Ingrid von Oelhafen tinha três anos e meio quando a guerra, a segunda a chamar-se “Mundial”, acabou para os alemães. Morava em uma imponente casa de campo de um vilarejo rural da Alemanha com mãe, avó e irmão menor. Seu pai, de origem aristocrática como a esposa, vivia em uma cidade próxima. O local onde Ingrid morava acabou ficando sob o controle dos soviéticos, e sua mãe, apavorada com as possíveis represálias dos novos “senhores” (os estupros eram frequentes, as punições aos nazistas, mais severas, o trabalho forçado, duríssimo, e a fome grassava), empreendeu em 1947 uma arriscada fuga com as duas crianças para uma zona de ocupação considerada mais segura. Porém, para o espanto da menina, ao chegar ao destino traçado, a mãe abandonou as crianças em um abrigo infantil sem lhes dar qualquer explicação.
Só muito mais tarde Ingrid compreenderia o que houve e esse entendimento passou pela dolorosa descoberta de sua verdadeira identidade e da relação de sua história de vida com o criminoso programa Lebensborn, um dos vários projetos raciais desenvolvidos pela psicopatia nazista.
O livro As crianças esquecidas de Hitler VON OELHAFEN, Ingrid; TATE, Tim. As crianças esquecidas de Hitler: a verdadeira história do programa Lebensborn. Trad. de Rogério Bettoni. São Paulo: Editora Contexto, 2017., escrito por Ingrid em parceria com o premiado jornalista Tim Tate, narra o processo dessa descoberta que levou muitos anos, extrapolou as fronteiras da Alemanha e contou com a ajuda de historiadores (Georg Lilienthal, Dorothee Schmitz-Köster), organismos internacionais, grupos de apoio além de muita pesquisa em arquivos e documentos como os produzidos pelo Julgamento de Nuremberg. Ele poderia ser lido como uma intrigante “história de detetive” se não fosse um relato pessoal tão pungente. Também poderia ser tomado como uma obra de autoconhecimento se não fosse o primoroso trabalho de contextualização histórica: remonta os anos 1920 (com a popularização da Eugenia) e os anos 1930 (com a criação das leis raciais) e chega até 2015, passando pela ocupação nazista em vários países, a derrota alemã, a Guerra Fria, abarcando as duas Alemanhas (depois uma), Iugoslávia (depois a Eslovênia), Polônia, Noruega... Além disso, é a história de muitas crianças, “as crianças de Hitler”, propositalmente esquecidas (por motivos políticos-ideológicos) e, portanto, praticamente desconhecidas.
Por tudo isso, esse livro merece muitos leitores. Não vou dedicar a ele uma resenha tradicional, pois correria o risco de fazer spoiler, já que a obra é também um enredo de uma investigação, com idas e vindas no tempo histórico ao sabor das revelações. Resolvi abordá-lo aqui do ponto de vista das preocupações de gênero dos estudos históricos e feministas. Assim, destaco uma das dimensões mais ricas da obra sem estragar a aventura do leitor.
Foi Gisela Bock que, em 1988BOCK, Gisela. Storia, Storia delle donne, Storia di genere. Firenze: Estro Strumenti, 1988., abriu meus olhos para o grande potencial do tema do nazismo na compreensão das questões de gênero. No livro Storia, Storia delle donne, Storia di genere, ela recorria à história da época para alertar contra anacronismos de determinadas correntes feministas:
(...) as 200.000 mulheres que foram esterilizadas na Alemanha (...) não perceberam o fato como uma libertação à eliminação de sua “fatalidade biológica”. O caso delas, como de qualquer das outras tantas vítimas do mesmo regime, revela um outro aspecto da “biologia” racista e sexista: que não se refere (como tem sido muitas vezes postulado) a uma constante imutável, a-histórica dos fenômenos culturais, mas mais a uma perspectiva de mudança social através de certas intervenções “biológicas”. (...) o fato de que cerca de 5000 mulheres morreram em razão da esterilização forçada (...) não tem nada a ver com a “biologia” feminina. Foi sim o resultado da relação de poder entre os protagonistas (quase todos homens) do racismo nazista e suas vítimas, cuja metade era formada por mulheres. (Gisela BOCK, 1988BOCK, Gisela. Storia, Storia delle donne, Storia di genere. Firenze: Estro Strumenti, 1988., p. 32-33, tradução minha).
