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Gênero e(m) discurso(s)

ARTIGOS TEMÁTICOS

Gênero e(m) discurso(s)

Susana Bornéo Funck

Universidade Federal de Santa Catarina

Os estudos do discurso, nas suas mais variadas vertentes, ocupam hoje um lugar privilegiado na investigação científica, não só nas ciências da linguagem, mas também, e em âmbito cada vez maior, nas ciências sociais. Por sua natureza interdisciplinar, a Análise do Discurso - e aqui podem ser incluídas a AD de linha francesa, a Análise Crítica do Discurso, o Sociointeracionismo Discursivo, a Teoria da Enunciação, entre tantas outras - fornece importantes instrumentos de análise para as questões de gênero. Ao permitir que se investigue a linguagem em uso nas interações cotidianas, revela processos de formação, perpetuação ou mudança nas relações de poder entre indivíduos e grupos.

Convém lembrar, conforme argumenta Tomás Ibáñez Garcia,1 1 GARCIA, 2004, p. 33. que

a linguagem não é um simples veículo para expressar nossas idéias, nem uma simples roupagem para vestir nosso pensamento quando o manifestamos publicamente. Ela é a própria condição de nosso pensamento e, para entender esse último, temos que nos concentrar nas características da linguagem em vez de contemplar o suposto mundo interior de nossas idéias. Nosso conhecimento do mundo não se radica nas idéias que dele fazemos; ele se abriga, sim, nos enunciados que a linguagem nos permite construir para representar o mundo.

Para Norman Fairclough,2 2 FAIRCLOUGH, 2001, p. 91. no entanto, é preciso considerar mais do que a função meramente representativa da linguagem. Apoiando-se em Michel Foucault, para quem o discurso tem uma grande força geradora, não apenas designando os objetos a que se refere, mas também os constituindo, Fairclough concebe o discurso não apenas como a representação do mundo e das relações nele existentes, mas como uma prática de significação, "constituindo e construindo o mundo em significado". Em linhas bastante gerais, portanto, podemos dizer que a linguagem, em suas várias manifestações, é uma prática social de representação e de significação, sendo o discurso um conjunto de práticas linguísticas que estabelecem, mantêm ou questionam estruturas sociais.

Nesse sentido, um aspecto que merece ser ressaltado, especialmente com relação ao gênero, é a questão de como o poder opera no discurso. Examinando como instituições ou grupos hegemônicos influenciam as cognições e os processos de subjetivação de outras pessoas ou outros grupos, Teun van Dijk3 3 VAN DIJK, 2008, p. 85. reafirma que, "seja em sua forma direta ou em sua forma indireta, o poder é tanto exercido quanto reproduzido no e pelo discurso. Sem comunicação - escrita e fala -, o poder na sociedade não pode ser exercido ou legitimado". São exatamente os processos ideológicos subjacentes à interação que os estudos do discurso buscam identificar.

Os artigos selecionados para compor esta seção se caracterizam por uma preocupação com relações de gênero assimétricas estabelecidas por uma ampla gama de discursos e analisadas a partir de posições teóricas diferentes mas complementares.

Baseando-se no conceito de cronotropo, de Mikhail Bakhtin, Pedro Paulo Gomes Pereira examina, em "Violência e tecnologias de gênero: tempo e espaço nos jornais", o modo pelo qual o discurso da mídia impressa sobre violência nas páginas policiais acaba por se constituir ele mesmo em uma nova forma de violência ao articular o feminino de modo passivo e genérico, sem as especificidades de tempo e espaço atribuídas, por exemplo, a homens de classes sociais elevadas.

Em "Bruxas e índias filhas de Saturno: arte, bruxaria e canibalismo", Yobenj Aucardo Chicangana-Bayona e Susana Inés González Sawczuk abordam as ideologias manifestas no discurso visual, investigando como a iconografia dos séculos XVI e XVII, especialmente as pinturas e gravuras da Renascença alemã, representava - ou construía - as índias do Novo Mundo. Associadas às bruxas da Europa e ao deus clássico Saturno, essas mulheres carregavam em seus corpos índices de uma voracidade maléfica e de um desregramento demoníaco que as caracterizavam como verdadeiras inimigas do processo civilizatório.

