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Apresentação

DOSSIÊ MULHERES E MEIO AMBIENTE

Apresentação

Carmem Susana TornquistI; Teresa Kleba LisboaII; Marcos Freire MontysumaIII,1 1 Professor convidado especialmente para a organização deste Dossiê.

IUniversidade do Estado de Santa Catarina

IIUniversidade Federal de Santa Catarina

IIIUniversidade Federal de Santa Catarina

Este dossiê tem como objetivo compartilhar algumas abordagens contemporâneas relativas às questões ambientais, nas quais mulheres são tomadas como protagonistas de ações políticas em interações sociais. A pertinência de oferecer um dossiê dedicado às questões ambientais reside no fato de esse debate ter ganhado dimensões consideráveis nos dias atuais, impedindo o aprofundamento das reflexões que alimentam as causas daquilo que se convencionou chamar de 'crise ecológica'. Chama atenção, ainda, as formas como diferentes setores da sociedade têm ressignificado as questões relativas aos limites do planeta, ao suportar a exploração dos recursos ditos naturais (para usar um termo que já estava presente nas pioneiras constatações do Clube de Roma, ainda nos anos 1970). Diante do agravamento da crise ambiental, tais preocupações ampliaram-se e levaram os países a celebrar acordos internacionais, como o protocolo de Kioto (1995) e a Conferência de Kopenhangen (2009).

A temática que ora apresentamos, embora em contexto bastante diverso daquele primeiro número da REF,2 2 A REF v. 0, n. 0, do ano de 1992, publicou um dossiê intitulado "Mulher e Meio Ambiente", dando ênfase em artigos sobre as "Memórias do Planeta Fêmea", "Ecos feminismos na ECO 92", justamente para visualizar o significado da ECO 92 para os estudos feministas. ocorrido logo após a ECO-92, demarca, ainda como ponto crucial de reflexão no campo do feminismo e do gênero, muito trabalho de reflexão e elaboração. Vale ressaltar que, naquela época, a presença, na ECO-92, das mulheres e das feministas, com suas especificidades, inaugurou o Planeta Fêmea - um espaço de articulação das questões ambientais, articulações estas anunciadas também, em nível teórico, nos marcos do que se convencionou chamar de 'novos movimentos sociais', como o movimento ecológico e o feminista, considerados por alguns autores e autoras como os principais movimentos sociais da virada do século XX para o século XXI.

Adotamos neste dossiê um título similar àquele, de 1992, por considerarmos que, embora 18 anos nos separam daquela data, ainda nos são apontados inúmeros desafios: de um lado o aumento da crise ambiental, das catástrofes naturais e irresponsabilidade por parte dos governantes em relação à preservação do meio ambiente; e de outro um significativo aumento da consciência ecológica, maior número de ações defensivas por parte dos movimentos sociais, passando pela geopolítica, pelas conferências sobre clima e propostas de mudanças em relação a um novo tipo de desenvolvimento, mais humano e sustentável.

Nesse sentido, consideramos importante retomar alguns clássicos dessa discussão, incluindo outras referências sobre gênero e desenvolvimento sustentável, ecofeminismo, bem como as questões promovidas por Françoise D'Eaubonne,3 3 VASSEUR, 2009. nos anos 1970, sobre a temática natureza e cultura, chave central na discussão sobre mulheres e meio ambiente, importante no contexto francófono e pouco conhecida entre nós.

Outro marco significativo surgido no decorrer dos debates foi que, ao final da década de 1980, no contexto das políticas de Conferências Mundiais sobre temas como mulheres, meio ambiente, população, entre outros, as agências de fomento propuseram uma mudança do enfoque "Mulher e Desenvolvimento" para "Gênero e Desenvolvimento", com base no argumento de que "a perspectiva de gênero e desenvolvimento representa não só integrar as mulheres ao desenvolvimento, mas sim buscar o potencial que as iniciativas de desenvolvimento possuem para transformar as desiguais relações de gênero e para propiciar mais poder às mulheres".4 4 BRAIDOTTI, 2004, p. 36. Essa mudança foi essencial na medida em que demarcou o caráter político da questão, ou seja, extrapolou a noção de um essencialismo voltado somente para as mulheres (que eram identificadas com a natureza) e ampliou o enfoque para as relações de gênero.

