Resumo:
No século XIX, autoras italianas como Diodata Saluzzo, Anna Zuccari (pseudônimo: Neera), Carolina Invernizio, Grazia Deledda, dentre outras, exploraram o gótico, na época um gênero considerado marginal. Por meio da estética do horror, essas autoras exploraram temas como casamentos opressivos, abusos domésticos e marginalização social, expuseram injustiças e crueldades enfrentadas pelas mulheres, desafiando, assim, convenções literárias e sociais da época. Ao considerar a perspectiva dos Estudos Feministas da Tradução, nesse artigo, pretendemos comentar a tradução de dois textos do gótico italiano escrito por mulheres: “O castelo de Binasco” e “Mariposa”, em tradução de Julia Lobão e Karine Simoni, tendo como foco episódios de horror e violência de gênero presentes nesses textos.
Palavras-chave:
estudos feministas da tradução; gótico italiano; século XIX; Diodata Saluzzo; Neera
Abstract:
In the 19th century, Italian women writers such as Diodata Saluzzo, Anna Zuccari (pseudonym: Neera), Carolina Invernizio, Grazia Deledda, among others, explored Gothic literature, a genre considered marginal at the time. Through the aesthetics of horror, these authors addressed themes such as oppressive marriages, domestic abuse, and social marginalization, exposing injustices and cruelties faced by women, thus challenging the literary and social conventions of the period. From the perspective of Feminist Translation Studies, this article aims to discuss the translation of two texts from Italian Gothic literature written by women: The Castle of Binasco and Mariposa, translated by Julia Lobão and Karine Simoni, focusing on episodes of horror and gender-based violence present in these texts.
Keywords:
Feminist Translation Studies; Italian Gothic; 19th century; Diodata Saluzzo; Neera
Resumen:
En el siglo XIX, autoras italianas como Diodata Saluzzo, Anna Zuccari (seudónimo: Neera), Carolina Invernizio, Grazia Deledda, entre otras, exploraron el género gótico, considerado marginal en la época. A través de la estética del horror, estas autoras abordaron temas como matrimonios opresivos, abusos domésticos y marginación social, exponiendo injusticias y crueldades enfrentadas por las mujeres y desafiando así las convenciones literarias y sociales de la época. Desde la perspectiva de los Estudios Feministas de la Traducción, este artículo pretende comentar la traducción de dos textos del gótico italiano escritos por mujeres: El castillo de Binasco y Mariposa, traducidos por Julia Lobão y Karine Simoni, centrando la atención en episodios de horror y violencia de género presentes en estos textos.
Palabras clave:
estudios feministas de la traducción; gótico italiano; siglo XIX; Diodata Saluzzo; Neera
A partir do século XX, o fantástico ganha novo fôlego e lugar de importância na literatura italiana por meio de autores renomados como Dino Buzzati e Italo Calvino; é a partir dessa época que as mulheres também começam a marcar presença no filão da literatura de horror e no cenário atual é possível elencar diversos nomes1 que dão novos rumos a essa tradição.
Se no Novecento há mais mulheres participando ativamente e sendo reconhecidas na cena literária, com uma produção mais diversificada, abordando questões de gênero, identidade, política e história de forma mais aberta e crítica, a presença de mulheres escritoras no século XIX ainda era bastante limitada, se comparada à produção masculina. Com efeito, como avaliar/caracterizar a produção das autoras do século XIX? Que papel tiveram diante do Gótico e do Fantástico, frequentemente marginalizados na Itália durante o Ottocento? Por que razões as mulheres que escreviam enfrentavam obstáculos significativos, como restrições educacionais e expectativas sociais conservadoras, e suas obras eram frequentemente associadas a temas domésticos ou considerados “menores” pela crítica? Que estratégias de pesquisa e tradução podem ser aplicadas para que elas se tornem visíveis na história literária e em outras línguas/culturas? Para responder a esses questionamentos, devemos nos ater a um duplo apagamento.
A primeira obliteração concentra-se no fato de que, durante o século XIX, os gêneros de ficção especulativa foram condenados pela crítica italiana que, influenciada pelo realismo/verismo e pela necessidade de retratar fielmente a sociedade, frequentemente desaprovava esses gêneros por sua natureza fantasiosa e sua “fuga da realidade”, vistas como desinteressantes ou até prejudiciais à função social da literatura, e que são, por primazia, uma das características que melhor define os modelos do Gótico, da Ficção Científica, do Horror e da Fantasia. A segunda supressão está no fato de que, com exceção de algumas autoras que marcaram a literatura italiana através de feitos extraordinários, como o prêmio Nobel concedido à Grazia Maria Deledda (1871-1936), em 1926, o cânone ainda se concentra em atuações predominantemente masculinas, como bem aponta Giuliana Misserville (2020):
Afinal, o fantástico e as escritoras compartilharam de maneira diversa o seu “esquecimento” do cânone literário, uma exclusão que pesava duplamente no caso das autoras que se dedicavam à narrativa gótica e à ficção científica, já que a formação e a manutenção do cânone estavam nas mãos de um grupo elitista formado por homens brancos e inseridos no mundo acadêmico2 (p. 27).
Portanto, “gêneros menores”, isto é, marginalizados e pouco prestigiados pelo cânone, como o Gótico, o Horror, a Fantasia e a Ficção Científica, foram utilizados por mulheres, especialmente no século XIX, para expressar sua criatividade e abordar questões que lhes eram importantes em contextos imaginários, permitindo críticas sociais, filosóficas e psicológicas que não poderiam ser abordadas da mesma forma em narrativas realistas. É o caso de autoras como Diodata Saluzzo (1774-1840); Luigia Emanuel Saredo (1830-1896); Matilde Serao (1856-1927); Anna Zuccari, também conhecida como Neera (1846-1918); Carolina Invernizio (1851-1916); dentre outras. A natureza fantasiosa desse tipo de escrita, bastante censurada pela crítica, permitiu que essas mulheres escrevessem tanto como forma de expressão quanto como meio de sobrevivência e independência financeira. Ao atuarem, portanto, em um campo de forças dinâmico e tensionado, no qual constantemente negociavam, resistiam e buscavam maneiras de afirmar sua atuação e subjetividade, as mulheres desafiaram a ordem hegemônica que concedia aos homens o poder de autorização ou desautorização na cultura. Os atuais desafios, a nosso ver, ainda são os de romper com os discursos que colocam as mulheres como ausentes do espaço literário/intelectual, e, ainda, com as abordagens simplistas que as tratam como vítimas, como já haviam alertado Arlette Farge e Natalie Zemon Davis (1991):
Os diferentes olhares sobre a história das mulheres tentam quebrar o estereótipo habitual, segundo o qual em todos os tempos as mulheres teriam estado dominadas e os homens teriam sido seus opressores. A realidade é de tal modo mais complexa que é preciso trabalhar com mais finura: desigualdade, com certeza, mas também espaço movediço e tenso em que as mulheres, nem fatalmente vítimas nem excepcionalmente heroínas, trabalham de todas as formas para serem sujeitos da história (p. 13).
