Resumo:
O objetivo deste artigo é analisar as estratégias de agenciamento e as técnicas corporais das “travestis profissionais” a partir das suas circulações e carreiras internacionais. Buscou-se analisar como a experiência de circulação dessas pessoas pela Europa constituiu evento importante para consolidar suas carreiras e construção de si. Foi a partir dessas circulações que essas pessoas puderam travar contato com o mundo das modificações corporais e também construir estratégias de resistência que, a partir do trânsito nas convenções de gênero e classe, possibilitaram a existência de suas formas de vida. Os dados para a escrita deste artigo foram obtidos através de fontes documentais, fotográficas e de relatos de trajetórias de vida das “travestis profissionais” que vivenciaram esses processos. As trajetórias de Rogéria, Eloína dos Leopardos, Marquesa e Divina Valéria foram focalizadas neste estudo.
Palavras-chave:
travestis; cosmopolitismo; agência; resistência; corpo
Abstract:
The objective of this article is to analyze the agency strategies and the corporal techniques of the “professional transvestites” from their international circuits and careers. It was tried to analyze how the experience of these people’s movement in Europe constituted an important event to consolidate their careers and construction of themselves. It was from these circulations that these people were able to make contact with the world of the corporal modifications and also to construct strategies of resistance that, from the transit in the conventions of gender and class, made possible the existence of their forms of life. The data for the writing of this article were obtained through documentary, photographic sources and reports of life trajectories of the “professional transvestites” who experienced these processes. The trajectories of Rogéria, Eloína of the Leopards, Marquesa and Divina Valéria were focused in this study.
Keywords:
Travestites; Cosmopolitanism; Agency; Resistance; Body
Apresentação
Estudos brasileiros (James N. GREEN, 2000GREEN, James N. Além do Carnaval: a homossexualidade masculina no Brasil do século XX. São Paulo: EDUNESP, 2000.; Carmen Dora GUIMARÃES, 2005GUIMARÃES, Carmem Dora. O homossexual visto por entendidos. Rio de Janeiro: Garamond, 2005.; Carlos FIGARI, 2007)FIGARI, Carlos. @s outr@s cariocas: interpelações, experiências e identidades homoeróticas no Rio de Janeiro (séculos XVII ao XX). Belo Horizonte: EDUFMG; Rio de Janeiro: IUPERJ, 2007. e estrangeiros (George CHAUNCEY, 1994CHAUNCEY, George. Gay New York: gender, urban culture, and the making of the gay male world, 1890-1940. New York: Basic Books, 1994.; Laud HUMPHREYS, 1979HUMPHREYS, Laud. “Exodus and identity: the emerging gay culture”. In: LEVINE, Martin (org.). Gay men: the sociology of male homosexuality. New York: Harper & Row, 1979.; Kath WESTON, 2003)WESTON, Kath. Las familias que elegímos. Lesbianas, gays y parentesco. Barcelona: Edicions Bellaterra, 2003. têm chamado a atenção para a migração de homens e mulheres que compartilhavam o desejo sexual por outros iguais para cidades grandes. O sociólogo norte-americano Humphreys (1979)HUMPHREYS, Laud. “Exodus and identity: the emerging gay culture”. In: LEVINE, Martin (org.). Gay men: the sociology of male homosexuality. New York: Harper & Row, 1979. classifica de “êxodo homossexual” esse deslocamento de pessoas homossexuais de cidades com menos densidade populacional - e também comandadas por uma moral mais fechada - para os grandes centros urbanos. Didier Eribon (2008)ERIBON, Didier. Reflexões sobre a questão gay. Bauru: Companhia de Freud, 2008. afirma que esse afluxo se constitui como uma mitologia no imaginário coletivo da homossexualidade, provocando uma fantasmagoria do “outro lugar” entre as pessoas que se identificam como homossexuais. Esse fenômeno pode ser identificado, sobretudo, através das trajetórias individuais dessas pessoas, evidenciadas por pesquisas que identificavam que elas quase sempre não eram nascidas nesses grandes centros urbanos (WESTON, 2003).
A literatura antropológica sobre a vida nas grandes cidades chama atenção para esses fluxos populacionais que possibilitaram a constituição de diferentes existências culturais em uma mesma área geográfica. A cidade aparece nesse tipo de literatura como uma “unidade simbólica”, expressão consagrada por Georg Simmel (1973)SIMMEL, Georg. “A metrópole e a vida mental”. In: VELHO, Otávio (org.). O fenômeno urbano. Rio de Janeiro: Zahar, 1973., cuja extensão funcional extrapola fronteiras físicas determinadas pela geografia e pela demografia. Sua capacidade globalizante ofereceria espaços e situações privilegiados para a realização de uma dada liberdade, cujos reflexos se expressariam em uma ampliação das possibilidades de movimentos, deslocamentos, encontros, trânsitos, fixações e derivas (Néstor PERLONGHER, 1987)PERLONGHER, Néstor. O negócio do michê: a prostituição viril em São Paulo. São Paulo: Brasiliense, 1987..
A ‘grande cidade’ - como uma construção analítica - ligaria mundos distintos, às vezes até opostos entre si. Contudo, também ofereceria a possibilidade de “trânsito entre mundos”, uma vez que proporcionaria aos seus habitantes
passar rápida e facilmente de um meio moral a outro, e encoraja a experiência fascinante, mas perigosa, de viver ao mesmo tempo em vários mundos diferentes e contíguos, mas de outras formas amplamente separados (Robert Ezra PARK, 1973PARK, Robert Ezra. “A Cidade: sugestões para a investigação do comportamento humano no meio urbano”. In: VELHO, Otávio (org.). O fenômeno urbano. Rio de Janeiro: Zahar, 1973., p. 72).
Por acolher essa diversidade de mundos, é uma característica da cidade oferecer de forma relativamente fácil aos seus habitantes um mundo no qual se sintam à vontade, pelo qual se sentem atraídos. A “atração da metrópole”, como definiu Park (1973)PARK, Robert Ezra. “A Cidade: sugestões para a investigação do comportamento humano no meio urbano”. In: VELHO, Otávio (org.). O fenômeno urbano. Rio de Janeiro: Zahar, 1973., encontra explicação nessa possibilidade de acolhimentos, de encontros, de identificações com outros indivíduos que compartilham de um mesmo “código moral divergente” (PARK, 1973)PARK, Robert Ezra. “A Cidade: sugestões para a investigação do comportamento humano no meio urbano”. In: VELHO, Otávio (org.). O fenômeno urbano. Rio de Janeiro: Zahar, 1973..
Um componente que acentua essa atração é o “anonimato relativo” (Gilberto VELHO, 2003)VELHO, Gilberto. Projeto e metamorfose: antropologia das sociedades complexas. Rio de Janeiro: Zahar, 2003. atribuído aos grandes centros urbanos. Atraídos por essas e outras possibilidades que a cidade propicia saíram muitos jovens - como no turbilhão que levara Dorothy do Kansas1 1 Referência ao filme O Mágico de OZ. Filme baseado no livro do escritor norte-americano L. Frank Baum. O livro tornou-se peça da Broadway e em 1939 ganhou uma versão cinematográfica, protagonizada pela atriz norte-americana Judy Garland. - de suas realidades em tons sépia, abandonando suas famílias de origem e antigas redes de relações para integrarem novas redes de convívio e afeto. Em um dado momento, a cidade tornou-se ponto central de uma sociabilidade que articulava pessoas de diferentes regiões que se associavam em função de um marcador específico - o amor por iguais. Essa sociabilidade fazia circular informações, pessoas, símbolos e objetos que dotavam de sentido as sexualidades dissidentes.
Dialogando com essa literatura, este artigo se ocupa das circulações, deslocamentos, trajetórias e carreiras das chamadas “travestis profissionais”,2 2 Categoria nativa adotada por Divina Valéria para falar de si e de outras que, assim como ela, foram agentes ativas na construção da noção moderna de “travesti”. em um contexto de mudanças nas convenções de gênero e sexualidade nas sociedades complexas ocidentais. Buscou-se analisar como a experiência de circulação dessas pessoas pela Europa constituiu evento importante para modelar suas carreiras, corporalidades e construção de si. Foi a partir dessas circulações que essas pessoas puderam travar contato com o mundo das experimentações corporais e também construir estratégias de agenciamento que, a partir do trânsito nas convenções de gênero e classe, possibilitaram a existência de suas formas de vida.
Trabalho de campo
Esta pesquisa fez uso de diferentes fontes de dados: documentais, orais e fotográficos. A investigação fotográfica foi conduzida a partir do acesso ao acervo disponibilizado pelas interlocutoras da pesquisa. Sempre que entrava em contato com alguma delas, já pelo telefone procurava saber se a mesma tinha revistas, jornais ou fotografias pessoais que pudessem ajudar na construção do trabalho. Com a autorização dessas pessoas, eu reproduzia as fotografias com o uso do celular. Ter acesso às imagens com a assistência de sua portadora ofereceu outros ganhos. Vendo as fotografias com as minhas interlocutoras, era possível relembrar algum dado esquecido durante a entrevista, ou mesmo ter acesso a alguma fofoca quase involuntariamente revelada, em função do calor da lembrança. Foi valioso ter acesso a esses registros de imagem, posto que ofereceram um “efeito de passado”, ou seja, tiveram a capacidade de reconstruir um dado período da história a partir de vínculo íntimo entre imagem e lembrança.
Outra fonte fundamental foi o material jornalístico disponível na Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro, e as leituras de publicações que circularam nos espaços de sociabilidade voltados para as “bichas”, como os jornais O Snob e Lampião da Esquina. Esses jornais fizeram, ao longo de sua existência, algumas matérias importantes, sobretudo com as “travestis” que saíram do Brasil para trabalhar na Europa, as quais se constituem como um importante registro para a construção desse trabalho.
