Depois de duas décadas, Salvation: Black People and Love chega ao público brasileiro na tradução de Vinicius da Silva , com o título Salvação: pessoas negras e o amor, pela editora Elefante e com um prefácio poético de Nina Rizzi. Publicada originalmente em 2001, a obra possibilitou que mais pessoas latino-americanas tenham acesso ao pensamento reflexivo e crítico de bell hooks, quando o assunto é falar de amor. Neste livro, por meio da literatura, da história, do cinema e da mídia de comunicação de massa, hooks analisa como o capitalismo heteropatriarcal, o sexismo, o racismo e a supremacia branca foram - e ainda são - favoráveis à sustentação de uma desnecessidade, no que diz respeito às pessoas negras e sua reivindicação pelo direito ao amor em suas vidas - especialmente as mulheres negras, que, ao longo da história, foram reduzidas à objetificação e exploração de seus corpos (hooks, 2019).
A obra é composta por 11 capítulos, incluindo a introdução, e seu ponto de partida está situado em sua experiência como autora, palestrante, mulher negra feminista e professora universitária que viveu o contexto de segregação racial nos Estados Unidos. Neste volume, a proposta não é falar sobre os diversos significados do amor, como fez em Tudo sobre o amor: novas perspectivas (hooks, 2020), mas abordar sobre a necessidade de pessoas negras entenderem que devem se amar para exercerem suas práticas políticas de resistência em uma sociedade heteropatriarcal capitalista de supremacia branca.
O primeiro capítulo, “O cerne da questão”, destaca como os líderes negros se relacionam com as dores emocionais causadas pelo racismo e como isso se transformou ao longo da história. Neste processo, os valores capitalistas contribuíram para a construção de um comportamento defensivo, moldado pela violência, como forma de lidar com essas dores. hooks também se dedica a escrever sobre a necessidade de retomar o amor como potência transformadora, capaz de modificar a sociedade e a forma de fazer política.
O capítulo seguinte, “Nós usamos a máscara”, faz um balanço histórico do povo negro nas Américas, mostrando como o amor vai ser afastado da história destas pessoas, sendo vistas mais por emoções e sentimentos de dor, sofrimento e mágoa. Assim, hooks compreende que viver em uma sociedade racista exige assimilação e acomodação, sendo que, para sobreviver, é preciso usar a máscara, criando um “falso eu” (hooks, 2024, p. 50) em um contexto capitalista, no qual a busca material pode ser um autoboicote sobre as feridas emocionais. Para hooks, é mais fácil adquirir bens materiais do que amor, pois, para chegar ao amor, é preciso enfrentar a dor do abandono e da perda que estas pessoas sofreram ao longo da história.
O terceiro capítulo, “A questão do amor-próprio”, trata da ideia de amor compreensivo, moldado pelas religiões cristãs. Este amor não se concretizou nas vidas negras, devido ao capitalismo, somado às imagens midiáticas que representavam um modelo de amor de pessoas brancas muito longe da realidade e da história das pessoas negras. É preciso, dessa maneira, se pensar em uma prática amorosa saudável, especialmente para que as mulheres negras possam exercer seu autoamor, pois viviam a maternidade do sacrifício, uma vez que tomavam para si a responsabilidade de dar afeto e proteger seus filhos do racismo, porque, aos homens, dentro do padrão de família patriarcal, ser protetor e provedor bastava para afirmar a sua masculinidade. Nesse sentido, quem ficava com o trabalho emocional nas famílias eram as mulheres, sendo que a responsabilidade de cuidar dos afetos nas famílias pesou em suas vidas, uma vez que elas não tinham tempo e nem direito de praticar o amor-próprio.
O próximo capítulo, intitulado “Valorizar-nos de maneira correta”, é dedicado às feridas psíquicas das pessoas negras causadas pelo racismo, o cultivo do auto-ódio e a baixa autoestima de mulheres e homens negros. A análise considera que a supremacia branca foi a responsável por criar a noção de inferioridade dos/as negros/as e que o sistema de castas de cor foi criado por homens patriarcais brancos para exercerem poder sobre corpos negros, especialmente sobre os corpos das mulheres. hooks retoma o movimento Black Power, que desafiou este sistema de casta de cor, contudo, havia a contradição de os líderes negros continuarem se relacionando com mulheres brancas. Os movimentos de valorização da negritude vão enfraquecendo com o mercado de consumo, pois as pautas coletivas do movimento negro são minadas pelo capitalismo, portanto, com os valores da classe média que privatizam as relações, já que o modelo ideal de família nuclear branca se sobressaía neste contexto. Para hooks, a integração racial foi prejudicial à autoestima das pessoas negras e promoveu um ambiente de humilhação racial e vergonha, inviabilizando a autoaceitação e o amor-próprio. A pedagogia do ódio racial alcança-as, dessa forma, por meio da comunicação de massa. Segundo hooks, contestar a mídia e boicotar filmes que disseminam estereótipos negativos - como o de negros violentos, preguiçosos ou hiperssexualizados, considerados indignos de amor - deve estar entre as medidas de resistência.
