Open-access Ouvindo a voz diferente como uma voz humana: In a Human Voice, de Carol Gilligan

Hearing the different voice as a human voice: In a Human Voice, by Carol Gilligan

Escuchando la voz diferente como una voz humana: In a Human Voice, de Carol Gilligan

GILLIGAN, Carol. . In a Human Voice . Hoboken: Polity Press, 2023

Publicado em 2023, In a Human Voice é o mais recente livro da psicóloga estadunidense Carol Gilligan (1936-atualmente). Como seu título sugere (Em uma voz humana, na tradução literal), trata-se de uma publicação que revisita e amplia as ideias lançadas em seu livro seminal de 1982: In a Different Voice (traduzido ao português no Brasil como Uma voz diferente).

Gilligan tornou-se conhecida em âmbito global imediatamente após a publicação desse livro, que passou a ser referência para a chamada Segunda Onda do Movimento Feminista, no qual critica as principais teorias psicológicas de sua época de excluírem as mulheres, ao proporem um modelo de desenvolvimento moral universal, a Ética da Justiça que, na verdade, refletiria apenas uma perspectiva tipicamente masculina, resultando em interpretações androcêntricas e sexistas sobre o desenvolvimento humano. Com isso, essas teorias também excluíram uma outra perspectiva possível de se ver e responder a problemas morais, a Ética do Cuidado, que a autora identificou a partir das vozes das mulheres que entrevistou e que são retratadas nesse livro.

40 anos depois da publicação e do reconhecimento que recebeu por Uma voz diferente (Carol GILLIGAN, 1982), e 45 anos depois do ensaio de mesmo título que o precede (Carol GILLIGAN, 1977), em In a Human Voice (Carol GILLIGAN, 2023) a autora reflete sobre a evolução de seu pensamento ao longo dessas quatro décadas. À medida que referencia temas explorados anteriormente em sua obra mais famosa, ela aprofunda-os, explorando o que aconteceu nesse meio tempo que a fez mudar e revisar suas ideias iniciais.

Dessa forma, além de retomá-los, Gilligan também os reelabora em certo nível, levando à expansão de suas ideias a ponto de conseguirem responder às críticas que seu trabalho recebeu: tanto esclarecendo o que ela quis dizer originalmente em seu trabalho - mas que, segundo aponta, foi mal interpretado - como revisando aquilo que realmente se mostrou problemático e que precisou ser revisto ao longo do tempo.

Porém, mais correto seria aqui dizer que, na época de Uma voz diferente, seu pensamento ainda estava em desenvolvimento e, portanto, incompleto em relação ao estado que se encontra hoje - e não que estava equivocado -, pois é exatamente essa a impressão que se tira a partir do diálogo que se estabelece entre as duas publicações, então separadas temporalmente por quatro décadas. Gilligan (2023) não faz concessões ou tenta corrigir seu trabalho produzido no passado e que considere estar errado. Em vez disso, é nítida a coerência no percurso intelectual da autora e o que pretende em seu novo livro é mostrar o refinamento de suas ideias, adicionando insights inéditos que faltavam ou que ainda não lhe estavam elaborados em 1982, refinamento que só pôde ser alcançado a partir de suas pesquisas que sucederam ao lançamento de Uma voz diferente.

Logo na introdução de seu livro de 1982 a autora explicita que “a voz diferente que eu defino”, que é a voz do cuidado, “caracteriza-se não pelo gênero, mas pelo tema” (GILLIGAN, 1982, p. 12), sendo voz uma inteligente metáfora da autora para identidade (Eu, Self) em seu trabalho entrevistando mulheres. O problema foi que, naquela ocasião, essa voz foi ouvida como feminina, quando, na verdade, era uma voz humana. Assim, a voz diferente foi incorporada dentro da própria estrutura de poder, ou maneira de falar sobre mulheres, que seu trabalho buscava questionar: “me levando para uma armadilha [essencialista] da qual levei anos para me livrar” (GILLIGAN, 2023, p. 107, tradução minha)1. Nos anos seguintes à Uma voz diferente, durante a década de 1980 até o início da década de 1990, a autora dedicou-se ao 10 year Harvard Project on Women’s Psychology and girls’ development, um Programa de Pesquisa liderado por ela e responsável por fazê-la revisar e expandir suas ideias tal como são apresentadas em seu livro de 1982.

Em síntese, seu mais novo livro pode ser visto como uma resposta a quem a acusou de defender um feminismo essencialista ou que interpretou suas ideias como tal e indevidamente apropriou-se delas para sustentar teoricamente esse tipo de feminismo, obrigando-a a se manifestar diversas vezes sobre essa não ter sido a intenção de seu trabalho2. Para tanto, Gilligan (2023) expõe o percurso que refinou suas ideias e os novos elementos que foram adicionados paulatinamente à paisagem de seu pensamento, inclusive situando-os temporalmente ao longo de sua carreira.

