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"Entra, menino", "Xô, galinha" e "Sim, senhor!": entrevista com Heloneida Studart

HOMENAGEM A HELONEIDA STUDART

"Entra, menino", "Xô, galinha" e "Sim, senhor!": entrevista com Heloneida Studart

Roselane Neckel

Universidade Federal de Santa Catarina

Em 16 de fevereiro de 2005, como integrante da equipe do projeto de pesquisa "Revolução do gênero: apropriações e identificações com o feminismo (1964–1985)",1 1 Nessa pesquisa, coordenada pela Prof.ª Dr.ª Joana Maria Pedro, pretendemos constituir uma narrativa histórica sobre o período de ressurgimento do movimento feminista no Brasil, chamado de "Segunda Onda", a partir de meados dos anos 70, focalizando a maneira como, apesar da ditadura militar e dos preconceitos anti-feministas, muitas mulheres e alguns homens começaram a se pensar como feministas no período de 1964 a 1985. entrevistei a deputada estadual Heloneida Studart em seu escritório na Assembléia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro. Eu já conhecia Heloneida através de seus escritos nas revistas femininas da década de 19702 2 Dados obtidos na pesquisa realizada para elaboração da tese de doutorado Pública vida íntima: a sexualidade nas revistas femininas e masculinas (1969–1979), defendida em maio de 2004, na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, sob a orientação da Prof.ª Dr.ª Maria Odila Leite da Silva Dias. que debatiam questões do feminismo de uma maneira literária e política, o que ia incluindo na vida das pessoas reflexões importantes, para ela e para o movimento feminista, como a da igualdade de direitos com os homens. Ao questionar os modelos vigentes naquele momento, Heloneida utilizava como exemplos suas experiências de vida. Dessa forma, com argúcia, tornava disponíveis para muitas mulheres as reivindicações feministas, como o direito ao prazer sexual. Na entrevista que se segue, Heloneida Studart, especialmente, reafirma como suas "histórias de vida" constituíram seu "ser feminista".

Roselane Neckel: Minha entrevista busca entender como é que você se tornou feminista...

Heloneida Studart: Acho que comecei a ser feminista quando eu tinha uns seis anos no Ceará, e a minha família ia passar as férias no interior, na praia. Ao passarmos por um botequim, eu vi na parede um cartaz que até hoje não me sai dos olhos, onde estava escrito: "Mulher aqui só diz três coisas: 'Entra, menino', 'Xô, galinha', e 'Sim, senhor'". Esse "Sim, senhor" me marcou profundamente. Eu era uma menina filha de uma família que só tinha irmãos homens, fiquei muito balançada com aquilo e achei, embora fosse apenas uma criança, que era um absurdo que o destino de uma mulher fosse dizer "Sim, senhor". Depois, crescendo em uma família muito tradicional, muito conservadora, a família do Barão de Studart, eu vi que as mulheres viviam sempre uma frase – "Mulher não tem querer" – e que todas as mulheres eram preparadas para se tornarem esposas aos 18 anos, aos 17, sem irem para a faculdade, sem trabalharem fora, e passando do governo do pai para o governo do marido. Então, aos 12 anos, eu já tinha decidido que esse não seria o meu destino, e eu dizia isso seguido nas rodas da família, e as pessoas ficavam bastante escandalizadas, bastante chocadas. Quando eu tinha 16 anos fui para o interior, de carona, e arranjei uma certidão de idade aumentada para 21 anos...

Roselane: Isso em que região do Ceará?

Heloneida: Saí de Fortaleza e fui para Aracurais, cidade do interior, onde o meu avô era grande proprietário e consegui uma certidão dizendo que tinha 21 anos. Com essa certidão, eu fiz um concurso público e passei. Fui, assim, a primeira mulher da minha família a trabalhar fora, para grande consternação das minhas tias.

Roselane: E isso em que década, em que ano?

Heloneida: Quarenta e tantos. As minhas tias diziam para a minha mãe: "Formiga que cria asa quer se perder. Esta menina não vai conseguir casamento... por que qual é o rapaz de boa família que vai se casar com alguém exposta, que trabalha fora?". E eu, então, não me importava, era obstinada. Eu estava escrevendo meu primeiro romance, e com esse primeiro romance vim para o Rio de Janeiro...

