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Profissão: oficial engenheira naval da Marinha de Guerra do Brasil

Profession: women as official naval engineers of the Brazilian Navy

Resumos

Este artigo discute resultados parciais de estudo exploratório realizado com oficiais engenheiras navais da Marinha, o qual possibilitou uma aproximação ao entendimento da posição das engenheiras no Corpo de Oficiais Engenheiros Navais da Marinha. Pôde-se vislumbrar uma realidade complexa, em que relações de gênero e de trabalho na engenharia militar apresentam especificidades próprias, ao lado de padrões de inserção e integração similares aos encontrados na engenharia não militar. Inicialmente, apresentam-se algumas características do processo de integração das mulheres na Marinha. A seguir, discute-se a posição e a imagem das mulheres no Corpo de Oficiais Engenheiros Navais, o trabalho desenvolvido, as relações de gênero no ambiente militar, a partir das percepções das engenheiras entrevistadas. Finalizando, levantam-se questões e hipóteses para futuras investigações.

estudos de gênero; engenheiras navais; profissões tecnológicas; mulheres nas Forças Armadas; Marinha


This article discusses some results of an exploratory study carried out with women official naval engineers of the Brazilian Navy. The results permitted an initial understanding of the female position in the Official Naval Engineers Corp. So, it was possible to afford a glimpse to a complex reality, in which gender relations and work relations present their own features, keeping, at the same time, standards of insertion and integration similar to those the non-military women engineers passed. The article begins indicating some aspects of the process of integration of women in the Brazilian Navy. Next, it is analyzed, from the point of view of the subjects, how they perceive their post, their image as women belonging to the body of official naval engineers, the work that they do as well as the gender relations in the military environment. The text finishes raising questions for future investigations.

Gender Studies; Female Naval Engineers; Technological Professions; Women in the Armed Forces; Navy


ARTIGOS TEMÁTICOS

MULHERES NO MUNDO DO TRABALHO

Profissão: oficial engenheira naval da Marinha de Guerra do Brasil

Profession: women as official naval engineers of the Brazilian Navy

Maria Rosa Lombardi

Fundação Carlos Chagas

RESUMO

Este artigo discute resultados parciais de estudo exploratório realizado com oficiais engenheiras navais da Marinha, o qual possibilitou uma aproximação ao entendimento da posição das engenheiras no Corpo de Oficiais Engenheiros Navais da Marinha. Pôde-se vislumbrar uma realidade complexa, em que relações de gênero e de trabalho na engenharia militar apresentam especificidades próprias, ao lado de padrões de inserção e integração similares aos encontrados na engenharia não militar. Inicialmente, apresentam-se algumas características do processo de integração das mulheres na Marinha. A seguir, discute-se a posição e a imagem das mulheres no Corpo de Oficiais Engenheiros Navais, o trabalho desenvolvido, as relações de gênero no ambiente militar, a partir das percepções das engenheiras entrevistadas. Finalizando, levantam-se questões e hipóteses para futuras investigações.

Palavras-chave: estudos de gênero; engenheiras navais; profissões tecnológicas; mulheres nas Forças Armadas; Marinha.

ABSTRACT

This article discusses some results of an exploratory study carried out with women official naval engineers of the Brazilian Navy. The results permitted an initial understanding of the female position in the Official Naval Engineers Corp. So, it was possible to afford a glimpse to a complex reality, in which gender relations and work relations present their own features, keeping, at the same time, standards of insertion and integration similar to those the non-military women engineers passed. The article begins indicating some aspects of the process of integration of women in the Brazilian Navy. Next, it is analyzed, from the point of view of the subjects, how they perceive their post, their image as women belonging to the body of official naval engineers, the work that they do as well as the gender relations in the military environment. The text finishes raising questions for future investigations.

Key Words: Gender Studies; Female Naval Engineers; Technological Professions; Women in the Armed Forces; Navy.

Introdução

O ingresso das mulheres nas Forças Armadas nacionais é um processo recente, que se desenrolou nos últimos trinta anos e que, até o momento, instigou poucos estudos sob a perspectiva das relações sociais de gênero ou de sexo1 1 Categoria analítica que identifica uma tensão permanente entre homens e mulheres, em torno da divisão social e sexual do trabalho. Com base nos princípios de separação e hierarquização, as sociedades atribuem diferentes trabalhos para homens e mulheres e os valorizam desigualmente. O trabalho é compreendido na sua dimensão coletiva, onde se incluem o trabalho profissional e o doméstico e a dimensão subjetiva (Danièle KERGOAT, 1998). . Exatamente nessa brecha de produção de conhecimento feminista se inseriu pesquisa recente,2 2 Maria Rosa LOMBARDI, Cristina BRUSCHINI e Cristiano MERCADO, 2009. que objetivou conhecer os processos de inserção e integração das mulheres na Marinha brasileira. Essa pesquisa procurou compreender como se estruturaram as relações sociais de sexo naquele ambiente militar e como elas evoluíram, desde 1980 até hoje3 3 Pesquisa realizada entre 2005 e 2008, no Departamento de Pesquisas Educacionais da Fundação Carlos Chagas, com a colaboração do 1º e do 8º Distritos Navais e o apoio financeiro do CNPq e da Secretaria Especial de políticas para as Mulheres - SPM. . No seu bojo, foi realizado um estudo exploratório com mulheres do Corpo de Oficiais Engenheiros Navais, através de um grupo focal que reuniu oito engenheiras navais, realizado no 1º Distrito Naval, Rio de Janeiro. Esse estudo investigou as razões da escolha da profissão e da vida militar, as interfaces com a vida pessoal e familiar, algumas características do seu trabalho, a imagem que os engenheiros têm na Marinha, a posição das mulheres dentro desse grupo, como elas se percebem e como são percebidas, no Corpo dos Engenheiros Navais, como mulheres, engenheiras e militares. O grupo era diversificado no que tange ao ano de ingresso na Marinha - e, em decorrência, em relação à idade das participantes e às suas patentes, ao estado civil e às especialidades da engenharia. Cinco militares eram casadas e com filhos de várias idades, uma era viúva com filhos e as duas mais jovens, solteiras. Estiveram representadas no grupo desde as pioneiras que ingressaram nas primeiras turmas (1981, 1982 e 1984), passando por recrutadas nos concursos de 1990, 1992 e 1997, até as mais jovens, uma aprovada no concurso de 2000 e outra recrutada, via Serviço Militar Voluntário, em 2007. A distribuição das patentes militares entre as integrantes do grupo variou de Guarda-Marinha (a menor) a Capitão de Fragata (a maior), de acordo com sua antiguidade. Em termos de especialidades, três eram engenheiras eletrônicas, uma de telecomunicações, duas elétricas e uma química. Integrou também o grupo uma arquiteta. As entrevistadas trabalhavam desenvolvendo atividades técnicas ligadas aos radares e sensores dos navios e submarinos, especificações de materiais, testes de equipamentos e armamentos, projetos de navios e obras civis. Com exceção da mais jovem, todas as demais exerciam cargos de chefia, em vários níveis da hierarquia, tendo, sob sua responsabilidade, equipes em sua maioria masculinas, compostas por técnicos e engenheiros, militares e civis.