No primeiro capítulo, “Women’s Voices and Women’s Silences”, Gilligan retoma os principais achados de seus estudos desenvolvidos durante o citado 10 year Harvard Project, os quais enfocaram o que chama de encruzilhada entre infância e idade adulta de meninas - a adolescência -, descrevendo-a como um divisor de águas no desenvolvimento feminino, no qual elas são confrontadas pela cultura patriarcal e forçadas a abrir mão de sua identidade autêntica, levando ao silenciamento de suas próprias vozes e a duvidarem de seu próprio conhecimento.

Ao incluir o conceito de patriarcado em suas reflexões, a pesquisadora ressalta que, em uma sociedade patriarcal, as qualidades humanas são bifurcadas em masculino ou feminino e hierarquizadas, como ocorre com o cuidado que passa a ser considerado um atributo feminino e não um atributo humano. O patriarcado leva o ser humano a separar-se de partes de si mesmo, seguindo um processo, que toma emprestado da Psicanálise, chamado dissociação, em que mulheres e homens desligam-se de atributos (que são comuns a ambos) de acordo com o que é esperado de seu gênero: por exemplo, mulheres são orientadas ao cuidado e homens à justiça. Trata-se, assim, de um processo de iniciação de crianças e jovens a binarismos de gênero e hierarquias do patriarcado que, em última instância, é marcado por sinais de danos morais e emocionais e de sofrimento psicológico. Ainda subsidiando-se em seus estudos, introduz o conceito de resistência e mostra que as meninas podem também resistir à iniciação ao patriarcado e, por conseguinte, à dissociação de sua identidade.

O segundo capítulo, “Why Nobody Talks about the Abortion Decisions”, aborda a centralidade de seu estudo sobre a decisão pelo aborto para a emersão de Uma voz diferente e da Ética do Cuidado, partindo da histórica decisão da Suprema Corte dos Estados Unidos em Roe v. Wade, de 1973, favorável à liberdade individual das mulheres. Essa abordagem se dá sob três pontos chave: político, psicológico e ético.

No político, ressalta o marco que foi garantir que as mulheres tivessem voz nas decisões que dizem respeito a suas próprias vidas, contradizendo uma tradição que associava a bondade feminina à abnegação. No psicológico, critica o modelo de Ética da Justiça traçada pelo psicólogo estadunidense Lawrence Kohlberg (1927-1987), com quem colaborou em pesquisa, que, focado na abstração e separação entre o Eu e o Outro, despreza a concretude e interdependência nas relações humanas, então levadas em conta pela Ética do Cuidado. Para a autora, ocorreu uma transformação psicológica a partir de Roe v. Wade, que permitiu reconhecer a perspectiva moral das mulheres como válida e não representativa de um déficit de desenvolvimento. Por fim, sob o ponto ético, ao citar a filósofa francesa Sandra Laugier, evidencia que a Ética do Cuidado desafia narrativas tradicionais sobre moralidade, em especial da Filosofia Moral dominante.

No terceiro capítulo, “Enter Eve”, Gilligan parte das contribuições de Sigmund Freud (1856-1939) e Jean Piaget (1896-1980), cujas teorias do desenvolvimento também critica em Uma voz diferente, mas reconhece seus métodos de investigação como ferramentas potenciais para revelar estruturas patriarcais e desafiá-las. Em seguida, revisita a narrativa bíblica de Adão e Eva a partir do conceito ezer k’negdo, palavra hebraica com o significado de “ajuda confrontante”, sugerindo que a mulher não tem um papel apenas de suporte, mas o de alguém que pode confrontar e desafiar o homem. Assim, dentro dessa história patriarcal, como apresentada em Gênesis, haveria uma história de resistência, na qual Deus cria a mulher para ajudar Adão a resistir ao patriarcado, recuperando sua voz humana. A partir da escritora estadunidense Audre Lorde (1934-1992), ela conclui que as ferramentas disponíveis para desmantelar o patriarcado, como a voz humana, precisam ser resgatadas.

No quarto capítulo, “Moral Injury”, é discutido o estudo do psiquiatra estadunidense Jonathan Shay sobre lesão ou trauma moral em militares veteranos de guerra, resultante de uma traição interna gerada quando recebem ordens para ignorar a morte de civis inocentes e minimizar as consequências de suas ações. Gilligan vê, nesse estudo, a descrição de suas próprias pesquisas sobre dissociação em meninas ao entrarem na adolescência: as meninas também são levadas a trair suas vozes autênticas e substituí-las pelo que é culturalmente sancionado. A autora referencia os estudos de Judy Chu e Niobe Way, suas ex-alunas e colaboradoras, que deram continuidade ao 10 year Harvard Project e o expandiram para o desenvolvimento de meninos. No caso deles, que são iniciados mais cedo que as meninas ao patriarcado, partes de sua voz humana são vistas como femininas ou gays e, portanto, tornam-se indesejadas, levando-os a evitar conexões próximas ou demonstrar empatia. Ao final, retoma-se a resistência como estratégia para promoção de relações e psiquês saudáveis: da mesma forma que um corpo saudável resiste à infecção, uma psique saudável resiste a uma cultura patriarcal que compromete a sua humanidade.