Chamamos atenção para o fato de que os Estudos Feministas da Tradução também têm contribuído, de maneira fundamental, para essa necessária revisão/reescrita da história, pois se configuram como “um espaço privilegiado para analisar criticamente as representações de poder” (Castro; María Laura Spoturno; Maria Bárbara Florez Valdez; Beatriz Regina Barboza, 2022, p. 24), em que cada ato tradutório e cada reflexão sobre tradução possui uma responsabilidade social e política inerente. Como ato crítico e político, o trabalho de quem traduz é essencial para as imagens que vão sendo construídas/inseridas dentro de um determinado sistema literário: O que é traduzido? Quem traduz? De que modo? Para Luise von Flotow, os pilares de uma tradução feminista não estão somente na escolha em traduzir textos de mulheres, mas também na visibilidade da tradutora, que participa ativamente da criação do significado do texto. Assim,
tem-se tornado quase rotina, para as tradutoras feministas, refletirem sobre seu trabalho, em um prefácio, e ressaltarem sua presença ativa no texto, em notas de rodapé. A tradutora modesta, discreta, que produz uma versão fluente, legível, do original, na língua-alvo, tornou-se coisa do passado. [...] Ela é mais do que uma tradutora convencional; é a cúmplice da autora, mantém a estranheza do texto-fonte e busca, ao mesmo tempo, comunicar seus múltiplos significados que, de outra forma, estariam “perdidos na tradução” (2021 [1991], p. 500-501).
É, portanto, a partir dessas considerações, que inter-relacionam Estudos Feministas da Tradução, História das mulheres, e gêneros literários marginalizados, como o Gótico, o Horror, a Fantasia, que apresentamos o objetivo deste estudo: comentar a criação de uma antologia de contos góticos italianos escritos por mulheres, traduzidos ao português, com particular foco em dois textos: “O castelo de Binasco. Novela de 1418” (Il castello di Binasco. Novella dell 1418, (1819)), de Saluzzo (1774-1840), em tradução de Simoni, e o conto “Mariposa” (Falena, (1893)), de Zuccari, conhecida como Neera (1846-1918), em tradução de Lobão. A escolha se deu pelos seguintes motivos: Saluzzo, além de ser conhecida como uma das primeiras vozes do insólito italiano, abre caminho para as demais produções de literatura gótica escrita por mulheres no século XIX, e, além disso, conforme veremos, ela recebeu ampla aprovação de grandes nomes da literatura, sendo constantemente louvada pela sua escrita inimitável e pelo estilo rebuscado e peculiar em suas narrativas. Por sua vez, Neera fecha o século XIX e, mesmo que não se associe como Saluzzo a uma das vertentes do fantástico, em alguns contos de sua autoria é possível identificar elementos narrativos que podem ser lidos sob a chave do Horror, dada a descrição gráfica da condição de miséria e desespero que assola suas protagonistas mulheres.
Para fins de organização do estudo, primeiramente, traçaremos algumas considerações sobre o gótico e a escrita de mulheres na Itália do século XIX; em seguida, falaremos brevemente do processo de antologização e tradução da obra Lua em Foice: autoras italianas de ficção gótica, insólita e de horror, com organização e tradução de Julia Lobão e Karine Simoni (2023); por fim, trataremos dos textos escolhidos.
O gótico italiano e a escrita/tradução de mulheres
Em seu estudo Oltre la soglia: fantastico, sogno e femminile nella letteratura italiana e dintorni (Além do limiar: fantástico, sonho e feminino na literatura italiana e arredores), Annamaria Cavalli (2002, p. 194) ressalta que a segunda metade do século XIX possibilitou uma série de condições que favoreceram o acesso à leitura e abriram novas oportunidades para que as mulheres pudessem se expressar literariamente e explorar novas formas de participação no campo cultural. Em primeiro lugar, o processo de Unificação italiana trouxe consigo campanhas de escolarização em massa, o que favoreceria o aumento de leitores(as); além disso, a reestruturação do sistema editorial proporcionou o surgimento de edições mais econômicas e popularizou o alcance do livro enquanto objeto de consumo (em oposição à ideia do livro como objeto de luxo), aumentando, portanto, a busca por novos(as) escritores(as); por fim, vale mencionar o surgimento de uma nova rede de revistas e periódicos, como “Secolo” e o “Corriere della sera”, nos quais muitas mulheres tornaram-se colaboradoras como colunistas em diversos segmentos, e através dos quais muitas leitoras da classe operária consumiam narrativas publicadas de forma fascicular. Com isso, excluídas do cânone, dos holofotes e das histórias literárias, essas mulheres puderam criar universos complexos e muitas vezes aterrorizantes, onde grande parte dos traumas e dificuldades da própria existência feminina tornava-se alegorias travestidas em histórias de fantasmas ou monstros:
A escrita é vista, portanto, como única âncora de salvação e assim a literatura fantástica se torna também uma rota de fuga do cotidiano limitado e insatisfatório, através da encenação de uma lógica diferente, na qual prevalece a dúvida, eleita como instrumento de investigação e interpretada como sinal de distinção e paradoxalmente de maior lucidez mental3 (Cavalli, 2002, p. 101).
Indubitavelmente, a literatura já assegurou às mulheres o seu lugar dentro do filão fantástico. No entanto, esse espaço foi, por muito tempo, circunscrito por homens, e não resultou de uma participação ativa e criativa de mulheres escritoras, mas de personagens femininas criadas pelos próprios homens, frequentemente reduzidas a estereótipos que limitavam as mulheres a papéis de feiticeiras sedutoras, bruxas vingativas e noivas rancorosas que retornavam do mundo dos mortos para vingar-se de seus parceiros, reforçando uma visão simplificada e até negativa do ser mulher. Para Cavalli, a conexão entre as mulheres e o sobrenatural não assume nenhuma conotação negativa; parte, ao invés disso, do elo inerente entre a mulher e a natureza:
Desde sempre a mulher aparece ligada às misteriosas forças da natureza: o seu ser lunar (como a lua periódica, mas também mutável) encarna o lado primário e mais escondido da humanidade na sua relação com o cosmos e, como tal, parece capaz de entrar em contato com as forças ocultas e de revelar arcanos inatingíveis pela racionalidade pura, típica do homem. Portanto, a ela está reservada muitas vezes, nas tramas poéticas ou narrativas, a função de conectar o parceiro ao transcendental, fazendo-o dar aquele salto para além do limiar, pelo qual ele anseia - como acontece a alguns personagens dannunzianos, fogazzarianos ou tarchettianos - mesmo que o custo dessa função mediadora seja até mesmo a morte (como se impõe à Beatriz dantesca ou à Laura petrarchesca)4 (2002, p. 11-12).
A premissa segundo a qual as mulheres, como as fases da lua, passam por ciclos de transformação, é historicamente construída e remete à conexão entre o corpo feminino e os ritmos da natureza, como o ciclo menstrual e as fases lunares, ambos marcados por repetição e renovação. Essa perspectiva também sublinha a capacidade única das mulheres de gerar e nutrir a vida, o que as coloca, simbolicamente, em diferentes culturas, como fontes de criação e força vital, entidades conectadas à energia primordial do mundo natural. No entanto, a sua disposição “lunar” ainda é colocada em relação de dependência com o sol, representação predominantemente masculina; o satélite que precisa ser iluminado por um astro de maior porte. Dito de outro modo, as associações simbólicas, se por um lado enaltecem a força da mulher, por outro, podem ser usadas para limitá-las a papéis essencialmente biológicos ou naturais. É o que parece acontecer na criação de personagens mulheres na literatura gótica italiana: a mulher, essa ponte com o sobrenatural, com o salto para “além do limiar”, deve pagar com a própria vida para exercer sua função de guia; com frequência, as narrativas de Iginio Ugo Tarchetti, Gabriele d’Annunzio ou Luigi Capuana são protagonizadas por heroínas que, depois de ajudarem o protagonista a transcender e conectar-se com o “além-mundo”, devem ser sacrificadas - não raramente através de crises histéricas ou da inevitável tuberculose, a doença dos românticos. A sociedade também atribuiu a essas mulheres a ideia generalizante de que o lado cíclico e sobrenatural faz com que elas sejam frequentemente mais subjetivas e tenham menos capacidade de invenção, já que o engenho criador e criativo sempre coube aos homens.
