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Mapeando os caminhos da reprodução: tecnologias, gênero e trabalho reprodutivo

RESENHAS

Mapeando os caminhos da reprodução: tecnologias, gênero e trabalho reprodutivo

Anna Carolina Horstmann Amorim

Universidade Federal de Santa Catarina

Le corps reproducteur: dynamique de genre et pratiques reproductives. Rennes: Presse de l'EHESP, 2013. 236 p. TAIN, Laurence

Livro intenso, recheado de detalhes e de inúmeros dados que nos levam a constantes descobertas relativas ao campo biomédico e social da reprodução humana assistida. Leitura densa, porém agradável e instigante. É possível se enredar facilmente nos diversos caminhos que se cruzam e se interconectam através das diferentes dimensões e capítulos amarrados didaticamente pela autora ao longo do livro.

Le corps reproducteur é, sem dúvida, um trabalho de fôlego realizado magistralmente por Laurence Tain, socióloga francesa e professora na Universidade Lumière Lyon 2, pesquisadora no Centro Max Weber, associada ao INED e também coordenadora europeia do mestrado EGALES (Études Genre et Actions liées à l'égalité dans la société). Esse livro é o resultado de uma longa pesquisa quantitativa, com dossiês médicos franceses que datam dos anos de 1980 até 1990 e entrevistas realizadas entre 2008 e 2013, abrangendo variadas pessoas que recorreram ao uso de tecnologias reprodutivas na França e que dão um suporte mais qualitativo ao trabalho.

Com uma leitura bastante completa do campo das tecnologias reprodutivas, o livro de Laurence Tain é preciso ao acrescentar uma miríade de dimensões envoltas no "fabricar filhos" em laboratórios. A autora evita uma análise sim-ples e coordena, na sequência de seus capítulos, uma reflexão sobre as desigualdades geopolí-ticas que marcam as práticas reprodutivas atra-vés do uso de tecnologias. Assinala, igualmente, no seio dessas práticas, o lugar do gênero e da instituição biomédica com seus vivos contratos heteronormativos, bem como alerta para todo um rol de hierarquias sociais que compõem e diferenciam os usos e acessos de diferentes pessoas a essas práticas.

Nesse sentido, o referido trabalho não possui destino fixo. A análise sensível de Tain abarca aqueles interessados nos estudos de gênero, ao passo que não deixa a desejar aos que procuram discussões sociológicas atuais sobre as relações sociais transnacionais ligadas às instituições e tecnologias biomédicas, soma-das às discussões sobre trabalho reprodutivo, conceito-chave de todo o livro. Entendendo que esses são eixos que existem em forte relação entre si no que toca a reprodução assistida, a autora organiza sua obra em torno das relações complexas e contraditórias entre trabalho x reprodução; gênero x reprodução; biome-dicina x reprodução e hierarquia social x reprodução.

Assim, vemos detalhados no texto uma série de exemplos do que se pode chamar de encruzilhada de contradições, na qual as estratégias de mudança e transformação de lugares bastante fixos no que tange a reprodução humana podem ser encontradas. É um lugar de sobredeterminações de poder e dinâmicas sociais que revelam a importância tanto de dinâmicas de gênero, classe e orientação sexual como a legislação vigente em diferentes países no rol do longo processo de "ter um filho".

O livro apresenta, como um de seus argumentos principais, as tensões e transforma-ção da via de mão dupla entre relações de gênero e avanços das tecnologias reprodutivas. A relação entre agentes sociais e instituições, humanos e não humanos e os próprios agentes sociais envolvidos no processo reprodutivo anima Tain. A tentativa de esmiuçar o que muda e o que permanece nos modelos reprodutivos e nas relações de gênero, nos usos e nas possibilidades das tecnologias reprodutivas, junto com as estratégias de resistência das/dos agentes nesse cenário de fronteiras borradas, parece ser o pilar de sustentação de toda obra.

Para dar cabo do delinear dos contornos dos rearranjos no campo reprodutivo/social/biomédico, a autora evidencia algumas chaves importantes de reflexão. O desenvolvimento da categorização binária do masculino e feminino e os usos sexuados dos corpos emergem com certa centralidade. Ao mesmo tempo, o modo como se gestam as práticas reprodutivas no seio de cada sociedade se revelam importantes, especialmente no que tange a sua relação com outras esferas da vida humana, como a sexua-lidade e o trabalho. Por fim, mas não menos im-portante, ela evidencia a relevância de perceber as e os diferentes agentes envoltos nesses proces-sos e suas relações em termos de poder, visibili-dade e possíveis desigualdades frente ao acesso e à utilização de tecnologias para reprodução.

De modo bastante interessante, Tain nos conduz por sua argumentação através de ideias centrais que se dividem pelos capítulos. Assim, não há, necessariamente, uma sequência fixa entre os capítulos. Cada um deles desenvolve de maneira densa um elemento de toda essa teia. Capítulo após capítulo, vemos os detalhes serem esmiuçados e a discussão avançar e ganhar peso.

