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Os dilemas da mulher intelectual em um universo masculino

The Dilemmas of an Intellectual Woman in a Male World

KIRKPATRICK, Kate. . Simone de Beauvoir: uma vida . Trad. de Dolinsky, Sandra Martha. . São Paulo: Planeta do Brasil, 2020.

A filósofa e feminista francesa Simone de Beauvoir é considerada uma das figuras mais importantes do século XX. No entanto, seu nome ainda é bastante criticado e incompreendido, sendo “amada e odiada, difamada e idolatrada” (Kate KIRKPATRICK, 2020KIRKPATRICK, Kate. Simone de Beauvoir: uma vida. Trad. de Sandra Martha Dolinsky. São Paulo: Planeta do Brasil, 2020., p. 361) pela imprensa mundial. Isso tem relação com a publicação de sua célebre “bíblia feminista”, em 1949, O Segundo Sexo, referência para muitas intelectuais e militantes até os dias de hoje, tanto que é constantemente republicado em novas edições pelo mundo afora. No Brasil, em 2019, a editora Nova Fronteira lançou uma edição em comemoração aos 70 anos desde sua primeira publicação. Correlacionado a isso, muitos/as se arriscaram a dizer, e ainda arriscam, que todo o seu mérito, como uma das maiores intelectuais das últimas décadas, foi construído sob a égide de Jean Paul Sartre, um tema que ela já havia discutido em O Segundo Sexo ao tratar sobre as dificuldades de mulheres escritoras se destacarem. Segundo Simone Beauvoir: “Enquanto ainda tiver que lutar para se tornar um ser humano, não lhe é possível ser uma criadora” (BEAUVOIR, 2016BEAUVOIR, Simone de. O Segundo sexo: a experiência vivida. v. 2. Trad. de Sérgio Melliet. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2016., p. 539).

Essas questões são centrais para compreender as dificuldades encontradas para ser uma mulher intelectual em meados do século XX e que, vale ressaltar, carrega resquícios misóginos de contextos antecedentes que ainda permanecem. As mulheres com aspirações intelectuais, muitas das vezes, tiveram que viver à sombra dos homens ao seu redor, caracterizados como mentores ou responsáveis por suas empreitadas, de maneira que suas experiências fossem marginalizadas e colocadas em segundo plano. É nessa lógica que Kate Kirkpatrick escreveu a biografia Simone de Beauvoir: uma vida, visando elucidar uma série de questões históricas incompreendidas sobre a vida da filósofa através de um cuidadoso estudo de diários e cartas que foram recentemente publicados, particularmente as cartas trocadas com o único amante com quem residiu, Claude Lanzmann, disponibilizadas em 2018 pela Universidade de Yale, após terem sido negociadas pelo próprio Lanzmann com a instituição, que passou a contar com 112 cartas até então inéditas.

Kate Kirpatrick é uma filósofa e feminista formada pela Universidade de Oxford e que atualmente leciona no King’s College London. Ao longo de sua trajetória acadêmica dedicou-se aos estudos dos conceitos e da trajetória de Jean Paul Sartre, ocasionando que também se debruçasse nos últimos anos sobre a vida de Simone de Beauvoir. A ideia de começar a escrever uma nova biografia aconteceu após a publicação de fontes desconhecidas que possibilitaram desmitificar uma série de mitos construídos a respeito de Beauvoir, inclusive ao perceber que ela já vinha lendo as mesmas obras que Sartre antes até de conhecê-lo. Kirkpatrick empreendeu um trabalho histórico de fôlego que resultou na publicação da respectiva obra em agosto de 2019, na Inglaterra. Para ela, “[o] livro existe porque é difícil pensar em um sem o outro [...] por que razão, quando Beauvoir morreu todos os obituários dela mencionaram Sartre, ao passo que quando Sartre morreu, alguns não fizeram o mesmo.” (KIRKPATRICK, 2020KIRKPATRICK, Kate. Simone de Beauvoir: uma vida. Trad. de Sandra Martha Dolinsky. São Paulo: Planeta do Brasil, 2020., p. 17).

A trajetória de Beauvoir retrata bem os dilemas experenciados pela mulher intelectual, principalmente da escritora que almeja viver de sua produção, o que para muitas é quase impossível, valhamos. Até finais da década de 1950, o sucesso para escritoras mulheres ainda era uma utopia e muitas foram qualificadas como amadoras e incapazes. Ela foi uma das poucas que conseguiu subsistir daquilo que escrevia, não sem passar por dificuldades no início de sua carreira, quando labutou em busca de reconhecimento ao lecionar e escrever. Em meio a tudo isso, ela ainda produziu uma extensa bibliografia sobre diversos temas, “[...] só suas cartas e autobiografias somariam mais de 1 milhão de palavras” (KIRKPATRICK, 2020KIRKPATRICK, Kate. Simone de Beauvoir: uma vida. Trad. de Sandra Martha Dolinsky. São Paulo: Planeta do Brasil, 2020., p. 13), que influenciariam muitas gerações póstumas.

