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A identidade narrativa em Margarida La Rocque, de Dinah Silveira de Queiroz

Narrative Identity in Margarida La Rocque, by Dinah Silveira de Queiroz

Resumo:

Este artigo tem como objetivo central apresentar uma análise da protagonista do romance Margarida La Rocque: a ilha dos demônios (1949), de Dinah Silveira de Queiroz (1991). Na obra, a personagem se mostra uma mulher que busca novos caminhos para si. A partir disso, é proposta uma leitura pela perspectiva da teoria e da crítica feminista e, visando mostrar como se dá a construção da identidade dessa personagem em desacordo com os estereótipos da mulher na literatura, foi utilizado igualmente o conceito de identidade narrativa, de Paul Ricoeur.

Palavras-chave:
Dinah Silveira de Queiroz; Margarida La Rocque: a ilha dos demônios; teoria e crítica feminista; identidade narrativa; Paul Ricoeur

Abstract:

The main goal of this paper is to analyse the female protagonist of Margarida La Rocque: a ilha dos demônios (1949), a novel by Dinah Silveira de Queiroz (1991). In the novel, the protagonist is shown as a woman who searches for new paths for her own self. From such a base, a reading is proposed according to the feminist theory perspective. Besides, the concept of Paul Ricoeur’s narrative identity was equally applied with the aim of showing how the building of the protagonist´s identity is brought up in dissonance with the woman´s stereotypes in literature.

Keywords:
Dinah Silveira de Queiroz; Margarida La Rocque: a ilha dos demônios; Theory and feminist criticism; Narrative identity; Paul Ricoeur

A paulista Dinah Silveira de Queiroz (1991QUEIROZ, Dinah Silveira de. Margarida La Rocque: a ilha dos demônios. Rio de Janeiro: Record, 1991. [1911-1982]), apesar de pouco conhecida e estudada atualmente, teve uma carreira literária com mais de 40 anos, durante a qual produziu uma vasta e diversificada obra. Em seu segundo romance, Margarida La Rocque: a ilha dos demônios (1949), a protagonista - homônima ao livro - narra a um padre a sua trajetória, desde o nascimento precedido de uma trágica profecia até o período em que foi abandonada em uma ilha habitada somente por animais e seres estranhos - a lebre falante Filho; a Dama Verde, ser com forma de mulher, mas sem face e revestido de musgos; o Cabeleira, um espectro sem corpo. A narrativa se passa na França do século XVI e foi criada pela autora a partir de uma passagem da Cosmografia universal, do padre André Thevet (1575THEVET, André.La cosmographie universelle d'André Thevet, cosmographe du roy, llustrée de diverses figures des choses plus remarquables veues par l'auteur, et incogneuës de noz anciens et modernes. Paris: Guillaume Chandiere, 1575.). As narrativas de Dinah, em geral, são centradas em personagens femininas e, em Margarida, essa personagem se mostra uma mulher que busca novos caminhos para si. Margarida não se resigna em um casamento sem amor, não se restringe ao ambiente doméstico, não exerce o papel da heroína à espera do herói. Assim sendo, entendemos que o romance permite uma leitura pela perspectiva da teoria e da crítica feminista, no que diz respeito à forma como é apresentada a personagem Margarida. Unida a esse aparato teórico e crítico, será utilizada a concepção de identidade narrativa postulada pelo filósofo francês Paul Ricoeur (1997RICOEUR, Paul. Tempo e narrativa (tomo 3). Campinas: Papirus, 1997.; 2014). Em sua obra, o autor não abordou questões relacionadas aos estudos feministas. Ainda assim, seu conceito de identidade narrativa se mostra produtivo para o estudo da personagem em questão, pois, ao examiná-la à luz de tal conceito, é possível entender como ela se compõe identitariamente por meio de sua narrativa e de suas ações, e o que se revela com essa composição.

A noção de identidade narrativa surgiu ao final do terceiro volume da obra Tempo e narrativa, de Paul Ricoeur, e se desenvolveu em O si-mesmo como um outro. O filósofo inicia as conclusões de Tempo e narrativa apresentando a hipótese de “considerar a narrativa como o guardião do tempo, na medida em que só haveria tempo pensado quando narrado” (RICOEUR, 1997RICOEUR, Paul. Tempo e narrativa (tomo 3). Campinas: Papirus, 1997., p. 417, grifo do autor). A partir dessa suposição, é proposta uma releitura da aporética do tempo, da qual surge a proposição ricoeuriana de um tempo presente no âmbito da narrativa, com começo, meio e fim bastante definidos e estabelecidos pelo sujeito do discurso.

Segundo o autor, é possível identificar, por meio de uma narrativa, o “quem” - a identidade - de uma ação ou mesmo de uma vida. E, na ausência de um sujeito da narração, o problema da identidade pessoal estaria fadado a uma antinomia irresolúvel: se colocaria, de um lado, “um sujeito idêntico a si mesmo na diversidade de seus estados” (RICOEUR, 1997RICOEUR, Paul. Tempo e narrativa (tomo 3). Campinas: Papirus, 1997., p. 424), ou, por outro lado, se consideraria “que esse sujeito idêntico é somente uma ilusão substancialista, cuja eliminação só revela um puro diverso de cognições, de emoções e de volições” (RICOEUR, 1997, p. 424). Esse dilema desaparece, segundo o autor,

se substituirmos a identidade compreendida no sentido de um mesmo (idem) pela identidade compreendida no sentido de um si mesmo (ipse); a diferença entre idem e ipse não é senão a diferença entre uma identidade substancial ou formal e a identidade narrativa (p. 424-425, grifos do autor).

A conexão entre ipseidade e identidade narrativa, para Ricoeur, aponta que “o si do conhecimento de si não é o eu egoísta e narcísico cuja hipocrisia - e ingenuidade -, bem como o caráter de superestrutura ideológica e o arcaísmo infantil e neurótico às hermenêuticas da suspeita denunciaram” (RICOEUR, 1997RICOEUR, Paul. Tempo e narrativa (tomo 3). Campinas: Papirus, 1997., p. 425). Esse si do conhecimento de si seria fruto de uma vida examinada que, de maneira geral, é uma vida depurada, explicada por meio das narrativas históricas e ficcionais presentes em nossa cultura e que levam a ipseidade - o “si” instruído pela cultura - a aplicá-las a si mesmo (RICOEUR, 1997). Levando essas afirmações ao romance estudado, é possível afirmar que Margarida, ao fazer a narração de sua vida ao padre, busca a compreensão não só dos fatos ocorridos, mas de si própria, ao dar inteligibilidade à sua história por meio de uma narrativa. Pois, ao fazer o exame de sua vida, segundo Ricoeur, “um sujeito reconhece-se na história que conta a si mesmo sobre si mesmo” (RICOEUR, 1997, p. 426), afirmação que é desenvolvida em O si-mesmo como um outro, quando o autor declara que “a compreensão de si é uma interpretação; a interpretação de si, por sua vez, encontra na narrativa, entre outros signos e símbolos, mediação privilegiada” (RICOEUR, 2014, p. 112).

