feita só de violências e submissões: "o status de vítima não resume o papel das mulheres na história, que sabem resistir, existir, construir seus poderes" (p. 166). Michelle Perrot recusa explicitamente qualquer perspectiva maniqueísta da relação dos sexos e defende que escrever a história das mulheres "não é um meio de reparação, mas desejo de compreensão, de inteligibilidade global" (p. 166).
Apesar de não se deter no assunto, menciona a contribuição de pesquisas sobre a história das mulheres fora do campo da História Moderna e Contemporânea, ricos acréscimos feitos por medievalistas e especialistas em Antigüidade e Pré-História. Também faz referências a outros espaços, para além da Europa e dos Estados Unidos, constatando que a História das mulheres e das relações de gênero se desenvolveu muito "no Extremo Oriente, pelo menos na Índia e no Japão, e na América Latina, particularmente no Brasil (com centros de estudos muito ativos em Campinas, Rio e Florianópolis), e mesmo na África, onde não é fácil escapar de representações etnológicas um tanto engessadas" (p. 167). Conclui fazendo um breve balanço da condição feminina nos dias hoje e estimulando novas pesquisas naquela que é também uma "história a se fazer".
Minha história das mulheres faz valer o dito toda História é História Contemporânea: tem um compromisso com o presente, interroga o passado tomando como referência questões que fazem parte de nossa vida. E cumpre a promessa de divulgar a história das mulheres: procura falar a pessoas de fora da academia, permitindo-lhes enxergar passado e presente com muita clareza, por meio de exemplos concretos, descrições detalhadas, paralelos com situações contemporâneas, análises em linguagem acessível e comentários corajosos. Daí para esta história virar assunto nos almoços de família talvez não falte muito. Com Minha história das mulheres um passo foi dado.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
07 Ago 2007 -
Data do Fascículo
Abr 2007