Mesmo nesse extenso universo produtivo, ainda insistem em sobressair sua vida pessoal e relações amorosas frente à sua relevância filosófica, especialmente como uma das teóricas precursoras nos estudos sobre mulheres, e que se relaciona às construções hierárquicas de gênero que historicamente vêm sendo impostas às mulheres. A nova biografia escrita por Kirkpatrick nos mimoseia com uma Beauvoir humanizada junto a uma história familiar, seus percursos amorosos e também suas escolhas, sem deixar de lado sua genialidade em igualdade com Jean Paul Sartre. O fato de inúmeros/as outros/as amantes terem atravessado sua vida, como Nelson Algren, Claude Lanzmann, Bianca Bienenfeld, permite desvincular sua história apenas a Sartre que, pela percepção popular do século XX, principalmente, teria sido o responsável pelo seu poder intelectual, o que Kate desmitifica tão bem.

O pacto poliamoroso e recíproco entre Beauvoir e Sartre teria sido o principal interesse de estudiosos que se voltaram para Beauvoir, deixando para segundo plano sua contribuição para a filosofia e o feminismo ocidentais. No entanto, ao nos debruçarmos na nova biografia constatamos uma relação mútua e de conflito entre ambos, em que encontramos uma mulher que se posicionou abertamente contrária a muitas das posições políticas e conclusões filosóficas de Jean Paul Sartre. Em 1968, por exemplo, quando ele se aproximou do maoísmo, Beauvoir não compartilhou do mesmo entusiasmo, e sua transcendência pode ser constatada, uma vez que “enquanto o maoísmo de Sartre o marginalizou da corrente intelectual, o feminismo de Beauvoir deu-lhe um papel de liderança no movimento internacional de mulheres” (KIRKPATRICK, 2020KIRKPATRICK, Kate. Simone de Beauvoir: uma vida. Trad. de Sandra Martha Dolinsky. São Paulo: Planeta do Brasil, 2020., p. 314).

A relevância contemporânea de Simone de Beauvoir no Brasil pode ser comprovada com a rápida tradução para o português da recente biografia, que foi originalmente publicada no inglês em 22 de agosto de 2019 e, já em 24 de fevereiro de 2020, contou com o trabalho de tradução empreendido por Sandra Martha Dolinsky , seguido com a publicação pela editora Planeta Brasil. Além do considerável número trabalhos sobre sua vida pelo mundo, como Deirdre Bair (1990BAIR, Deirdre. Simone de Beauvoir: a biography. Londres: Jonathan Cape, 1990.), Margaret Crosland (1992CROSLAND, Margareth. Simone de Beauvoir: the woman and her work. Londres: Heinemann, 1992.), Nancy Bauer (2001BAUER, Nancy. Simone de Beauvoir: philosophy and feminism. Nova York: Columbia University Press, 2001.) e Françoise D’Eaubonne (2008D’EAUBONNE, Françoise. Une femme nommée Castor. Paris: Harmattan, 2008.), para citar poucos exemplos.

O esforço erudito de narrar a vida de uma intelectual feminista no contexto em que vivenciamos é mais do que pertinente, principalmente sobre o olhar inédito da escritora inglesa, que traz à tona uma Beauvoir que lutou para que suas ideias fossem reconhecidas e valorizadas. Ela precisa ser lembrada - para além de Sartre - como uma filósofa, feminista e intelectual que formulou suas próprias ideias, negociou seus contratos, optou por suas relações homoafetivas, negou a maternidade e lutou pela igualdade entre os sexos, em suma, por sua liberdade. Em vista disso, nada como uma filósofa e feminista contemporânea para reescrever sua trajetória à luz de novas interpretações.

A obra é organizada seguindo a ordem cronológica da vida da filósofa francesa, que se inicia com ela ainda jovem em suas discussões sobre amor e o significado de liberdade com seu pai, Georges de Beauvoir, finalizando com a memória construída após sua morte, principalmente com o seu papel no movimento feminista iniciado a partir de meados da década de 1970 e que suscitou em mudanças significativas comportamentais e na legislação de seu tempo. Contudo, toda essa trajetória passou por altos e baixos, o que fez com que ela fosse alvo de muitas críticas.

No contexto da Grande Guerra, por exemplo, Beauvoir não se posicionou politicamente, revendo sua postura anos mais tarde; só se atentou para as discussões raciais após ter contato com o ativista negro norte-americano pelos direitos civis Richard Wright e, outrossim, só adotou publicamente o rótulo de feminista em 1972, numa entrevista com Alice Schwarzer, apesar da publicação de O Segundo Sexo ter sido em 1949. Quando decidiu pela escrita, Beauvoir se identificava apenas como uma intelectual que se propôs a refletir sobre a condição da mulher; todavia, com o passar do tempo, foi se reconhecendo e se identificando politicamente contrária ao patriarcado e assumindo posicionamentos mais contundentes, inclusive na luta pelo direito ao aborto, a qual foi muito repreendida, principalmente após sua participação no Manifeste dus 343, um manifesto assinado por 343 mulheres que admitiram já ter realizado algum procedimento de aborto.