É também nessa obra que Ricoeur apresenta o que pode ser relacionado, no romance em questão, a uma tentativa de a protagonista compreender não só a si - reiteramos -, mas os acontecimentos que se deram em sua trajetória, pois, segundo o filósofo: “É precisamente em razão do caráter evasivo da vida real que temos necessidade do socorro da ficção para organizá-la retrospectivamente após os acontecimentos” (RICOEUR, 2014RICOEUR, Paul. O si-mesmo como um outro. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2014., p. 173). Aqui, ainda que não estejamos tratando de ‘vida real’, o que se apresenta é uma personagem que busca, valendo-se do recurso da narração, ordenar os acontecimentos inusitados de sua vida ao contar sua história para outrem. Logo na primeira página do romance, Margarida declara: “Começarei, Padre, bem do começo, para que certas coisas possam ser entendidas. Nasci sob um mau fado” (QUEIROZ, 1991QUEIROZ, Dinah Silveira de. Margarida La Rocque: a ilha dos demônios. Rio de Janeiro: Record, 1991., p. 15). Esse mau fado é a profecia, anunciada por uma tia, de que Margarida iria em vida ao inferno. Tal profecia é retomada ao fim da narrativa, quando ela relata a viagem após seu resgate da ilha:

Sim, meu Padre, bem se cumprira ela [a profecia]! Punha eu os olhos no brilho de um cabeço de monte, que se aprumava - torre de um castelo fantasma - sobre as perdidas águas, e pensava que se Deus fez a eternidade também para o inferno, não foi por cólera justiceira, mas porque as almas do inferno levam em si o mal, e eternamente o desejam (QUEIROZ, 1991QUEIROZ, Dinah Silveira de. Margarida La Rocque: a ilha dos demônios. Rio de Janeiro: Record, 1991., p. 127).

Margarida, assim, se inclui entre as ‘almas do inferno’. Porém, ao escolher narrar sua vida desde ‘bem do começo’, também revela uma tentativa de buscar o entendimento ou mesmo a justificativa para ser uma dessas almas que carregam em si o mal e, por isso, ter ido em vida ao ‘inferno’ - a ilha em que ficou exilada. Logo, uma vez que o vivenciado por ela foi profetizado antes mesmo do seu nascimento, seu destino, tal qual a tragédia de Édipo, era inevitável. Logo, é possível afirmar que sua narração revela uma personagem que se considera a um só tempo vítima e algoz, em que concorrem a culpa e a ausência de arrependimento sobre os seus atos. E essa interpretação contribui para a construção da identidade narrativa controversa que será desvelada pela leitura aqui proposta.

Na obra O si-mesmo como um outro, Ricoeur não só volta ao tema da identidade narrativa, mas desenvolve a proposta de uma hermenêutica do si baseada em uma teoria narrativa, segundo a qual o vivido se torna humano quando é narrado. O conceito ricoeuriano de identidade narrativa se mostra profícuo ao se estudar um sujeito da narração - Margarida, neste caso -, que é ao mesmo tempo narradora e personagem de sua história. Isso porque Ricoeur apresenta a possibilidade de esse sujeito ser tanto leitor quanto escritor da própria vida e, contrariamente à identidade abstrata do ‘mesmo’, a identidade narrativa, que constitui a ipseidade, inclui em si a mudança dentro da coesão de uma vida (RICOEUR, 1997RICOEUR, Paul. Tempo e narrativa (tomo 3). Campinas: Papirus, 1997.), o que é simultaneamente manifestado e conformado na e pela narração. Ricoeur também afirma que a identidade narrativa pode ser chamada de identidade da personagem. Sendo assim, “a identidade da personagem é compreendida por transferência para ela da operação de composição do enredo antes aplicada à ação narrada; a personagem (...) é composta em enredo” (RICOEUR, 2014, p. 149). Ou seja, é através das ações que a personagem se constrói, e essa construção identitária só é possível quando colocada em narrativa; a identidade da personagem, a identidade narrativa, só se constrói em ligação com a identidade do enredo. Por sua vez, a identidade do enredo se constitui dos reveses que fazem a narrativa avançar e, com isso, se tem a identidade narrativa em si. A partir dessas considerações, o autor indaga se “toda a composição de enredo não procede de uma gênese mútua entre o desenvolvimento de um caráter e o de uma história narrada” (RICOEUR, 2014, p. 150), ao que ele em seguida responde: “para desenvolver um caráter, é preciso narrar mais” (RICOEUR, 2014, p. 150) - ou seja, é somente por meio das ações presentes em uma narrativa que se tem acesso ao caráter desenvolvido na personagem.

Ricoeur também afirma que a narrativa oferece ao personagem a possibilidade de iniciar uma série de acontecimentos. Esse início, assim, constitui um começo absoluto. Porém, também é dado ao narrador “o poder de determinar o começo, o meio e o fim de uma ação” (RICOEUR, 2014RICOEUR, Paul. O si-mesmo como um outro. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2014., p. 154), tal como acontece com a narradora do romance estudado, em que a ordem da história é definida por Margarida, de modo a melhor narrar os acontecimentos que lhe interessam ser contados. Sobre isso, Ricoeur esclarece: “na ficção, nem o começo nem o fim são necessariamente os dos acontecimentos narrados, mas os da própria forma narrativa” (RICOEUR, 2014, p. 170).

O autor também afirma que “Na ficção literária, é imenso o espaço de variações aberto para as relações entre as duas modalidades de identidade” (RICOEUR, 2014RICOEUR, Paul. O si-mesmo como um outro. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2014., p. 155-156), a mesmidade e a ipseidade. A identidade narrativa, por sua vez, é o que mantém unidas essas modalidades de identidade, “as duas pontas da cadeia: a permanência do caráter no tempo [mesmidade] e a permanência da manutenção de si [ipseidade]” (RICOEUR, 2014, p. 178). A questão da permanência no tempo, contudo, é um ponto sensível nas discussões sobre identidade. Judith Butler (2017BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão de identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2017.), em Problemas de gênero: feminismo e subversão de identidade, traz uma série de questionamentos acerca do que seria uma identidade feminina que contestam justamente a problemática da continuidade:

Enquanto a indagação filosófica quase sempre centra a questão do que constitui a “identidade pessoal” nas características internas da pessoa, naquilo que estabeleceria sua continuidade ou autoidentidade no decorrer do tempo, a questão aqui seria: em que medida as práticas reguladoras de formação e divisão do gênero constituem a identidade, a coerência interna do sujeito, e, a rigor, o status autoidêntico da pessoa? Em que medida é a “identidade” um ideal normativo, ao invés de uma característica descritiva da experiência? E como as práticas reguladoras governam o gênero e também governam as noções culturalmente inteligíveis de identidade? Em outras palavras, a “coerência” e a “continuidade” da “pessoa” não são características lógicas ou analíticas da condição de pessoa, mas, ao contrário, normas de inteligibilidade socialmente instituídas e mantidas. Em sendo a “identidade” assegurada por conceitos estabilizadores de sexo, gênero e sexualidade, a própria noção de “pessoa” se veria questionada pela emergência cultural daqueles seres cujo gênero é “incoerente” ou “descontínuo”, os quais parecem ser pessoas, mas não se conformar às normas de gênero da inteligibilidade cultural pelas quais as pessoas são definidas. Gêneros “inteligíveis” são aqueles que, em certo sentido, instituem e mantêm relações de coerência e continuidade entre sexo, gênero, prática sexual e desejo (BUTLER, 2017BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão de identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2017., p. 43, grifo da autora).

Ainda que Butler entenda a continuidade como parte de práticas reguladoras do gênero - do que não discordamos -, o que assinalamos é que, nesse ponto especificamente, é possível conciliar o posicionamento da autora com o de Ricoeur. Isso porque o filósofo francês não nega as mudanças ao longo do tempo - que podem ser entendidas como as incoerências apontadas por Butler; e tanto as mudanças como as incoerências surgem no desenvolvimento da personagem Margarida, conforme será abordado mais adiante. Além disso, o próprio conceito de performatividade, essencial na obra de Butler, se refere a atos construídos ao longo de uma temporalidade:

O gênero é uma identidade tenuemente constituída no tempo, instituído num espaço externo por meio de uma repetição estilizada de atos. [...] Essa formulação tira a concepção do gênero do solo de um modelo substancial da identidade, deslocando-a para um outro que requer concebê-lo como uma temporalidade social constituída. Significativamente, se o gênero é instituído mediante atos internamente descontínuos, então a aparência de substância é precisamente isso, uma identidade construída, uma realização performativa em que a plateia social mundana, incluindo os próprios atores, passa a acreditar, exercendo-a sob a forma de uma crença (BUTLER, 2017BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão de identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2017., p. 242-243, grifos da autora).