A escolha do material jornalístico - revistas em geral - foi também mediada pela agência das minhas interlocutoras. Na Biblioteca Nacional, pesquisei as edições antigas da revista Fatos & Fotos, Manchete, Contigo e O Pasquim. A procura por esses veículos não foi feita ao acaso: esteve estreitamente ligada ao contexto das entrevistas. Algumas, como Marquesa, possuíam de forma muito viva em sua memória a sua presença em determinados veículos. Ela chegou mesmo a lembrar dos títulos das manchetes que estampou. Com esta informação, eu ia à biblioteca e procurava no acervo a reportagem. No caso de Divina Valéria, esta se recordava do ano de seu retorno ao Rio de Janeiro. Sabendo o ano preciso, vasculhei o acervo dessas revistas à procura de informações desse retorno. Com Rogéria e Eloína fiz o mesmo.
O trabalho de campo foi conduzido a partir das entrevistas em profundidade que realizei. Foram focalizadas as histórias de vida de uma dada geração de pessoas, as “travestis profissionais”, que foram agentes importantes nas transformações sociais que este trabalho busca investigar. Essas pessoas foram escolhidas para a pesquisa por fazerem parte de uma geração que não somente experimentou as mudanças nas convenções relacionadas às sexualidades dissidentes como foi agente ativa nesses processos. Hoje, muitas delas se identificam como “travestis”, mas nem sempre foi dessa forma.
Neste contexto, merece destaque a polissemia que envolve as categorias “travesti”, “homossexual”, “em travesti”, “boneca”, “bicha” etc. O uso de categorias identitárias relacionadas às dissidências de gênero e sexualidades encerra problemas de classificação que merecem reflexão por sua estreita relação com os diferentes processos de mudanças operadas em uma dada sociedade. Outro fator que complexifica ainda mais essas formas de classificação é a possibilidade de falar delas em “tempos que não são o presente” (Guilherme PASSAMANI, 2015)PASSAMANI, Guilherme. Batalha de confete o “Mar de Xarayés”: condutas homossexuais, envelhecimento e regimes de visibilidade. 2015. Tese (Doutorado em Ciências Sociais) - Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, IFCH, UNICAMP, Campinas, SP, Brasil.. Considerando essa difícil inteligibilidade, convencionei a adoção de aspas quando há referência a categorias nativas relacionadas à dissidência de gênero e sexualidades cujas existências são, diria Avtar BRAH (2006)BRAH, Avtar. “Diferença, diversidade, diferenciação”. Cadernos Pagu, Campinas, n. 26, p. 329-376, 2006., um “campo em contestação”, posto que se inscrevem em processos e práticas discursivas que só podem ser compreendidas quando situadas em um dado terreno histórico.
É por esse motivo que este estudo focalizou as trajetórias de vida e carreiras de Rogéria, Eloína dos Leopardos, Marquesa e Divina Valéria em um contexto específico: durante suas estadas na Europa Ocidental e o seu regresso ao Brasil. As narrativas de Jane Di Castro, Yeda Brown e Claudia Celeste, “travestis” que chegaram na Europa depois dessas pioneiras, constituiu recurso importante para examinar as mudanças nas convenções relacionadas à noção de “travestis profissionais” após o sucesso das pioneiras na Europa e o seu retorno ao Brasil.
A cidade maravilhosa das bonecas
Paris era, certamente, a cidade mais procurada e cobiçada por essas “travestis”, que viam no glamour da Cidade-Luz o contexto favorável para vivenciar o seu momento de glória. Jane Di Castro foi uma das muitas “travestis” que realizaram o sonho da viagem internacional. Ela, assim como Rogéria, Marquesa e Divina Valéria, conheceram o fausto do Carrossel de Paris, do Madame Arthur e do Moulin Rouge, casas de shows disputadas por artistas de diferentes partes do mundo. Jane Di Castro conta:
O maior mercado de trabalho para o travesti é Paris, em termos de tudo, pois lá é a cidade maravilhosa das bonecas.3 3 Silva JUNIOR (2016) oferece uma descrição nativa da categoria boneca ao entrevistar Claudia Celeste, outra importante personalidade do cenário artístico transformista da década de 1970. Para Claudia, “tudo era boneca na época, não se chamava travesti nem gay. Falava bonecas. Espetáculo de travestis era espetáculo de bonecas. O pessoal começava a achar que travesti era pejorativo, aí eles começaram a chamar bonecas” (p. 68) (SILVA JUNIOR, Aureliano Lopes. “Linda, doce, fera”: a construção de corporalidades políticas no concurso de beleza Miss T Brasil. 2016. Tese (Doutorado em Saúde Coletiva) - Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva, IMS, UERJ, Rio de Janeiro, RJ, Brasil)). Infelizmente este mercado vai acabar, pois existe em Paris travestis que não têm a cabeça feita para enfrentar a barra diária da Cidade-Luz (In Francisco BITTENCOURT, 1981BITTENCOURT, Francisco. “Brasil: campeão mundial de travestis”. Lampião da esquina, Rio de Janeiro, ano 03, n. 32, p. 3-4, jan. 1981., p. 03-04).
Se durante o carnaval o “fazer travesti” era integrado ao contexto lúdico dos bailes de salão e das festas de rua (GREEN, 2000GREEN, James N. Além do Carnaval: a homossexualidade masculina no Brasil do século XX. São Paulo: EDUNESP, 2000.; FIGARI, 2007)FIGARI, Carlos. @s outr@s cariocas: interpelações, experiências e identidades homoeróticas no Rio de Janeiro (séculos XVII ao XX). Belo Horizonte: EDUFMG; Rio de Janeiro: IUPERJ, 2007., essa prática se transforma com a ida de algumas dessas pessoas para cidades da Europa. Apesar do relativo sucesso dos “shows de travestis” no Brasil materializado por Les Girls,4 4 A primeira experiência de espetáculo envolvendo travestis foi International Set, realizada na Boate Stop, na Galeria Alaska, em Copacabana, Rio de Janeiro. Participaram do elenco desse espetáculo Rogéria, Marquesa, Brigitte de Búzios, Biju Blanche, Gigi Sancir, Jerry di Marco e Manon. Segundo relato de Divina Valéria, ao elenco original de International Set juntaram-se outras iguais, como ela, na produção de Les Girls, em 1966. Estes espetáculos foram importantes eventos na forma como essas pessoas passaram a construir suas identidades e carreiras. famoso espetáculo estreado em 1966, essas pessoas continuavam dividindo as suas vidas entre a diva do palco e o “boyzinho” cotidiano. Foi somente quando começaram a circular pela Europa que essa relação se modificou. Divina Valéria contou que só começou a se vestir regularmente com roupas convencionadas como do outro gênero quando chegou à Europa. Sua primeira experiência fora do Brasil foi no Uruguai, após já ter estreado Les Girls, no Brasil, onde teria se apaixonado por um rapaz, lá fixando residência por um período. O primeiro país que visitou fora da América Latina foi a Espanha, chegando à cidade de Barcelona em meados de 1969.
Lá foi surpreendida pela ditadura de Francisco Franco, a qual, segundo ela, proibia shows com “homens vestidos de outro sexo” nos palcos espanhóis. Divina Valéria conta que chegou a fazer show “desmontada”5 5 Categoria nativa para se referir ao fato de estar usando roupas consideradas em conformidade ao sexo designado no nascimento. nesse período, pois tinha que sobreviver de alguma forma. Ela afirma que conseguiu uma autorização especial para “fazer travesti” em uma casa de espetáculos chamada Sena, onde obteve grande projeção, sendo, em um dos shows que fez, assistida por Coccinelle, a famosa corista francesa que ganhou notoriedade por ser a primeira a ser “operada”. Coccinelle ficou curiosa ao saber que existia “uma bicha não operada fazendo travesti” nessa casa. Ao assistir à sua apresentação, Divina Valéria afirma que a famosa corista gostou e logo ficaram amigas. Na ocasião, Coccinelle aconselhou-a a partir para Paris, posto que, segundo ela, lá poderia se apresentar como quisesse, sem que sofresse a intervenção das forças policiais franquistas. Assim, Coccinelle fez uma carta de apresentação para Divina Valéria performar no Carrousel de Paris, onde foi recebida. Lá, Divina Valéria entrou em contato com um mundo cosmopolita povoado de personalidades importantes que ampliaram o seu “campo de possibilidades”, mas, principalmente, começou a se relacionar com outras iguais que “se transformaram”.
O Carrousel era glorioso, né, porque no Carrousel frequentava les tout Paris. O Carrousel era lotado todo dia, com as pessoas mais importantes, fosse brasileiro ou de toda a parte do mundo. É como se fosse o Lido, o Moulin Rouge, né? Então, era um espetáculo só de travestis, todas muito maravilhosas, ali você tinha holandesa, espanhola, grega, alemã, brasileira era pouca. Tava eu, no momento estava eu. Depois chegou Rogéria, é porque eu cheguei no Carrousel, aí a Rogéria que estava na África, em Moçambique, por aí, veio para a Espanha. A Rogéria, ao vir para a Espanha, eu já estava em Paris. E aí parece que a Espanha foi liberando, o que eu não pude fazer já estava podendo fazer. Aí a Rogéria aproveitou essa fase, e aí eu me comunicando com Rogéria fiz contato para ela vir para Paris. Aí ela veio para Paris, também para o Carrousel. E aí... [Divina Valéria faz uma pausa] Mas no Carrousel eu e Rogéria trabalhamos pouco juntas, porque ela ia em tournée para um lado e eu ia em tournée para o outro. Porque o Carrousel eram mais de trinta artistas e sempre tinha tournée viajando pelo mundo. Eu fui pro... [pausa] Ah, eu fui para tanta parte, eu viajei, eu fui até o Japão, Teerã, Beirute, Istambul, Jacarta, Hong Kong, ah, muitos lugares e toda a Europa. Porque tinha tournée para todo o lado. Então, foram aqueles anos que eu vivi lá, que eram os anos 70 e que eu fazia isso e o Carrousel divino, porque ali também conheci muitas personalidades: Maria Callas, Jane Monroe, Jean Seberg, tanta gente... (Divina Valéria, entrevista concedida ao autor em 29 de setembro de 2014).