Atrelado a isso, surge a constante cobrança pelo realismo - que, durante o século XIX, relegou muitas produções masculinas e femininas ao ostracismo - não apenas enquanto gênero literário, mas como tema narrativo que emula a reprodução de uma realidade experienciada, motivo pelo qual vanguardas como o Naturalismo e o Verismo ganharam tanta força na segunda metade do século XIX. Essa inclinação ao realismo, isto é, à reprodução do real, ajudaria a soterrar qualquer experiência fantástica, sobretudo das tentativas femininas, conforme questiona Loredana Lipperini (2021): “Passemos às escritoras. Por que às escritoras, mais ainda que aos escritores, se pede para serem sinceras, para serem honestas, para contarem sobre si sem perturbar?”5 (p. 15). O ato de “contar sempre a verdade” - primeiramente à figura paterna, depois ao esposo, aos filhos homens e até mesmo ao público leitor - foi, sem dúvida, um dos pilares que compunham a idealização de uma figura feminina de valor. Aquelas que inventam histórias, as caluniadoras e vis, são mulheres de pouca confiança e que devem inibir o seu senso apurado de imaginação, caso queiram prosperar.
Poucas foram as autoras que se vincularam de forma exclusiva ao filão Gótico e de Horror, como é o caso de Saluzzo, conhecida como o marco zero do Gótico Italiano, e Carolina Invernizio, com frequência associada à precursora do giallo italiano que teria seu auge em meados do século XX. Contudo, várias outras escritoras, como as já citadas Saredo, Serao, Zuccari (Neera), Deledda, às quais se juntam Emma Perodi (1850-1918); Maria Antonietta Torriani, também conhecida como Marchesa Colombi (1840-1920); Virginia Tedeschi Treves, também conhecida como Cordelia (1849-1916); Caterina Percoto (1812-1887), tangenciaram os temas do insólito pois, segundo Enrico Ghidetti (1985): “[...] o fantástico descobre um incremento adicional, tanto que se pode afirmar que não existe escritor italiano imune à tentação, mesmo que episódica, da invasão da literatura fantástica”6 (p. 179).
A coletânea Lua em foice: autoras italianas de ficção gótica, insólita e de horror foi organizada e traduzida por Lobão e Simoni, e publicada no Brasil em 2023 pelas editoras Ex-Machina e Sebo Clepsidra. O objetivo deste projeto de tradução foi o de contribuir para preencher uma lacuna tanto no que tange ao conhecimento do Gótico/Horror/Fantástico italiano no Brasil, quanto à ampliação do acesso às vozes e às perspectivas de autoras mulheres. Nesse sentido, foram escolhidos doze textos de nove autoras, de variada localização geográfica e características linguístico-literárias, assim ordenados: “O castelo de Binasco. Novela de 1418” (Il castello di Binasco. Novella del 1418 (1819)), de Saluzzo; “O albergue do urso” (La locanda dell’orso, (1870)), de Saredo; “Lenda de Capodimonte” (Leggenda di Capodimonte, (1881)), de Serao; “Mariposa” (Falena, (1893)), “A morte do menino” (La morte del bimbo, (1893)) e “A convenção dos sete pecados” (Il convegno dei sette peccati, (1912)), de Neera, pseudônimo de Zuccari; “A sombra do senhor de Narbona” (L’ombra del Sire di Narbona, (1893)), de Perodi; “O curare (conto de Natal)” (Il curare. Racconto di Natale, (1896)), de Torriani, a Marchesa Colombi; “Raça maldita” (Razza maledetta, (1900)), de Invernizio; “Adivinhação” (Divinazione, (1905)), de Treves; e “Um grito na noite” (Un grido nella notte, (1921)) e “O poder maléfico” (La potenza malefica, (1915)), de Deledda. No prefácio da antologia, lê-se a voz das tradutoras acerca do projeto tradutório:
[...] buscamos encontrar cada autora e transportá-la para a língua portuguesa em suas especificidades linguísticas e culturais, esforçando-se para manter, na medida do possível, a sintaxe, a pontuação e o ritmo/musicalidade de cada texto. Nosso maior propósito foi contribuir para subtrair dessas mulheres a incompreensão e a invisibilidade histórica, literária e linguística que lhes foi imposta por muitas décadas, e dar acesso a obras verdadeiramente significativas que retratam a força estética e política de autoras talentosas, transgressoras e conscientes do poder da literatura e da sua luta em prol dos direitos das mulheres do presente e do futuro (Lobão; Simoni, 2023, p. 21).
Com efeito, consideramos que traduzir é lançar-se ao diálogo, é uma forma de conhecimento e ativismo que deve ter como premissa enriquecer os debates e fortalecer a solidariedade entre mulheres numa perspectiva transnacional, pois, por meio da tradução, é possível descobrir como diferentes culturas lidam com as questões de gênero, ao mesmo tempo que se percebe que muitas das lutas pela igualdade de gênero são universais, incluindo o direito à expressão artística e literária. Veremos, a seguir, como duas autoras - Saluzzo e Zuccari, ou Neera - denunciaram, cada qual a seu modo, as condições de violência e opressão a que estavam submetidas as mulheres do seu tempo, representando uma parcela de vivências e subjetividades das mulheres que foram, historicamente, marginalizadas ou silenciadas.
Saluzzo e Neera: vozes (traduzidas) em denúncia
Saluzzo apresenta uma prolífica carreira dedicada à literatura, e graças a seu pai, Giuseppe Angelo, químico e fundador da Academia de Ciências de Turim, esteve envolvida desde muito jovem no meio acadêmico e artístico. Nomes como o poeta Vittorio Alfieri, o romancista Ugo Foscolo e até Alessandro Manzoni, o pai do romanzo storico italiano, louvaram os escritos da jovem Saluzzo, e a sua adesão ao filão Gótico foi tão grande que, à época de sua ascensão, até mesmo alguns escritos que não eram de sua autoria foram atribuídos a ela.7 A sua louvada erudição e a sua boa formação acadêmica renderam ao texto de Saluzzo uma construção desafiadora para o ato tradutório, já que a autora com frequência recorria ao registro áulico e a formas de expressão bastante elaboradas. De acordo com Giuseppe Zaccaria, mesmo que Saluzzo tenha escrito sua obra-prima, intitulada “O castelo de Binasco”, no início do século XIX, a escrita da autora não condiz com a estilística em voga na Itália e é assim forjada propositalmente:
No que diz respeito à prosa, basta lembrar de alguns fenômenos recorrentes, para perceber a abordagem eminentemente retórica e construída do estilo [da autora]. Mesmo que Diodata note o som arcaico do verbo no final do período, ela não se preocupa em restaurar a ordem normal entre o sujeito (muitas vezes posposto por ela) e o verbo, modificando uma construção que caracteriza vários inícios de frases e parágrafos8 (Zaccaria, 1993, p. 76).
Com isso, o desafio de traduzir Diodata se baseou, antes de tudo, em manter a estrutura arcaica, um dos traços goticizantes da autora, pois que o projeto de tradução almejava, como foi dito, um esforço para buscar manter a sintaxe, a pontuação e a musicalidade do texto, reconhecendo que essas particularidades são fundamentais para o (re)conhecimento da autora e a melhor compreensão da obra. Uma dessas características, também apontada por Zaccaria (1993), diz respeito ao fato de que a autora lança mão do passato remoto para construir cenas que nem sempre exigiriam esse tempo verbal. Essa utilização inusual se intercala com o uso de passagens no presente que geralmente são atribuídas a descrições e ancoram o público leitor no momento da enunciação.