O primeiro capítulo, intitulado La chaîne mondiale du travai lreproductif, investe sobre o que a autora denomina de fabricação sexuada do corpo reprodutor. Divide-se, então, em três partes centrais. Na primeira parte, podemos encontrar uma boa discussão sobre as transfor-mações na fabricação social dos corpos deriva-das de mudanças na divisão sexual do trabalho reprodutivo, introduzidas pelo acesso às tecno-logias reprodutivas. Em especial, Tain se volta para o descompasso entre práticas e regula-mentações da reprodução assistida na França. Marcadas por uma visão ternária dividida entre os registros biomédico, sagrado e sociorrela-cional do corpo, as técnicas reprodutivas, nesse país, encontram-se interditas a pessoas solteiras e/ou casais homossexuais e são acessíveis ape-nas aos casais heterossexuais em união conjugal devidamente regularizada.

Ainda assim, não são todos os casais hete-rossexuais dentro das regras que têm livre acesso às tecnologias em solo francês. Existem desigual-dades de acesso marcadas por classe e tam-bém por raça/etnia e orientação sexual, como bem aponta a autora. A interdição aos casais homossexuais e pessoas solteiras, proposta pela lei de bioética vigente no país, leva muitas pes-soas a países onde a legislação evoca outras concepções sobre o corpo, o sagrado e a natu-reza e onde os caminhos permanecem abertos àqueles excluídos pela legislação francesa.

Começam a se delinear, desse modo, os circuitos transnacionais do trabalho reprodutivo. Recheados de dinâmicas sociais, esses circuitos evidenciam os privilégios de homens e mulheres brancos, de classe média, que usam do poten-cial reprodutor (doação de ovócitos e barriga de aluguel) de mulheres em situação de subal-ternidade em outros países em troca de dinhei-ro. Esse processo visibiliza publicamente, segundo Tain, a reprodução humana como um trabalho.

É claro que estamos nesse cenário frente a dinâmicas de gênero, e o segundo capítulo, intitulado La dynamique de genre dans l'arène reproductive, visa dar conta dessas tensões. O tom central do capítulo é explicar de onde vem a exploração do corpo reprodutivo contempo-raneamente. Para tal, a autora se debruça sobre uma genealogia dos discursos e práticas relacio-nadas à reprodução somada à produção do corpo sexuado.

Já é lugar comum, no feminismo, a conexão entre reprodução e gênero, especificamente a reprodução tomada como definidora do femini-no e como projeto fundamental do corpo da mulher. Nesse sentido, Tain realiza uma longa imersão nas discussões sobre o corpo e as imbricações entre o gênero, tomado como um sistema social, e a atividade reprodutiva elabora-da e desenvolvida em um contexto heteronor-mativo. A autora dedica longas páginas às reflexões sobre o corpo enquanto objeto de estudo. Traça uma vasta sistematização dessas discussões e desliza da idade média e do controle do corpo pela Igreja aos dias atuais, passando pela antropologia, pelos diferentes feminismos e pelo avanço progressivo da instituição medical.

Preocupada com os modos de fabricação do corpo sexuado, define sua abordagem como construtivista, atentando para as discussões sobre a materialidade, a sacralidade e também a construção social do corpo. A divisão sexual, segundo Tain, tem base nos contornos do corpo reprodutor. O trabalho reprodutivo emerge, então, como coração do sistema de gênero, e a heterossexualidade desponta como regime político fundamental para manutenção desse modelo. Como ponto de arremate, o capítulo traz a preposição de que a fabricação do corpo sexuado é derivada de uma sucessão de configurações dominantes que, na genealogia traçada no capítulo, escorrega das mãos da instituição religiosa às mãos do hospital. É nessa passagem que se abrem brechas às transformações. Os avanços tecnológicos balançam a dominação masculina através da evolução dos tratamentos para infertilidade masculina. A feminilização do corpo reprodutor perde, ao menos um pouco, sua centralidade.

É a gênese das técnicas voltadas à repro-dução e as implicações que os processos de medicalização impõem sobre a reprodução humana e sobre as dinâmicas de gênero que dão chão ao terceiro capítulo, de nome La biomédicalisation du corps infécond. Nesse capítulo, a utilização do conceito de biomedicali-zação é defendida por Laurence Tain em detri-mento do conceito de medicalização em aten-ção à centralidade da biologia nesse campo técnico/científico. É o corpo reprodutor que se transforma nas mãos dos biólogos.

Dentro do hospital, os componentes bioló-gicos desse corpo tornam-se objeto de experiên-cias que investem sobre as fêmeas suas principais motivações. Vemos emergir novamente uma justaposição entre gênero e ciência e uma afir-mação pelo viés biomédico do modelo domi-nante de gênero. Afigura-se a continuidade da responsabilidade feminina no que tange a reprodução humana. Segundo a autora, esta que ela chama de segunda revolução contraceptiva traz à tona alguns paradoxos. O desenvolvimento técnico coloca em questão a heterossexualidade conjugal como base do ato reprodutivo.