A ideologia da guerra deflagrada pela Alemanha - tão importante para a construção social da virilidade (o “novo homem” destinado a dominar o mundo era, na visão racista, um “ariano” do sexo masculino) -, com seus símbolos e sua linguagem, também definiu representações femininas e novos papéis para as mulheres e as crianças.
É bem conhecido o objetivo nazista de impedir a “degenerescência da raça”, supostamente causada pelos judeus, como ainda pelos ciganos, eslavos, negros e outros “indesejáveis”, membros de “raças inferiores” com “sangue ruim” que ameaçavam a força e a saúde do Volkskörper, o “corpo racial” do povo alemão. Nesse imaginário, questões de gênero desempenhavam um papel importante. A emancipação das mulheres era tida como produto da má influência judaica. As mulheres que se encontravam do lado alemão da “barreira racial” eram vistas como “mães do volk” (povo alemão). No Mein Kampf, Adolf Hitler afirmara que a finalidade da educação feminina deveria ser, irrevogavelmente, formar a futura mãe. Mais tarde completaria dizendo que, da mesma maneira que o homem deve dar provas de heroísmo no campo de batalha, colocar filhos no mundo é a forma de a mulher batalhar pela sobrevivência de seu povo. Em 1938, o regime chegou a instituir condecorações para mães alemãs com mais de quatro filhos. As propagandas de contraceptivos foram proibidas. Mesmo as que não tinham marido eram encorajadas a engravidar em benefício do interesse público, o ideal da conservação da raça. Mais do que valorizar a maternidade, o que se fazia era ressaltar a obrigação das mulheres para com a “raça”; como dizia o slogan, elas deviam “dar um filho ao Führer”. Portanto, não se tratava de um “culto à mãe” (e muito menos a todas as mães); a produção dos “soldados de uma ideia” (os jovens hitleristas) e o louvor à virilidade (os homens tinham status superior ao das mulheres, e os que eram maridos e pais eram mais valorizados que os solteiros sem filhos) eram fatores muito mais importantes no “eterno combate” travado em favor da “pureza do sangue ariano”. Já as mulheres discriminadas por motivo de “raça” poderiam ser (e foram) esterilizadas à força e até exterminadas, justamente por serem consideradas “portadoras e mães da geração seguinte” (Gisela BOCK, 1991BOCK, Gisela. “A política nacional-socialista e a história das mulheres”. In.: DUBY, Georges; PERROT, Michelle (Dirs.). História das mulheres no Ocidente. THÉBAUD, Françoise (Dir.) V. 5. O século XX. Porto: Afrontamento. São Paulo: Ebradil, 1991, p. 184-219. , p. 184-219; Eric MICHAUD, 1996MICHAUD, Eric. “‘Soldados de uma ideia’: os jovens sob o Terceiro Reich”. In.: LEVI, Giovanni; SCMITT, Jean-Claude (Orgs.). História dos Jovens. V. 2. A época contemporânea. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p. 291-317., p. 291-317).
Também já está bem documentado o caminho que foi das leis raciais e as “de prevenção de descendentes geneticamente doentes” ao antinatalismo racista e ao genocídio de populações consideradas decadentes étnica e culturalmente. Sabemos bastante sobre os assassinatos em massa e o terror dos campos de concentração, passando pelo o programa Ação T4 que provocava a morte (a “extinção da vida indigna”) de pessoas com deficiência física e doenças mentais, incluindo aí crianças e velhos.