Este artigo discute alguns achados desse estudo especial e, em seu caráter exploratório, levanta hipóteses e coloca questões para futuras investigações. As informações coletadas possibilitaram uma aproximação ao entendimento da profissão de engenheira no Corpo de Oficiais Engenheiros Navais da Marinha. E permitiram vislumbrar uma realidade complexa, em que relações de gênero e de trabalho apresentam especificidades próprias, ao lado de padrões de inserção e integração similares aos detectados junto a engenheiras não militares. O artigo está organizado em três partes. A primeira traz breves informações sobre o processo de integração das mulheres na Marinha e nesse cenário situam-se as engenheiras navais; a segunda analisa, sob o ponto de vista das entrevistadas, a posição, a imagem e a autoimagem das mulheres no Corpo de Oficiais Engenheiros Navais, o perfil profissional e o trabalho desenvolvido, as relações de gênero no ambiente militar. Por fim, apresentam-se algumas considerações finais.

A integração das mulheres na Marinha e as engenheiras navais

O processo de feminização4 4 Categoria analítica que designa o processo de inserção das mulheres e a ampliação da sua presença em profissões masculinas; além da análise numérica, entende que se trata de um processo diversificado e complexo que implica mudanças nas relações sociais entre os sexos e, entre outras, mudanças institucionais que costumam acompanhar a integração das mulheres naquelas profissões (Nicky LE FEUVRE, 2008; Sabine FORTINO, 2000; Yvonne GUICHARD-CLAUDIC e KERGOAT, 2007). das Forças Armadas brasileiras começou em 1980, na Marinha, com a criação do CAFRM - Corpo Auxiliar Feminino da Reserva da Marinha5 5 Em 1981 e 1992, respectivamente, a Força Aérea Brasileira e a Escola de Administração do Exército em Salvador abrem as primeiras turmas femininas (FCC, 2008). . As mulheres foram admitidas para realizar atividades, técnicas e administrativas de apoio, em terra. Segundo Hermógenes Hiron Marques Jr.,6 6 MARQUES JR., 1982, p. 11. isso visava "utilizar o trabalho feminino no desempenho de uma atividade masculina, liberando o militar para emprego no mar". 7 7 A concepção do trabalho feminino como apoio, para ser executado em terra, permanece na Marinha até hoje. Nas Polícias Militares brasileiras a situação parece ser inversa, pois a maioria das policiais está envolvida em atividades de policiamento e não em tarefas administrativas (Leonarda MUSUMECI e Bárbara SOARES, 2004). A segunda etapa da integração das militares se dará com a extinção do CAFRM e a sua incorporação na estrutura geral de Corpos e Quadros da Marinha em1997. Atualmente, as militares ainda enfrentam algumas interdições, como a integração regular nas tripulações dos navios e submarinos, o ingresso no Colégio e na Escola Navais, as carreiras da Armada, dos Fuzileiros Navais e da Intendência, as atividades de combate. 8 8 A carreira de oficiais da Marinha se compõe dos Corpos da Armada, Fuzileiros Navais, Intendência, Engenheiros, Saúde e Auxiliar. Mas, após vinte e oito anos do seu ingresso nas carreiras de Praças e Oficiais, a presença das militares está consolidada e, de um modo geral, é bem aceita, apesar de ser pouco expressiva: em 2004, elas representavam apenas 5,6% ou 2.268 militares.9 9 Índice bem menor do que os encontrados nas PMs informados pelo Banco de dados Polícia Militar e Gênero (7%) e na PM do Estado de São Paulo - 9,7% (MUSUMECI e SOARES, 2004). As oficiais estão concentradas nos Corpos da Saúde (48% são médicas e dentistas) e no Quadro de Apoio à Saúde, em que trabalham, principalmente, farmacêuticas e enfermeiras (71%). No que diz respeito à hierarquia, a maior parte das carreiras em que as mulheres podem se integrar, não dá acesso aos postos de oficiais generais (almirantado); no máximo, elas chegaram à posição mais elevada entre os oficiais superiores.10 10 Capitão de Corveta, Capitão de Fragata, Capitão de Mar e Guerra.

Atualmente, as possibilidades de inserção e de ascensão hierárquica das mulheres são significativamente maiores do que no passado. O CAFRM - Corpo Auxiliar Feminino da Reserva da Marinha11 11 O CAFRM era composto de dois Quadros: QAFO - Quadro Auxiliar Feminino de Oficiais e QAFP - Quadro Auxiliar Feminino de Praças. tinha regras próprias quanto à hierarquia e aos interstícios de tempo exigidos para a promoção, invariavelmente maiores do que os aplicados aos homens. Suas atribuições eram similares às do Quadro Complementar que, entretanto, alcançava a estabilidade após três anos, ao passo que o Corpo Feminino só a alcançava seis anos mais tarde. A patente inicial na carreira também era motivo de desigualdade, pois se integrantes dos diversos Quadros da Saúde, dos Engenheiros Navais ingressavam como 1º Tenente, as profissionais do QAFO ingressavam numa posição abaixo na hierarquia, como 2º Tenente. Quanto à progressão na hierarquia, elas podiam chegar, no máximo, a Capitão de Fragata enquanto que os militares do Quadro Complementar podiam galgar uma posição a mais, Capitão de Mar e Guerra. Além disso, as oficiais mães enfrentavam dificuldades adicionais, pois a Marinha não dispunha de creches e escolas para os filhos das militares. Essas características das carreiras femininas causavam desmotivação e evasão, arriscando-se a Marinha a perder suas médicas e enfermeiras, já em 1987. Algumas modificações naquelas regras aconteceram neste último ano, equiparando a carreira feminina à dos oficiais do Quadro Complementar. Somente em 1997, como já comentamos, o CAFRM é extinto e as oficiais e praças se integram na estrutura geral do pessoal militar, sendo suas carreiras equiparadas às dos homens, naquelas áreas em que lhes foi permitido ingressar.