Já Rogéria experimentou o début internacional na África portuguesa, tendo passado uma temporada de um ano e dois meses em Luanda, em Angola. Ela foi para a África seguindo a Companhia de Dinis Duarte, após uma temporada bem-sucedida no Teatro Rival, no Rio de Janeiro. De acordo com entrevista concedida ao jornal O Pasquim, em 1973, Rogéria confidenciou que em Luanda sua arte não fez o sucesso que tinha feito no Brasil. De acordo com ela, o “transformismo” não foi bem recepcionado pela plateia, posto que “a África portuguesa não é Lisboa”, destacou taxativa. Nesta entrevista, Rogéria afirma que a Companhia de Dinis Duarte buscava conectar o seu espetáculo a um certo imaginário do que era o Brasil. A música popular brasileira, as “mulatas” e ela, a “travesti”, eram itens que faziam parte desse “negócio de Brasil”, expressão que ela mesma adota (JAGUAR et al., 1973)JAGUAR; FERNANDES, Millôr; LESSA, Ivan; ZIRALDO e outros. “Entrevista - Rogéria”. O Pasquim, Rio de Janeiro, ano V, n. 223, LVIII, p. 4-7, 9 a 15 out, 1973..
Para Rogéria, as portas da Europa se abriram através da cidade de Barcelona. Foi lá que ela viveu seis meses e meio na casa de Coccinelle, trabalhando como “ator transformista”6 6 Rogéria adota a expressão “ator-transformista” na entrevista. na noite. O embarque para Paris se deu com o apoio de Coccinelle, que lhe entregou uma carta de apresentação endereçada ao Monsieur Marcel, dono do Carrousel de Paris. Rogéria afirmou que jamais usou esta carta, uma vez que acreditava que o seu talento era o suficiente para conseguir penetrar no staff da casa de espetáculos. Diferentes de outras iniciantes que, como ela, começavam no Madame Arthur, Rogéria revela ao jornal O Pasquim, em 1973, que estreou de imediato no Carrousel, pois havia se destacado nas audições pelo fato de saber cantar. Assim como Divina Valéria, Rogéria interage com um mundo novo, repleto de informações, pessoas e possibilidades.
Se para Rogéria e Divina Valéria a famosa Coccinelle constituíra um elo com as redes de circulação dos nightclubs europeus, a ida dessas duas para a Europa e, sobretudo, a sua permanência bem-sucedida em Paris, foram episódios que encorajaram outras com as quais mantinham alguma relação de amizade. Foi o que ocorreu com Eloína, que partiu para Paris com o auxílio oferecido por Rogéria e Divina Valéria. Eloína começou a sua vida artística como camareira da vedete Nélia Paula, logo após passando a trabalhar na boate Pigalle, no Rio de Janeiro. Possivelmente, foi nesses espaços que travou contato com Divina Valéria e Rogéria. Diz Eloína ao jornal Lampião da Esquina:
Eu mantinha correspondência com Rogéria e Valéria que já moravam lá e me incentivaram muito. Nessa época eu morava com um rapaz, que foi quem me financiou a viagem. Tudo. Eu cheguei em Paris em 72 sem falar nem boa noite em francês. E nessa época não tinha nenhuma brasileira lá. Fui para o Hotel Perrot, na Place Pigalle, e minha sorte foi que a mulher que me atendeu era espanhola (José BASTOS, 1980)BASTOS, José. “Eloína dá o serviço: operação, implantes, silicone etc”. Lampião da Esquina, Rio de Janeiro, ano 02, n. 21, p. 3, fev. 1980..
A fixação dessas “travestis” em cidades da Europa e dos Estados Unidos possibilitou formar uma rede de ajuda mútua, através da qual outras como elas podiam migrar com mais segurança para os países sobre os quais tanto ouviam histórias de sucesso. Não somente Eloína foi beneficiada com essa rede, mas também Jane Di Castro e Marquesa. Todas elas migraram para o exterior, seguindo a trilha deixada por “travestis” que já trabalhavam em algum estabelecimento por lá. A migração tornava-se mais fácil, posto que na cidade ainda desconhecida elas garantiam hospedagem, um rede de confiança e o tão sonhado emprego em algum dos cabarés.
A Paris da década de 1970 fervilhava de novas tendências que impulsionavam mudanças nas convenções sociais. Após maio de 1968, a juventude passou a dominar a cena cultural, deslocando a política para outras dimensões da vida social, tais como o corpo, a sexualidade, a música e a moda. Simultaneamente, a cidade convivia com as novas ideias importadas dos Estados Unidos, que via eclodir movimentos identitários, tais como o feminista, negro e gay. Todas essas mudanças afetavam de formas distintas as vidas dos sujeitos que lá conviviam. Localizado na Rue Vavin,7 7 O Carrousel de Paris conhecido por Divina Valéria, Rogéria, Marquesa e demais “travestis” dessa geração permaneceu na Rue Vavin de 1962 a 1985. Montparnasse, o Carrousel de Paris ocupa um lugar de destaque no imaginário de uma geração de pessoas que hoje se reconhece como “travesti”. Naquele espaço, entre um show e outro, essas pessoas iam construindo uma percepção de si que transbordava os homens “em travesti” do carnaval brasileiro.
O Carrousel constituiu um epicentro onde se podia obter informações sobre transformações corporais e até mesmo conquistar um posto de trabalho nas inúmeras tournées realizadas pelo cabaré (Bruno Cesar BARBOSA, 2015)BARBOSA, Bruno Cesar. Imaginando trans: saberes e ativismo em torno das regulações das transformações corporais do sexo. 2015. Tese (Doutorado em Antropologia Social) - Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, FFLCH, Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil.. Era nesse espaço também que se conhecia a rota do “turismo cirúrgico” (BARBOSA, 2015), ou seja, os locais e especialistas médicos que ofereciam cirurgias que promoviam a mudança corporal. Mais do que um nicho de mercado para as “travestis”, os cabarés como o Carrousel e o Madame Arthur constituíam uma rede de solidariedade entre essas pessoas. Eram nesses espaços que muitas encontravam uma “família de escolha” (WESTON, 2003)WESTON, Kath. Las familias que elegímos. Lesbianas, gays y parentesco. Barcelona: Edicions Bellaterra, 2003., composta por outras iguais com histórias de vida semelhantes, na qual era possível depositar expectativas de cooperação e lealdade.
Mais do que o Madame Arthur, o Carrousel de Paris era o ponto cardeal de uma rede de circulação na qual se movimentavam essas “travestis” pela Europa. Essa rede envolvia outras casas noturnas de Paris, como o próprio Madame Arthur e também o Trafalgar, mas se expandia e ramificava para cidades como Berlim, Barcelona, Madrid, Sevilha, Valença, Nice etc. As tournées do Carrousel também se ampliavam para cidades fora do eixo europeu, tais como Jacarta, Hong Kong, Casablanca e Teerã. Os shows da casa eram produzidos a partir da combinação de diferentes estilos, tais como o Music Hall, o Burlesco e o Vaudeville. Havia striptease, dublagens, música ao vivo acompanhada de orquestra, esquetes e danças individuais. As atrações que despertavam mais interesse dos seus frequentadores, e distinguiam a casa de outras que evocavam a boemia estilo Belle Èpoque, como o famoso Moulin Rouge, eram as suas famosas vedettes, todas “travestis”. As “travestis” eram o ponto alto do local, sendo inclusive retratadas no material produzido para sua divulgação.
As fotografias exibidas pelo Carrousel para divulgar a sua principal atração ressaltavam a metamorfose de rapazes de aparência comum em mulheres elegantes e portadoras de uma beleza excepcional. Tal jogo de contrastes atendia ao objetivo de atrair um público curioso em saber como tais transformações eram possíveis, mais até do que as habilidades artísticas dessas pessoas no palco. A “metamorfose de gênero” desses rapazes era então percebida como um “prodígio” a ser exibido, uma “maravilha”, como na expressão de Jorge Leite Junior (2006)LEITE JUNIOR, Jorge. Das maravilhas e prodígios sexuais: a pornografia “bizarra” como entretenimento. São Paulo: Annablume, 2006.. A propaganda do Carrousel assumia esse jogo de contrastes como matéria-prima de seus shows, semelhante à lógica dos freak shows norte-americanos (LEITE JUNIOR, 2006)LEITE JUNIOR, Jorge. Das maravilhas e prodígios sexuais: a pornografia “bizarra” como entretenimento. São Paulo: Annablume, 2006..
Era justamente na habilidade de confundir o público que essa propaganda era organizada. Aparentemente, a geração posterior ao Carrousel de Paris da década de 1960 já não foi mais divulgada a partir desse jogo de contrastes. Foi antes privilegiado o resultado perfeito dessa metamorfose, sem nenhuma alusão visual à sua performance de “boy”. Só se sabia que era uma “travesti” por causa da fama do cabaré nesse tipo de mister. A divulgação das artistas da geração de Jane Di Castro, por exemplo, que chegou um pouco depois de Divina Valéria e Rogéria ao Carrousel, já na década de 1970, parece fazer uso mais intenso da exibição do corpo, sobretudo nu, talvez para mostrar ao público não mais o contraste entre antes e depois, responsável por provocar espanto, mas o corpo com um resultado final, sem marcas visíveis de ambiguidades. Outro sentido sobre a adoção do nu nessas fotografias é oferecido por Jane Di Castro. Em entrevista ao jornal O Pasquim, em 1983, ela afirma que o Carrousel de Paris que conheceu havia sido convertido em uma vitrine de prostituição. Segundo ela, ficar nua era um critério de elegibilidade da casa, aquelas que apenas queriam cantar não conseguiam mais fazer carreira por lá (JAGUAR, 1983)JAGUAR. “Como se tornar um travesti super-star”. O Pasquim, Rio de Janeiro, ano XIV, n. 731, p. 7, 30 jun a 07 jul, 1983.. Em função disso, ela conseguiu emprego no Trafalgar, outra casa que reunia as características dos antigos shows do Carrousel.