A representação/construção é também o foco de Ana Amélia Brasileiro Medeiros Silva em "Embates representacionais em busca de uma personagem: Maria Lacerda de Moura no tráfico de luzes e sons". Tendo como objetivo analisar a transposição de uma biografia, no caso o livro de Miriam Moreira Leite Outra face do feminismo: Maria Lacerda de Moura, para a linguagem audiovisual do documentário Maria Lacerda de Moura: trajetória de uma rebelde, o artigo examina os conflitos discursivos gerados pelos olhares diferenciados das várias linguagens envolvidas - a do relato histórico, a do texto biográfico, a das imagens fixas e em movimento -, enfim, pelas múltiplas possibilidades de representação.

Tendo o texto literário como pré-texto e a teoria queer como instrumento de análise, Richard Miskolci aborda a heteronormatividade e a homofobia que passam a informar as relações de gênero no final do século XIX no Brasil. Seu artigo, "O vértice do triângulo: Dom Casmurro e as relações de gênero e sexualidade no finde-siècle brasileiro", apresenta uma análise sociológica do triângulo amoroso no romance de Machado de Assis, argumentando que a base das interações entre os personagens está na relação Bento-Escobar.

Lisandra Espíndula Moreira e Henrique Caetano Nardi, partindo das teorizações de Michel Foucault, em especial da perspectiva genealógica, analisam relatos de vida de mulheres que são mães e trabalhadoras, buscando identificar discursos que se opõem a verdades naturalizadas pelo senso comum, como a do enunciado "mãe é tudo igual". Além de verificar as ideias preconcebidas que circulam nos relatos pessoais, apontam para o poder que se aloja nos discursos institucionais, sejam eles médicos, demográficos, econômicos, feministas ou referentes a políticas públicas, como no caso das tensões entre políticas de controle ou de pró-natalidade.

Fechando essa seção temática e seguindo também uma abordagem foucaultiana, o artigo "Discurso e 'verdade': a produção das relações entre mulheres, homens e matemática", de Maria Celeste Reis Fernandes de Souza e Maria da Conceição Ferreira Fonseca, investiga as relações de gênero nas práticas de numeramento de estudantes da Educação de Jovens e Adultos. A partir do enunciado "Homem é melhor em matemática do que mulher" e com base em conceitos da etnomatemática e nas práticas de numeramento, o texto examina as falas de homens e mulheres, identificando a racionalidade de matriz cartesiana como uma fantasia de masculinidade, que leva à produção de relações desiguais entre homens e mulheres. Num questionamento da validade desse conceito de razão que ainda vigora nos discursos sobre a matemática, as autoras perguntam: em que matemática eles são melhores?

Ao agrupar nessa seção artigos sobre tópicos tão diversos e com abordagens diferenciadas, espera-se ter contribuído para um melhor entendimento de como análises de práticas discursivas, ao desvendar estruturas de poder, podem contribuir para o projeto político dos estudos feministas e de gênero.

  • FAIRCLOUGH, Norman. Discurso e mudança social Brasília: Editora da UnB, 2001.
  • GARCIA, Tomás Ibáñez. "O 'giro linguístico'". In: IÑIGUEZ, Lupicinio (Org.). Manual de análise do discurso em ciências sociais Petrópolis, RJ: Vozes, 2004. p.19-49.
  • VAN DIJK, Teun A. Discurso e poder São Paulo: Contexto, 2008.
  • 1
    GARCIA, 2004, p. 33.
  • 2
    FAIRCLOUGH, 2001, p. 91.
  • 3
    VAN DIJK, 2008, p. 85.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      07 Dez 2009
    • Data do Fascículo
      Ago 2009
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