O quinto capítulo, “Superar a humilhação”, discorre sobre o tratamento das pessoas negras a partir da supremacia branca. Ao lembrar que a educação, no contexto de integração racial, não se mostra positiva para sujeitos negros, posto que vivenciam relações de exclusões e, quando se destacam na educação, por exemplo, são vistos como anormais, hooks defende que é preciso descolonizar a mídia e boicotar os filmes racistas que humilham e estereotipam, uma vez que contribuem para sua inferiorização e reforçam a baixa autoestima e os traumas psicológicos. Enquanto a dor do corpo branco é amplamente reconhecida, a do corpo negro é silenciada, porque a supremacia branca funciona como uma ferramenta política de dominação imperialista, levando os negros a construírem um “falso eu” (hooks, 2024, p. 112) e não se conhecerem verdadeiramente como pessoas que foram historicamente exploradas e animalizadas por seus corpos, cor e fenótipo por estarem fora do ideal branco e europeu.
No capítulo “Amor de mãe”, hooks destaca as consequências emocionais para as mulheres negras que sofreram abusos e violências por parte de homens brancos, justificando as agressões com a ideia de que mulheres negras seriam mais sexuais e, portanto, passíveis de objetificação. Nesse contexto de desamor e violência, algumas buscaram, na religião e na maternidade, uma forma de manter a esperança. As mães negras, frequentemente vistas pelas pessoas brancas como fortes, severas e duras, não são analisadas sob a perspectiva de que esse comportamento resulta das dores emocionais que tiveram que enterrar para sobreviver, sustentar seus filhos e protegê-los de - e em - uma sociedade racista. Como consequência, os traumas psicológicos dessas violências permaneceram sem tratamento terapêutico.
O sétimo capítulo, “Dignificar mães solo”, trata sobre a condição de mãe solo negra e os diversos estereótipos dos quais são vítimas. hooks coloca a importância do debate interseccional para se falar em maternidade, pois mães brancas são vistas como vítimas e/ou profissionais, ao passo que mães negras, como mães negligentes e depravadas mentalmente. Logo, poderiam ter evitado os filhos, uma vez que seriam mulheres sem condições de amar, por exemplo. O que pouco se fala é sobre a força dessas mulheres em sustentar seus filhos sozinhas, já que a presença masculina em suas vidas raramente foi fonte de renda, ou de afeto para seus filhos. hooks critica a visão simplista e romântica da família nuclear, argumentando que ter um homem em casa não garante, necessariamente, uma família com mais recursos, cuidado e apoio.
O capítulo “Masculinidade negra amorosa: pais, amantes, amigos” aborda a masculinidade negra e como homens negros foram alvo de estereótipos negativos disseminados pela supremacia branca, reduzindo-os a este tipo de masculinidade. A questão geracional entre os homens negros é comentada por hooks ao mostrar como aqueles que não tiveram a experiência da segregação racial acabaram se unindo ao patriarcado sexista, culpabilizando mulheres negras de suas dificuldades para lidarem com o mundo conduzido pelos brancos, o que ocasionou limitações para negros e negras cultivarem o amor entre si, assim como o patriarcado garantiu que homens negros não participassem da vida emocional de suas famílias. Por esse motivo, é preciso voltar às práticas amorosas entre homens e mulheres negras, superando os efeitos perversos da supremacia branca.
O nono capítulo, “Amor heterossexual: união e reunião”, discute a união heterossexual das pessoas negras, apresentando como homens e mulheres negros historicamente não tiveram direito e oportunidade de serem vistos como casais amorosos e com laços de afeto, cuidado e união. A escravidão e os seus prejuízos nas emoções às pessoas negras negaram não apenas os direitos de constituírem família, mas de terem representações positivas de afetos entre si. Ao analisar que não há uma abordagem positiva sobre homens e mulheres negras nos romances, cinema e na mídia, hooks considera que o patriarcado, pautado pela supremacia branca, conseguiu agir no inconsciente dos homens negros, dificultando a construção de uma masculinidade mais consciente do racismo estrutural, o que contribuiu para descartar a possibilidade de resistência. Assim, hooks propõe a perspectiva de descolonizar a mente em torno das imagens de desamor entre homens e mulheres negras a fim de que representações positivas de cuidado e amor possam ser vistas como possíveis entre homens e mulheres negras.