Essa exibição parece se relacionar com o contexto de intensa divulgação popular daquilo que Leite Junior (2008)LEITE JUNIOR, Jorge. “Nossos corpos também mudam”: sexo, gênero e a invenção das categorias “travesti” e “transexual” no discurso científico. 2008. Tese (Doutorado em Ciências Sociais) - Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais, PUC-SP, São Paulo, SP, Brasil. chamou de “milagres da tecnologia médica”: a ideia de que é possível “trocar o sexo”. A partir das análises de Joanne Meyerowitz (apudLEITE JUNIOR, 2008)LEITE JUNIOR, Jorge. “Nossos corpos também mudam”: sexo, gênero e a invenção das categorias “travesti” e “transexual” no discurso científico. 2008. Tese (Doutorado em Ciências Sociais) - Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais, PUC-SP, São Paulo, SP, Brasil. no contexto norte-americano, o autor ressalta o surgimento de uma nova categoria de “maravilhas”, agora não mais assimiladas às aberrações, mas antes a seres plenamente modificados pelas modernas técnicas médicas-cirúrgicas que vinham se desenvolvendo na Europa e nos Estados Unidos.
Com essas fotografias do Carrousel de Paris, as “travestis” constituíam um portfólio a que o carimbo da casa conferia prestígio. Atuar no Carrousel implicava ser reconhecida como artista competente. Todas as artistas que compunham a equipe possuíam fotos carimbadas pela casa, as quais ilustravam os programas dos espetáculos. As fotos ressaltavam a hiperfeminilidade das “travestis”, produzida sobre um corpo erotizado. Acredito que em função de uma ausência de formalização desse mercado de espetáculos, as fotos e programas do Carrousel de Paris e do Madame Arthur possibilitaram a construção de um currículo documentado para essas pessoas.8 8 Algumas “travestis” chegaram a receber uma espécie de aposentadoria por conta de sua estada na Europa. Marquesa, por exemplo, recebia do governo alemão uma pequena renda mensal.
As circulações motivadas pelo Carrousel de Paris ganharam materialidade em um conjunto diversificado de agendas cujos compromissos se deslocavam de um polo considerado mais glamourizado, como os eventos onde estavam presentes o jet set9 9 A expressão jet set ganhou sentido na década de 1950 através do colunista do jornal New York Journal American, Igor Cassini, para caracterizar um conjunto de pessoas que possuíam dinheiro suficiente para viajar de avião a jato. internacional em festas, jantares, locais da moda etc., enquanto no outro polo se concentravam aquelas circulações menos divulgadas, mas que marcaram profundamente a trajetória de vida das mesmas. Nos dados a que tive acesso, as circulações dessas “travestis profissionais” por esse universo “não oficial” foram tratadas com certa reserva. O conjunto desse material - jornais, revistas, entrevistas à imprensa etc. - permite inferir que existia um silenciamento tácito acerca dessas práticas, talvez em função de uma preocupação de se distanciarem do “estigma da prostituição”. Os deslocamentos e as aquisições dessas “travestis profissionais” dentro dessa rede de relações são um exercício importante para compreender a forma como elas construíram a sua trajetória artística e de vida.
A experiência no Carrousel transcendia Paris, e um exemplo disto foram as tournées internacionais a que elas eram solicitadas a participar. Marquesa, apesar de não ter iniciado sua carreira na Europa, pois foi primeiro para Nova York,10 10 Marquesa trabalhou no Club 82 quando passou uma temporada em Nova York. Trata-se de um bar underground frequentado por drags queens aberto em 1958. Funcionou até 1978 na 4th Street, em Nova York. é um exemplo da circulação do Carrousel de Paris pelo mundo, sobretudo na própria Europa Ocidental. A tournée de Gay International Show marcou a presença de Marquesa nos palcos espanhóis. Lá, ela esteve, inclusive, na companhia de Coccinelle fazendo shows.
Nesses shows, a ambiguidade de gênero é percebida com um negócio lucrativo. O próprio “corpo travesti” é o espetáculo. É sobre esse corpo que recai a curiosidade do expectador, assentada nessa ambiguidade, uma “maravilha” (LEITE JUNIOR, 2008)LEITE JUNIOR, Jorge. “Nossos corpos também mudam”: sexo, gênero e a invenção das categorias “travesti” e “transexual” no discurso científico. 2008. Tese (Doutorado em Ciências Sociais) - Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais, PUC-SP, São Paulo, SP, Brasil.. Essas imagens sugerem ainda um jogo entre revelação e dissimulação, semelhante ao que Linda Williams (2012)WILLIAMS, Linda. “Screening sex: revelando e dissimulando o sexo”. Cadernos Pagu , Campinas, n. 38, p. 13-51, jan./jun. 2012. chamou de screening sex ao analisar a história da exibição do sexo nos Estados Unidos. Para a autora, o verbo exibir, examinar (screen), possui um duplo sentido. Ao mesmo tempo que implica revelar algo, ele também possui um significado relacionado ao esconder. Essa dissimulação presente nos filmes pornográficos abre um espaço, segundo Williams (2012), a ser preenchido pela imaginação do expectador. Este é um ponto que é de interesse reter. As imagens provocadoras do material de divulgação dos shows do Carrousel parecem brincar com o público de revelar e esconder, estimulando a imaginação sobre esse corpo indecifrável.
Outro dado marcante sobre esses shows é a associação estabelecida entre as noções de luxo, sexy, humor e a ideia de frivolidade. Essas características sugerem uma “estética do deboche”, através da qual os “corpos travestis” são produzidos como itens de exibição da ambiguidade de gênero: são corpos exotizados com vias à comercialização. Essa exotização produz um corpo para venda através do humor e do riso que evoca. Associados a esses elementos, acredito que a curiosidade também foi um sentimento que fez com que as plateias afluíssem a estes shows.
Nenhum destaque internacional é dado à Marquesa no material estudado, talvez em função de sua dupla nacionalidade, já que seus pais eram franceses. Em um dos materiais de divulgação da sua estada em Barcelona, ela é identificada como carioca, mas também europeia. Outro dado que chama atenção é o uso da categoria “gay” exibida no título desse show do Carrousel em que Marquesa trabalhou, marcando assim uma indistinção de sentidos entre “travestis” e “gays”, uma nova categoria que emergia no contexto europeu, importada dos Estados Unidos.
A noção de “internacional” é recorrente nas formas de exibição dos “shows de travesti” nos diferentes materiais de divulgação com que tive contato. Sugiro que tal exibição seja um recurso adotado pelo empresariado do entretenimento na tentativa de provocar a sensação de uma diversidade de artistas. Mesmo divulgando a ideia de um show internacional, nenhum dos impressos de divulgação que recolhi associava a imagem das “travestis” a estereótipos nacionalistas. No caso das “travestis” brasileiras, não pude observar, em imagens ou discursos, ideias que reforçavam representações dessas agentes como potencialmente mais sensuais, tal como a literatura sobre o tema tem chamado a atenção (Adriana PISCITELLI, 2013)PISCITELLI, Adriana. Trânsitos: brasileiras nos mercados transnacionais do sexo. Rio de Janeiro: EDUERJ, 2013.. A ideia de uma “brasilidade” com seus conteúdos de exotização é abandonada, assim como ocorre com outras nacionalidades, em favor de uma percepção de que o exótico, nesse contexto, é menos a singularidade étnica do que o próprio corpo metamorfoseado.
Além das cidades espanholas, Marquesa fez temporadas no Cabaret Chez Nous e no Chez Romy Haag, ambos em Berlim. Esta última foi uma importante casa noturna da capital alemã, aberta em 1974 por Romy Haag, famosa transexual holandesa que fixou residência na Alemanha. O Chez Romy Haag era, na década de 1970, um reduto dos apreciadores da disco music na capital alemã. Haag ficou conhecida mundialmente em função de seu romance com David Bowie, que se mudou para Berlim, em 1976, por causa dessa relação. Haag foi musa inspiradora de Bowie nos anos em que durou o romance. As produções do Chez Romy Haag eram bem elaboradas e contavam com figurinos luxuosos. As performances incluíam dublagem e danças coreografadas, assim como esquetes curtas, nas quais o humor e a ironia marcavam a interação das artistas com o público, muito semelhantes às modernas boates dedicadas ao público LGBT. A nudez masculina também era outra característica marcante das produções do Chez Romy Haag.
A vida noturna em espaços como o Carrousel de Paris, o Madame Arthur e o Chez Romy Haag proporcionou a essas “travestis” conviver com um cardápio diversificado de pessoas - sobretudo o jet set internacional. Considerados espaços underground, essas casas noturnas tinham como fregueses artistas e pessoas ricas, algumas vinculadas a importantes famílias da Europa. Tal presença produzia reconhecimento a esse gênero de espetáculo e às artistas que o comandavam. Simultaneamente, conhecer pessoas ilustres proporcionava construir um capital social que, compondo suas narrativas sobre sua temporada europeia, ajudaria a consolidar uma imagem de glamour sobre si mesmas quando elas voltaram ao Brasil.
Outro dado marcante da circulação proporcionada pelas redes da vida noturna europeia é aquela que se relaciona ao bas-fond. De acordo com Raphael Bispo (2013)BISPO, Raphael. Senhoras do rebolado: carreiras artísticas e sensibilidades femininas no mundo televisivo. 2013. Tese (Doutorado em Antropologia Social) - Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Museu Nacional, UFRJ, Rio de Janeiro, RJ, Brasil., a expressão francesa bas-fond se relaciona ao “submundo, ao não oficial, às práticas que eclodem por baixo dos olhares reguladores, que castram comportamentos indesejáveis” (BISPO, 2013BISPO, Raphael. Senhoras do rebolado: carreiras artísticas e sensibilidades femininas no mundo televisivo. 2013. Tese (Doutorado em Antropologia Social) - Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Museu Nacional, UFRJ, Rio de Janeiro, RJ, Brasil., p. 99). Essa formulação permite vislumbrar um campo de deslocamento tensionado por valores e lógicas próprias, posto que relacionado a regiões fronteiriças, perigosas e contagiosas. Por outro lado, tal incursão ao bas-fond dos nightclubs europeus daquele período pode, seguindo as formulações de Maria Elvira Díaz Benítez (2010)DÍAZ BENÍTEZ, Maria Elvira. Nas redes do sexo: os bastidores do pornô brasileiro. Rio de Janeiro: Zahar, 2010. acerca da noção de redes sociais, ajudar a compreender o cruzamento entre esse mundo e outros contíguos - espaços porosos através dos quais essas “travestis profissionais” construíram para si uma carreira considerada de sucesso na Europa.