No quinto capítulo, “In a Different Voice: Act II”, aborda três filmes contemporâneos, Phantom Thread, de Paul Thomas Anderson (2017), First Reformed, de Paul Schrader (2017), e BlacKkKlansman de Spike Lee (2018), os quais questionam e reconfiguram noções de masculinidade, amor e poder. Em sua análise, os personagens masculinos reconhecem a importância do amor, da vulnerabilidade e do cuidado (atributos considerados femininos), mesmo sendo homens heterossexuais, pois são atributos que constituem sua humanidade e fundamentais em uma sociedade democrática.

Finalmente, em “Epilogue: The Ethic of Care”, Gilligan sintetiza a revisão e a ampliação de suas ideias iniciais, minuciosamente discutidas ao longo dos capítulos anteriores. Ela descreve que, em parte, foi responsável pela confusão e mal-entendido surgidos em torno de suas ideias, quando uniu a palavra “diferente” com a palavra “mulher”: “eu tinha me juntado a uma exploração da diferença (uma voz diferente - diferente de quê?) ao assunto das mulheres. As mulheres são diferentes?” (GILLIGAN, 2023, p. 107, tradução minha)3. Foi esta a armadilha que autora diz que levou anos para se livrar: “Ironicamente, meu trabalho passou a ser visto através das lentes das comparações e hierarquias binárias que eu havia me proposto a desafiar” (GILLIGAN, 2023, p. 107, tradução minha)4. E elucida que só conseguiu sair dela a partir dos estudos com meninas que trouxeram o assunto do patriarcado à tona: não se trata de dizer que meninas e meninos são diferentes, mas que meninas e meninos precisam se apresentar de certas maneiras para serem considerados homens e mulheres de verdade.

Em suma, do ponto de vista do presente, In a Human Voice esclarece aquilo que não foi dito e que faltava em seu trabalho quando foi publicado pela primeira vez. Esclarecimento que se dá a partir de três pontos: primeiro, que a “voz diferente” (a voz do cuidado), ainda que tenha sido ouvida como uma voz feminina, é, na verdade, uma voz humana; segundo, que a voz da qual ela se difere é uma voz patriarcal, calcada em binarismos e hierarquias; e, terceiro, que onde o patriarcado se faz presente, a voz humana é uma voz de resistência e a Ética do Cuidado é uma ética de libertação.

Referências

  • ANDERSON, Paul Thomas [Dirigido por]. Phantom Thread, 130 min, 2017.
  • GILLIGAN, Carol. “In a different voice: women’s conceptions of self and of morality”. Harvard Educational Review, v. 47, n. 4, p. 481-517, 1977.
  • GILLIGAN, Carol. Uma voz diferente: psicologia da diferença entre homens e mulheres da infância à idade adulta Trad. de Nathanael C. Caixeiro. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1982.
  • GILLIGAN, Carol. In a Human Voice Hoboken: Polity Press, 2023.
  • LEE, Spike [Dirigido por]. BlacKkKlansman, 134 min, 2018.
  • SCHRADER, Paul [Dirigido por]. First Reformed, 113 min, 2017.
  • 1
    No original: “[...] setting myself up for a trap that it has taken me years to extricate myself from”.
  • 2
    Muito antes de In Human Voice, em diversas ocasiões, inclusive logo nos anos seguintes à Uma voz diferente, Carol Gilligan (1986; Carol GILLIGAN; Jane ATTANUCCI, 1988) precisou esclarecer que a Ética do Cuidado pode estar associada tanto às mulheres como aos homens, como também menciona desde 1982: “sua associação com as mulheres é uma observação empírica [...]. Mas essa associação não é absoluta, e os contrastes entre as vozes femininas e masculinas são apresentados aqui para aclarar uma distinção entre dois modos de pensar [...] mais do que representar uma generalização sobre ambos os sexos” (GILLIGAN, 1982, p. 12). GILLIGAN, Carol. Reply by Carol Gilligan. Signs, v. 11, n. 2, p. 324-333, 1986. GILLIGAN, Carol; ATTANUCCI, Jane. Two moral orientations: gender differences and similarities. Merrill-Palmer Quarterly, v. 34, n. 3, p. 223-237, 1988.
  • 3
    No original: “I had joined an exploration of difference (a different voice - different from what?) with the subject of women. Are women different?”.
  • 4
    No original: “Ironically, my work came to be viewed through the lens of the very binary comparisons and hierarchies that I had set out to challenge”.
  • Como citar esse artigo de acordo com as normas da revista:
    SILVA, Matheus Estevão Ferreira da. “Ouvindo a voz diferente como uma voz humana: In a Human Voice, de Carol Gilligan”. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 33, n. 3, e106616, 2025
  • Financiamento:
    O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código 001, processo nº 88881.980569/2024-01 (Programa de Doutorado Sanduíche no Exterior - PDSE/CAPES)
  • Consentimento de uso de imagem:
    Não se aplica
  • Aprovação de comitê de ética em pesquisa:
    Não se aplica

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Ago 2025
  • Data do Fascículo
    2025

Histórico

  • Recebido
    21 Abr 2025
  • Revisado
    29 Jun 2025
  • Aceito
    03 Jul 2025
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