Contudo, outro lado da mesma moeda suja de sangue é o programa Lebensborn, ainda pouco conhecido em todas as suas dimensões e cercado de mitos que só recentemente começam a ser desvendados (não era um bordel da SS, nem uma fábrica indiscriminada de bebês), mesmo porque um dos arquivos mais importantes, o do SIB (Serviço Internacional de Busca), só foi aberto na íntegra à consulta pública em 2007! Von Oelhafen e Tate mostram claramente como Himmler, chefe supremo da SS, o concebeu (1936) inicialmente para dar assistência especialmente às mães solteiras (selecionadas por “peritos raciais”) que tinham filhos de homens da “elite racial”, evitando que recorressem ao aborto (e, assim, favorecendo o aumento da natalidade alemã). Além disso, incentivou, com ordens explícitas, os homens da SS a procriar com alemãs ou outras “nórdicas” de “valor racial”, como as norueguesas, proibindo-os de se relacionar com pessoas “racialmente imperfeitas”. Nas maternidades do programa, as mães eram doutrinadas para serem nazistas ainda mais radicais e as crianças eram monitoradas para fazerem jus às expectativas que previam a criação uma geração de superarianos tão fortes e impecáveis que, quando crescessem, se tornariam a aristocracia do Reich de Mil Anos e das nações inferiores que ele governasse. As crianças que nasciam doentes ou manifestavam atraso de desenvolvimento ou deficiência intelectual eram simplesmente mortas.
Como o objetivo maior do programa era forjar uma nova raça dominante, não demorou (1939) para que as casas Lebensborn (existentes dentro e fora da Alemanha: Áustria, Noruega, Bélgica, Luxemburgo, França) alojassem, além de crianças alemãs (legítimas ou ilegítimas), crianças “racialmente válidas” raptadas dos territórios invadidos pelos nazistas (Polônia, Iugoslávia, Tchecoslováquia). As crianças sequestradas eram avaliadas por “peritos raciais” que mediam seus narizes, apalpavam suas genitálias, observavam sua altura, seus lábios e dentes, examinavam a cor dos olhos e dos cabelos e comparavam tudo aos fenótipos considerados ideais. Aquelas cuja aparência se enquadrava nos critérios de Himmler para uma criança de “verdadeiro sangue alemão” eram consideradas com potencial para serem incluídas na população do Reich. As outras, com traços eslavos ou qualquer sinal de “herança judaica”, eram classificadas como “sub-humanas”, sem nenhum valor ou utilidade a não ser como futura mão de obra escrava. As crianças “aprovadas” eram posteriormente designadas pelo Lebensborn a famílias alemãs confiáveis que promoveriam sua “germanização”.
Os detalhes do funcionamento do programa, dos destinos dados às crianças e das terríveis consequências de terem sido as escolhidas são descritos com primor e sensibilidade por Von Oelhafen e Tate. Assim, conhecemos as histórias de Ruthild, Jürgen, Hannes, Folker, Helga, Barbara, Guntram, Marie e tantas outras “crianças de Hitler”.
O livro é, portanto, duplamente fascinante: tanto pela narrativa envolvente, quanto pela desconstrução que faz de grandes equívocos históricos.
Referências
- BOCK, Gisela. “A política nacional-socialista e a história das mulheres”. In.: DUBY, Georges; PERROT, Michelle (Dirs.). História das mulheres no Ocidente THÉBAUD, Françoise (Dir.) V. 5. O século XX. Porto: Afrontamento. São Paulo: Ebradil, 1991, p. 184-219.
- BOCK, Gisela. Storia, Storia delle donne, Storia di genere Firenze: Estro Strumenti, 1988.
- MICHAUD, Eric. “‘Soldados de uma ideia’: os jovens sob o Terceiro Reich”. In.: LEVI, Giovanni; SCMITT, Jean-Claude (Orgs.). História dos Jovens V. 2. A época contemporânea. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p. 291-317.
- VON OELHAFEN, Ingrid; TATE, Tim. As crianças esquecidas de Hitler: a verdadeira história do programa Lebensborn Trad. de Rogério Bettoni. São Paulo: Editora Contexto, 2017.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
2018
Histórico
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Recebido
24 Jul 2017 -
Aceito
30 Set 2017