Logo, a performatividade pode ser relacionada à construção de identidade narrativa de Ricoeur, pois também é manifestada através e em um espaço de tempo. E é justamente no tempo e no espaço - no caso de Margarida, espaços - que, performaticamente por intermédio de seus atos, a identidade da protagonista se desvela e se apresenta. Conforme foi apontado anteriormente, nas conclusões de Tempo e narrativa o autor já traz a afirmação de que a identidade narrativa é justamente o que permite apreender um sujeito em sua constante mudança, pois a mutabilidade não é excluída da coesão de uma vida (RICOEUR, 1997RICOEUR, Paul. Tempo e narrativa (tomo 3). Campinas: Papirus, 1997.). Em O si-mesmo como um outro, ele preconiza que, apesar das transformações, há algo de permanente: “a ameaça representada para a identidade só será inteiramente conjurada se, como base da semelhança e da continuidade ininterrupta da mudança, se apresentar um princípio de permanência no tempo” (RICOEUR, 2014, p. 117, grifo do autor). Ou seja, apesar do constante da mudança, há algo de permanente e esse algo é indispensável à construção identitária do sujeito. Além disso, essa proposição do autor permite entender a identidade, ainda que se tratando de um ‘mesmo’, como inacabada e em elaboração permanente ao longo de uma vida, ao longo do tempo, pois a problemática “da identidade pessoal só pode articular-se precisamente na dimensão temporal da existência humana” (RICOEUR, 2014, p. 112, grifo do autor).

Ricoeur também define como modelo de permanência da pessoa a polaridade entre caráter e palavra cumprida. A palavra cumprida é a fidelidade à palavra dada; em outras palavras, “ainda que meu desejo mude, ainda que eu mude de opinião ou inclinação, [a] ‘manterei’” (RICOEUR, 2014RICOEUR, Paul. O si-mesmo como um outro. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2014., p. 125); pois, segundo o filósofo, a persistência do caráter e a perseverança da fidelidade à palavra dada são duas coisas em separado. O autor, no entanto, reconhece que o “cumprimento da promessa” (RICOEUR, 2014, p. 125) constitui “um desafio ao tempo, uma negação da mudança” (RICOEUR, 2014, p. 125), mudança essa que é uma constante no próprio conceito de identidade por ele postulado. Nesse sentido, Margarida La Rocque oferece um exemplo concreto do desafio apontado por Ricoeur. Com a passagem do tempo, a personagem não mantém fidelidade a pelo menos três ‘palavras dadas’ centrais na narrativa: à lealdade ao marido, pois comete adultério; ao primo Roberval - chefe do navio em que Margarida viaja -, porque passa a relacionar-se com um dos tripulantes da embarcação; à Juliana - sua aia desde a infância -, pois Margarida entra com ela em conflito, dirigindo-lhe acusações injustas. Ainda que, conforme aponta Ricoeur, “o cumprimento da palavra dada não precisa ser posto no horizonte do ser-para-a-morte” (RICOEUR, 2014, p. 125), mas da ética de uma promessa, é possível afirmar que Margarida não é fiel às suas palavras dadas.

Na personagem estudada, são identificadas duas instâncias, sendo uma marcada pela permanência no tempo e outra pelo descumprimento à palavra dada - para mantermos a nomenclatura de Ricoeur. A primeira diz respeito à continuidade do interesse de Margarida pelo desconhecido e pelo aventuroso, que se manifesta desde a sua infância - quando ouvia os romances lidos por Juliana, “de destemidos cavaleiros de eras passadas” (QUEIROZ, 1991QUEIROZ, Dinah Silveira de. Margarida La Rocque: a ilha dos demônios. Rio de Janeiro: Record, 1991., p. 16) - até a idade adulta - quando escolhe o aventureiro Cristiano como marido e quando o usa como pretexto para embarcar em uma expedição marítima. Diretamente relacionada a isso, está outra característica contínua de Margarida: a sua personalidade desafiadora. Essa se apresenta em um primeiro momento no fato de a protagonista não temer a profecia feita antes do seu nascimento: “tendo nascido sob tão tremenda profecia, e dela sabedora logo em criança, nem por isso deixei de ser uma rapariga alegre, faceira como poucas” (QUEIROZ, 1991, p. 16). Mais adiante, ela ainda afirma: “Não pensava na tremenda profecia de minha tia” (QUEIROZ, 1991, p. 19). Posteriormente, em pelo menos quatro passagens, há menções diretas a “desafio”, sendo três delas relacionadas a João Maria, com quem manteve um caso extraconjugal: quando ele a informa que a tripulação fazia comentários maliciosos sobre a convivência dos dois e ela o desafia a permanecer em sua companhia; quando ela assume uma postura desafiadora e provocativa ao lhe exigir um beijo, pouco antes de serem descobertos por Roberval; quando ela imagina que João Maria irá justificar-se ao capitão do navio, afirmando ser ela a única culpada pelo adultério, pois o seduzira e desafiara. Essas constatações podem, inclusive, indicar que parte do interesse em João Maria foi motivado justamente pelo caráter desautorizado que o relacionamento dos dois teria, pois esse não era permitido tanto por ela ser casada, quanto pela proibição de Roberval de haver no navio algum relacionamento entre seus tripulantes e uma mulher, qualquer que fosse. A última menção direta a desafio se dá, por fim, quando Juliana ameaça suicidar-se e Margarida desafia o seu próprio medo - como a própria afirma -, dizendo à aia: “Que me importa tua morte, depois do que fizeste?” (QUEIROZ, 1991, p. 102).

A segunda instância, por outro lado, é a mudança constante de Margarida - responsável pelo desenvolvimento de sua identidade ao longo do tempo -, que implica inclusive, justamente, o descumprimento de suas palavras dadas. E o que integra essas duas instâncias - a continuidade e a mudança - é a dimensão temporal da narrativa. Tal dimensão é o que possibilita reconhecer uma mesma personagem na bela jovem por todos admirada no começo do romance e na velha, coberta apenas por farrapos de peles de animais, confundida com uma bruxa pelos pescadores que a resgatam ao fim da história. Ricoeur defende a tese de que a personagem tem sua identidade

compreendida por transferência para ela da operação de composição do enredo antes aplicada à ação narrada; a personagem, digamos, é composta em enredo [...] na história narrada, com seus caracteres de unidade, articulação interna e completude, conferidos pela operação de composição do enredo, que a personagem conserva ao longo de toda a história uma identidade correlativa à da própria história (RICOEUR, 2014RICOEUR, Paul. O si-mesmo como um outro. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2014., p. 149).