Apesar disso, entretanto, tanto as praças como as oficiais se disseram satisfeitas com a escolha da carreira militar na Marinha. De um modo geral, o estranhamento maior entre as mulheres e a corporação, relatado pelas pioneiras das primeiras turmas, foi superado. A estranheza que a inserção do sexo feminino entre os oficiais da Marinha causou, assumiu, por assim dizer, tintas mais fortes no caso das engenheiras. Desde 1981, a maioria das aspirantes a oficiais se direcionava para a área da saúde. As engenheiras eram raras. Na turma de uma entrevistada, ela foi a única engenheira entre sessenta e oito mulheres. Aquele estranhamento persistiu em 1997, quando, segundo outra engenheira naval, elas ainda eram 'novidade'. O processo de integração das mulheres na Marinha continua e, se interdições persistem, as pioneiras abriram caminho para as que vieram depois conquistarem novas possibilidades. Em 2005, as primeiras dez oficiais atingiram a patente máxima para as suas carreiras, Capitão de Mar e Guerra, dentre as quais, cinco assumiram diretorias de serviço; em 2007, uma oficial embarcou para uma viagem de aproximadamente um ano para a Antártida; finalmente espera-se para breve a nomeação da primeira oficial médica para o patamar inferior dos Oficiais Generais, o posto de Contra-Almirante.

O Corpo de Oficiais Engenheiros Navais (EN) é formado por um pequeno número de militares, altamente especializados. Compunha-se, em 2004, de 427 militares, sendo 378 homens e 49 mulheres, apenas 11,5%, segundo dados da Diretoria de Pessoal Militar da Marinha.12 12 Em termos relativos, a proporção de mulheres entre os engenheiros navais era o dobro da proporção de mulheres na Marinha (5,6%). Mesmo que a participação das engenheiras navais se aproxime da proporção de mulheres entre os engenheiros não militares,13 13 Em 2005, segundo a RAIS - Relação Anual de Informações Sociais do Ministério do Trabalho e Emprego, a parcela feminina nos empregos formais para engenheiros girava em torno de 14%. elas eram somente 49. A denominação genérica Engenheiros Navais era atribuída a todos os oficiais, embora eles fossem formados em diferentes especialidades: 21% eram engenheiros mecânicos; as especialidades Naval e Elétrica representavam, respectivamente, 18% e 16%; 14% eram engenheiros eletrônicos. Portanto, essas quatro especialidades - mecânica, naval, elétrica e eletrônica - congregavam quase 70% dos EN. As oficiais engenheiras, por sua vez, eram formadas em Elétrica, Química, Eletrônica e em outras especialidades (Aeronáutica, Armamento, Cartografia, Industrial, Metalúrgica, Arquitetura).

As oficiais do corpo de Engenheiros Navais (EN): imagem, trabalho e relações de gênero

A Engenharia Naval é percebida como um corpo coeso e cooperativo, marcado por duas características principais: a atividade intelectual e o trabalho intenso. Os engenheiros 'ralam e pensam muito', são inteligentes e dedicados ao trabalho, traços muito positivos. Foi voz corrente a afirmação de que, já na Escola Naval, o equivalente da Academia Militar das Agulhas Negras, o Corpo dos Engenheiros Navais (EN) é almejado pelos aspirantes, embora somente os mais inteligentes e estudiosos consigam nele ingressar.

Lembre-se de que a engenharia moderna - e a preparação para o exercício dessa função - surge no ambiente militar, face às novas necessidades de defesa, transporte e comunicação dos Estados, a partir dos séculos XVII e XVIII. Os oficiais-engenheiros irão se aplicar na construção de armamentos, fortificações e pontes e na abertura de estradas, entre outras atividades, designando o termo 'engenheiro' ao militar capaz de fazer fortificações e engenhos bélicos, um profissional polivalente desde a origem, pois suas funções se confundiam com as do arquiteto, do construtor e do empreiteiro de obras14 14 Pedro Carlos SILVA TELLES, 1984. . Será a chegada da corte portuguesa ao Brasil que propiciará a instalação do ensino regular da engenharia no país, por meio da criação, em 1810, da Academia Real Militar no Rio de Janeiro, voltada para a formação de oficiais de engenharia e artilharia. O caráter militar dos cursos de engenharia permanecerá por algumas décadas no Brasil, desvinculando-se das origens militares apenas em 1874.15 15 LOMBARDI, 2005. A inteligência, o conhecimento científico, a expertise e a habilidade tecnológicas aplicadas à resolução de problemas concretos estão associados à imagem do engenheiro desde o nascedouro da profissão, assim como a masculinidade do campo profissional, em meio militar ou civil.

Porém, o Corpo de Engenheiros Navais da Marinha é heterogêneo no que se refere à origem da formação dos seus membros, o que implica claros diferenciais de prestígio. Os mais prestigiados são os engenheiros que cursaram a Escola Naval, lugar de preparação da elite da Marinha. Dessa forma, um primeiro divisor de águas se dá entre os engenheiros do sexo masculino: os 'de dentro' (Escola Naval) e os 'de fora', engenheiros que não passaram pela formação na Escola Naval. O recorte seguinte é o de gênero. Seguindo Elias e Scotson,16 16 Norberto ELIAS e John SCOTSON, 2000. ;poderíamos dizer que os engenheiros egressos da Escola Naval seriam os mais estabelecidos do grupo. No círculo imediatamente exterior a esse núcleo central, estariam os engenheiros do sexo masculino formados em universidades civis e, na borda mais externa do círculo, as engenheiras. Apesar de terem sido aprovadas no concurso, sua posição dentre os engenheiros navais é excepcional, uma novidade, assemelhada à posição das engenheiras não militares, o que parece denotar um padrão de inserção de gênero peculiar a profissões majoritariamente masculinas como a engenharia.17 17 LOMBARDI, 2005. Segundo algumas engenheiras, o ingresso de mulheres na Escola Naval, quando permitido, será um marco da total aceitação da presença feminina na Marinha. Por enquanto, porém, é um reduto de resistência e de prestígio masculinos. Nas palavras de uma delas:

o receio dos homens de as mulheres entrarem na Escola Naval é que, num futuro, poderão assumir o comando de um navio. Isso já é comum em países como os Estados Unidos, em que as mulheres assumem o comando do navio e lidam bem com a vida a bordo... eu mesma já tive mais de trinta dias de mar, embarcada, eu posso dizer que é tranquilo servir em navio. Não tem nada demais. 18 18 Fala de uma das engenheiras da Marinha entrevistadas. Optamos aqui por não informar os nomes das mesmas, em suas falas, com a intenção de preservá-las. Então, a partir deste momento, apenas sinalizaremos essas falas como 'entrevista'.