Foi o bas-fond que proporcionou a essas “travestis profissionais” estabelecer trocas simbólicas de outros gêneros. Compartilhar o glamour dos espaços considerados impenetráveis por simples mortais era um momento singular na trajetória de vida dessas “travestis profissionais”. Divina Valéria falou das muitas vezes que, ao final dos shows do Carrousel, foi convidada por diferentes cavalheiros para acompanhá-los aos seus hotéis, sempre de cinco estrelas, destaca. Curtos passeios a localidades destacadas pelo luxo, como a Riviera Francesa, também faziam parte desses itinerários de glamour. Foi assim que Divina Valéria conheceu homens ricos e perdulários que ofereceram a ela não somente um estilo de vida faustoso, mas também bens materiais como joias, roupas caras e os tão desejados casacos de pele. Mais do que os valores monetários investidos nesses objetos, as relações delas com esses homens e o seu círculo social se destacam como o bem simbólico mais valioso.
São essas conexões, mais do que os bens materiais que conquistaram, que ganham importância quando elas falam de suas trajetórias. Essa infiltração do simbólico no conjunto dessas trocas atualiza as contribuições de Marcel Mauss (2003)MAUSS, Marcel. “Ensaio sobre a dádiva: forma e razão das trocas nas sociedades arcaicas”. In: MAUSS, Marcel (org.). Sociologia e Antropologia. São Paulo: Cosac & Naify, 2003. acerca da natureza das trocas nas sociedades. Quando falam de si, essas “travestis” não destacam as conquistas materiais que tiveram ao longo da vida, mas antes as relações que construíam. Os “cavalheiros”, como destaca Divina Valéria quando a entrevistei, proporcionaram uma circulação de bens materiais e simbólicos em torno delas, agregando valores e sentidos às suas trajetórias e carreiras.
Quanto à associação ao imaginário da prostituição, essa categoria faz pouco ou nenhum sentido para algumas “travestis” dessa geração, sobretudo para Divina Valéria e Rogéria, consideradas pioneiras. O ingresso nos mercados do sexo era mais uma possibilidade em meio a outras que se colocavam durante suas estadas na Europa. A experiência com os “cavalheiros” era mais vivenciada na chave do cortejo amoroso do que do sexo pago no sentido estrito. Essa experiência remete menos a uma ideia de mercantilização do sexo do que a uma lógica da dádiva e da reciprocidade, semelhante àquelas formas de intercâmbios de serviços sexuais analisadas por Piscitelli (2013)PISCITELLI, Adriana. Trânsitos: brasileiras nos mercados transnacionais do sexo. Rio de Janeiro: EDUERJ, 2013. em relação às brasileiras envolvidas nos mercados transnacionais do sexo. Para essa autora, as noções correntes de prostituição não contribuem satisfatoriamente para a compreensão das diferentes formas de inserção nos jogos que envolvem sexo e dinheiro. Muitas dessas inserções não assumem a forma contratual do sexo pago; são antes abertas à interpretação dos agentes que participam desses jogos.
No caso das “travestis” dessa geração, tais relações eram mais o resultado de uma carreira bem-sucedida do que um recurso para conquistar esta carreira. Os “cavalheiros”, no sentido narrado por Divina Valéria, se interessavam por aquelas que reuniam atributos físicos e que conseguiam se destacar nas apresentações do Carrousel de Paris. A lógica do cortejo incluía oferecer-lhes joias, vestidos da haute couture e passeios exclusivos - presentes - com os quais eles podiam negociar sua companhia conjugando uma dinâmica de conquista.
O Carrousel proporcionava ainda outro tipo de circulação, aquela relativa ao recém-criado mundo das mudanças corporais. Divina Valéria revela que no Carrousel era possível ter acesso a informações sobre formas de se “transformar”. Com as outras “travestis profissionais” que já tinham carreira consolidada, elas puderam ter contato com diferentes estratégias e “tecnologias de gênero” (Teresa DE LAURETIS, 1994)DE LAURETIS, Teresa. “A tecnologia de gênero”. In: HOLLANDA, Heloísa Buarque de (org.). Tendências e impasses: o feminismo como crítica cultural. Rio de Janeiro: Rocco, 1994. p. 206-242. para construir seu corpo e sua performance: processos de hormonização, cirurgias para corrigir imperfeições, formas de apresentação de si, etiqueta etc. Eloína, em entrevista ao jornal Lampião da Esquina, revela as mais variadas possibilidades abertas a elas para transformarem o corpo quando ainda no Carrousel de Paris. Ela diz que tomou hormônio e injetou silicone para produzir seu corpo. Fala ainda de uma droga que era moda entre as “travestis profissionais” chamada Amplan. Em entrevista ao jornal Lampião da Esquina de fevereiro de 1980, diz Eloína:
O Amplan só é vendido na Europa e nos Estados Unidos. Você consegue a receita com um médico, são umas pílulas. Aí você procura um cirurgião plástico que faz um corte nas duas virilhas e coloca duas dessas pílulas em cada. Aí vem toda a reação. Os cabelos crescem mais, a voz afina, os músculos somem, os seios crescem. Mas isso enfraquece muito o organismo. E não é em todas as pessoas que faz efeito. Depende do organismo de cada um (BASTOS, 1980)BASTOS, José. “Eloína dá o serviço: operação, implantes, silicone etc”. Lampião da Esquina, Rio de Janeiro, ano 02, n. 21, p. 3, fev. 1980..
Uma das primeiras transformações que operavam em seu corpo era abandonar as perucas com as quais trabalhavam nos shows no Brasil, e se permitiam deixar crescer os cabelos, sobretudo resultado da ingestão de hormônios. O uso de hormônio, entretanto, era cercado de histórias, muitas das quais com desfechos tristes. Yeda Brown, por exemplo, afirma que no período em que começou a se hormonizar, com 18 anos, ouvia relatos de colegas nos quais a morte aparecia como o resultado do uso descomedido de hormônios no corpo. Ela disse que, quando as pessoas de sua época começavam o processo de hormonização, eram tomadas por uma “ansiedade de ser mulher” tão acentuada que algumas tinham como destino a morte. Rogéria também aciona lembranças bastante dolorosas do período em que começou a operar transformações no seu corpo. Para ela, transformar um homem em mulher no palco é tarefa fácil, “na realidade que é fogo”, revelou ao jornal O Pasquim, em 1973. Ela disse ter chorado muito durante todo o processo (JAGUAR et al., 1973).
Claudia Celeste, de uma geração posterior a Rogéria e Divina Valéria, fala um pouco das transformações corporais que se deram a partir dos trânsitos dessas “travestis profissionais” pela Europa nesse período.
Por que na época delas, da Valéria, Rogéria, porque elas vieram antes de mim, nos anos 1960, né? Então, elas eram todas transformistas, não tinha assim, peito! Veio depois. Tinham algumas, que eram mais malucas na época, entendeu? Como a Jaqueline de Poir, que começou a tomar aquelas pílulas, porque ninguém sabia, porque era pílula anticoncepcional - foi nos anos 1960 que apareceu a pílula anticoncepcional. Por consequência, o travesti [sic] de peito começou aí [...]. No homem nascia peito, crescia os peitos, entendeu? Em alguns, em outros não. Mas a maioria tomava, começou a tomar, os peitos cresciam. [...] Mas muitas tinha medo, né? Rogéria, Valéria e tudo, tanto que elas foram para a Europa, na Europa que, em Paris é que elas aprenderam, entendeu? Porque lá, já tinham até operadas! (Claudia Celeste, entrevista concedida em 09 de julho de 2013).
Apesar de atentas ao exemplo de Coccinelle, “operar” ou “mudar de sexo” era a única transformação que foi unanimemente rejeitada por essas pessoas dessa geração com quem tive contato, com exceção de Yeda Brown.11 11 Yeda Brown realizou a cirurgia de “mudança de sexo” nos Estados Unidos. Eloína e Rogéria, por exemplo, nunca disseram pensar em passar por essa intervenção. Eloína, quando perguntada pelo jornal Lampião da Esquina sobre essa possibilidade, disse que jamais faria, posto que, para uma pessoa realizar o procedimento, é necessário ser muito “preparado de cuca”, afirmou taxativa (BASTOS, 1980)BASTOS, José. “Eloína dá o serviço: operação, implantes, silicone etc”. Lampião da Esquina, Rio de Janeiro, ano 02, n. 21, p. 3, fev. 1980.. Na mesma matéria, ela cita exemplos de outras que fizeram a operação e tiveram desfechos infelizes, tais como morte por infecção no hospital durante o pós-operatório e o suicídio. Eloína mobiliza representações correntes acerca desse tipo de intervenção cirúrgica naquele período e ainda hoje. Dentre essas representações, a mais marcante é aquela que se cruza à ideia de loucura,12 12 A ideia de loucura associada à cirurgia hoje nomeada de “redesignação sexual” ainda é recorrente na visão de mundo de muitas “travestis”, tal como mostram os estudos de Don KULLICK (2008) (Travesti: prostituição, sexo, gênero e cultura no Brasil. Rio de Janeiro: FIOCRUZ, 2008) e Larissa PELÚCIO (2009) (Abjeção e desejo: uma etnografia travesti sobre o modelo preventivo de aids. São Paulo: Annablume; FAPESP, 2009). fazendo com que as candidatas à operação sejam suspeitas de uma demência latente, com o suicídio se tornando sempre uma possibilidade. Rogéria, em entrevista ao jornal O Pasquim, em 1973, caracteriza Coccinelle como uma pessoa frustrada, uma pessoa com muitos problemas cujos motivos ela atribui serem originados na cirurgia de “mudança de sexo” (JAGUAR et al., 1973). Marquesa, em entrevista concedida a mim, afirma que somente tomava hormônios para fazer crescer os seios, mas os produtos também deixavam o seu rosto mais liso. Já Jane Di Castro diz ter pensado operar, mas que foi em função da “má orientação” de uma “operada” que tentou fazer a sua cabeça. As mudanças corporais de Jane Di Castro foram feitas em Nova York, onde trabalhou uma temporada para conseguir pagar as cirurgias de aplicação de silicone no quadril, nos seios e no rosto (JAGUAR, 1983).