Ao fim do romance, a identidade da protagonista, mimese da própria história, se mostra como ambígua, invulgar, incompleta, o que se manifesta na personagem, por exemplo, em seu destino incerto, e na narrativa, pela presença dos seres e acontecimentos estranhos que trazem consigo a possibilidade de múltiplas interpretações. Além disso, há um obscurecimento gradual no romance que é reflexo direto do desenvolvimento da personagem. Isso é bastante evidente nos momentos finais quando, em alguns trechos, surgem sentimentos e descrições mórbidas e repulsivas: “Desejo de nada ser, desejo de morte. Eu me via no fundo de uma cova, e os vermes brancos, pretos, cinzentos, ferruginosos, passeavam por meu corpo. Estava num caixão? Era eu a carne podre nos cochos, que eles devoravam?” (QUEIROZ, 1991QUEIROZ, Dinah Silveira de. Margarida La Rocque: a ilha dos demônios. Rio de Janeiro: Record, 1991., p. 118). Também é exemplo desse obscurecimento a transformação da jovem frágil inicial em um indivíduo profundamente hostil - hostilidade, essa, parte do que pode ser considerado um processo gradativo de animalização da personagem. Em ensaio sobre a obra em prosa de Dinah, Malcolm Silverman (1981SILVERMAN, Malcolm. “A diversidade da prosa de Dinah Silveira de Queiroz”. In: SILVERMAN, Malcolm. Moderna ficção brasileira 2: ensaios. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; Brasília: INL, 1981. p. 28-61.) compara as ações de Margarida e da lebre Filho: “Ele [Filho] é a voz da razão e da racionalidade, em oposição ao comportamento progressivamente bestial de Margarida. Paradoxalmente, Filho se torna mais humano à medida que ela mais e mais se animaliza” (SILVERMAN, 1981SILVERMAN, Malcolm. “A diversidade da prosa de Dinah Silveira de Queiroz”. In: SILVERMAN, Malcolm. Moderna ficção brasileira 2: ensaios. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; Brasília: INL, 1981. p. 28-61., p. 48). A animalização da personagem, assim, se dá pela perda da razão, o que se manifesta tanto pelas alucinações - quando se comunica com os seres da ilha - quanto pelas acusações injustas dirigidas à Juliana, por exemplo. Ao mesmo tempo, a conduta adotada por Margarida também indica a progressiva bestialidade em suas ações, referida por Silverman. Em um primeiro momento, ela corta o cordão umbilical que a unia ao filho com os próprios dentes. Na parte final do romance, quando a protagonista se encontra sozinha na ilha, ela passa a alimentar-se de raízes cruas. Esse tipo de conduta chega ao ápice quando a protagonista luta com um animal para proteger o túmulo do filho:

Atirei-me então sobre a fera, cega de ódio, dominada por nova fúria. Exalava sua boca um cheiro de podridão. Seus pelos cortavam. Uni-me a seu corpo, gritando, gritando, e rolamos juntas um grande tempo, enquanto um sórdido gozo experimentava eu, vindo de satisfeita sanha da raiva (QUEIROZ, 1991QUEIROZ, Dinah Silveira de. Margarida La Rocque: a ilha dos demônios. Rio de Janeiro: Record, 1991., p. 123).

A luta com a fera, em vez de medo, lhe gera gozo, prazer, o que contradiz a imagem da mulher como frágil e destituída de coragem. Essa passagem, ainda, se dá nas últimas páginas do romance, pouco antes de Margarida ser encontrada pelos pescadores. Margarida recupera sua condição humana, é possível afirmar, quando se põe em contato com outras pessoas, primeiramente com aqueles que a resgatam da ilha e, posteriormente, e principalmente, com o padre a quem narra sua história. Ou mais do que isso: ela, sendo mulher, reitera a sua humanidade ao pôr em narrativa a própria vida. Ela não mais é o outro, o desvio da norma, o não universal, conforme o explicita Simone de Beauvoir (2016BEAUVOIR, Simone. O segundo sexo: fatos e mitos. São Paulo: Nova Fronteira, 2016a.a). Ela é sujeito, humana. Essa constatação também pode ser relacionada ao postulado por Ricoeur em Tempo e narrativa: o tempo se torna humano quando é posto em narração. Ao fim do romance, a constatação de uma identidade inacabada e inexata pode também ser associada ao apontado por Butler sobre a impossibilidade de se estabelecer uma unidade para uma identidade feminina.

Seria errado supor de antemão a existência de uma categoria de “mulheres” que apenas necessitasse ser preenchida com os vários componentes de raça, classe, idade, etnia e sexualidade para tornar-se completa. A hipótese de sua incompletude essencial permite à categoria servir permanentemente como espaço disponível para os significados contestados. A incompletude por definição dessa categoria poderá, assim, vir a servir como um ideal normativo, livre de qualquer força coercitiva. [...]. Não implica a “unidade” uma norma excludente de solidariedade no âmbito da identidade, excluindo a possibilidade de um conjunto de ações que rompam as próprias fronteiras dos conceitos de identidade, ou que busquem precisamente efetuar essa ruptura como um objetivo político explícito? (BUTLER, 2017BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão de identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2017., p. 40-41).

Ainda que a filósofa desenvolva uma reflexão em torno da identidade feminina de uma maneira geral, e não voltada especificamente a um indivíduo, podemos relacionar suas afirmações com Margarida, assim como a outras personagens, pois a contestação dos significados e a incompletude do que seria uma ‘mulher’ tem como uma de suas consequências a contestação das representações femininas nas artes, incluindo a literatura. Segundo Rita Terezinha Schmidt (2017SCHMIDT, Rita Terezinha. “Mulher e literatura”. In: SCHMIDT, Rita Terezinha. Descentramentos/convergências: ensaios de crítica feminista. Porto Alegre: Editora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2017. p. 39-70.), a representação da personagem feminina normalmente oscila entre dois polos. Em um deles está a mulher-deusa, “materialização do espírito feminino, o catalisador das forças da natureza que irradia o poder dos grandes mitos femininos do mundo clássico” (SCHMIDT, 2017SCHMIDT, Rita Terezinha. “Mulher e literatura”. In: SCHMIDT, Rita Terezinha. Descentramentos/convergências: ensaios de crítica feminista. Porto Alegre: Editora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2017. p. 39-70., p. 41). A mulher-deusa é uma síntese das deusas dos céus, da protetora dos alimentos, da deusa do amor, da caça e dos espíritos subterrâneos. Ela é uma donzela bela e misteriosa que serve à inspiração dos poetas ou uma mãe terna e esposa assexuada - submissa ao marido - e tem seu destino no ambiente doméstico. Ela é Beatriz, Laura, Dulcineia, Penélope, Maria, Grizelda e também a mulher “natural” do Emílio, de Rosseau (SCHMIDT, 2017). No lado oposto da mulher-deusa, está a mulher-demônio; essa é “a encarnação do sexo e da paixão por excelência e, portanto, a origem dos males que afligem o corpo dos homens e assolam seus espíritos” (SCHMIDT, 2017, p. 42). Todas as mulheres-demônio são construídas a partir “de convicções religiosas e éticas de caráter patriarcal segundo as quais o estigma do sexo como desejo e prazer define a mulher como instinto desenfreado, repositório do mal que ameaça a estabilidade e a racionalidade do mundo dos homens” (SCHMIDT, 2017, p. 42). O elenco dessas estereotipadas mulheres-demônio é imenso: Eva, Circe, Fedra, Ana Karenina, Emma Bovary, Molly Bloom (SCHMIDT, 2017).

Em outras palavras, a representação da mulher na literatura está sempre, de uma maneira ou outra, ligada à sua função sexual: ou ela é a mãe santificada procriadora ou a pecadora luxuriosa. A autora conclui, a partir disso, que essas imagens opostas, a ‘positiva’ e a ‘negativa’, “estão em descompasso com o ritmo de nosso desenvolvimento cultural e intelectual e, paradoxalmente, permanecem as mesmas ao longo da tradição literária” (SCHMIDT, 2017SCHMIDT, Rita Terezinha. “Mulher e literatura”. In: SCHMIDT, Rita Terezinha. Descentramentos/convergências: ensaios de crítica feminista. Porto Alegre: Editora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2017. p. 39-70., p. 43). O fato de Margarida La Rocque não estar em nenhum dos dois polos apontados por Schmidt como a representação usual da mulher na literatura indica a subversão e a superação - mesmo que não total - das restrições que esses mesmos polos impõem, enquadrando-se, assim, como uma obra que traz a ruptura com o protótipo de personagem feminina, principalmente quando é considerado o momento de sua produção.