As 'antigas' e as 'modernas': memórias, rituais de integração, treinamentos de campo

'Moderno' é o adjetivo utilizado para qualificar o militar que tem menor patente em um dado grupo, o que chegou por último, em geral, recém-formado. Moderno poderia ser entendido como uma expressão assemelhada a calouro, mascote do grupo. Aos modernos são atribuídos os piores trabalhos; como disseram as entrevistadas, eles vêm 'render a punição' dos mais antigos. Para as 'modernas', além disso, costumam sobrar algumas das tarefas normalmente atribuídas apenas às mulheres em ambientes majoritariamente masculinos, tarefas relacionais e de comunicação, como comentaremos mais adiante.

Seguindo a lógica da estrutura de pessoal da Marinha, baseada na progressão hierárquica por antiguidade em primeiro lugar e por mérito para os postos mais graduados de Oficiais Superiores, as mais antigas já foram modernas e, nas suas palavras, 'pagaram' por isso no início de suas carreiras. Às modernas sobra a certeza de que as provações do presente passarão, assim que outros, mais modernos, ingressarem no grupo.

A estranheza que a inserção do sexo feminino entre os oficiais da Marinha causou, assumiu tintas mais fortes no caso das engenheiras, aves raras mesmo entre as mulheres que participavam dos concursos. Relatos das mais antigas relembram com bom humor algumas situações vividas. Por exemplo, a falta de alojamentos e de infraestrutura adequadas para recebê-las, fato que não é incomum em ambientes de trabalho civis, ainda hoje:

(em 1981) o primeiro vestiário era um banheiro, botava um trinco na porta do banheiro e um armário, eu trocava a roupa ali. No ano seguinte chegaram mais duas, daí pegaram outro banheiro, botaram dois armários e outro trinco. No terceiro ano, foi feito um vestiário.

Quando ingressei (1997) também não tinha alojamento, eu era a primeira mulher de serviço na Armada... eu tinha que pernoitar em outra OM (Organização Militar), porque não tinha um banheiro, estavam construindo o alojamento naquela época. Foi interessante porque nós éramos novidade... no corpo de engenheiros (mesmo tantos anos depois) nós éramos muita novidade para a instituição.19 19 Entrevista.

As engenheiras, assim, mais ainda que as oficiais de outras profissões, eram motivo de curiosidade, dentro e fora da corporação. Outro episódio relembrado: no ano em que uma entrevistada ingressou, ela era a única engenheira e para receber a formação especializada em engenharia naval, deveria integrar a turma composta por engenheiros do sexo masculino. Inicialmente foi impedida de fazê-lo porque "eles diziam: minha filha, na Marinha não é assim, você tem que ficar com as mulheres, em outra turma! Na faculdade durante cinco anos muitas vezes eu era a única mulher numa turma de cem!".

Ao que parece, todos os militares passam por uma espécie de trote, um batismo quando assumem suas funções no Corpo ou Quadro de sua escolha, como também se referiu Castro,20 20 CASTRO, 2004. em relação à Academia Militar de Agulhas Negras. No caso das engenheiras, algumas mencionaram o primeiro mergulho em submarino como batismo. Mergulhar pela primeira vez torna-se um marco na vida profissional dos engenheiros, que recebem um diploma pelo feito, depois de passarem por uma cerimônia de batismo. Em que consiste essa cerimônia?

eles fazem uma mistura... e a gente tem que beber... Aí, pintam a gente de graxa e a gente tem que escolher um peixe... em um cartão com vários tipos de peixes e seus nomes científicos. São nomes bastante difíceis de serem pronunciados. Basicamente essa é a cerimônia de batismo a bordo desses navios. 21 21 Entrevista.

Outra engenheira lembrou que seu batismo foi diferente. Ela participou de um treinamento de campo, conduzido pelos fuzileiros, para teste de um equipamento de sinalização naval.

... saímos de casa às 3h30 horas da madrugada, todo mundo camuflado... tinha as aeronaves esperando... eu achei estranho porque eles me embarcaram numa aeronave e todos os homens, em outra. Eles me deixaram lá (no campo) para fazer a montagem dos equipamentos de teste, fiquei esperando... De repente começou um tiroteio... ainda estava escuro... eu estava lá sozinha... foi um desespero, 'eu quero minha mãe', 'quero ir embora', 'me tira daqui, eu não quero brincar mais disso'.Realmente foi assustador... Foi como um batismo... depois fizeram isso também com outro oficial da diretoria... Depois, eles apareceram, diziam, surpresa, brincadeira. Acho que faz parte, isso une mais os grupos de trabalho, a gente faz grande amigos entre os fuzileiros, o pessoal do submarino, da aviação. 22 22 Entrevista.

A arquiteta do grupo, porém, afirmou não ter passado por nenhuma espécie de batismo. Outras lembranças dos treinamentos de campo permaneceram na memória das engenheiras e elas as consideram situações que, ao mesmo tempo, as desafiaram e promoveram sua integração no grupo:

no curso de formação, tem uma parte de treinamento para apagar incêndio... tinha uma máquina pegando fogo e a gente de mangueira na mão... depois de dois, três dias ralando na teoria, a gente servia na casa de máquinas pegando fogo mesmo.

tem o rastreamento com fumaça... é uma prova escura, cheia de fumaça, cheia de obstáculos. Tem outra em que eles pegam um tanque lotado de óleo e põem aquela chama! Aquilo vai a trinta metros de altura, de longe, de outros bairros você vê a chama... e a gente com aquela mangueira no braço, com aquele calor.23 23 Entrevista.

Mulheres, mães, engenheiras e militares: identidades conflitantes?