Roselane: Nós estamos lendo seus romances!

Heloneida: Esse, vocês não vão encontrar. A primeira pedra, publicado pela editora Saraiva quando eu tinha uns 19 anos, foi muito bem recebido pela crítica, e aí eu comecei a minha vida, assim, de escritora, e profissional...

Roselane: Mas isso no Rio? Como é que você veio para o Rio?

Heloneida: Quando eu vim para o Rio tinha um emprego no Ministério da Fazenda, em Recife. Deixei-o para trás e no Rio fui trabalhar no SESI, dirigindo a biblioteca ambulante, uma biblioteca que ia aos bairros operários e emprestava livros aos trabalhadores. Foi desta maneira que eu me politizei à esquerda, com a convivência com os trabalhadores nesses bairros. Nessa situação, eu tive coragem de deixar um emprego público e fiz faculdade. Eu quis ser jornalista, mas eu não sou jornalista por trabalho e sim por opção. Comecei a praticar o jornalismo e me tornei presidente do Sindicato das Entidades Culturais, condição na qual a ditadura me encontrou, o que era um grande risco, mas eu ainda consegui me segurar até 69. Porém, quando veio o AI-5, fui destituída e presa.

Roselane: Onde você foi presa?

Heloneida: No presídio São Judas Tadeu, onde tinha estado o Márcio Sodré, e houve até aquele episódio muito interessante, em que a roupeira da prisão disse: "Ah, quando a doutora Niomara Sodré veio aqui, deram pra ela o uniforme das presas e ela caiu desmaiada". E eu respondi: "Ela desmaiou porque se veste em Paris, mas, como eu me visto na Mesbla, não vou cair desmaiada, pode me dar o uniforme". No presídio eu vi coisas que me marcaram pelo resto da vida, e minha convivência lá com as mulheres me fez refletir. Eu escrevi dois roteiros para a TV Globo, um que se chama Quero meu filho, a história de uma das presidiárias, e o outro, Não roubarás. Os dois episódios foram levados ao ar pela Globo, exibidos naqueles "Casos verdades", e fizeram muito sucesso.

Roselane: Em que ano isso aconteceu?

Heloneida: Sessenta e nove. Depois que saí da prisão, fiquei um ano sem arranjar trabalho, porque eu estava na lista negra em todos os jornais. Foi uma época muito dura na minha vida, quando eu já tinha vários filhos. Mas finalmente eu encontrei o Raimundo, que era um grande historiador cearense, jornalista e escritor. Ele me levou para a Manchete, onde me deu o lugar de redatora. Eu fui a primeira mulher a entrar na Manchete, isso no ano de 1970.

Roselane: Sim... você escrevia tanto na Manchete, quanto na Ele & Ela, na Nova...

Heloneida: Em todos os lugares em que eu escrevia, a minha temática geral era a questão da mulher, e assim fui mandada pela revista Manchete para cobrir o Congresso Internacional da Mulher, no México, em 1975. O que eu me lembro de tudo que vi lá, de tudo que li, era que todas as mulheres, quer chinesas, quer européias, quer americanas, todas as mulheres sentiam bem esta dificuldade da relação com o homem, a opressão dessa relação. Então voltei do México com um poncho e com a decisão de fundar uma organização feminista. Eu me reuni com Moema Toscano, Anita Bach, Santinha,3 3 Maria do Espírito Santo Tavares dos Santos, conhecida como Santinha. Branca Moreira Lopes, Rose Marie Muraro, e outras que nós chamamos as "feministas dinossauras", e fundamos o Centro da Mulher Brasileira, onde o movimento começou a se irradiar e assim foi ganhando força...

Roselane: E nos dias de hoje, como está o movimento?

Heloneida: Hoje, embora as entidades feministas sejam fracas, o sentimento feminista é muito forte. Então, a gente chega na favela, nas áreas mais pobres, e encontra um sentimento forte.