Ao abordar Margarida La Rocque, fica em evidência uma identidade narrativa relevadora de uma personagem em constante elaboração de si mesma e ao mesmo tempo indissociável de seu permanente fascínio pelo desconhecido e pelo aventuroso, representados pelos personagens dos romances de cavalaria que a encantavam - e que também se apresentam a ela nas figuras de João Maria e Roberval -, ou mesmo pelas ‘novas terras’. Essa característica também é exposta numa afirmação do personagem João Maria, em um diálogo com Margarida. Após ele falar sobre o sofrimento que a permanência na ilha causa a si, Margarida diz: “- Não exageres tuas penas. Se sofres, também sofro, por ti, por mim e por nosso filho” (QUEIROZ, 1991QUEIROZ, Dinah Silveira de. Margarida La Rocque: a ilha dos demônios. Rio de Janeiro: Record, 1991., p. 73). O personagem, então, responde de forma inesperada: “Então João Maria riu excitado. Através de suas palavras cortavam setas: - Mulher... Margarida... - corrigiu. - Tão bem te plantaste aqui que estás frutificando. Tua natureza desmente as palavras que proferes! (QUEIROZ, 1991, p. 73, grifo nosso). João Maria se refere à gravidez de Margarida, à sua ‘frutificação’, para justificar o quanto aquele ambiente parece ser apropriado a ela, à sua ‘natureza’. Natureza essa que, segundo o que pode ser subentendido em sua fala, é ligada ao mistério, ao desconhecido - aquilo que a estada na ilha lhes representa. Logo, esse tipo de interesse é essencial para a construção identitária da personagem, na qual o aventuresco e o misterioso - e o seu caráter desafiador - se mostram como elementos fundamentais.

Esses aspectos afastam a conexão (imposta) entre o feminino e a esfera unicamente doméstica - imposição transcorrida fora da literatura, mas reproduzida por essa. Beauvoir afirma que é abundante o tema da casa na literatura, cantando-se toda a sua poesia e as suas virtudes: “fidelidade ao passado, paciência, economia, previdência, amor à família, ao solo natal etc.” (BEAUVOIR, 2016BEAUVOIR, Simone. O segundo sexo: a experiência vivida. São Paulo: Nova Fronteira, 2016b.b, p. 219). Somado a isso, a autora aponta que é frequente que tais virtudes sejam cantadas pelas mulheres, “porque sua tarefa consiste em assegurar a felicidade do grupo familiar; seu papel, como no tempo em que a domina tinha assento no átrio, é ser ‘dona de casa’” (BEAUVOIR, 2016b, p. 219, grifo da autora). Elódia Xavier (2012XAVIER, Elódia. A casa na ficção de autoria feminina. Florianópolis: Mulheres, 2012.), em A casa na ficção de autoria feminina (2012), propõe diferentes classificações para a casa na literatura escrita por mulheres: casa fortaleza, casa couraça, casa relicário, dentre outras. O primeiro espaço em que Margarida transita - a casa dos pais - é o que, segundo a autora, pode ser chamado de ‘casa lar’, lugar da família, que carrega um conjunto de elementos positivos (XAVIER, 2012XAVIER, Elódia. A casa na ficção de autoria feminina. Florianópolis: Mulheres, 2012.); no caso da Margarida, ainda que esse espaço não seja descrito, é de onde vem a recordação da bondade dos pais, dos cuidados dirigidos a si, das histórias contadas pela aia Juliana. Essa imagem é ainda reforçada quando Margarida, após narrar as lembranças dessa casa ao padre, afirma: “Oh, tempos queridos da minha felicidade!” (QUEIROZ, 1991QUEIROZ, Dinah Silveira de. Margarida La Rocque: a ilha dos demônios. Rio de Janeiro: Record, 1991., p. 16).

Essa primeira casa vai ao encontro da simbologia que liga esse espaço ao feminino, “com sentido de refúgio, de mãe, de proteção, de seio maternal” (Jean CHEVALIER; Alain GHEERBRANT, 1991CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos: mitos, sonhos, costumes, gestos, formas, figuras, cores, números. Rio de Janeiro: José Olympio, 1991., p. 197). Na casa dos pais, Margarida era a jovem frequentadora da igreja, mimada pela família e que não conhecia além dos limites de sua aldeia. No entanto, não lhe agradavam os moços do vilarejo que a ela propunham casamento, pois “Achava-os todos broncos e pesados. Tomavam muita sopa, bebiam muito vinho, e não sabiam dizer palavras bonitas às damas. Muitos deles, ricos donos de grandes e fartos celeiros, economizavam na roupa, e andavam com botas rasgadas” (QUEIROZ, 1991QUEIROZ, Dinah Silveira de. Margarida La Rocque: a ilha dos demônios. Rio de Janeiro: Record, 1991., p. 16). O viajante Cristiano, quando surge, não se difere em muito desses moços, conforme se observa na descrição feita por Margarida: não era bonito, tinha dentes estragados, usava roupas inapropriadamente largas e falava de maneira arrogante e autoritária. O que acaba por conquistar Margarida são apenas suas narrativas de viagem sobre ‘países extraordinários’.

Com o casamento, Margarida se desloca para um segundo espaço: a casa do marido, que viria a ser a sua própria. Ainda em A casa na ficção de autoria feminina, Xavier, ao se referir à análise realizada por Gaston Bachelard (2008BACHELARD, Gaston.A poética do espaço. 2 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2008.) em A poética do espaço, aponta que o autor, tendo trabalhado somente com obras de autoria masculina, qualifica a casa como um espaço de felicidade e pertencimento. Porém, segundo Xavier, na literatura escrita por mulheres, isso comumente se manifesta de maneira distinta: “ela [a casa] pode ter uma conotação negativa, como um espaço fechado, que protege e cerceia a liberdade. Deixa de ser ninho, para ser jaula” (XAVIER, 2012XAVIER, Elódia. A casa na ficção de autoria feminina. Florianópolis: Mulheres, 2012., p. 163). Margarida, apesar de, depois do casamento, levar uma vida confortável em um luxuoso sobrado em Paris, se sente infeliz e entediada. Se, num primeiro momento, ela é tomada por um deslumbramento, tanto com a capital francesa e seus habitantes quanto com a riqueza com que o marido mobiliara a casa, num segundo momento, a nova vida e a casa são sinônimos de enclausuramento e enfado. O verão da capital francesa experenciado pela protagonista também é motivo de desprazer: ela dorme mal devido ao barulho causado pelas pessoas que ficam nas ruas e tabernas até tarde em virtude do calor extremo. Enquanto isso, ela própria não pode sair, impedida pelo marido:

Proibia-me [Cristiano] de sair à rua, mesmo acompanhada de Juliana. Podeis crer, Padre. Fiquei assustada, quando, certa vez, tendo desobedecido, ele descobriu, e fez estrondar a sua voz raivosa. Muito tempo depois, foi que verifiquei que ele havia passado uma substância branca na sola de minhas sandálias mais bonitas, aquelas reservadas para os passeios em sua companhia. Eu gastara a frágil camada de tintura! (QUEIROZ, 1991QUEIROZ, Dinah Silveira de. Margarida La Rocque: a ilha dos demônios. Rio de Janeiro: Record, 1991., p. 19).