É correto afirmar que essa alternância entre passado e presente faz parte de um dos “procedimentos formais” que Remo Ceserani (1996), em sua obra Il fantastico, classificaria como “O destaque dos procedimentos narrativos no próprio corpo da narrativa” (La messa in rilievo dei procedimenti narrativi nel corpo stesso della narrazione). Esse “destaque dos procedimentos narrativos” pode manifestar-se, entre outros fatores, através da manipulação consciente de certos elementos da diegese que constituem uma característica de um certo filão literário:
Então, a incerteza das soluções adotadas, pode ter outro reflexo no plano dos tempos verbais, onde não é difícil notar a alternância entre o passado remoto, que é o tempo do romance histórico, e o presente, que é mais adequado à representação descritiva ou decorativa. Certamente, nas intenções de Saluzzo, trata-se de um presente histórico, que deveria ter a função de tornar a percepção dos fatos mais imediata; mas não há dúvida de que a relação com o passado remoto muitas vezes parece pouco justificada, como no caso em que a oscilação aparece com excessiva frequência, até mesmo dentro de uma mesma frase9 (Zaccaria, 1993, p. 83).
Ao seguirmos a linha de raciocínio de Zaccaria e partindo do pressuposto de que a alternância entre os tempos verbais do presente versus passado remoto não ocorre de forma aleatória ou inconsequente, podemos extrair dessa escolha uma das características que mais aproximaria a autora ao gênero Gótico pois, segundo Fred Botting (1996): “As atmosferas góticas - sombrias e misteriosas - têm repetidamente sinalizado o retorno perturbador do passado sobre o presente e evocado emoções de terror e riso” (p. 9).10 Esses retornos constituem a própria viagem no tempo do gênero Gótico, isto é, a presença do passado que imprime consequências trágicas no tempo presente. Ademais, esse topos da literatura gótica se manifesta de forma singular através de um tema muito caro a Saluzzo: as ruínas.
À guisa de exemplo, a poesia “As ruínas” (Le rovine) (1809) tem por subtítulo a legenda: A autora visita o antigo Castelo de Saluzzo (Visitando l’autrice l’antico Castello di Saluzzo) e descreve o passeio por um castelo que, arruinado, já havia encerrado um passado glorioso, de muitas batalhas - e também de muitas mortes e torturas: “Sombra dos Ancestrais pela noite tácita/ No raio estivo de cadente lua/ Vos ouço fremir entre seixos derrocados/ Que o tempo aduna/ Incertas as pegadas na vasta e árida/ Estrada marcada pela idade funesta/ Trêmulo anseio, que dos priscos séculos/ Só o horror resta”11 (Saluzzo, 1802, p. 146).
Ao tornarmos ao corpus de análise do presente estudo, a novela Il castello di Binasco narra a vida de Beatrice di Tenda, e é uma história de violência e sujeição masculina. Órfã aos 12 anos e sob os cuidados de um tio covarde, Beatrice é obrigada a casar-se com um homem muito mais velho:
Quando ela tinha apenas 12 anos e era privada de ambos os parentes, vivia sob os cuidados do irmão de seu pai; [...] As pontes foram abaixadas, os vãos dos portões foram abertos, e foram compradas a vergonha e a paz com um matrimônio desigual e prematuro. [...] fizeram com que a jovem fosse levada para as bodas sem vigor e sem vontade própria em companhia de quem tinha três vezes a sua idade, de que já tinha subido duas vezes ao altar de Himeneu12 (Saluzzo, 2023 [1819], p. 25).
Após ser submetida por muitos anos ao domínio de Facino Cane, seu marido e castelão que tomara Beatrice por esposa à força, falece em combate e, no leito de morte, exige que ela se case com Filippo Visconti, um nobre de vil caráter. Beatrice, mesmo sem se revoltar contra a ordem do esposo, preferiria viver o claustro e a solidão através do monasticismo, outro topos frequente da literatura Gótica presente em narrativas de nomes insignes como os de Ann Radcliffe e Matthew Gregory Lewis. Com isso, apesar de não se negar a cumprir suas obrigações, opta por não comunicar o último desejo a Visconti. Tempos depois, Orombello, um parente distante da viúva que a conhece desde a infância, ressurge nos seus domínios pedindo abrigo por alguns dias e ambos se apaixonam ardentemente, mesmo que não se envolvam de forma carnal. Após a partida melancólica de Orombello, Visconti, tendo sido informado da promessa de herança de Facino Cane, vai ao castelo para reclamar a propriedade e a esposa. Beatrice fica subjugada pelas vontades tirânicas de Visconti e, ao final, é acusada de uma traição que não ocorreu e, como castigo, decapitada em praça pública.
O longo calvário de Beatrice encerra muitos elementos da literatura gótica, como os já mencionados retorno ao passado e o processo de monasticismo, mas também a presença de um castelo, um dos tropos favoritos13 da literatura gótica; a oposição de forças do bem e do mal; enfim, a presença do sobrenatural que, inicialmente, se manifesta sob a chave do “sobrenatural explicado”, isto é, como um artifício de Filippo para convencer Beatrice a ceder, como no excerto a seguir: “Assim o mistério e os fantasmas habitavam o castelo e esses fantasmas surgiam dos sombrios subterrâneos; não deixavam pegadas nas poeiras das ruínas, atravessando lentamente a rua” (Saluzzo, 2023 [1819], p. 39). Entretanto, ao final, os eventos sobrenaturais manifestam-se como uma força potente e punitiva que castigam a memória do tirano Filippo Visconti:
Mas tendo a própria razão de Visconti vacilado, ele parecia ver aqueles fantasmas que ele havia retratado com arte perversa; sempre e em toda parte o espectro de Beatrice o seguia, e seus sonhos noturnos eram perturbados pelos gritos ameaçadores de Orombello já morto. Se ele ficasse em uma sala remota, ouvia as maldições do Santo eremita que sua cabeça maldizia. Procurou no sangue novamente derramado apagar a memória do sangue antigo14 (Saluzzo, 2023 [1819], p. 55).
Identificados os traços goticizantes evidentes da obra, se faz necessário comentar a tradução e os consequentes desafios para manter no texto o tom arcaico e goticizante de Saluzzo. Antes de tudo, ressaltamos que observar a relação entre forma e conteúdo foi fundamental para a interpretação/tradução do texto. Procuramos atentar para certas imagens poéticas, como as ruínas, o castelo, a atmosfera escura, a linguagem melancólica que ressoa com a experiência da solidão e sofrimento das personagens. Em “O castelo de Binasco”, o ritmo do texto, dado pelas frases geralmente curtas, condizem com os momentos de tensão e angústia, criando uma sensação de urgência e movimento. Para além da já comentada oscilação constante e não explicada entre os tempos do presente dell’indicativo e do passato remoto, é possível elencar outros desafios, conforme se pode ver na tabela a seguir, em que Saluzzo lança mão tanto da prosa quanto da estrutura poética, colocada na voz do personagem Orombello que, disfarçado de trovador viajante, canta louvores em homenagem à Beatrice:
Una somiglianza troppo vera fece palpitare il cuore di Beatrice. Il trovatore sollevò sul manco braccio l'ammanto rosato che coprivagli le armi di cavaliero, e scuotendo con la destra la viola seguì pietosamente la stessa armonia che aveva fatto udire Adalberto nel primo convito:
Sta il verde salice
Dove la luna
Falcata pingesi
Nella laguna;
I rami incurvansi,
N'esce un dolcissimo
Sospir d'amor.