Por outro lado, a articulação crescente entre mulheres e/ou gênero e desenvolvimento sugere que este último conceito também merece ser analisado, a nosso ver, desde uma perspectiva crítica, a exemplo do artigo de Marie France Labrèque, neste dossiê, fazendo eco a várias/os estudiosas/os críticas/os com relação ao tema "Gênero e desenvolvimento", proposto pelas Nações Unidas.5 5 Jules FALQUET, 2008.

Se os organismos multilaterais e o sistema das Nações Unidas contribuíram para divulgar certa consciência ecológica global, fica evidente que esse comprometimento reflete as relações de poder entre os países. Recentemente, em Copenhagen, constatou-se que os países 'desenvolvidos' - os maiores poluidores do planeta - negaram-se a subscrever os acordos mais decisivos e seus pontos mais nevrálgicos. Não por acaso, o "movimento altermundialista"6 6 Esse movimento contra o capitalismo neoliberal surge com a revolta zapatista no México, em 1994, consolida-se nas manifestações durante as reuniões internacionais das instituições chamadas multilaterais (FMI, OMC, Banco Mundial) e culmina na criação do Fórum Social Mundial. tem sido presença constante nesses encontros com o intuito de pressionar os governos a assumirem posturas mais radicais no sentido do controle da crise ambiental, já que as tendências mais hegemonizantes têm caminhado na apropriação dos aspectos pontuais da questão ambiental.

Nos fóruns sociais mundiais e outros encontros internacionais de movimentos sociais, como a recente Conferencia Mundial de los Pueblos sobre Cambio Climático y Derechos de la Madre Tierra, os debates têm ocorrido com foco nos modelos de desenvolvimento, no sistema capitalista e nas relações desiguais entre Norte-Sul. Esses encontros têm chamado atenção para pontos cruciais da crise ecológica, como ocorre com a proposta de criação de um tribunal internacional de justiça climática que reparte a chamada dívida climática dos países ricos com os países pobres. A presença dos movimentos de mulheres vem se sobressaindo junto a estes eventos, com destaque para a Marcha Mundial das Mulheres, que tem assumido, desde 2005, as bandeiras de lutas ambientais e sociais, expressadas em seus documentos, nas ações práticas e nas alianças com os grupos Amigos da Terra e Via Campesina.

A aproximação com o debate sobre gênero e desenvolvimento sustentável tem incluído, nesse contexto, temas como a agricultura familiar, a silvicultura, irrigação e sistemas de água, dentre outros, uma vez que são as mulheres que ainda preservam as habilidades necessárias aos diferentes tipos de cultivos, tanto da alimentação básica como de ervas e plantas medicinais. São as mulheres que possuem mais experiência na condução de um processo de desenvolvimento humano local e sustentável, pois têm mostrado através do cotidiano que são gestoras de recursos, produtoras de alimentos; são as que mais contribuem para a biodiversidade no pequeno lote de terra, selecionando espécies de sementes, mudas de ervas e preservando a cultura dos quintais - transportando os campos para as cidades.

Por outro lado, a desigualdade social que atinge as mulheres pobres faz com que estas se transformem nas primeiras e principais atingidas pela crise ecológica e deterioração do meio ambiente. Alguns exemplos disso são o aumento da carga de trabalho das mulheres diante das mudanças climáticas para satisfazer as necessidades básicas da família diante da escassez de água, lenha, forragem para os animais, entre outras. Sobretudo nas áreas rurais, as mulheres têm sentido os efeitos da contaminação da água e do ar, a crescente exposição delas e de seus familiares aos produtos químicos, ou também nos processos migratórios contemporâneos, alguns deles relacionados com as mudanças climáticas.

A situação subalterna e de invisibilidade das mulheres no campo é decorrente de processos históricos. No entanto, essa situação poderia ser modificada em face de utopias coletivas, entre as quais estão o acesso equitativo e respeitoso aos recursos, ao consumo consciente e à soberania alimentar, questões estas que, forçosamente, se fazem presentes no atual contexto de desenvolvimento que, por ora, ainda não privilegia o humano nem a perspectiva 'sustentável'!