A casa, assim, se torna sinônimo de aprisionamento - e esse comportamento do marido é uma das justificativas dadas por Margarida para ter cometido adultério. Esse segundo momento, ainda, é quando a personagem tem suas expectativas frustradas devido ao descumprimento da promessa de Cristiano de levá-la em suas viagens. Essa frustração é o que, em parte, a leva à sequência de desobediência-obediência-desobediência ao marido quanto à proibição de que ela saísse de casa durante as suas ausências. Tal sequência é o momento a partir do qual Margarida de fato assume o comando de seu destino, atitude que já se manifestara no espaço anterior - na casa da família, quando ela pode escolher o marido -, mas somente até certo ponto, pois, caso não houvesse aprovação do pai, ela não prosseguiria. A personagem admite ao padre que o amor ao marido foi apenas pretexto para a viagem:

Se vos abro meu coração, meu padre, devo dizer que, realmente, não amava meu esposo. Procurava-o sim, ia ao fim do mundo à sua procura, mas agia bem mais como que movida misteriosamente, que por amor a meu marido. Era como se alguém mandasse e eu obedecesse... (QUEIROZ, 1991QUEIROZ, Dinah Silveira de. Margarida La Rocque: a ilha dos demônios. Rio de Janeiro: Record, 1991., p. 22).

Ao mesmo tempo, porém, ela afirma que não sabe que força era aquela que a motivava:

Era como se alguém mandasse e eu obedecesse... Direis: no fundo, paixão da aventura... Eu vos pergunto: sinceramente, acreditais que uma jovem tão delicada, com suas faces pálidas, em que o sol não tocava, se dispusesse a tão perigosa viagem, por gosto de aventura? Acaso não teria recuado no seu desejo de matar a curiosidade, diante dos mil perigos que lhe ofereciam? (...) Certamente eu fora atraída... Nem eu mesma poderia explicar como me achava ali - senão por outra força, que não a minha... (QUEIROZ, 1991QUEIROZ, Dinah Silveira de. Margarida La Rocque: a ilha dos demônios. Rio de Janeiro: Record, 1991., p. 22-23, grifo nosso).

O trecho grifado, além de conter uma certa dose de ironia - pois o interesse de Margarida pelo aventuresco é bastante óbvio -, pode ser lido como mais uma tentativa da protagonista de eximir-se de qualquer responsabilidade quanto a tudo que ocorreu. E, além disso, o desconhecido, que nela exerce uma força mandatória, pode ser entendido como a profecia apresentada no início do romance e a inexorabilidade da mesma: Margarida se coloca como vítima de seu destino, reiteramos. Porém, ao mesmo tempo que ela assume esse papel de vítima, se coloca em uma posição de protagonismo na própria história quando comete a última desobediência ao marido: a saída de casa para encontrar Roberval, que a levaria a integrar a viagem marítima. E isso a conduz ao terceiro espaço de sua trajetória: o navio.

Segundo Chevalier e Gheerbrant (1991CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos: mitos, sonhos, costumes, gestos, formas, figuras, cores, números. Rio de Janeiro: José Olympio, 1991.), a barca - neste caso, o navio - simboliza a viagem, a travessia, que é realizada tanto por vivos quanto por mortos. Os autores citam a afirmação de Gaston Bachelard de que a primeira e unicamente verdadeira viagem é a morte, e que a presença da barca dos mortos é responsável por despertar a consciência dos erros; logo, a barca da figura mitológica de Caronte é sempre destinada ao inferno, nunca à felicidade. Assim sendo, a barca de Caronte traz em si a simbologia da impossibilidade de destruição da infelicidade humana. Nesse sentido, Roberval, com suas atitudes tirânicas - e destituído da capacidade de perdão -, pode ser ligado a Caronte: o navio de sua propriedade é aquele que conduz Margarida ao inferno, ao mundo subterrâneo, à Ilha dos Demônios. Apesar disso, durante sua permanência no navio, é quando Margarida começa a sentir-se livre, e esse sentimento lhe surge no momento em que se apresenta a possibilidade de o marido estar morto; após narrar seus primeiros contatos e o surgimento do interesse em João Maria, Margarida afirma: “Talvez estivesse livre. Talvez Cristiano já houvesse morrido de febres. (...) Viajava para procurar meu esposo - e já aceitava, com toda a naturalidade, a suposição de estar viúva, e livre, portanto, de me agradar de qualquer homem” (QUEIROZ, 1991QUEIROZ, Dinah Silveira de. Margarida La Rocque: a ilha dos demônios. Rio de Janeiro: Record, 1991., p. 29). Desse modo, a possível morte do marido é entendida como liberdade. Mesmo que o senso de liberdade aqui seja relativo à expectativa de relacionar-se com outro homem, ao se recuperar os acontecimentos da vida de casada da protagonista - o cerceamento do seu deslocamento, inclusive dentro da própria casa -, tal senso se expande para uma esfera geral que engloba todas outras possibilidades de escolhas, incluindo as de ir e vir.

Outro ponto importante que se dá no espaço do navio é a transformação de Margarida de ouvinte em narradora de histórias. Em um primeiro momento da viagem, ela e Juliana eram apartadas do convívio com a tripulação e passavam os dias basicamente no quarto destinado a ambas: “Dias incontáveis desfilaram. Cansei-me de fazer e desfazer minhas tranças, de untar meu pescoço, de mirar-me ao espelho, de ouvir Juliana ler. Havia certas passagens dos romances de cavalaria que eu já sabia de cor” (QUEIROZ, 1991QUEIROZ, Dinah Silveira de. Margarida La Rocque: a ilha dos demônios. Rio de Janeiro: Record, 1991., p. 24). Passado algum tempo, a circulação das duas mulheres é alterada no navio e elas passam a ter momentos de socialização com Roberval e os demais homens. Em parte dessas ocasiões, a protagonista atua como contadora de histórias, se valendo dos romances de cavalaria memorizados. Margarida, assim, se torna duplamente narradora e/ou criadora de suas histórias: quando narra sua trajetória ao padre e nas narrações à tripulação do navio. Tal fato revela uma aproximação entre Margarida e a figura de Sherazade: tal qual a contadora de histórias d’As mil e uma noites, suas narrativas iniciadas ao crepúsculo são elementos de troca e sedução - tanto em relação a Roberval quanto ao próprio João Maria, que mais tarde lhe procura pedindo seus livros emprestados, afirmando “Cativo fiquei de tão belas histórias” (QUEIROZ, 1991, p. 28) - ou, mesmo, ainda em relação ao padre, a quem ela, apesar de afirmar não estar em busca de uma confissão, por meio de sua narrativa tenta justificar suas ações e, é possível concluir, isentar-se de responsabilidades.