No entanto, os altos e baixos de sua vida devem ser pensados a partir de sua própria formulação acerca do ser mulher, isto é, não se nasce Simone, torna-se Simone, sendo as suas relações, bem como as transformações ocorridas em seu tempo, centrais para pensar suas posturas com o passar das décadas. Beauvoir foi uma sujeita como qualquer outra/o, situada no meio ao qual esteve inserida e lidou com contradições. Suas diversas autobiografias, produzidas ao longo dos anos, sustentam a convicção de que ser você mesma/o é também carregar da insígnia da mudança a todo tempo, sendo impossível ser igual desde o nascimento por toda uma vida. E este livro é sobre isso.

Os desafios de empreender um trabalho biográfico são grandes, envolvendo “voyeurismo e bisbilhotice que motivam tanto os autores quanto os leitores” (MALCOLM, 2012MALCOLM, Janet. A mulher calada: Sylvia Plath, Ted Hughes e os limites da biografia. Trad. de Sérgio Flaksman. São Paulo: Companhia das Letras, 2012., p. 16), e Kirkpatrick sabia disso. Em uma entrevista concedida para a revista Quatrocincoum, em abril de 2020KIRKPATRICK, Kate. Simone de Beauvoir: uma vida. Trad. de Sandra Martha Dolinsky. São Paulo: Planeta do Brasil, 2020., ela afirmou ter feito as pazes com esses conflitos, acreditando que o modo como se relata a vida de mulheres importa, sobretudo a de Simone de Beauvoir. Por isso optou pela forma mais ética de contar sua história (SCHILLER, 2020SCHILLER, Mariana. “Para admirar Beauvoir. Entrevista com Kate Kirkpatrick”. Quatrocincoum. 01 abr. 2020 às 01h13. Disponível em Disponível em https://quatrocincoum.folha.uol.com.br/br/artigos/b/para-admirar-beauvoir . Acesso em 20/08/2020.
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). As questões envolvendo o gênero se dão, principalmente, devido aos materiais, que não são disponibilizados em sua totalidade, o que leva apenas a um lado da história. No caso de Claude Lanzmann, apenas 112 das cerca de 300 cartas existentes foram ofertadas ao público norte-americano, isso ocorreu pois ele não conseguiu o direito de publicá-las na França devido às disputas com Silvye Le Bom - e esse caso exemplifica bem os impasses da biografia.

Após mais de 400 páginas de leitura, podemos concluir que Kate se saiu bem em seu trabalho, tomando todo um cuidado para não cair na armadilha comum em pesquisas do gênero: endeusar personagens. A autora contou uma história sobre Simone de Beauvoir que transcende Sartre e também seu papel no feminismo, humanizando-a, mostrando suas contradições e inserindo-a no contexto em que viveu.

Referências

  • BAIR, Deirdre. Simone de Beauvoir: a biography Londres: Jonathan Cape, 1990.
  • BAUER, Nancy. Simone de Beauvoir: philosophy and feminism Nova York: Columbia University Press, 2001.
  • BEAUVOIR, Simone de. O Segundo sexo: a experiência vivida v. 2. Trad. de Sérgio Melliet. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2016.
  • CROSLAND, Margareth. Simone de Beauvoir: the woman and her work Londres: Heinemann, 1992.
  • D’EAUBONNE, Françoise. Une femme nommée Castor Paris: Harmattan, 2008.
  • KIRKPATRICK, Kate. Simone de Beauvoir: uma vida Trad. de Sandra Martha Dolinsky. São Paulo: Planeta do Brasil, 2020.
  • MALCOLM, Janet. A mulher calada: Sylvia Plath, Ted Hughes e os limites da biografia Trad. de Sérgio Flaksman. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
  • SCHILLER, Mariana. “Para admirar Beauvoir. Entrevista com Kate Kirkpatrick”. Quatrocincoum 01 abr. 2020 às 01h13. Disponível em Disponível em https://quatrocincoum.folha.uol.com.br/br/artigos/b/para-admirar-beauvoir Acesso em 20/08/2020.
    » https://quatrocincoum.folha.uol.com.br/br/artigos/b/para-admirar-beauvoir
  • Como citar esse artigo de acordo com as normas da revista:

    RIBEIRO, Cristiane de Paula. “Os dilemas da mulher intelectual em um universo masculino”. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 29, n. 2, e76091, 2021.
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  • Consentimento de uso de imagem:

    Não se aplica.
  • Aprovação de comitê de ética em pesquisa:

    Não se aplica.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    30 Jun 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    30 Jul 2020
  • Revisado
    17 Ago 2020
  • Aceito
    09 Out 2020
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