[…]
Allor sua cetera
La torre bruna
Udrà; s’innalzisi
Falcata luna
O’l sol risplendavi;
e un suon festevole
ripeterà
Uma semelhança muito verdadeira fez o coração de Beatrice palpitar. O trovador ergueu no braço esquerdo o manto rosado que cobria a sua armadura de cavaleiro, e sacudindo a viola com a mão direita, seguiu piedosamente a mesma harmonia que Adalberto fizera ouvir no primeiro banquete:
Está o verde salgueiro
Onde a lua
Em foice pinta-se
Na lagoa;
Os ramos encurvam-se,
Sai um suspiro
muito doce de amor.
[...]
Então sua cítara
A torre escura
Ouvirá; se surgir
A lua em foice,
Ó sol, resplenda;
e um som festivo
Repetirá
(Saluzzo, 2023 [1819], p. 46-48).
Para comentar a tradução do trecho acima, evocamos mais uma vez a análise de Zaccaria (1993), para quem a autora faz uso de certos artifícios de forma recorrente: “Se notam, enfim, as frequentes repetições e variações, as inversões, as construções simétricas e paralelas (chegando até mesmo à anáfora), que imprimem ao discurso uma marca retórica particularmente elaborada”15 (p. 77). Ao longo da tradução ocorrem diversos processos, como a eliminação de conjunções e redundâncias, a explicitação de sintagmas nominais e a omissão de ideias redundantes. À guisa de exemplo, a frase Una somiglianza troppo vera fece palpitare il cuore di Beatrice utiliza o artifício da inversão, dando preferência para o discurso em ordem direta: “Uma semelhança muito verdadeira fez o coração de Beatrice palpitar”. Nos versos n’esce un dolcissimo/ sospir d’amor, as formas arcaizantes são atualizadas e pronomes como ‘ne’, no contexto considerados redundantes, se vertidos para o português, são eliminados; a utilização do superlativo adjetivo dolcissimo é substituída pela expressão “muito doce”, que dá igualmente a intensidade necessária ao poema. Assim, enquanto tradutoras atuando sob a égide dos feminismos, trabalhamos conscientes de que não é possível - e nem desejável -, como bem alertou von Flotow (2021), citada no início deste estudo, fazer da tradução um texto submisso ao texto de partida. Pelo contrário, a mudança de paradigma advinda com os Estudos Feministas da Tradução ressalta que a figura da tradutora evolui de uma presença discreta para uma voz ativa e visível, que não só traduz palavras, mas também interpreta e contextualiza o texto. Assim, sempre que possível, e desde que não comprometesse a legibilidade do texto, procuramos preservar certa “estranheza” do texto de partida, que pode referir-se a nuances culturais, estilísticas e ou linguísticas, mantendo o diálogo com a autora e buscando não desmerecer suas características lexicais muitas vezes inusitadas e certamente desenvolvidas para emular uma adesão ao Gótico.
A segunda autora a ser analisada pelo presente estudo, Zuccari (1846-1918), mais conhecida através do seu pseudônimo Neera, foi criada por suas tias e por uma figura paterna distante e pouco envolvida com o seu acompanhamento e educação. Suas recordações familiares muitas vezes aparecem mescladas nos seus romances e exprimem o constante tédio das atividades familiares dedicadas à criação de uma “boa moça” através da repetição das tarefas domésticas ligadas ao que era considerado o fazer feminino, como cozinhar, costurar e a eterna imobilização de estar trancada em casa. A sua “condenação” a essas tarefas se contrastava com o misto de rancor e admiração com que a autora, ainda na sua infância, olhava seus irmãos homens que poderiam estudar, formar-se e até mesmo servir à pátria. Em seus escritos, além das observações acerca da diferença de gêneros, podemos acrescentar uma infância introspectiva e solitária, conforme afirma a própria autora: “nunca acreditei nem por um instante ser superior aos outros, mas tudo me dizia que eu era diferente, a cada passo, a cada palavra. E como eu era diferente, ficava sozinha. E como eu era sozinha, me nutria de mim mesma” (Neera, 1919, p. 55-56). Assim, sua poética estará repleta de traços fundamentais na sua formação, incluindo a solidão e o constante questionamento dos papéis de gênero que a deixavam em uma constante posição de outsider.
Embora tenha sido uma escritora que dedicou seus escritos ao público feminino e muitas de suas narrativas contenham o gérmen da revolução que questiona os papéis preestabelecidos de gênero, Neera sempre se colocou do lado mais conservador do movimento feminista, através de um raciocínio que, mesmo cem anos depois, ainda é reproduzido com frequência:
Se alguém me perguntasse à queima-roupa: A senhora é feminista? - eu deveria responder: Cuidado com as palavras; e por sua vez perguntaria; O senhor gosta de água? A esta pergunta que é assim tão simples não me surpreenderia em ver o meu interlocutor embaraçado pois a água começa com a gota de orvalho tremulante no cálice de uma flor, vai para a fonte que mata a sede, para o banho que restaura, para a irrigação que fecunda, até o transbordamento que força, derruba e conduz à ruína e à morte [...] Os capítulos que recolho neste volume me foram sugeridos observando e escutando a onda de feminismo que avança e na qual não reconheço de fato o meu ideal progressivo de feminilidade. É muito masculino para ser feminismo sincero. Os esforços que fazem para igualar-se aos homens mostram claramente que a mulher não se reconhece mais na integralidade do seu próprio valor17 (Neera, 1904, p. 5-6).
Neera opta pela moderação através da metáfora da água, o bem mais precioso para os seres humanos que, quando em excesso, pode causar incríveis desastres; assim é a sua leitura do feminismo que, segundo a autora, continha elementos excessivos já que muitas de suas companheiras pretendiam colocar-se no lugar dos homens. Para Neera, a revolução feminina poderia centrar-se no ato da maternidade; se para os homens cabe a função criativa, para as mulheres, fica a tarefa da transmissão dos saberes e conhecimentos à prole: “o feminismo é uma palavra vazia de sentido quando não se refere à questão complexa e múltipla na sua forma, mas única em sua substância que é a maternidade”18 (Neera, 1904, p. 16). No entanto, não devemos condenar a autora pelo seu conservadorismo ou compará-la a vozes mais revolucionárias, como a escritora Torriani (1840-1920), mais conhecida pelo pseudônimo de Marchesa Colombi, que lutou pela emancipação das mulheres - principalmente a nível educacional. A contribuição de Neera é também de suma importância, pois fomentou importantes debates a nível artístico-literário.
A antologia Vozes da noite (Voci della Notte) (1893) apresenta protagonistas que fogem da óbvia centralidade masculina ao apresentar contos como “Angelica”, a história de uma jovem com problemas mentais que é abusada por um camponês e engravida; “Noite branca” (Notte bianca), em que retrata os pensamentos e as promessas de uma mulher adultera que resolve retornar à sua vida conjugal; “Os bens” (La roba), cujo foco é a disputa por uma herança; “Tia Severina” (Zia Severina), uma comovente reflexão sobre mulheres e o envelhecimento - todas as narrativas centralizadas em mulheres. De modo geral, a dificuldade em criar narrativas que não orbitem em volta da figura do homem parte, segundo Maria Grazia Corda (1993), de uma total falta de referenciais que pudessem incentivar a escrita feminina a fugir dos temas românticos:
As escolhas das mulheres que não haviam feito do homem o centro das suas vidas resultavam inusuais e estranhas, porque não existiam modelos de vida parecidos e, além disso, ao narrá-las, não existiam exemplos a serem seguidos se alguém quisesse permanecer objetivo19 (p. 14).