No texto "Desenvolvimento sustentável com perspectiva de gênero - Brasil, México e Cuba: mulheres protagonistas no meio rural", as autoras Teresa Kleba Lisboa e Mailiz Garibotti Lusa tiveram a preocupação em discutir, de modo comparado, através de dados empíricos e análise teórica, como em países do porte do Brasil, México e Cuba - e com diferenças consideráveis entre si - são construídas as chamadas políticas públicas para as mulheres, orientadas nos parâmetros de desenvolvimento sustentável e gênero, considerando as 'necessidades básicas das mulheres do campo'. Já no texto "A construção de uma agenda para as questões de gênero, desastres socioambientais e desenvolvimento", a autora Rosana de Carvalho Martinelli Freitas se dispõe a apresentar um mapeamento de questões que envolvem a relação 'sociedade, desenvolvimento, meio ambiente e gênero', tendo como foco os impactos causados pelos desastres, ditos 'naturais', que tanto têm chamado a atenção da sociedade nos últimos tempos (ainda que fugaz e espetacular). A autora traz importantes reflexões a partir de uma perspectiva marxista, cujo campo teórico, nos últimos anos, vem debruçando-se com maior atenção sobre a crise ecológica, destacando que a mercantilização da vida não se esgota na relação capital-trabalho, mas também envolve a destruição e deterioração da vida de milhares de seres humanos, assim como os próprios recursos naturais, mercantilizados, privatizados e dilapidados crescentemente, levando o planeta a uma encruzilhada civilizatória de dimensões alarmantes. Tanto o texto de Rosana Martinelli Freitas quanto o de Teresa Lisboa e Mailiz Lusa pretendem, a partir de diferentes perspectivas teóricas, além de analisar situações e questões específicas, trazer elementos que, em seus entendimentos, deveriam constituir vetores para a elaboração de uma agenda, de um campo de militância, no enfrentamento das emergências ambientais colocadas na agenda política.

No texto "Transversalização da perspectiva de gênero ou instrumentalização das mulheres?", de Marie France Labrecque, temos uma análise baseada em pesquisa empírica, na qual se busca compreender como as políticas de transversalização de gênero são implantadas no México, a partir da conferência de Beijing, ocorrida em 1995. As referências internacionais são decodificadas e convertidas em políticas locais, no âmbito de um governo nitidamente conservador e neoliberal, criando um curioso (e revelador) fato: apontando para os desafios que o feminismo enfrenta ao assistir à instauração de instituições e de programas voltados à igualdade de gênero, como o que teria ocorrido no México sem, necessariamente, efetivar compromissos políticos que estão na base das recomendações das conferências que os formularam.

No texto ''Mulheres da floresta do Vale do Guaporé e suas interações com o meio ambiente", Tereza Almeida Cruz, historiadora e ativista de movimentos de mulheres no Norte do Brasil, analisa como mulheres quilombolas, do Vale do Guaporé, em Rondônia, constroem saberes ambientais de grande utilidade para uma perspectiva de desenvolvimento orientada para a sustentabilidade. Detentoras e disseminadoras de conhecimentos constituídos na cultura local, mulheres seringueiras, castanheiras, pescadoras, parteiras, curandeiras expressam visões de relação com o meio de interação, bem distintas daquelas que têm embasado o capitalismo e o industrialismo dos últimos séculos. Essas mulheres partilham concepções com as comunidades às quais pertencem, nas quais os seres humanos e animais, em correlação com espíritos da floresta e o dito meio ambiente, não estão separados, nem separados da vida social, nem tampouco são reduzidos à condição de suporte, ou se prestam a ser matéria-prima para a vida humana, mas fazem parte desta. Essa ideia aproxima-se daquela que tem alimentado a noção de perspectivismo,7 7 Esta discussão tem alimentado vários estudos etnológicos realizados nas e sobre as ditas sociedades indígenas das terras baixas latino-americanas (Eduardo VIVEIROS DE CASTRO,1996.) na antropologia, que considera que as cosmologias ameríndias não separam a vida humana das formas de vida do mundo animal e natural, sendo que as relações destes outros seres com os seres humanos são constitutivas da sua 'humanidade'.

O artigo de Maria Ignez Paulilo, "Intelectuais & militantes e as possibilidades de diálogo", cumpre explicitamente o principal propósito deste dossiê: o de enfrentar diretamente o debate entre intelectuais e ativistas dos movimentos de mulheres, à luz de suas pesquisas junto aos movimentos e lutas sociais contemporâneas, com destaque aos movimentos rurais articulados na Via Campesina, cujas críticas ao modelo de desenvolvimento capitalista não apenas repousa no seu caráter fortemente excludente, mas também no caráter predatório dos recursos naturais, em diversos níveis. Além disso, a autora caracteriza as diversas correntes do movimento de mulheres agricultoras, apontando a importância que foi adquirindo o feminismo ecológico ou ecofeminismo (ainda que não de forma declarada), e contribui com instigantes questões acerca das tensões entre o feminismo acadêmico (fortemente desconstrucionista da noção de natureza) e uma concepção de natureza inquestionável (o essencialismo), criticado teoricamente no movimento de mulheres agricultoras.