Jane Di Castro revela, além disso, o lado obscuro desse período de experimentações corporais, no qual, segundo ela, elas serviam de cobaias. Ela explica essa questão falando de uma situação pela qual passou, quando injetou silicone líquido nas pernas, orientação de uma amiga, cujas consequências são até hoje refletidas na sua saúde. Após estes procedimentos, muitas voltavam da Europa com um equipamento corporal totalmente modificado, chegando mesmo a desestabilizar em exuberância muitos símbolos nacionais forjados na “matriz heterossexual” (Judith BUTLER, 2003)BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003., tais como a “mulata do carnaval”. Eloína, por exemplo, antes de ser a Eloína dos Leopardos, era a “mulata” que, em 1976, levantou a Marquês de Sapucaí quando desfilou na frente da bateria pela campeã daquele carnaval, a Beija-Flor de Nilópolis.
As experiências dessas “travestis profissionais” na Europa podem ser condensadas em dois tipos de aprendizados-saberes que, associados ao fazer artístico, começam a ganhar materialidade: o corpo e o comportamento. Esses aprendizados implicam uma nova forma de gestão do corpo na qual as cirurgias plásticas e terapias hormonais são as responsáveis por um sex design (Paul B. PRECIADO, 2008)PRECIADO, Paul B. Texto Yonqui. Madrid: Editorial Espasa Calpe, 2008.. Preciado, em Testo Yonqui (2008)PRECIADO, Paul B. Texto Yonqui. Madrid: Editorial Espasa Calpe, 2008., fala de uma “era farmacopornográfica”, um momento da modernidade capitalista no qual os índices que aferem a produtividade não são mais aqueles da economia fordista, ainda que lá encontre suas raízes, mas sim os relacionados a “todo aquel complejo material-virtual que puede ayudar a la producción de estados mentales y psicosomáticos de excitación, relajación y descarga, de omnipotencia y de total control” (PRECIADO, 2008, p. 31). Nesse complexo é que se situam os hormônios, medicamentos, terapias, cirurgias etc. - itens que implicam uma nova forma de governo da subjetividade. O sucesso das “travestis profissionais” no Carrousel de Paris e cá no Brasil é um exemplo paradigmático do “imperialismo farmacopornográfico”. Aparentemente, esses “sujeitos silicone”, nos termos de Preciado (2008), passam a ser um item iconográfico desse regime, estando a meio caminho entre o Amplan, de que fala Eloína, e a ideia de loucura, da nosografia médica.
Porém, essas experimentações não passavam apenas pelo conhecimento das técnicas cirúrgicas e dos novos fármacos para hormonização adotadas pelas “travestis” europeias, mas também incluíam a adesão a um comportamento elaborado, sobretudo esnobe, que articulava um rico repertório cultural, que englobava arte, teatro, cinema etc. Mais do que esses elementos, esse repertório cultural compreendia, sobretudo, conhecer pessoas ilustres que pertenciam ao jet set internacional. Isso fica muito evidente nas narrativas de vida de Divina Valéria, Marquesa e Rogéria. Todas elas se reportam a uma constelação de atores, atrizes, cantores, socialites, magnatas e até nobres que conheceram, ou mesmo de que se tornaram amigas ou amantes. Acessar essa rede social permitia a elas operar um “travestismo de classe”, nos termos de Anne Mcclintock (2010)McCLINTOCK, Anne. Couro imperial: raça, gênero e sexualidade no embate imperial. Campinas: EDUnicamp, 2010., evidenciando os mecanismos simbólicos dessas convenções. Ao mesmo tempo, permitia com que elas habitassem as normas (Saba MAHMOOD, 2006)MAHMOOD, Saba. “Teoria feminista, agência e sujeito liberatório: algumas reflexões sobre o revivalismo islâmico no Egipto”. Etnográfica, v. 10, n. 01, mai. 2006. a partir da incorporação das convenções de classe e gênero, resistindo, dentro destas, aos estigmas a elas associados. Aparentemente, esse capital social tende a atrair sobre elas reconhecimento, invisibilizando a estigmatização aliada à sua experiência social marcada pela abjeção.
Esse repertório de capitais materializava um “corpo exibível” (Everton RANGEL, 2015)RANGEL, Everton. Brazilian dancers: a travessia dos corpos em um circo norte-americano. 2015. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) - Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Museu Nacional, UFRJ, Rio de Janeiro, RJ, Brasil., cuja manutenção era feita por uma gestão cotidiana de gestos, atos de fala e de uma performance milimetricamente elaborada. Sobre esse “corpo exibível”, acho interessante destacar um pouco de minhas impressões pessoais sobre a performance dessas pessoas quando tive a oportunidade de realizar entrevistas com algumas delas. Era inevitável perceber o quanto o corpo dessas “travestis profissionais” evocava glamour nos gestos mais básicos, como nos movimentos das mãos e no ajeitar dos cabelos. Fascinou-me ver como Divina Valéria fazia uso de um repertório corporal que capitaneava para si uma imagem hiperfeminina e espetacular. Parecia que estava sendo fotografada a todo o momento.
Essas observações sugerem que os corpos criados por Divina Valéria, Rogéria e outras dessa geração possuem uma memória associada ao contexto onde foram produzidos: o mundo dos espetáculos. Tais processos estão assentados em um treinamento constante da memória, desejo e intelecto, como sugere Mahmood (2006)MAHMOOD, Saba. “Teoria feminista, agência e sujeito liberatório: algumas reflexões sobre o revivalismo islâmico no Egipto”. Etnográfica, v. 10, n. 01, mai. 2006., provocando uma relação constitutiva entre aprendizagem corporal e sentido corporal. A mútua interação entre esses dois componentes é analisada por Mahmood (2006) através da concepção aristotélica de habitus. A autora alerta para que não se confunda essa noção com aquela elaborada por Pierre Bourdieu (2013)BOURDIEU, Pierre. A distinção: crítica social do julgamento. São Paulo: EDUSP; Porto Alegre: Zouk, 2013., uma vez que se trata de uma disposição consciente de reorientação da vontade, a qual provoca o alinhamento entre comportamentos externos e disposições internas (MAHMOOD, 2006)MAHMOOD, Saba. “Teoria feminista, agência e sujeito liberatório: algumas reflexões sobre o revivalismo islâmico no Egipto”. Etnográfica, v. 10, n. 01, mai. 2006.. Esses aprendizados, continuando nas linhas da autora, sugerem uma modalidade de ação que se relaciona à forma como as normas são incorporadas e performadas por esses agentes em um dado contexto. Considerando essas referências, é possível afirmar que a ideia de glamour e a performance a ela associada foram importantes itens para o processo pelo qual essas “travestis profissionais” performaram a norma e, simultaneamente, a subverteram.
Outra questão importante relacionada à circulação europeia é a noção de profissionalização contida na expressão “travestis profissionais”. À “travesti profissional” se impõem certos atributos que passam pelo corpo, comportamento e relações sociais. Mas esses atributos só faziam sentido dentro de uma lógica na qual essas pessoas começam a ganhar existência a partir do discurso produzido por diferentes agentes. Ao analisar um curso no Rio de Janeiro dedicado a formar “mulatas profissionais”, Sônia Maria Giacomini (2006)GIACOMINI, Sônia Maria. “Mulatas profissionais: raça, gênero e ocupação”. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 14, n. 1, p. 85-101, jan./abr. 2006. chega à conclusão de que a marca e prova da profissionalização como “mulata” estava condicionada à aquisição de certos atributos que não eram inatos, mesmo em se tratando de mulheres negras e morenas. Os atributos de que fala Giacomini (2006) são estruturados por um conjunto ordenado de valores e sentidos que oferece significados ao “ser mulata” - uma “identidade idealizada” que não se completa, segundo ela. Articulando as análises de Giacomini (2006) com aquelas de Mariza Corrêa (1996)CORRÊA, Mariza. “Sobre a invenção da mulata”. Cadernos Pagu , Campinas, n. 6-7, p. 35-50, 1996., é possível afirmar que tal “identidade idealizada” é uma invenção construída por discursos médicos, literários e carnavalescos, responsáveis pela produção dessa figura de forma tão singular na sociedade brasileira (CORRÊA, 1996)CORRÊA, Mariza. “Sobre a invenção da mulata”. Cadernos Pagu , Campinas, n. 6-7, p. 35-50, 1996..
A ideia de profissionalização se insere nesse processo como um mediador que faz com que corpos sejam materializados como “mulatas”, algo que não depende exclusivamente da cor da pele das envolvidas no curso, mas antes é o resultado de um aprendizado vinculado aos efeitos desses discursos. A profissionalização buscada no curso sugere um aprendizado da forma como deve ser uma “mulata estilizada”, cuja brasilidade materializada no corpo será objeto de consumo “tipo exportação”, sobretudo de turistas que para cá afluem.
Para as “travestis profissionais”, a ideia de profissionalização se aproxima da lógica do curso para formar mulatas. Construir um corpo cirurgicamente era um momento importante no processo de construção da “travesti profissional”, mas não as profissionalizava. Era necessário um investimento simbólico ainda maior, que se relacionava diretamente à viagem para a Europa e à incorporação de etiquetas relacionadas à classe social e gênero. Reunindo esses atributos que não eram naturais, elas operavam diferentes “travestismos” (McCLINTOCK, 2010)McCLINTOCK, Anne. Couro imperial: raça, gênero e sexualidade no embate imperial. Campinas: EDUnicamp, 2010. que as tornavam exibíveis. Tornar-se exibível implicava ser profissional, algo diametralmente diferente das grosseiras exibições de feminilidade que representavam os “homens em travesti”. Para esse fim, o glamour se constituía em um bem simbólico valioso, adquirido a duras penas em função de uma incorporação constante das regras de gênero e classe. Neste sentido, ser profissional era adequar-se à Coccinelle, cuja performance materializava os discursos que a inventaram.