Durante o curso de formação de oficiais, insiste-se que a identidade a ser ressaltada como a mais importante dali em diante, é a de militar. É assim que, ao se apresentarem, os oficiais mencionam sua patente em primeiro lugar, depois o Corpo e Quadro a que pertencem e, por fim, seu nome. Como informa uma entrevistada, "no curso eles logo falam, você não é arquiteta, é oficial da Marinha". Para algumas engenheiras navais, apesar do intenso treinamento recebido para se sentirem militares em primeiro lugar, a profissão de engenheira é a que molda mais fortemente sua identidade, porque "se eu não fosse engenheira, como eu poderia estar na Marinha? É nossa profissão." Para outras, as funções e atribuições de engenheiras e de militares são identificadas como diferentes, devem ser "levadas junto", não sem sobrecarga de trabalho. Para outras, ainda, há uma imbricação total entre as identidades profissional e militar, a ponto de ser difícil separar as duas, no dia a dia. Sentem-se "o tempo todo militar(es) e engenheira(s)". Coloca-se uma questão específica para as mulheres: como elas lidam com a maternidade no ambiente militar? As entrevistadas foram unânimes em dizer que "tem que ter uma estrutura de apoio muito boa em casa", que "o marido tem que compreender que é necessária uma boa empregada". Mas mesmo contando com esse apoio, as coisas se complicam quando as crianças são pequenas, principalmente se ela "vai precisar ficar embarcada por alguns dias". Complicações ampliadas no caso das militares que, após a licença maternidade, não têm direito de sair mais cedo ou entrar mais tarde, durante o período de amamentação, como as demais trabalhadoras celetistas ou estatutárias. Em casos em que mesmo com uma boa estrutura a presença da mãe ainda é indispensável, por exemplo na existência de filhos pequenos, podem ocorrer pressões informais ou formais dos chefes imediatos, podendo repercutir negativamente na carreira das mulheres, conforme relatos das entrevistadas. Todas as mães do grupo, contudo, afirmaram que, apesar de todos os problemas, "conseguem dar conta", apresentam alta produtividade no trabalho e, ao mesmo tempo, cuidam das necessidades das crianças de várias idades, desde ficar acordada de madrugada quando os pequenos estão doentes, até atender os maiores nas lições, quando chegam do serviço. Nesse ponto, as oficiais engenheiras não se diferenciam das demais militares e das trabalhadoras que também são mães, assumindo tarefas domésticas e o cuidado com as crianças, na conhecida segunda jornada de trabalho. No que tange à sua identidade como representantes do sexo feminino em um ambiente majoritariamente masculino, questão que envolve a sexualidade, a sedução e a intimidade nas relações homem-mulher, pouca informação pudemos obter, mesmo porque essa não era uma questão central da pesquisa. Ficou evidente, contudo, que as oficiais se preocupam com a aparência física, o que inclui o penteado, uma leve maquiagem, pequenos brincos e anéis, bem como uniformes e sapatos bem cuidados. Todas elas eram muito elegantes e femininas, seja ao trajar os uniformes, seja no seu comportamento. Outra característica observada: mesmo sem ser estimulada, a questão das identidades sexuais e da convivência entre os dois sexos no ambiente de trabalho apareceu em diversos momentos da discussão, em razão da sua centralidade. Em ambientes masculinos por excelência, as mulheres costumam adotar alguns comportamentos defensivos quando a questão em pauta são as relações homem-mulher. A 'coqueteria' e a feminilidade sedutora parecem oferecer perigo para elas e para a instituição, pois poderia ameaçar "o autocontrole e o modo de socialização" nas casernas, para usar a expressão de Forgeau24 24 FORGEAU, 2005. . Essa autora, que realizou entrevistas no exército francês, teve como um dos objetivos identificar como se dava a sedução entre homens e mulheres no ambiente da caserna. Proveio de uma de suas entrevistadas um pensamento que parece resumir a postura das mulheres, lá e cá: "as mulheres não podem ser acusadas de sedutoras, é uma regra de ouro, não se deve jamais excitar, pôr fogo, senão está tudo perdido."25 25 FORGEAU, 2005, p. 14. Em suma, as relações pessoais entre homens e mulheres nos ambientes militares, aparentemente, se dão dentro dos parâmetros estabelecidos pelos regulamentos, embora essa seja uma questão importante que fica em aberto para aprofundamento em outras pesquisas. Apesar disso, as militares continuam insistindo na necessidade de se imporem como profissionais. E a demonstração da competência profissional por parte das mulheres costuma se revestir de duplo sentido. Em primeiro lugar, legitima sua presença no posto de trabalho, na profissão, na Organização Militar, frente aos homens e frente a si mesmas. Competência e conhecimento profissionais que, por sua vez, são continuamente testados pelos pares e superiores do sexo masculino, repetindo padrão de gênero comum em profissões de maioria masculina. Em segundo lugar, a 'postura profissional' também pode ser um escudo que estabelece limites nas relações entre os sexos, um anteparo em relações de maior intimidade com o sexo oposto. "Deixar-se fazer gracinha, destoa, cai do padrão, abaixa o nível" foram expressões utilizadas por uma engenheira, que sugere a necessidade de manutenção de uma postura cautelosa na relação pessoal com os homens, para se preservarem como profissionais.

O trabalho e a especialização em engenharia naval militar

Qual o perfil esperado de um engenheiro naval? É preciso que ele desenvolva certas habilidades especiais, como a precisão, o perfeccionismo, o pioneirismo, a versatilidade e a criatividade. A precisão, no caso da Marinha de Guerra, pode significar a diferença entre a vida e a morte, como explica outra engenheira:

Tem programas de especificação de radares... com determinado tipo de tarefas, tenho que especificar a faixa de frequência, os graus, potência, tudo. Se estiver um décimo fora... se especificar alguma coisa errada, principalmente na área da aviação naval e de submarino... na nossa área de eletrônica, é bastante importante a precisão. Porque o erro que passa ali, muitas vezes, se propaga em bola de neve... muitas vezes o trabalho tem que ser revisado por muitas pessoas para não sair erro... A gente está preocupada com a segurança, estuda o caso, porque se não fizer a coisa certa dá morte, ou com a gente ou com o usuário, esse é o problema... Tem que ser perfeccionista.26 26 Entrevista.

O engenheiro naval deveria, segundo as entrevistadas, cultivar o pioneirismo, pois é necessário identificar e dominar novas tecnologias. "O Engenheiro Naval tem que ser capaz de identificar uma oportunidade, trazer esse conhecimento e fazer algumas adaptações para a nossa realidade", conforme uma das entrevistadas. Somem-se, ao desejado pioneirismo, a versatilidade e a criatividade e se terá um retrato aproximado do engenheiro que, seja militar ou civil, é visto como um profissional que resolve problemas, com criatividade e rapidez, ao menor custo possível. Criatividade que parece ser ainda mais desejável nas Forças Armadas, face à contenção orçamentária. Versatilidade "que também é muito empregada no nosso dia a dia", seja para contornar a ausência de melhores condições de trabalho ou de materiais, equipamentos e tecnologia específica, seja para 'dar conta' de uma multiplicidade de funções técnicas correlatas à principal, seja para cobrir a falta de mão de obra qualificada. Em outros termos, considerando o relato dos vários entrevistados - engenheiros ou não - e minhas observações pessoais de campo, a multifuncionalidade e a polivalência no trabalho parecem ser a regra na Marinha. Algumas carreiras, em função da especificidade do conhecimento e das habilidades, parecem estar menos sujeitas aos ditames dessa regra, ao menos no que diz respeito ao conteúdo do trabalho realizado, como é o caso do Corpo de Engenheiros Navais. No entanto, esses oficiais estão submetidos a outro tipo de pressão, tal como resolver problemas ou propor soluções técnicas, utilizando os atalhos da criatividade e da versatilidade para contornar a falta de material e tecnologia adequada. As oficiais engenheiras - e apenas elas -, além disso, são expostas a uma especificidade de gênero no trabalho: normalmente acrescem-se às suas funções técnicas, algumas outras, só para mulheres, um acréscimo de multifuncionalidade em versão feminina:

recepcionar autoridades em uma cerimônia, fazer apresentações, dar aulas, fazer cartaz de fim de ano... ser guarda-bandeira em cerimônias, porta estandarte... comprar presentes, organizar recepções... secretariar comandantes, exercer a função de relações públicas... organizar festas de aniversário, comprar brindes para autoridades, embrulhar presentes... fazer cardápio para autoridades. 27 27 Entrevista.