A objetividade de que trata Corda, isto é, a cobrança do realismo tão presente no século XIX que, como já explicitado, foi um dos motivos centrais para a falência da ficção especulativa na Itália, torna-se um grande desafio para as mulheres do século XIX, pois elas eram bombardeadas constantemente pelos modelos artísticos desenvolvidos por homens e pelo protagonismo masculino em todos os âmbitos. Sendo assim, mesmo que Neera tenha se mostrado esquiva da causa feminista por muitas vezes, a opção por descrever dramas familiares e histórias de vida centralizadas em mulheres é, por si só, um excelente exemplo de resistência.
Em “Mariposa” (Falena), a escolha da autora em narrar as últimas horas de vida de uma prostituta parte de duas dificuldades: a primeira, a nível social, consiste em privilegiar um personagem que suscita escândalo e desconforto dentro da sociedade italiana do século XIX; em seguida, o desenvolvimento de um personagem que não é centralizado na história de um homem que, como já sabemos, mesmo entre as escritoras, acabava por tornar-se um modus operandi confortável.
A respeito da primeira dificuldade, ela é reforçada pelo psiquiatra criminalista italiano Cesare Lombroso que, no ano de 1893, publicou a obra A mulher delinquente, a prostituta e a mulher normal (La donna delinquente, la prostituta e la donna normale). A obra consiste em um estudo sobre comportamentos de mulheres que estão à margem da sociedade, baseando-se em relatos e experiências de diversas comunidades do mundo todo. Suas teorias voltadas para a observação direta compreendem generalismos e deduções construídas com base em questões fisiológicas como o formato de crânio - também usado no estudo do homem delinquente -, o formato da vulva, períodos menstruais, libido, impulsos acerca de maternidade etc.
Graças às deduções que desumanizariam as mulheres estudadas e pelo alto teor de racismo científico contido em seus estudos, que muitas vezes apontam mulheres racializadas como tendentes à criminalidade ou à concupiscência, hoje, esses estudos têm valor historiográfico e documental, mas não são mais encarados como depositários do rigor científico de outrora. Entretanto, no século XIX, período da publicação de “Mariposa”, estudos como os de Lombroso (1927, p. 365) colocavam as mulheres marginalizadas em categorias ainda mais baixas; para ele (Lombroso, 1927, p. 365), as prostitutas-natas, graças a uma total ausência de instintos maternos, tornam-se “irmãs gêmeas” das criminosas-natas. Esse tipo de aproximação entre mulheres que vendiam seu corpo como meio de sobrevivência e mulheres que de fato cometiam crimes e assassinatos relega essas personagens a uma situação de completa repulsa pois, não bastasse o estigma da impureza, das doenças, da falta de pudor, segundo Lombroso, ainda encontraríamos nas prostitutas a crueldade e a virulência típica das criminosas.
É diante desse cenário de segregação que as prostitutas do século XIX tornaram-se, muitas vezes, personagens da literatura italiana. Em Neera, as dificuldades vivenciadas por aquela mulher transmutam-se em uma linguagem crua e muitas vezes agressiva, que transforma a história de “Mariposa” em um conto de horror, com passagens excessivamente brutais. A dificuldade tradutória consistiu em manter o tom de repulsa e dor que é explícito e propositalmente repetido pela autora ao longo da curta narrativa, em um constante “crescendo”, como podemos ver nos trechos a seguir:
Ogni tratto tossiva; le doleva tutto il petto dalla gola fino alla cintura; nella scapola sensitiva una fitta acuta, come una lancia. Aveva fame, aveva freddo, aveva sonno (Neera, 1893, p. 44).
Tremava tutta; il suo corpo avvezzo alle intemperie, alle fatiche, agli insulti, alle percosse provava una sensazione raccapricciante, come un gran desiderio di finirla e di morire (Neera, 1893, p. 46).
Ella si strinse colle mani il magro petto, dolorando, e riprese il suo cammino di lupa errante nella notte (Neera, 1893, p. 46).
Às vezes tossia; doía-lhe o peito do pescoço até a cintura; na omoplata sensível uma pontada aguda como uma lança. Tinha fome, tinha frio, tinha sono (Neera, 2023, p. 88).
Tremia inteira; o seu corpo acostumado com as intempéries, as fadigas, os insultos e as surras, experimentava uma sensação assustadora, como um grande desejo de acabar com tudo e de morrer (Neera, 2023, p. 89).
Ela apertou com as mãos o magro e dolorido peito, e retomou o seu caminho de loba errante pela noite (Neera, 2023, p. 89).
Como pode ser observado, as inversões de ordem direta tão presentes em Saluzzo não criam obstáculo no texto de Neera, evidentemente mais moderno. O tempo verbal predominante, o imperfetto, confere à narrativa uma imprecisão no cronotopo da diegese e aumenta a intensidade dos martírios sofridos pela prostituta; todas essas ações foram vertidas ao português através do pretérito imperfeito e aquelas, mais pontuais, expressas através do passato prossimo, comum ao uso literário àquela época, foram vertidas para o pretérito perfeito. O desafio de tradução de Neera concentra-se em um âmbito predominantemente lexical, já que a escolha de adjetivos e substantivos que evidenciem os horrores passados pela prostituta é essencial para dar o tom correto à narrativa. Os sofrimentos descritos de forma minuciosa indicam uma dor pungente e alteram de forma considerável a visão acerca da personagem. Ao longo da narrativa, sensações como frio, tremedeiras, febre, dores agudas são constantemente reproduzidas e repetidas, ambientando o público leitor e fazendo-o experienciar um desconforto que não passa e nem pode ser esquecido.
Embora Neera não revele qual seria a doença que acometia a prostituta, é possível deduzir que o estilo de vida da Mariposa a guiava para seus últimos dias; a fome, o frio, o cansaço, a doença sem tratamento, os insultos e o desprezo que desumanizaram aquela mulher despertam a compaixão por um ser humano em sofrimento. A constante brutalidade e as escolhas lexicais que descrevem as dores e as agruras da protagonista transformam o conto em uma narrativa de horror, mas, ao mesmo tempo, apontam para uma questão social de extrema importância. Na complementação da atmosfera terrificante, o próprio cenário do conto oferece vielas escuras adornadas por imagens imprecisas e sequências de luzes bruxuleantes que fazem lembrar um devaneio. Na abertura do conto, encontramos um locus opressor e que evoca uma certa insegurança para aqueles que não fazem parte de uma classe social protegida pelos confortos de salas fechadas e mesas fartas: “Atravessando a praça, sobre os postes de luz elétrica, as mulheres pareciam visões. Saias de cetim branco e cetim róseo, ondulantes, pontilhadas de prata, esfumavam numa ilusão ótica de mundos siderais”20 (Neera, 2023, p. 87).
O locus da cidade pode ser verdadeiramente desconfortante e horrorífico para aqueles que não estão protegidos por ela; estar fora das estruturas que fornecem luz, calor e conforto expõe os sujeitos à margem a todo tipo de intempérie, inclusive aquela da crueldade humana. A narradora evoca inúmeras vezes o tema da fome e da vulnerabilidade social como um elemento tensor que dá o tom tétrico ao enredo: “Ela se ofereceu para eles por um pedaço de pão. Riram da sua cara, e um deles levantou com a vassoura um monte de sujeira e fingiu que ia atirar contra ela”21 (Neera, 2023, p. 89). Além da fome, a doença desconhecida da prostituta é revelada de forma inesperada, através de sintomas descritos de maneira repulsiva:
- Aposto que você está com fome! - disse o homem.