Um pouco mais adiante, ainda na embarcação, Juliana descobre o relacionamento de Margarida com João Maria e passa a vigiá-la; assim, novamente, a protagonista encontra sua liberdade cerceada. Logo depois, no entanto, Roberval flagra o casal em um beijo, o que resulta no abandono na ilha como punição. E é nesse espaço onde se passa a maior parte do romance e onde também se dão muitos dos acontecimentos que contribuem para o desenvolvimento da construção identitária da protagonista. Isso se dá, inclusive, na relação entre ela e esse espaço; se num primeiro momento a ilha lhe causa grande medo, ao final do romance Margarida se torna parte dela:

À noitinha, sentava-me à frente da cabana. Como a carne sem cozinhá-la. E a mesma fera, que parecia um cão peludo, surgiu, como se viesse de trás da cabana. Postou-se, desviada, sentada nas patas traseiras. Os pássaros revoavam, passavam por minha cabeça. Senti que um pousava no meu ombro. Deixei-o ficar. A fera continuava a me olhar. Com o movimento que depois fiz, foi-se a ave. O feio animal fitava-me. Atirei-lhe um pedaço de carne. Não a abocanhou. Mostrou-me seus dentes, arregaçando os beiços. E havia semelhança de riso humano em sua cara. Com a morte de Joãozinho, a ilha me revelou seu último segredo. Tornei-me agora de sua natureza. Antes havia uma divisa, entre nós e os bichos. Agora já nada havia. As aves de Deus me tomavam como uma árvore movente, e aquela fera não me queria atacar (QUEIROZ, 1991QUEIROZ, Dinah Silveira de. Margarida La Rocque: a ilha dos demônios. Rio de Janeiro: Record, 1991., p. 111).

Apesar de Margarida se referir à ilha, em algumas passagens, como um triste exílio, a personagem também afirma que esse espaço era “terra dos encantos, se aqui vim conceber, parir, conhecer profundezas de solidão de alma, e ter a prova mais firme do amor de um cavaleiro. (...) Trago-vos verdade não só do tempo, tocada, vivida, acontecida. Mas verdade que foi tão minha” (QUEIROZ, 1991QUEIROZ, Dinah Silveira de. Margarida La Rocque: a ilha dos demônios. Rio de Janeiro: Record, 1991., p. 78). Nesse sentido, esse espaço está relacionado com a simbologia por excelência da ilha: o centro espiritual primordial (CHEVALIER; GHEERBRANT, 1991CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos: mitos, sonhos, costumes, gestos, formas, figuras, cores, números. Rio de Janeiro: José Olympio, 1991.). A ilha desconhecida, um dos temas fundamentais da literatura, seria o refúgio “onde a consciência e a verdade se uniriam para escapar aos assédios do inconsciente: contra os embates das ondas o homem procura o socorro do rochedo” (CHEVALIER; GHEERBRANT, 1991, p. 502). Se essa afirmação for considerada, contudo, Margarida mais uma vez se mostra contraditória: a ilha foi o seu refúgio, onde ela viveu a sua verdade e experimentou os mais variados sentimentos, mas também foi onde os demônios da sua consciência a perseguiram e confrontaram. É também na ilha que Margarida demonstra sua força, desde o ponto inicial, quando ela toma a iniciativa que viria a salvar João Maria de um possível afogamento, até o instante em que é resgatada - altura em que já há algum tempo sobrevivia sozinha ao ambiente hostil.

O espaço final da narrativa, o convento, é um ponto ambíguo no que diz respeito à formação identitária de uma mulher como sujeito de si. Isso porque o envio de mulheres a conventos era uma prática aplicada no século XVI a adúlteras ou àquelas que não se enquadravam nos papéis esperados ao gênero feminino, como forma de controle da sexualidade. Segundo estudo de Leila Mezan Algranti (1992ALGRANTI, Leila Mezan. Honradas e devotas: mulheres da colônia - estudo sobre a condição feminina através dos conventos e recolhimentos do sudeste - 1750-1822. 1992. Doutorado (Programa de Pós-Graduação em História Social) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil.),

enquanto ao Estado era possível encontrar formas alternativas para se desvencilhar das populações masculinas indesejadas, às mulheres restavam poucas oportunidades, a não ser o recolhimento forçado. No imaginário da época, pobreza e miséria, (sic) levavam indiscutivelmente donzelas e viúvas à dissolução dos costumes e em última instância à prostituição (p. 51).

Ainda no mesmo estudo, a autora esclarece que

a prática do enclausuramento das mulheres leigas foi assim ampliada frente às transformações sociais e mentais que convulsionaram a Europa no início da Época Moderna. Ela atinge as mulheres pobres, mendigas e prostitutas. Assume um caráter punitivo contra as infratoras, mas engloba também as representantes da nobreza e da alta burguesia, pois a questão não está restrita à de falta de trabalho, ou aos perigos do aumento da criminalidade e da prostituição. A necessidade de se prover mulheres de elite que não dispunham de uma proteção masculina, com um mínimo de conforto e segurança à altura de seu status, acaba por levá-las às instituições de reclusão (ALGRANTI, 1992ALGRANTI, Leila Mezan. Honradas e devotas: mulheres da colônia - estudo sobre a condição feminina através dos conventos e recolhimentos do sudeste - 1750-1822. 1992. Doutorado (Programa de Pós-Graduação em História Social) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil., p. 52).

No romance não é explicado, no entanto, se Margarida vai para o convento por vontade própria ou não. Quando sobe a bordo do veleiro que a resgatou da ilha, o dono da embarcação afirma “levo-te à terra abençoada, ao país da Bretanha” (QUEIROZ, 1991QUEIROZ, Dinah Silveira de. Margarida La Rocque: a ilha dos demônios. Rio de Janeiro: Record, 1991., p. 126). Os detalhes de sua chegada ao convento não são expostos, e tampouco é esclarecido se a passagem de Margarida pela instituição é temporária ou permanente. Sendo que a protagonista estava maltrapilha e envelhecida, sem amparo da família ou marido - do qual não teve mais notícias - e sem recursos, o mais provável é que o fim da personagem seja associado àquele dado às mulheres em situação de pobreza, conforme mencionado na pesquisa de Algranti. O seu destino então é carregado de ambiguidades, pois, ao mesmo tempo que a narrativa deixa entrever que Margarida recebeu o perdão divino, pois ela é a única dos exilados na ilha a salvar-se - segundo as palavras de Roberval -, sua presença em um convento também traz expostas outras possibilidades de sentido. Por outro lado, Cristina Ferreira Pinto (1990PINTO, Cristina Ferreira. O Bildungsroman feminino: quatro exemplos brasileiros. São Paulo: Perspectiva, 1990.) afirma que os finais literários em que as mulheres eram (ou são) punidas podem ganhar outras interpretações. Segundo a autora, esses finais - dentre eles a morte, a loucura, o ostracismo - podem ser entendidos “como uma forma de punição da mulher que tentou ir além dos limites sociais normalmente aceitos, ou como a única forma de rejeição desses mesmos limites” (PINTO, 1990PINTO, Cristina Ferreira. O Bildungsroman feminino: quatro exemplos brasileiros. São Paulo: Perspectiva, 1990., p. 18). Em outras palavras, esses desfechos permitem ver nas narrativas uma duplicidade, um caráter ambíguo, pois o que, à primeira vista, constitui uma punição de fundo moralizante, pode também representar a alternativa única de libertação, pela qual a personagem optou (PINTO, 1990). Assim sendo, o desfecho do romance também pode ser entendido como o único fim de liberdade possível para a personagem, dada a sua trajetória e a identidade que para ela se constitui.

Ainda que o final seja carregado de ambiguidade, o deslocamento por diferentes espaços - bem como as suas significações e simbologias - é de fundamental importância para a identidade narrativa que se constrói para Margarida. Pois, além de os espaços repercutirem no desenvolvimento e na transformação identitária contínua que se dá ao longo do tempo - posto em narrativa -, há o rompimento com o ambiente privado. E tal rompimento é motivado justamente pelo cerceamento de sua liberdade, depois do casamento: quando está na casa do marido, a própria personagem afirma que, apesar de ter sido instalada com o luxo que desejava e de não lhe faltar dinheiro, se “sentia apreensiva, e, consultando meu coração, julgava-me um tanto roubada. Que me faltava?” (QUEIROZ, 1991QUEIROZ, Dinah Silveira de. Margarida La Rocque: a ilha dos demônios. Rio de Janeiro: Record, 1991., p. 20). Mesmo que essa pergunta permaneça sem uma resposta direta, é a busca desse algo que falta à responsável pela inquietação de Margarida, que move ela própria e a narrativa. O rompimento com o ambiente privado, também, é motivado pelo fascínio da personagem por terras desconhecidas, pela aventura, pelo mistério, e é um dos elementos centrais para a formação de uma identidade que mostra uma personagem em desacordo com uma identidade feminina limitada e/ou estereotipada.