Em “Acolher a homossexualidade: círculos intactos”, hooks narra como o sistema patriarcal agiu na construção da masculinidade dos homens negros e também explica que a homofobia foi alimentada por esse tipo de masculinidade, que julga o desejo e a sexualidade, excluindo e desvalorizando homens e mulheres fora do padrão heteronormativo. Além disso, aponta que o amor que era cultivado nas comunidades segregadas racialmente apresentava maior aceitação e inclusão dos homossexuais negros que no contexto de integração racial. Neste sentido, não basta uma sociedade pautada na integração racial sem justiça social e combate ao racismo, pois, apesar da integração racial, ainda há muita violência e redução dos corpos negros à sua cor e à sua sexualidade.
O capítulo final, “Justiça amorosa”, explora os modelos disponíveis para a construção de uma ética amorosa entre as pessoas negras, salientando o poder das alianças entre brancas e negras. Ademais, traz uma crítica à sociedade capitalista pautada no consumo imediato e ao discurso que suprime a necessidade do amor na vida das pessoas negras. A pesquisadora afirma que a construção do amor-próprio é possível e mostra caminhos para a autoaceitação e o combate ao auto-ódio introjetado pela lógica da supremacia branca e, por fim, propõe medidas para a cura a partir de práticas amorosas e positivas que pessoas negras podem cultivar entre si.
hooks foi uma intelectual feminista negra que, como dizia, causava zumbidos nos ouvidos da sociedade pautada no padrão de ser mulher, professora e intelectual. A partir do jogo emocional produzido pela supremacia branca, questionou, em seus livros, a ordem vigente, mostrando sua resistência como um exemplo de superação para o debate a respeito do racismo em diversas instituições sociais e nas possibilidades de relações de afeto.
Em Salvação: pessoas negras e o amor, a estudiosa salienta que a crise só será superada se o amor for tomado como uma necessidade vital para as relações sociais e para a luta política das pessoas negras, pois a privação de negros e negras em terem uma vida digna não apenas em termos materiais, mas emocionais, causou traumas em seus corpos e em suas emoções, formando, em seus inconscientes, o sentimento de auto-ódio, que foi uma das sutilidades mais bem introjetadas amigavelmente pela supremacia branca, como retratou Frantz Fanon (2008), já que ser branco seria o ponto da felicidade.
A partir dessa ideia, hooks pensa na crise estabelecida pela falta de amor, indicando que o caminho para as pessoas negras transformarem esta realidade será assumir a prática amorosa nas lutas coletivas, fazendo da justiça amorosa um propósito de vida. Contudo, a obra, haja vista o intervalo entre a primeira publicação e sua tradução, apresenta algumas limitações, se analisarmos o contexto brasileiro, especialmente pela ideia de raça, estabelecida por meio do mito da democracia racial e da ausência da pauta das mulheres negras tanto nos movimentos feministas como no movimento negro (Lélia GONZALEZ, 2020). Além disso, é importante salientarmos o papel das redes sociais na contemporaneidade, moldada pelo mercado capitalista de política neoliberal, que faz uso ideias de autoajuda, assim como a presença performática do coaching, para explorar o imaginário de que basta exercer o autocuidado para se amar, considerando que este mercado de autoajuda, não distingue pessoas que tiveram seus corpos e emoções marcados por história de exploração e violências ocorridas durante a escravização e, atualmente, no contexto capitalista (Silvia FEDERICI, 2023). Ideias como todos podemos nos amar, ou basta exercemos o autocuidado, a autorresponsabilidade e o ser produtivo são disseminadas cotidianamente nas redes, que minam o potencial da coletividade na luta contra o sexismo e o racismo na sociedade capitalista heteropatriarcal de supremacia branca.
Referências
- FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas Trad. de Renato da Silveira. Salvador: EDUFBA, 2008.
- FEDERICI, Silvia. Além da pele: pensar o corpo no capitalismo contemporâneo Trad. de Jamille Pinheiro Dias. São Paulo: Elefante, 2023.
- GONZALEZ, Lélia. Por um feminismo afro-latino-americano Rio de Janeiro: Zahar, 2020.
- hooks, bell. Salvação: pessoas negras e o amor Trad. de Vinícius da Silva. São Paulo: Elefante, 2024.
- hooks, bell. Tudo sobre o amor: novas perspectivas Trad. de Stephanie Borges. São Paulo: Elefante, 2020.
- hooks, bell. Teria Feminista Da margem ao centro Trad. de Rainer Patriota. São Paulo: Perspectiva, 2019.
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Como citar esse artigo de acordo com as normas da revista:
BITENCOURT, Silvana Maria Bitencourt “O amor enquanto direito necessário na vida de homens e mulheres negras”. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 33, n. 3, e106549, 2025.
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Financiamento:
Não se aplica.
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Consentimento de uso de imagem:
Não se aplica.
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Aprovação de comitê de ética em pesquisa:
Não se aplica.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
11 Ago 2025 -
Data do Fascículo
2025
Histórico
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Recebido
15 Abr 2025 -
Revisado
11 Jul 2025 -
Aceito
12 Jul 2025