Roselane: Esse sentimento forte você diz que é a busca da igualdade?

Heloneida: A busca da igualdade, se revoltando contra a violência, dando queixa na Delegacia de Mulheres, reivindicando casos de proteção, e isso tudo está sendo feito. Eu me elegi para a Assembléia Legislativa do Rio de Janeiro por seis mandatos e quando eu cheguei aqui pela primeira vez só tinha eu e uma mulher de Niterói.

Roselane: E a sua chegada aqui na Assembléia, as calças compridas?

Heloneida: Dessa pergunta eu gosto [risos]. O secretário, um deputado sério, digno, muito conservador, do PMDB, proibia que qualquer mulher trabalhasse na Assembléia de calça comprida. Na primeira semana que cheguei, eu subi com o regimento na mão. "Estou aqui com o regimento na mão. Eu li cuidadosamente o regimento, vírgula por vírgula, e não encontrei nenhuma proibição. Quero avisar ao senhor secretário que amanhã eu vou vir de calça comprida." Foi interessante porque ele disse: "Calça comprida é roupa de usar em bares, de usar em botequins". Aí eu perguntei: "A casa de Vossa Excelência é bar? E não entra mulher de calça comprida na sua casa? Entra. A Igreja é botequim? Lá entra mulher de calça comprida". Então eu convoquei as funcionárias da casa, também. Foi um festival de calças compridas [risos].

Roselane: Houve uma história em que você e um jornalista que tinha assediado uma mulher estavam envolvidos. Como foi essa história e de que jornal era o jornalista?

Heloneida: Do Jornal do Brasil. Ele assediou uma mulher, e fizeram uma reportagem a esse respeito. Com essa reportagem realizamos uma passeata da mulherada bem na frente do Jornal do Brasil com a mulherada atrás. Havia vários cartazes protestando, exigindo respeito. E ele foi mandado para Paris, para sair do foco, mas quando chegou lá havia outra manifestação de feministas contra ele [risos].

Roselane: Como era esse seu contato com as feministas francesas?

Heloneida: Eu tinha muitos contatos com as feministas mais notórias da França, e também de outros países como Estados Unidos e Inglaterra

Roselane: Você lembra de alguns nomes? De algum livro que você tenha lido e que foi marcante na sua formação?

Heloneida: Eu me lembro de O segundo sexo. Eu tinha 14 anos quando o li.

Roselane: Quatorze anos! Então foi logo depois da publicação. E a sua mãe e o seu pai, quem apoiava você?

Heloneida: A minha mãe era de uma família conservadora, tinha olhos azuis, e o meu pai vinha de uma família abolicionista. Ele era sobrinho-neto de um dos principais abolicionistas do Recife. Ele ainda era parente de Alencar, líder da revolução de 1817, sobre a qual eu escrevi uma peça de grande sucesso que passou no programa de cultura aqui da Assembléia Legislativa.

Roselane: Heloneida, eu tinha muito mais a lhe perguntar, mas vejo que você tem um compromisso agora. Agradeço-lhe muito por ter me recebido, por ter conversado e contado um pouco de sua história.

Rio de Janeiro, 16 de fevereiro de 2005.

  • 1
    Nessa pesquisa, coordenada pela Prof.ª Dr.ª Joana Maria Pedro, pretendemos constituir uma narrativa histórica sobre o período de ressurgimento do movimento feminista no Brasil, chamado de "Segunda Onda", a partir de meados dos anos 70, focalizando a maneira como, apesar da ditadura militar e dos preconceitos anti-feministas, muitas mulheres e alguns homens começaram a se pensar como feministas no período de 1964 a 1985.
  • 2
    Dados obtidos na pesquisa realizada para elaboração da tese de doutorado
    Pública vida íntima: a sexualidade nas revistas femininas e masculinas (1969–1979), defendida em maio de 2004, na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, sob a orientação da Prof.ª Dr.ª Maria Odila Leite da Silva Dias.
  • 3
    Maria do Espírito Santo Tavares dos Santos, conhecida como Santinha.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      28 Jul 2008
    • Data do Fascículo
      Abr 2008
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