Para a geração de Divina Valéria e Rogéria, a noção de “travesti profissional” está intimamente relacionada aos seus processos de construção de si. Na verdade, na trajetória de vida de Rogéria, a noção de “travesti” aparece mais tardiamente, posto que, para ela, a dualidade Astolfo/Rogéria foi constitutiva. Em muitas de suas aparições públicas, Rogéria permite transparecer pouca preocupação em ser definida como “travesti” ou mesmo “homossexual”. De acordo com esses relatos, sua carreira e apresentação de si são dimensões que se imiscuem em uma síntese, que gerou Rogéria: uma “forma de vida” e uma artista. Acionando essas duas categorias, Rogéria acredita que teria driblado as situações de preconceito em função do respeito que teria adquirido no palco. Em entrevista ao programa Canal Livre, da TV Bandeirantes, de 1980D’ÁVILA, Roberto. Entrevistada: Rogéria. Canal Livre. Rio de Janeiro: TV Bandeirantes, 1980. Programa de TV. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=lW7qfImiGvg.
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, a fala de Rogéria ilustra bem essa percepção de si: “Quando você é artista, realmente, a palavra homossexual, bicha, fica inferiorizada, lá embaixo, porque não me atinge!”. Nessa entrevista, ela ressalta o caráter fluido com que se constrói como artista: transitando entre Rogéria e Astolfo. A circularidade de gênero marca a forma como ela se percebe como um sujeito dotado de agência.
Apesar da estada europeia proporcionar capital simbólico indispensável à construção das “travestis profissionais”, para algumas delas, a viagem implicou pouca ou quase nenhuma ascensão econômica. Rogéria, em entrevista ao Lampião da Esquina, em 1981, afirma que foi o regresso ao Brasil, combinado ao capital simbólico conquistado na Europa, que a fez acumular algum recurso material.
Não ganhei dinheiro nenhum na Europa. Consegui fazer uma boca maravilhosa, porque eu botei jaqueta na boca inteira, mas foi aqui, com o Dr. Hamilton Mourão, um mineiro divino. Comprei um triplex, mas foi tudo com o dinheiro do Brasil. Mesmo com essa inflação, com esse dinheiro horroroso, que não dá para nada, tudo o que eu consegui foi com dinheiro brasileiro. Mas eu precisei ir antes pra Europa, pra depois voltar e começar a ganhá-lo, tá? (Aguinaldo SILVA, 1981SILVA, Aguinaldo. “Rogéria super star”. Lampião da Esquina, Rio de Janeiro, ano 03, n. 32, jan. 1981, p. 8-10., p. 8-10).
Ao que parece, a riqueza disponível na Europa estava relacionada aos recursos tecnológicos de transformação corporal e ao capital simbólico, nos termos de Pierre Bourdieu (2004BOURDIEU, Pierre. Os usos sociais da ciência: por uma sociologia crítica do campo científico. São Paulo: EDUNESP, 2004.; 2013), relacionados à montagem de um corpo-glamour. É possível sugerir que na Europa elas ganhavam dinheiro, mas, ao mesmo tempo, tinham que investir na construção de seus corpos, seja na aplicação de silicone ou outros recursos cirúrgicos, seja na aquisição de um guarda-roupa faustoso e requintado, para que assim pudessem dar continuidade às suas carreiras. Era na Europa que elas adquiriam o “talento de ser fabulosa” (Marcia OCHOA, 2004)OCHOA, Marcia. “Ciudadanía perversa: divas, marginación y participación en la ‘localización’”. In: MATO, Daniel (coord.). Políticas de ciudadanía y sociedad civil en tiempos de globalización. Caracas: FACES, Universidad Central de Venezuela, 2004. p. 239-256..
Quando voltou ao Brasil, Divina Valéria assumiu uma apresentação de si totalmente feminina, provocando grande alarde entre diferentes setores da sociedade brasileira da época, principalmente motivado pela imprensa.
Eu voltei em 72, eu voltei. Eu voltei, mas eu vim para passear, porque eu já tinha rodado um pouco pelo mundo, eu já estava em uma situação financeira legal, porque eu tinha, inclusive, encontrado um homem - um milionário, um conde - que me deu a possibilidade de me vestir com os grandes modistas, usar brilhantes, peles, tudo era... Eu estava rica com este homem que me proporcionava tudo isso: viajando pelos melhores hotéis do mundo, frequentando os melhores restaurantes... Bem, eu estava com tudo isso já algum tempo, então bem, eu estava... mas já acostumada até com isso e vim ao Brasil passear. Aí vim ao Brasil passear e até então, naquela época, nenhuma amiga minha, as travestis da época e tudo, nenhuma estava de mulher ainda, nenhuma ousava viver de mulher, a não ser quando fizesse show. E eu para mim já vivia no meu cotidiano, diariamente, normalmente, já estava acostumada... pra mim era natural! E quando eu vim ao Brasil, algumas amigas minha diziam assim: você não vai conseguir desembarcar no Brasil, porque não vão deixar. Eu, pensei, eu vou ao Brasil, eu viajo para todo o mundo sem ter problema, não vou ter problema, é elas que não estão acostumadas e estão pensando que não pode, porque não é possível que isso vá acontecer no Brasil, todo lugar do mundo nenhum me aconteceu, vai me acontecer no meu país? Aí, eu vim e pensando se não deixam eu entrar, me barram a minha entrada, eu não vou ter que me vestir de homem para passar, eu volto do aeroporto! Mas não aconteceu nada, inclusive quando eu desembarquei, estava muitas delas, estavam tudo de homem, tudo me esperando porque queria ver a reação, o que iria acontecer. Porque todos já estavam me acompanhando minha trajetória lá, tudo que eu estava fazendo, que saía aqui nas revistas. A Nina Chaves,13 13 Nina Chaves foi criadora e editora do “Caderno Ela”, coluna do jornal O Globo cujo principal objetivo era introduzir no periódico um tipo de colunismo de fofoca, moda e entrevistas sintonizado às tendências norte-americanas. A coluna chegou até mesmo a publicar uma parte dedicada ao público gay, chamada “Rapazes da Banda”. Através da iniciativa, Nina fazia circular entre as mulheres das camadas médias cariocas noções de estilo e “bom gosto”. que na época era a cronista mais importante do Rio, deu meia página do Globo comunicando a minha volta ao Brasil. Uma foto de Antonio Guerreiro maravilhosa. Aí as pessoas, não é possível! Sabe? Não estão acostumadas. Eu cheguei, não houve problema! Elas ficaram tudo surpresas. Eu tinha que ir para algum lugar para me hospedar, fui direto para o Hotel Glória, que era um hotel que tinha uma história que me encantava. Fui para o Glória [hotel]. Todas achando que eu ia ter problema, que não ia... com o passaporte de homem não iam me deixar eu estar de mulher. Não teve nenhum problema! Imagina! Foi como se fosse na Europa ou em qualquer lugar do mundo. O problema era elas que não estavam acostumadas e não tinham esse hábito, né? E para mim já era uma coisa normal. Então, fui muito bem tratada e cheguei no hotel e aí começaram... saiu no repórter Esso, no jornal de televisão uma notícia que chegou Divina Valéria, desembarcou de mulher. Detalhe: em determinado momento se dirigiu ao toalete feminino, como se isso fosse uma coisa... saiu como notícia. Bem, eu no Hotel Glória, eu sei que eu não tive mais tempo nem para sentar numa mesa para comer, porque a imprensa era o dia inteiro me procurando, me fotografando. Eu, encantada também com tudo aquilo, no fundo era também, pra qualquer artista, era também o que a gente está esperando que chegue esse momento - de poder divulgar o seu trabalho e tudo - eu não estava vindo com essa intenção, mas aproveitei aquele momento [sic] (Divina Valéria, entrevista concedida ao autor em 29 de setembro de 2014).
O longo relato de sua chegada ao Brasil, depois de sua primeira temporada na Europa, permite inferir um conjunto de questões importantes. Divina Valéria fala de um momento no qual o que se entende hoje como “travesti” tinha outros sentidos. Sua ida à França e o contato estabelecido com as “meninas” do Carrousel de Paris lhe proporcionaram a possibilidade de adquirir um “capital travesti” ainda não disponível no Brasil. O desafio lançado por suas amigas - chegar ao aeroporto “montada” - foi um marco importante na construção da noção de “travesti” como uma forma de se apresentar no mundo. Acredito que toda a movimentação da imprensa contribuiu decididamente para projetar uma representação dessa nova “forma de vida” para milhares de brasileiros, transformando a sua vida em uma “vida fetiche” (McCLINTOCK, 2010)McCLINTOCK, Anne. Couro imperial: raça, gênero e sexualidade no embate imperial. Campinas: EDUnicamp, 2010., alvo preferido das ansiedades da imprensa que, simultaneamente, escandalizava e fascinava a sociedade brasileira do período. A “travesti profissional” converteu-se definitivamente em “espetáculo de consumo” (McCLINTOCK, 2010).
O impacto duradouro das imagens de Rogéria, Eloína e Divina Valéria foi fundamental para toda uma geração que estaria por vir. A trajetória de Claudia Celeste também é um exemplo emblemático da forma como a noção de “travesti profissional” foi sendo significada através do discurso do glamour. Nascida em uma família do subúrbio carioca, Irajá, Claudia Celeste começa a ter contato com os espaços de sociabilidade homossexual carioca através de um amigo, o Pereira, quando ainda era cabo do Exército Brasileiro. Esse primeiro contato foi feito através de suas idas às diferentes casas de santo frequentadas por Pereira na Baixada Fluminense e subúrbio do Rio de Janeiro. Com 19 anos, já fora do exército, Claudia decide abandonar os estudos para fazer um curso de maquiagem. Após esse curso, ela consegue um emprego em um salão em Copacabana, bairro da Zona Sul do Rio de Janeiro. Sua trajetória está diretamente relacionada à ascensão de algumas “travestis” ao imaginário do glamour: muitas delas saíram do Brasil e regressaram logo em seguida aclamadas pela audiência popular, como foi o caso de Divina Valéria.