- Eu não comi nada o dia todo.
Ele se voltou de repente para olhá-la, com o lume na mão; e como a mulher mantinha a cabeça baixa, segurou-a asperamente pelo braço, fazendo saltar o único botão da casaca; assim apareceu um miserável peito descarnado, sobre o qual recentes traços de bolhas formavam uma chaga22 (Neera, 2023, p. 89).
O tom de crueldade e, portanto, de horror, um horror de cunho “realista”, como era exigido pelos teóricos e escritores contemporâneos à Neera, persevera ao longo de toda a história e a prostituta percorre bulevares inacessíveis, a antiga casa de prostituição onde foi desejada e procurada pelos homens mais poderosos da cidade, o restaurante onde, anos antes, quando ainda jovem e abastada com o “dinheiro fácil” que arrecadava com o seu ofício, podia atirar comida aos necessitados que se juntavam diante da porta do estabelecimento. Ali, o horror se concentra na degradação e na identificação de que ela mesma havia se tornado um daqueles mendigos por quem ela experimentara tanta superioridade. Embora “Mariposa” seja um conto breve, ele não perde o impacto que concentra, além de uma atmosfera sombria e insegura, um tom de denúncia de abandono das mulheres, a situação das prostitutas e até mesmo uma questão de saúde pública.
No conto, a figura do monstro, elemento básico das narrativas góticas e de horror, concentra-se no homem, pois todos os que atormentam a prostituta são do sexo masculino: um cliente que a agride, varredores da calçada que ameaçam lhe jogar lixo, homens que comem em restaurantes sem olhar através das vitrines - todos responsáveis em menor ou maior grau de envolvimento pela miséria a que é conduzida a protagonista. Até mesmo nos momentos finais da vítima, quando o desfecho se torna inevitável, a descrição do que seria um abandono de quem não tem mais forças para lutar pela sobrevivência, através do que a autora chamaria da chegada do “gelo benéfico”, Neera nos relembra que as mulheres não encontram paz nem mesmo ao morrer:
Um gelo benéfico lhe subia pelas pernas, pouco a pouco, por todo o corpo, adormecendo-a. Nem mesmo o frio sentia mais, o frio incômodo da vitalidade que luta; aquele era o gelo libertador, o invocado! Um bêbado, passando, chutou-a com o pé. Foi a última sensação23 (Neera, 2023, p. 90).
Através desse breve passeio pelas autoras italianas do século XIX que se vincularam em alguma medida às poéticas do insólito, apresentamos alguns desafios encontrados durante o processo de tradução e curadoria de escrita gótica feminina na obra Lua em foice. Em primeiro lugar, ressaltamos a dificuldade de buscarmos mulheres escritoras que apresentaram adesão ao Gótico ou ao Horror e, em seguida, buscamos comentar de que forma os nossos esforços se voltaram para oferecer aos leitores e às leitoras um texto vertido ao português que preservasse, tanto quanto possível, as características dos gêneros do fantástico e de autoria feminina, ao mesmo tempo que não apagassem as marcas de tradução. Concordamos com as palavras de Olga Castro, para quem traduzir mulheres vai além de um simples exercício em que não se deve observar certas minúcias; o exercício tem, na verdade, implicação histórica e social:
A partir da tradução, também se pode contribuir para a transformação do cânone literário contemporâneo, optando abertamente por uma recuperação dos trabalhos de autoras silenciadas, [...] Em minha opinião, não se trata de colaborar com as mulheres por existirem laços de solidariedade universais, ou pelo fato de que sejam mulheres (constituindo uma atitude paternalista), mas porque suas obras são relevantes, embora essa relevância permaneça oculta por não se adequar aos critérios estipulados pelo cânone patriarcal (Castro, 2017, p. 229-230).
O ato de tradução pode servir como elemento transformador do cânone, uma forma de restituição histórica através da popularização de autoras e obras que outrora estiveram à margem por uma simples limitação social e, sobretudo, de gênero. Ao trazermos à tona mulheres que não somente descrevem o horror e o insólito como o encaixam no quotidiano e nas apreensões comuns à grande parte das mulheres, como a violência - física, psicológica e sexual -, a sujeição, a solidão, as questões de maternidade e tantos outros temas que são abordados na coletânea, não o fazemos por simples espelhamento ou identificação. Trazemos à luz essas histórias tão bem construídas pelo simples fato de que elas não haviam sido ainda reveladas por uma categoria masculina que, à época de vivência dessas autoras, optou pela obliteração desses escritos, não obstante a sua grande qualidade.
Referências
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1
Com maior ou menos aderência às poéticas do insólito, autoras como Paola Masino (1908-1989), Anna Maria Ortese (1914-1998), Gilda Musa (1926-1999), Chiara Palazzolo (1961-2012) e outras ainda em fervilhante produção, como a tradutora e escritora multifacetada Paola Capriolo (1962), e Alda Teodorani (1968), uma das vozes femininas do horror contemporâneo, puderam - e podem - enriquecer a tradição das narrativas italianas góticas e de horror que ainda hoje carecem de atenção no que diz respeito aos estudos acadêmicos frequentemente concentrados no cânone.
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2
Del resto il fantastico e le scrittrici hanno condiviso a diverso titolo la loro “dimenticanza” nel canone letterario, un’esclusione che pesava in forma raddoppiata nel caso delle autrici che si dedicavano alla narrativa gotica e fantascientifica, dal momento che la formazione e manutenzione del canone era nelle mani di un gruppo elitario formato da maschi, bianchi e inseriti nel mondo accademico.
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3
La scrittura è vista, pertanto, come unico ancora di salvezza e la letteratura fantastica diventa così anche una via di fuga dal quotidiano limitato e insoddisfacente, attraverso la messa in scena di una logica diversa, in cui prevale il dubbio, eletto a strumento di indagine, interpretato come segno di distinzione e paradossalmente di maggiore lucidità mentale.
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4
Da sempre la donna appare legata alle misteriose potenze della natura: il suo essere lunare (come la luna periodica e insieme mutevole) incarna il lato primario e più nascosto dell’umanità nei suoi rapporti col cosmo e, come tale, sembra in grado di entrare in contatto con forze occulte e di svelare arcani inattingibili dalla pura razionalità, tipica dell’uomo. A lei dunque è spesso riservato, nelle trame poetiche o narrative, il compito di mettere il partner in rapporto col trascendente, facendogli compiere quel balzo oltre la soglia, cui egli anela - come accade a certi personaggi dannunziani, fogazzariani o tarchettiani - anche se il costo di questa funzione mediatrice può essere addirittura la morte (come s’impone anche alla Beatrice dantesca o alla Laura petrarchesca).
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5
Veniamo alle scrittrici. Perché alle scrittrici, più ancora che agli scrittori, si chiede di essere sincere, di essere oneste, di raccontar di sé senza turbare?
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6
Il fantastico conosce un ulteriore incremento, tanto che si può affermare non ci sia scrittore italiano immune dalla tentazione, sia pure episodica, dello sconfinamento nella letteratura fantastica.