Ao mesmo tempo, muitos movimentos indígenas da América Latina têm reverenciado a "Madre Tierra" (tradução possível de Pachamama) como aquela que garante a indivisibilidade entre mundo humano e mundo natural. Estes povos originários têm garantido, historicamente, a preservação de vastas áreas naturais vistas como seres viventes e, com isso, subvertido as concepções ocidentais que sustentam as noções de desenvolvimento, progresso, crescimento, bem como as práticas destrutivas do meio ambiente, como o garimpo, a derrubada de florestas, a contaminação de rios.

Nesse sentido, povos e culturas menos comprometidos com a modernidade ocidental podem contribuir com um projeto societário emancipatório, no sentido de valorizar menos o crescimento econômico e o consumo de mercadorias, e mais o 'bem viver', ideia que tem se fortalecido nos Fóruns Sociais Mundiais e outros encontros do movimento altermundialista.8 8 SANTOS, 2007, p. 25. Destarte, uma interessante reflexão é colocada por Boaventura Souza Santos: "Seria apenas coincidência que 80% da biodiversidade se encontre em territórios indígenas? Não. É porque a natureza para eles é Pachamama - não é um recurso natural".9 9 SANTOS, 2007, p. 33. Nessa metáfora do Planeta Terra (Mãe Terra), as referências à representação (tão questionada pelo feminismo) de maternidade fica evidente - e demonstra, a nosso ver, como o debate sobre o ecofeminismo permanece atual também em muitas pesquisas sobre gênero e meio ambiente. Assim, consideramos que os artigos deste dossiê contribuirão com essa reflexão crítica, justamente porque repousam em perspectivas teóricas distintas, à luz da tradição desta revista. Mesmo que seja fundamental desconstruir teoricamente esses conceitos e essas imagens, tanto quanto as categorias de desenvolvimento e de sustentabilidade, meio ambiente e natureza, é importante reconhecer sua força ideológica (quiçá, mítica) e procurar compreender quais seus sentidos, sua força no plano da vida concreta e das lutas sociais em prol de outros devires.

  • BRAIDOTTI, Rosi. "Mujeres, medio ambiente y desarrollo sustentable". In: GARCÍA, Verónica Vázquez; GUTIÉRREZ, Margarita Velásquez (Compiladoras). Miradas al futuro - hacia la construcción de sociedades sustentables con equidad de género. México: PUEG, CRIM/Centro Internacional de Investigaciones para el Desarrollo/Colegio de Posgraduados, 2004. p. 23-59.
  • FALQUET, Jules. De gré ou de force. Les femmes dans la mondialisation Paris: La Dispute, 2008.
  • SANTOS, Boaventura Souza. Renovar a teoria critica, e reinventar a emancipação social São Paulo: Boitempo Editorial, 2007.
  • VASSEUR, Liette. "L'écologie: une science ou un enjeu de la vie quotidienne?" Recherches Féministes, Montreal, UQAM, v. 22, n. 1, p. 1-4, 2009.
  • VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. "Os pronomes cosmológicos e o perspectivismo ameríndio". Mana, v. 2, n. 2, p. 115-144, out. 1996.
  • 1
    Professor convidado especialmente para a organização deste Dossiê.
  • 2
    A REF v. 0, n. 0, do ano de 1992, publicou um dossiê intitulado "Mulher e Meio Ambiente", dando ênfase em artigos sobre as "Memórias do Planeta Fêmea", "Ecos feminismos na ECO 92", justamente para visualizar o significado da ECO 92 para os estudos feministas.
  • 3
    VASSEUR, 2009.
  • 4
    BRAIDOTTI, 2004, p. 36.
  • 5
    Jules FALQUET, 2008.
  • 6
    Esse movimento contra o capitalismo neoliberal surge com a revolta zapatista no México, em 1994, consolida-se nas manifestações durante as reuniões internacionais das instituições chamadas multilaterais (FMI, OMC, Banco Mundial) e culmina na criação do Fórum Social Mundial.
  • 7
    Esta discussão tem alimentado vários estudos etnológicos realizados nas e sobre as ditas sociedades indígenas das terras baixas latino-americanas (Eduardo VIVEIROS DE CASTRO,1996.)
  • 8
    SANTOS, 2007, p. 25.
  • 9
    SANTOS, 2007, p. 33.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      21 Jan 2011
    • Data do Fascículo
      Dez 2010
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