Eu estava trabalhando em um salão em Copacabana, Valéria volta para o Brasil. Já era famosa, já tinha saído daqui, foi para a Europa, voltou em 1972. Em 1972, ela voltou por cima, então foi um escândalo! Saiu na capa da Manchete [revista] vestida por Clodovil, Guilherme Guimarães - grandes costureiros, entendeu? De Paris e não sei o que... De Givenchy e não sei o que... E aquela bicha alta e coisa: Valter ou Valéria? [...] Aí eu estava trabalhando no salão, quando eu vejo aquela revista: Valter ou Valéria? Aquilo me intrigou, porque eu nunca tinha visto aquilo na minha vida, eu estava com 20 anos, mas naquela época a gente era inocente. [...] Aí quando eu vi aquela mulher belíssima, dizendo que era Valter Fernando Gonzalez, eu fiquei louca, fiquei nervosa, fiquei atacada - era aquilo que eu queria, que eu estava buscando e não sabia. Desde criança eu ficava botando os batons de mamãe escondido no banheiro, botando toalha na cabeça para dizer que era mulher, brincava com as bonecas da minha irmã e não sei o que. Quando eu vi a Valéria assumida, que chegou de Paris e dentro de um vestido que eu olhei aquele peito, como é que ela conseguiu aquilo? Aquelas reportagens enormes, comprei e li todas as reportagens e tudo. Ela no Teatro Princesa Isabel, ela ia fazer um show com Miéli, e aí montaram aquele show e tudo, e aí a primeira coisa que eu fiz: eu comprei ingresso para eu assistir. Eu queria assistir. Fui lá para trás assim para... nervosa para ninguém me ver, aquelas coisas toda. Então, quando eu vi a bicha, que abriu a cortina e ela começa a cantar e aquelas coisas. Que eu vi aquela mulher belíssima, sob aqueles holofotes, aquele glamour, aquela coisa toda - eu fiquei alucinada, eu falei: “ah, não, é isso que eu quero para a minha vida!”. Pronto, aí comecei [sic] (Claudia Celeste, entrevista concedida ao autor em 09 de julho de 2013).
Divina Valéria aparece na narrativa de Claudia Celeste como um marco importante na descoberta de um novo projeto de vida. Ainda que tivesse percebido desde muito jovem que era muito feminina, Claudia não sabia nomear, tampouco o que fazer com essa feminilidade. O glamour manifestado pela imagem de Divina Valéria no palco se constituiu como uma referência pedagógica para Claudia. O glamour encarnado por Divina Valéria encorajou Claudia a assumir definitivamente outros projetos de vida; ela começou então a se hormonizar e a dançar em diferentes boates da Zona Sul do Rio de Janeiro, abandonando o trabalho de cabeleireira. Foram esses espaços que a levariam mais tarde para a televisão.
Considerações finais
Este artigo se ocupou das trajetórias e carreiras internacionais das “travestis profissionais”. É possível inferir que, a partir desse conjunto de dados, a viagem à Europa implicava muito mais que um deslocamento espacial: promovia uma transformação subjetiva e uma ampliação da visão de mundo dessas “travestis” - tornava-as internacionais e cosmopolitas, logo, glamourizadas. Velho (2010)VELHO, Gilberto. “Metrópole, cosmopolitismo e mediação”. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 16, n. 33, p. 15-23, jan./jun. 2010., escrevendo sobre o cosmopolitismo, “supõe que a experiência cosmopolita amplie o universo de experiências e o acesso a visões de mundo diferenciadas” (VELHO, 2010VELHO, Gilberto. “Metrópole, cosmopolitismo e mediação”. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 16, n. 33, p. 15-23, jan./jun. 2010., p. 17). Essa ampliação e acesso de que fala o autor teve duas consequências nas trajetórias dessas “travestis profissionais”. Ao mesmo tempo em que contribuiu para uma mudança na forma como a opinião pública construía representações sobre a imagem das “travestis”, promoveu um empoderamento desse grupo, o qual acabou por se constituir em um projeto de vida para outras, que assim como essas “travestis” se identificavam com esse universo e viam na vida delas uma ampliação do seu “campo de possibilidades”.
Os trânsitos pela Europa figuravam como um importante episódio na trajetória de vida de qualquer “travesti” dessa geração. Foi através dessas viagens que esses indivíduos começaram a instituir mecanismos de representação de si, começaram a elaborar e a divulgar projetos de futuro e, sobretudo, fizeram florescer uma unidade identitária antes não existente. A viagem é parte constitutiva do currículo daquelas que procuram se destacar nesse universo e na sociedade mais abrangente. Ter passado uma temporada em Paris agregava capitais social, cultural e, principalmente, simbólico a essas pessoas, as quais negociavam essa informação de forma intensa em suas trajetórias.
Ainda mais importante do que estar em Paris era o regresso dessas pessoas ao Brasil. Esse retorno era, como é possível observar na narrativa de Divina Valéria, triunfal, obedecendo ao script de uma entrada da diva em cena em um musical da Broadway. Essa chegada era sempre acompanhada de muito alarde aqui no Brasil, sobretudo da imprensa, que alimentava uma representação exótica dessas personagens. Com o regresso vinham os segredos de uma transformação bem-sucedida. A viagem implicava uma mudança dramática na forma como essas “travestis profissionais” negociavam sua existência com o mundo hostil que as cercava. Essa negociação só era possível quando elas articulavam um discurso que realçava o glamour de suas histórias pela Europa - o cortejo de “cavalheiros”, as joias, os shows, os lugares de luxo -, narrativas fundamentais para uma construção de si.
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1
Referência ao filme O Mágico de OZ. Filme baseado no livro do escritor norte-americano L. Frank Baum. O livro tornou-se peça da Broadway e em 1939 ganhou uma versão cinematográfica, protagonizada pela atriz norte-americana Judy Garland.
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Categoria nativa adotada por Divina Valéria para falar de si e de outras que, assim como ela, foram agentes ativas na construção da noção moderna de “travesti”.
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3
Silva JUNIOR (2016) oferece uma descrição nativa da categoria boneca ao entrevistar Claudia Celeste, outra importante personalidade do cenário artístico transformista da década de 1970. Para Claudia, “tudo era boneca na época, não se chamava travesti nem gay. Falava bonecas. Espetáculo de travestis era espetáculo de bonecas. O pessoal começava a achar que travesti era pejorativo, aí eles começaram a chamar bonecas” (p. 68) (SILVA JUNIOR, Aureliano Lopes. “Linda, doce, fera”: a construção de corporalidades políticas no concurso de beleza Miss T Brasil. 2016. Tese (Doutorado em Saúde Coletiva) - Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva, IMS, UERJ, Rio de Janeiro, RJ, Brasil)).
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A primeira experiência de espetáculo envolvendo travestis foi International Set, realizada na Boate Stop, na Galeria Alaska, em Copacabana, Rio de Janeiro. Participaram do elenco desse espetáculo Rogéria, Marquesa, Brigitte de Búzios, Biju Blanche, Gigi Sancir, Jerry di Marco e Manon. Segundo relato de Divina Valéria, ao elenco original de International Set juntaram-se outras iguais, como ela, na produção de Les Girls, em 1966. Estes espetáculos foram importantes eventos na forma como essas pessoas passaram a construir suas identidades e carreiras.
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Categoria nativa para se referir ao fato de estar usando roupas consideradas em conformidade ao sexo designado no nascimento.
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6
Rogéria adota a expressão “ator-transformista” na entrevista.
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O Carrousel de Paris conhecido por Divina Valéria, Rogéria, Marquesa e demais “travestis” dessa geração permaneceu na Rue Vavin de 1962 a 1985.
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Algumas “travestis” chegaram a receber uma espécie de aposentadoria por conta de sua estada na Europa. Marquesa, por exemplo, recebia do governo alemão uma pequena renda mensal.
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9
A expressão jet set ganhou sentido na década de 1950 através do colunista do jornal New York Journal American, Igor Cassini, para caracterizar um conjunto de pessoas que possuíam dinheiro suficiente para viajar de avião a jato.
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10
Marquesa trabalhou no Club 82 quando passou uma temporada em Nova York. Trata-se de um bar underground frequentado por drags queens aberto em 1958. Funcionou até 1978 na 4th Street, em Nova York.
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Yeda Brown realizou a cirurgia de “mudança de sexo” nos Estados Unidos.
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12
A ideia de loucura associada à cirurgia hoje nomeada de “redesignação sexual” ainda é recorrente na visão de mundo de muitas “travestis”, tal como mostram os estudos de Don KULLICK (2008) (Travesti: prostituição, sexo, gênero e cultura no Brasil. Rio de Janeiro: FIOCRUZ, 2008) e Larissa PELÚCIO (2009) (Abjeção e desejo: uma etnografia travesti sobre o modelo preventivo de aids. São Paulo: Annablume; FAPESP, 2009).
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Nina Chaves foi criadora e editora do “Caderno Ela”, coluna do jornal O Globo cujo principal objetivo era introduzir no periódico um tipo de colunismo de fofoca, moda e entrevistas sintonizado às tendências norte-americanas. A coluna chegou até mesmo a publicar uma parte dedicada ao público gay, chamada “Rapazes da Banda”. Através da iniciativa, Nina fazia circular entre as mulheres das camadas médias cariocas noções de estilo e “bom gosto”.
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Como citar este artigo de acordo com as normas da Revista: SOLIVA, Thiago Barcelos. “Internacionais e glamorosas: sobre a carreira das ‘travestis profissionais’”. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 27, n. 2, e53423, 2019.
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Financiamento: A pesquisa contou com o apoio da CAPES, sob a forma de uma bolsa de doutorado, vigente entre março de 2012 e março de 2016.
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Consentimento do uso de imagem: Não se aplica
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Aprovação de comitê de ética em pesquisa: Não se aplica
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
27 Jun 2019 -
Data do Fascículo
2019
Histórico
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Recebido
16 Out 2017 -
Revisado
24 Set 2018 -
Aceito
19 Out 2018