Com exceção da mais jovem das participantes do grupo, que se integrou ao Corpo de EN este ano, proveniente do serviço militar voluntário, todas as demais tiveram a chance de continuar sua formação em cursos de pós-graduação, no mínimo em nível de mestrado e, em alguns casos, doutorado, às expensas da Marinha. Como explicaram algumas entrevistadas, a especialização se fez necessária, face à especificidade do trabalho a ser desenvolvido:

essa formação adicional de mestrado e doutorado é necessária porque todos nós somos formadas em engenharia, mas não para a aplicação naval e menos ainda na área militar, que é uma sub-especialização da área naval... também tive a oportunidade de fazer mestrado na área de propulsão elétrica de navios.

Sou engenheira elétrica com especialidade eletrônica. Na Marinha fiz o mestrado e o doutorado na área de sensoriamento remoto, também em engenharia eletrônica.28 28 Entrevista.

O trabalho dos engenheiros navais parece ser bastante diversificado, conforme a área em que estão lotados e a Organização Militar em que prestam serviço. Nas palavras de uma engenheira, "dentro da Marinha existem diversas marinhas, a de guerra, a aviação, os submarinos, a parte técnica em superfície etc.". As participantes do grupo focal trabalhavam na Marinha de Guerra, desenvolvendo e testando armas e sistemas de armamento, de rastreamento por radares e de sensoriamento remoto em terra, nos navios, submarinos e nas aeronaves. Elas também desenvolvem táticas de guerra eletrônica e uma delas elabora projetos de embarcações. Em poucas palavras, a guerra é o seu trabalho, ainda que 'em ensaio' e mediado pelas tecnologias digitais e eletrônicas. Dentro desses limites, poderíamos afirmar que as engenheiras navais ultrapassaram as barreiras mais fortemente associadas à masculinidade, desempenhando atividades profissionais de guerra. A guerra real, se envolvesse o Brasil hoje, não seria palco para a atuação das engenheiras, uma vez que elas não são admitidas, nem nas tripulações permanentes dos navios, nem em atividades de combate. Wajcman29 29 WAJCMAN, 1996, p. 146. lembra que a guerra é entendida como o "reduto máximo da masculinidade e expressão legitimada da violência masculina", referindo-se ao combate direto, geralmente atribuído às infantarias. Se no Brasil as mulheres não são admitidas em atividades de combate, o mesmo não se pode dizer de outras forças armadas ocidentais, em que as mulheres lutam ao lado dos homens. Algumas questões para futuras pesquisas parecem decorrer dessas constatações. Como reinterpretar as imagens de gênero com relação à guerra, uma vez que as mulheres dela participam? O que dizer da guerra eletrônica naval ou aérea? As guerras naval e aérea poderiam ser consideradas ambientes de trabalho menos marcados pela masculinidade porque os combates não se dão corpo a corpo? Qual a centralidade das funções exercidas pelas engenheiras no conjunto das atividades de guerra desenvolvidas pelo Corpo de Engenheiros Navais? Como se dá a divisão sexual do trabalho na engenharia de guerra? Há treinamentos diferenciais segundo o sexo do engenheiro para essas atividades?

Para desempenhar testes de sistemas de armamentos e de rastreamento, desenvolver táticas de guerra eletrônica a contento, as primeiras turmas de engenheiros, de acordo com as entrevistadas, "tiveram que cumprir o requisito de embarque, os engenheiros, naquela época tinham que cumprir um ano embarcados em submarinos ou nas Forças", como parte do treinamento para a função. Mas esse requisito foi cumprido apenas pelas primeiras turmas de engenheiros navais do sexo masculino, em face da interdição de embarque prolongado das mulheres. Atualmente, eles não cumprem mais aquela exigência. Levanto a hipótese de que a impossibilidade de receber treinamento embarcadas por longos períodos foi um fator de limitação para as carreiras das engenheiras navais pioneiras. A ser comprovada ou rejeitada em futuras investigações.

Antes de continuar a discutir sobre o trabalho desenvolvido, neste ponto, questionamos as participantes sobre uma especificidade de gênero na área militar: as mulheres podem embarcar em submarinos, navios, aeronaves navais? Sim, elas podem embarcar, fazer o trabalho técnico necessário e desembarcar, mas não integram regularmente a tripulação. Não é incomum não haver infraestrutura para acomodá-las nas embarcações:

A gente pode até ficar no navio e dormir vários dias até os testes serem consumidos, aí a gente volta para o porto... a gente viaja e fica junto com a tripulação... quando embarcamos em fragatas dormimos na enfermaria porque tem banheiro exclusivo..., vamos 'destacadas', chama assim. Nós somos respeitadas nos navios, em geral... porque impomos a posição de que estamos ali como profissionais. É comum.30 30 Entrevista.

Ainda, segundo as entrevistadas, é comum pesquisadoras civis embarcarem para fazer coleta de dados em pesquisas oceanográficas; essas viagens costumam ser autorizadas e encaminhadas por intermédio da Diretoria de Hidrografia e Navegação - DHN. Mas se não é mais um evento excepcional ter mulheres embarcadas, sua permanência nos navios e submarinos continua sendo por prazo determinado e com objetivo definido. Não está incorporada na rotina como acontece com os homens. Uma exceção a essa regra aconteceu durante o ano de 2007, quando uma oficial metereologista - a única mulher na tripulação - embarcou para uma missão em navio oceanográfico, rumo à Antártida, por vários meses. Prova de que, muito lentamente, as militares de todas as profissões também vão quebrando padrões de gênero que as mantêm segregadas em determinadas áreas, desenvolvendo atribuições específicas. Como habitualmente ocorre em profissões majoritariamente masculinas, as oficiais lançam mão da competência profissional para adentrar novas áreas e assumir novas responsabilidades. Foi esse o caso da comandante que esteve em missão na Antártida, a qual disputou a vaga com dezessete oficiais do sexo masculino. Ou o caso das cinco primeiras oficiais que assumiram, pela primeira vez desde que seu ingresso na Marinha foi autorizado, diretorias de serviço.