A legislação francesa, no entanto, corre na tentativa de negar esses avanços ao balizar e descriminar o acesso às tecnologias reprodutivas, numa tentativa de engessar o "normal" quanto à reprodução. Averigua-se um entrelaçamento entre medicina e heteronormatividade. Mas, para além dessas tentativas de normalização, as práticas hospitalares, mesmo na França, e as experimentações e possibilidades reais em outros países abrem horizontes para implosão da ordem heterossexual. É esse importante movimento que traz ao visível e ao debate público a possibilidade de mudanças na norma de gênero dominante. Ainda assim, a autora nos adverte para a reflexão sobre o lugar das hierarquias sociais entre os próprios atores envolvidos em todos esses processos reprodutivos. Haveria hierarquias sociais definidoras e excludentes da experimentação de maiores aberturas ou fechamentos dos mode-los dominantes e engessados de reprodução e gênero?

São essas as tensões exploradas no capítulo final dessa obra, intitulado L'emprise des hiérarchies sociales sur le corps reproducteur. As relações entre pertencimento social, processo de medicalização e dinâmicas de gênero dão a cor aos itinerários sociais desvelados aqui. Existem sim, segundo Tain, diferenças sociais que marcam a medicalização reprodutiva, assime-trias de poder e desigualdade que se impõem sobre os usuários dessas técnicas e a autoridade médica ao mesmo passo em que se formam formas de resistências a esses processos por parte das e dos agentes sociais.

A autora mostra, através dos dados recolhi-dos, que essas diferenças e desigualdades se relacionam com julgamentos realizados pelos médicos referentes à classe, etnia e até mesmo ao domínio da língua apresentado pelos casais ou mulheres que lhes procuram. Tais julgamentos são essenciais em relação à aceitação ou não dessas pessoas como pacientes ou como aptos ao tratamento. Evidencia-se um cruzamento entre pertencimento social, gênero e medicina.

Laurence Tain traz à tona uma série de modelos diferenciados de percursos reprodutivos enfrentados e delineia, complexamente, as particularidades e diferenciação no atendimen-to a partir dos cruzamentos entre classe, gênero, orientação sexual, idade, profissão, nacionalida-de. Observamos, ao longo desses casos empíricos apresentados, como esse campo é repleto de diferentes lugares para diferentes pessoas. O modelo dominante de gênero e de heterossexualidade obrigatória pode ser que-brado, mas a autonomia que as e os agentes dispõem para tal e frente a essas estruturas do sistema biomédico francês, que prima pela norma dominante de gênero e heterossexua-lidade, é ainda devedora do lugar social que se ocupa nos circuitos transnacionais do trabalho reprodutivo. Vale dizer ainda que conta e muito, nesse cenário, qual o montante em dinheiro ou qual produto se tem a oferecer.

Essa realidade aproxima-se da realidade brasileira, especialmente no tocante aos lugares diferenciados dos acessos à reprodução assistida. Ainda que aqui não tenhamos uma legislação específica que interdite o acesso de casais homossexuais e de pessoas solteiras, permanecem marcas, talvez menos públicas e evidentes, da diferenciação dos acessos e de quem pode ou não fazer filhos através dessas tecnologias no país. A classe social, ou a disponibilidade de dinheiro para acessar as tecnologias reprodutivas, parece ser o grande marcador de quem pode ou não beneficiar-se dessas técnicas. Nesse sentido, evidencia-se que o fazer filhos, no Brasil ou na França, ainda que guardadas as diferenças, conecta-se direta-mente com uma complexa trama que envolve tensões de classe, raça e orientação sexual.

A autora defende que a ideia dessa obra é colocar em evidência essas múltiplas facetas emaranhadas nesses caminhos reprodutivos. Longe de tentar esboçar um resumo do livro, essa breve apresentação dos temas centrais dos capítulos que recortam essa obra pretende apenas possibilitar ao leitor uma abreviada compreensão do que vai encontrar ao folhear as longas páginas de Le corps reproducteur.

Esse livro é, sem dúvida, incontornável. Suas preocupações são transversais e também, por isso, a tarefa de reduzir a vasta argumentação, exemplificação e teorização multifacetada de cada capítulo seja desmantelar a proposta tão bem realizada e amarrada, capítulo após capí-tulo, de transversalizar a discussão, as categorias, as experiências, que, como nos parece dizer Laurence Tain, não existem em isolamento.

Nesse sentido, a provocação apresentada na conclusão do livro não poderia ser mais contundente e mais relevante, para toda análise complexa desse livro, que não se pretende uma resposta para o tema da reprodução assistida e das relações de gênero: "Ces evolutions entraîner ont-elles um allègement ou um renforcement de la domination de genre? L'issue paraît aujourd'hui incertaine" (p. 193).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Nov 2014
  • Data do Fascículo
    Dez 2014
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