Isso porque quando se observa essa questão pelo viés da teoria e da crítica feminista, é notório que Margarida não se enquadra na concepção típica da personagem feminina, visto que ela possui uma construção identitária expandida que ultrapassa uma identidade feminina restrita, a partir da qual a mulher era entendida unicamente como um ser 1) belo, delicado, frágil e passivo; 2) destinado e ligado ao ambiente doméstico; 3) desejoso da maternidade e de seu exercício em um modelo exemplar, ligado à imagem santificada da mãe; 4) casto e sem desejos sexuais, mas fiel aos desejos do marido e ao casamento; 5) obediente; 6) destituído de voz - não porque não a tinha, mas porque às mulheres não era permitida a palavra.1 1 É importante salientar que a maior parte das seis características listadas era/é atribuída unicamente a uma construção identitária esteriotípica da mulher branca e heterossexual. A realidade das mulheres negras, indígenas, lésbicas etc. difere em muitos aspectos e não é o objeto desse trabalho, visto que a personagem analisada é identificada como branca e heterossexual. Consequentemente, a identidade narrativa de Margarida, ao revelar uma personagem que rompe essas características, aponta as diferentes possibilidades do que pode conter a identidade feminina, que não é fixa ou única - e tampouco relacionada exclusivamente aos aspectos enumerados -, mas infinitamente variável e em permanente construção ao longo do tempo.

A identidade narrativa, criação de si e produto da linguagem, é o que “mantém unidas as duas pontas da cadeia: a permanência do caráter no tempo e a permanência da manutenção de si” (RICOEUR, 2014RICOEUR, Paul. O si-mesmo como um outro. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2014., p. 178). Margarida, narradora e personagem da própria história, elabora para ela própria uma identidade em busca de compreender a si mesma; ao fazer isso, revela uma identidade narrativa que carrega o elemento constante da mudança - ao ponto de romper com a ‘palavra dada’, princípio ético apresentado por Ricoeur - e que, ao mesmo tempo, a mantém a mesma que desde a infância se interessa por enredos de aventura. Este último aspecto é outro elemento que mimetiza o romance: a própria Margarida, é possível afirmar, cria a sua narrativa de aventura ao contar sua vida ao padre - ela assim se torna a ‘cavaleira destemida’ de sua história aventuresca. Por meio da narração de suas ações, Margarida também desvela a identidade narrativa de uma personagem feminina subversiva, contribuindo para a descontinuidade da construção de um feminino único e ideal, irreal e reduzido, rompendo assim com a ‘cristalização’ da qual fala Butler (2017BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão de identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2017.):

Se há algo de certo na afirmação de Beauvoir de que ninguém nasce e sim torna-se mulher decorre que mulher é um termo em processo, um devir, um construir de que não se pode dizer com acerto que tenha uma origem ou um fim. Como uma prática discursiva contínua, o termo está aberto a intervenções e ressignificações. Mesmo quando o gênero parece cristalizar-se em suas formas mais reificadas, a própria “cristalização” é uma prática insistente e insidiosa, sustentada e regulada por vários meios sociais. Para Beauvoir, nunca se pode tornar-se mulher em definitivo, como se houvesse um telos a governar o processo de aculturação e construção. O gênero é a estilização repetida do corpo, um conjunto de atos repetidos no interior de uma estrutura reguladora altamente rígida, a qual se cristaliza no tempo para produzir a aparência de uma substância, de uma classe natural de ser (p. 69).

O tornar-se mulher, assim, é um processo contínuo que se dá ao longo do tempo e é, também, uma prática discursiva - tal qual a construção de identidade proposta por Ricoeur. Essa prática - aberta a intervenções e ressignificações, segundo Butler -, em Margarida La Rocque, se apresenta no desenvolvimento identitário de uma personagem que vai na contramão de muitos aspectos que fazem parte do que a filósofa chama de ‘estrutura reguladora altamente rígida’. Margarida apresenta uma identidade em que essas características estão presentes - pois carrega, simultaneamente, traços que rompem e traços que mantêm o perfil tradicional da personagem feminina. Esses aspectos, ainda, podem ser entendidos, do ponto de vista ricoeuriano, como a conciliação da continuidade e da descontinuidade. Pois, assim como há tal conciliação entre a mudança e a permanência - indício de uma identidade em desenvolvimento e elaboração permanentes -, também há a conciliação - não no sentido de aceitação, mas de duplicidade, de aglutinação - entre uma mulher autônoma e uma mulher ainda subordinada. E isso, em última análise, é sintoma do romance pertencer a uma fase de transição em que estão surgindo, também na literatura, os questionamentos a respeito da situação feminina. Todas essas conciliações se tornam possíveis no momento em que Margarida coloca sua vida na dimensão temporal de uma narrativa e, com isso, se mostra como uma personagem insubmissa, ambígua, desafiadora. E é ainda mais significativo que tais características sejam expostas por uma narradora mulher que detém o controle dos acontecimentos e é a responsável única por dar voz à sua identidade narrativa.

Referências

  • ALGRANTI, Leila Mezan. Honradas e devotas: mulheres da colônia - estudo sobre a condição feminina através dos conventos e recolhimentos do sudeste - 1750-1822 1992. Doutorado (Programa de Pós-Graduação em História Social) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil.
  • BACHELARD, Gaston.A poética do espaço 2 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2008.
  • BEAUVOIR, Simone. O segundo sexo: fatos e mitos São Paulo: Nova Fronteira, 2016a.
  • BEAUVOIR, Simone. O segundo sexo: a experiência vivida São Paulo: Nova Fronteira, 2016b.
  • BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão de identidade Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2017.
  • CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos: mitos, sonhos, costumes, gestos, formas, figuras, cores, números Rio de Janeiro: José Olympio, 1991.
  • PINTO, Cristina Ferreira. O Bildungsroman feminino: quatro exemplos brasileiros São Paulo: Perspectiva, 1990.
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  • XAVIER, Elódia. A casa na ficção de autoria feminina Florianópolis: Mulheres, 2012.
  • 1
    É importante salientar que a maior parte das seis características listadas era/é atribuída unicamente a uma construção identitária esteriotípica da mulher branca e heterossexual. A realidade das mulheres negras, indígenas, lésbicas etc. difere em muitos aspectos e não é o objeto desse trabalho, visto que a personagem analisada é identificada como branca e heterossexual.
  • Como citar esse artigo de acordo com as normas da revista:

    STEFFEN, Ana Cristina; BAUMGARTEN, Carlos Alexandre. “A identidade narrativa em Margarida La Rocque, de Dinah Silveira de Queiroz”. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 30, n. 1, e7404, 2022.
  • Financiamento:

    Este trabalho é parte dos resultados da dissertação “Quando a mulher tem voz: a narradora-personagem de Margarida La Rocque: a ilha dos demônios, de Dinah Silveira de Queiroz” (2019), realizada com bolsa do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq)
  • Consentimento de uso de imagem:

    Não se aplica
  • Aprovação de comitê de ética em pesquisa:

    Não se aplica

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    14 Mar 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    19 Maio 2020
  • Aceito
    14 Out 2021
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