Voltando a discutir questões relativas ao trabalho, a escolha pela Marinha conduz os engenheiros a um alto grau de especialização do conhecimento e das atividades profissionais, sendo difícil encontrar outras oportunidades de trabalho fora dali. Nas palavras de uma engenheira, "trata-se de um matrimônio para sempre". Mas, para as engenheiras entrevistadas, essa "limitação" profissional tem vantagens e desvantagens. As vantagens dizem respeito ao emprego seguro, ao respeito à jornada diária de trabalho, à possibilidade de fazer carreira em pé de igualdade com seus pares do sexo masculino, em clima de menor competitividade do que "lá fora", à oportunidade de fazer cursos de especialização, à coesão e solidariedade encontrada na Marinha e no Corpo de Engenheiros, ao sentimento de estar prestando serviços para o país. As desvantagens espontaneamente mencionadas ficaram basicamente por conta do salário, considerado menor do que o que receberiam como engenheiras civis. Quando estimuladas, admitiram como desvantagens as restrições a alguns direitos assegurados às mulheres em outros regimes de trabalho e as limitações tecnológicas impostas derivadas das restrições orçamentárias.

As engenheiras deixaram algumas pistas sobre situações de discriminação pelas quais passaram, mais nos primeiros tempos (década de 1980) do que hoje. As mais velhas lembram-se de não lhes ser permitido entrar em navios para fazer reparos: "Um comandante de fragata ligou para meu diretor e disse: tem uma mulher aqui e em meu navio não entra mulher, não dá para reparar".

Em suma, para elas parece haver mais vantagens que desvantagens. A maioria delas foi estimulada pela família ou por amigos a prestarem o concurso, visto como uma oportunidade, mas achavam muito difícil conseguir passar. O sucesso na primeira fase de seleção significou uma realização pessoal especial, uma compensação do esforço realizado, uma chancela da sua competência técnica, frente à concorrência acirrada. Se elas foram duplamente transgressoras da sua condição de gênero - na profissão de engenheira e na carreira militar -, o resultado da trajetória é visto positivamente. Elas demonstraram estar satisfeitas e orgulhosas com o trabalho desenvolvido, com as condições de trabalho, com a carreira militar. Uma avaliação recorrente entre mulheres que adentraram culturas profissionais masculinas e nelas conseguiram êxito.31 31 Maria Cristina BRUSCHINI e Andréa PUPPIN, 2004; Cathérine MARRY, 2002; e LOMBARDI, 2005.

Considerações finais

As indicações que emergiram da discussão no grupo focal com as oficiais engenheiras navais sugerem a necessidade de aprofundamento no conhecimento do papel, das atribuições e do trabalho no Corpo de Oficiais Engenheiros Navais, para que se possa, então, compreender apropriadamente as atividades profissionais e militares que são atribuídas às engenheiras e aquelas que, se for o caso, lhes são vetadas e por quê. No nosso entender, será a análise da divisão sexual do trabalho de engenharia na Marinha de Guerra que permitirá compreender a posição relativa dos homens e das mulheres nesse Corpo. Haveria um espaço ou áreas de trabalho consideradas mais importantes e prestigiadas e outras menos importantes ou acessórias? Encontraríamos, na engenharia naval, cenários assemelhados aos das empresas, em que o trabalho nas áreas 'core' seria destinado para um grupo restrito de profissionais, em geral do sexo masculino, que concentraria poder de decisão, prestígio e outras vantagens? A exclusividade da formação operacional embarcada das primeiras turmas de engenheiros do sexo masculino selecionados por concurso talvez tenha estabelecido uma clivagem entre os militares do Corpo de Engenheiros, a partir do seu sexo. Se essa hipótese se confirmar, teria ocorrido uma forma de discriminação de gênero - a interdição da integração regular das mulheres nas tripulações dos navios que, 'em cascata', teria engendrado outras discriminações e limitações nas carreiras das engenheiras pioneiras. Outra questão candente que esta pesquisa exploratória trouxe à tona relaciona-se às relações de gênero no campo de trabalho da guerra e à mediação da tecnologia militar. Se atualmente as Forças Armadas estão mais profissionalizadas e incorporaram tecnologia militar de ponta, seria possível afirmar que a introdução de inovações tecnológicas favoreceu a integração das oficiais engenheiras naquelas tarefas?

Outro ângulo de intersecção entre as relações de gênero e as atividades de guerra naval que os resultados aqui apresentados problematizam diz respeito aos estereótipos e às imagens de gênero no trabalho, que associam virilidade e agressividade masculinas à guerra, em contraposição ao caráter receptivo, tolerante e acolhedor do feminino, que seria naturalmente avesso ao ambiente militar e à guerra. A chegada das mulheres ao campo de trabalho da guerra parece-me emblemática e permite questionar as análises que elaboram e reforçam aquelas imagens tradicionais. Mas haveria novas imagens do masculino e do feminino em relação à guerra sendo desenvolvidas desde que as mulheres ali chegaram? Esperamos que essas questões sejam suficientemente instigantes a ponto de encorajar outros pesquisadores a continuar a explorá-las.

[Recebido em outubro de 2008 e aceito para publicação em abril de 2009]