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7
É o caso de Elza, novella del secolo XIII (1822), que foi erroneamente atribuída à Diodata Saluzzo graças ao teor da publicação: a história de uma jovem que, após sofrer uma decepção amorosa e suicidar-se, retorna do mundo dos mortos acompanhada de um morcego alado gigante e de incontáveis fantasmas que em vida foram apaixonados por ela. Ao contribuir para o equívoco, a publicação, que na verdade pertencia a Ottavio Alessandro Falletti di Barolo (1753-1828), foi feita de modo anônimo e conta somente com uma epígrafe no frontispício, além do título e das costumeiras informações (ano, região, editora): uma estrofe do poema de Diodata Saluzzo intitulado As ruínas: a autora visita o antigo Castelo de Saluzzo [Le rovine: visitando l’autrice l’antico Castello di Saluzzo] (1809), um poema sobre um castelo desmoronado e sobre o seu passado de glórias, lutas e triunfo.
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8
Anche per quanto riguarda la prosa, basta ricordare alcuni dei fenomeni ricorrenti, per rendersi conto dell’impostazione eminentemente retorica e costruita dello stile. Se Diodata avverte il suono arcaico del verbo in fondo al periodo, non si preoccupa invece di ripristinare l’ordine normale fra il soggetto (da lei spesso posposto) e il verbo, modificando una costruzione che caratterizza numerosi incipit di frasi e capoversi.
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9
L’incertezza delle soluzioni adottate, allora, può avere un altro riscontro sul piano dei tempi verbali, dove non è difficile notare l’alternanza fra il passato remoto, che è il tempo del racconto storico, e il presente, che maggiormente conviene alla rappresentazione descrittiva o decorativa. Certo si tratta, nelle intenzioni della Saluzzo, di un presente storico, che dovrebbe avere il compito di rendere più immediata la percezione dei fatti; ma non c’è dubbio che il rapporto con il passato remoto appare spesso scarsamente giustificato, come nel caso in cui l’oscillazione compaia con eccessiva frequenza, persino all’interno del medesimo periodo.
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10
Gothic atmospheres - gloomy and mysterious - have repeatedly signalled the disturbing return of pasts upon presents and evoked emotions of terror and laughter.
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11
Ombre degli Avi per la notte tacita/ Al raggio estivo di cadente luna/ V’odo fra sassi diroccati fremere,/ Che ‘l tempo aduna./ Incerte l’orme nella vasta ed arida/ Strada segnata dell’età funesta/ Tremante affretto; chei dei prischi secoli/ L’orror sol resta.
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12
Giunta ai dodici anni soltanto, e priva d'entrambi i parenti, viveva custodita dal fratello del padre suo; […] Si abbassarono i ponti, si aprirono i vani cancelli, e si comprò la vergogna e la pace con un maritaggio diseguale e prematuro. […] fecero sì che la fanciulla fu tratta agli sponsali senza lena e senza proprio volere con chi passava tre volte l'età sua, con chi già due volte era salito all’altare d’Imeneo.
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13
Afirma Bakhtin: “[...] forma-se e se fortalece no chamado romance ‘gótico’ um novo território para a realização dos acontecimentos romanescos: o ‘castelo’ [...] o castelo é saturado de tempo, e ademais de tempo histórico no exato sentido da palavra, ou seja, do tempo do passado histórico. O castelo é o lugar onde vivem os soberanos da época feudal (por conseguinte ficaram visivelmente gravadas as marcas dos séculos e das gerações em diversas partes de sua estrutura, no mobiliário, nas armas, na galeria de retratos dos ancestrais, nos arquivos de família [...] (Bakhtin, 2018, p. 221) (BAKHTIN, Mikhail. Teoria do romance II: As formas do tempo e do cronotopo. Tradução de Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34, 2018).
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14
Ma vacillando la ragione stessa del Visconti, parevagli veder quegli spettri, che egli aveva figurato con arte malvagia; sempre e dovunque lo seguitava lo spettro di Beatrice, ed erangli turbati i sogni notturni dalle grida minacciose di Orombello già spento. Egli, se stavasi in stanza remota, udiva suonare le imprecazioni del santo romito che il suo capo malediceva. Cercò nel sangue nuovamente sparso scancellare la memoria del sangue antico.
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15
Si notino, infine, le frequenti riprese e variazioni, le inversioni, i costrutti simmetrici e paralleli (fino appunto all’anafora), che imprimono al discorso un’impronta retorica particolarmente elaborata.
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Se qualcuno mi domandasse a bruciapelo: Lei è femminista? - dovrei rispondere: Adagio colle parole; ed a mia volta domanderei: Le piace l’acqua? A questa domanda che è pure tanto semplice non mi meraviglierei di trovare il mio interlocutore imbarazzato, poichè l’acqua incomincia colla goccia di rugiada tremolante nel calice di un fiore, va alla fonte che disseta, al bagno che ristora, alla irrigazione che feconda, fino allo straripamento che sforza, atterra, e conduce alla rovina ed alla morte. […] I capitoli che raccolgo in questo volume mi vennero suggeriti osservando e ascoltando l’onda del femminismo che si avanza e nel quale non ravviso affatto il mio ideale di progredita femminilità. È troppo maschile per essere del femminismo sincero. Gli sforzi che si fanno per uguagliare l’uomo mostrano chiaramente che la donna non si riconosce più nella integrità del proprio valore.
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Il feminismo è uma parola vuota di senso quando non si riferisce alla questione complessa e multipla nella sua forma, ma unica nella sostanza che è la maternità.
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Le scelte delle donne che non avevano fatto di un uomo il centro della loro vita risultavano inusuali e strane, perché non esistevano modelli per una vita simile e anche nel narrarle non c’erano esempi da seguire se si voleva rimanere “obiettivi”.
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Attraversando la piazza, sotto i fanali di luce elettrica, le donne sembravano visioni. Gonne di raso bianco e di raso roseo, onduleggianti, trapunte d’argento, sfumavano in una illusione ottica di mondi siderei.
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Ella si offerse loro per un pezzo di pane. Le risero in faccia, e uno d’essi sollevato sulla scopa un mucchio di immondizie fece atto di gettargliele addosso.
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- Scommetto che hai fame! disse l’uomo. - È tutto il giorno che non mangio. Egli si voltò di botto a guardarla, col lume in mano; e siccome la donna teneva il capo chino, la prese ruvidamente per l’omero, facendo saltare l’unico bottone della casacca; così apparve un misero petto incavato, sul quale recenti traccie di vescicanti formavano piaga.
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Un gelo benefico le saliva dalle gambe, su su lungo il corpo, addormentandola. Neanche il freddo sentiva più, il freddo molesto della vitalità che lotta; quello era il gelo liberatore, l’invocato! Un ubbriaco, passando, la urtò col piede. Fu l’ultima sensazione (Neera, 1893, p. 48).
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Non mi sono mai creduta un solo istante superiore agli altri; ma che fossi diversa tutto me lo diceva, ad ogni passo, ad ogni parola. E perchè ero diversa mi trovavo sola. E perchè essendo sola mi nutrivo di me stessa.
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Como citar esse artigo de acordo com as normas da revista:
SIMONI, Karine; DINIZ, Julia Ferreira Lobão. “Horror e(m) tradução: o gótico italiano escrito por mulheres traduzido ao português”. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 33, n. 3, e106795, 2025.
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Financiamento:
O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de financiamento 001
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Consentimento de uso de imagem:
Não se aplica.
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Aprovação de comitê de ética em pesquisa:
Não se aplica
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
11 Ago 2025 -
Data do Fascículo
2025
Histórico
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Recebido
30 Abr 2025 -
Aceito
08 Maio 2025