  • BRUSCHINI, Maria Cristina; PUPPIN, Andréa B. "Trabalho das mulheres executivas no Brasil no final do século XX". Cadernos de Pesquisa, v. 34, n. 121, p. 105-138, 2004.
  • CASTRO, Celso. O Espírito militar: um antropólogo na caserna Rio de Janeiro: Zahar, 2004.
  • ELIAS, Norberto; SCOTSON, John. Os estabelecidos e os outsiders: sociologia das relações de poder a partir de uma pequena comunidade. Rio de Janeiro: Zahar, 2000.
  • LOMBARDI, Maria Rosa; BRUSCHINI, Cristina; MERCADO, Cristiano Miglioranza. "As mulheres nas Forças Armadas brasileiras: a Marinha do Brasil 1980-2008". São Paulo: FCC/DPE, 2009. (Textos FCC, n. 30).
  • FORGEAU, Fanny. " Il n´y a pas de sexe à l´armé: une enquête sur les rapports hommes/femmes au 121° Régiment du Train". In: COLLOQUE INTERNATIONAL "L´INVERSION DU GENRE". Brest-França. Anais... Université de Bretagne Occidentale/Faculté de lettres et sciences sociales Victor Segalen, 2005. (CD-ROM).
  • FORTINO, Sabine. La mixité au travail Paris: La Dispute, 2000. (Col. Genre du monde).
  • GUICHARD-CLAUDIC, Yvonne; KERGOAT, Danièle. "Les corps aux prises avec l´avancée en mixité (Introduction)". Cahiers du Genre, Paris: L´Harmattan, n. 42, p. 5-18, 2007.
  • KERGOAT, Danièle. " La Division de travail entre les sexes". In: KERGOAT, Jacques et al. (Orgs.). Le Monde du travail. Paris: La Découverte, 1998. p. 319-327.
  • LE FEUVRE, Nicky. "Modelos de feminização das profissões na França e na Grã-Bretanha". In: COSTA, Albertina O.; SORJ, Bila; BRUSCHINI, Cristina; HIRATA, Helena. (Orgs.). Mercado de trabalho e gênero. Comparações internacionais. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2008. p. 299-314.
  • LOMBARDI, Maria Rosa. Perseverança e resistência: a engenharia como profissão feminina. 2005. Tese (Doutorado em Educação) - Programa de Pós-Graduação em Educação, Faculdade de Educação, UNICAMP, Campinas, São Paulo.
  • MARQUES JR., Hermógenes Hiron. O corpo auxiliar feminino da reserva da Marinha 1982. Monografia (Curso CEM) - Escola de Comando e Estado-Maior do Exército, Rio de Janeiro.
  • MARRY, Cathérine. L'excellence scolaire des filles: une révolution respectueuse? Le cas des diplômées des grandes écoles scientifiques d'ingénieurs Notes pour l'habilitation à diriger les recherches en sociologie. Université de Versailles - Saint-Quentin, 2002.
  • MUSUMECI, Leonarda; SOARES, Bárbara M. "Polícia e gênero: presença feminina nas PMs brasileiras". Boletim de segurança e cidadania. Rio de Janeiro; Centro de Estudos de Segurança e Cidadania; UCAM/ Universidade Cândido Mendes, ano 2, n. 4, 2004.
  • SILVA TELLES, Pedro Carlos. História da engenharia no Brasil - séculos XVI a XIX v. 1. Rio de Janeiro: Livros Técnicos e Científicos Editora, 1984.
  • WAJCMAN, Judy. Feminism Confronts Technology. Pennsylvania: The Pennsylvania State, 1996.
  • 1
    Categoria analítica que identifica uma tensão permanente entre homens e mulheres, em torno da divisão social e sexual do trabalho. Com base nos princípios de separação e hierarquização, as sociedades atribuem diferentes trabalhos para homens e mulheres e os valorizam desigualmente. O trabalho é compreendido na sua dimensão coletiva, onde se incluem o trabalho profissional e o doméstico e a dimensão subjetiva (Danièle KERGOAT, 1998).
  • 2
    Maria Rosa LOMBARDI, Cristina BRUSCHINI e Cristiano MERCADO, 2009.
  • 3
    Pesquisa realizada entre 2005 e 2008, no Departamento de Pesquisas Educacionais da Fundação Carlos Chagas, com a colaboração do 1º e do 8º Distritos Navais e o apoio financeiro do CNPq e da Secretaria Especial de políticas para as Mulheres - SPM.
  • 4
    Categoria analítica que designa o processo de inserção das mulheres e a ampliação da sua presença em profissões masculinas; além da análise numérica, entende que se trata de um processo diversificado e complexo que implica mudanças nas relações sociais entre os sexos e, entre outras, mudanças institucionais que costumam acompanhar a integração das mulheres naquelas profissões (Nicky LE FEUVRE, 2008; Sabine FORTINO, 2000; Yvonne GUICHARD-CLAUDIC e KERGOAT, 2007).
  • 5
    Em 1981 e 1992, respectivamente, a Força Aérea Brasileira e a Escola de Administração do Exército em Salvador abrem as primeiras turmas femininas (FCC, 2008).
  • 6
    MARQUES JR., 1982, p. 11.
  • 7
    A concepção do trabalho feminino como apoio, para ser executado em terra, permanece na Marinha até hoje. Nas Polícias Militares brasileiras a situação parece ser inversa, pois a maioria das policiais está envolvida em atividades de policiamento e não em tarefas administrativas (Leonarda MUSUMECI e Bárbara SOARES, 2004).
  • 8
    A carreira de oficiais da Marinha se compõe dos Corpos da Armada, Fuzileiros Navais, Intendência, Engenheiros, Saúde e Auxiliar.
  • 9
    Índice bem menor do que os encontrados nas PMs informados pelo Banco de dados Polícia Militar e Gênero (7%) e na PM do Estado de São Paulo - 9,7% (MUSUMECI e SOARES, 2004).
  • 10
    Capitão de Corveta, Capitão de Fragata, Capitão de Mar e Guerra.
  • 11
    O CAFRM era composto de dois Quadros: QAFO - Quadro Auxiliar Feminino de Oficiais e QAFP - Quadro Auxiliar Feminino de Praças.
  • 12
    Em termos relativos, a proporção de mulheres entre os engenheiros navais era o dobro da proporção de mulheres na Marinha (5,6%).
  • 13
    Em 2005, segundo a RAIS - Relação Anual de Informações Sociais do Ministério do Trabalho e Emprego, a parcela feminina nos empregos formais para engenheiros girava em torno de 14%.
  • 14
    Pedro Carlos SILVA TELLES, 1984.
  • 15
    LOMBARDI, 2005.
  • 16
    Norberto ELIAS e John SCOTSON, 2000.
  • 17
    LOMBARDI, 2005.
  • 18
    Fala de uma das engenheiras da Marinha entrevistadas. Optamos aqui por não informar os nomes das mesmas, em suas falas, com a intenção de preservá-las. Então, a partir deste momento, apenas sinalizaremos essas falas como 'entrevista'.
  • 19
    Entrevista.
  • 20
    CASTRO, 2004.
  • 21
    Entrevista.
  • 22
    Entrevista.
  • 23
    Entrevista.
  • 24
    FORGEAU, 2005.
  • 25
    FORGEAU, 2005, p. 14.
  • 26
    Entrevista.
  • 27
    Entrevista.
  • 28
    Entrevista.
  • 29
    WAJCMAN, 1996, p. 146.
  • 30
    Entrevista.
  • 31
    Maria Cristina BRUSCHINI e Andréa PUPPIN, 2004; Cathérine MARRY, 2002; e LOMBARDI, 2005.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      17 Set 2010
    • Data do Fascículo
      Ago 2010

    Histórico

    • Recebido
      Out 2008
    • Aceito
      Abr 2009
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