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Os quatro erros de Santa Teresa: reflexões para uma escrita mística feminista

Santa Teresa’s Four Errors: Reflections for A Feminist Mystical Writing

Los cuatro errores de Santa Teresa: reflexiones para una escrita mística feminina

Resumo:

Neste ensaio, proponho uma reflexão, a partir da experiência dos erros e da errância, acerca da escrita mística de Santa Teresa d’Ávila, em articulação com a proposta de Teologia Feminista e com as compreensões do divino resultantes dessa reflexão. No texto teresiano, destaco que a tomada de posição crítica do lugar ocupado pela mulher passa por uma relação: com a ortografia; com a condição da mulher frente a uma instituição patriarcal e masculina; com uma imagem de Deus para além do masculino e do feminino; e com uma compreensão vivencial do corpo como realidade humana e afirmativa. Com isso, pretendo afirmar que a experiência mística, conforme, mas não exclusiva à Santa Teresa, pode se dar como uma consciência crítica acerca do lugar socioinstitucional e da significação da mulher.

Palavras-chave:
escrita; mística; teologia feminista; Santa Teresa d’Ávila

Abstract:

The essay proposes a reflection, based on the experience of error and wandering, about Santa Teresa d’Ávila’s mystical writing, in conjunction with the proposal of Feminist Theology and with the comprehension of the divine resulting from this reflection. In the teresian text, we highlight that the taking of critical position in the place occupied by women involves a relationship: with orthography; with the condition of women facing a patriarchal and male institution; with an image of God beyond the masculine and the feminine; and with an experiential comprehension of the body as affirmative human reality. Thus, we intend to affirm that the mystical experience, according to, but not exclusively to Santa Teresa, can be given as a form of critical awareness about the socio-institutional place and the significance of women.

Keywords:
Writing; Mystic; Feminist Theology, Santa Teresa d’Ávila

Resumen:

Proponemos una reflexión, desde la experiencia de los errores y del deambular, acerca de la escrita mística de Santa Teresa d’Ávila, em articulación com la propuesta de la Teologia Feminista y com las compreensiones de lo divino que resultan de esta reflexión. En el texto teresiano, ressaltamos que el posicionamiento crítico del lugar ocupado por la mujer pasa por uma relación: con la ortografía; con la condición de la mujer ante uma institución patriarcal y masculina; con uma imagen de Dios mas allá de lo masculino y feminino; e con una comprensión experiencial del cuerpo como una realidad humana y afirmativa. Con eso, pretendemos afirmar que la experiencia mística, conforme, pero no exclusiva a Santa Teresa, puede se dar como una conciencia crítica sobre el lugar social e institucional, y la significación de la mujer.

Palabras-clave:
escrita; mística; teología feminista; Santa Teresa d’Ávila

Como não pode compreender o que entende, é não entender entendendo.

(Santa Teresa D’ÁVILA, 2010D’ÁVILA, Santa Teresa. Livro da vida. Tradução de Marcelo Musa Cavallari. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2010., p. 165)

Introdução: antes do erro, errar

Acerca da concessão, pela autoridade eclesiástica, do título de doutora à Santa Teresa d’Ávila, sabe-se que, em 27 de setembro de 1970, o papa Paulo VI declarou-a - no início de sua homilia, aliás, ele diz: “Nós conferimos, ou melhor, Nós reconhecemos o título de Doutora da Igreja a Santa Teresa de Jesus” (Papa PAULO VI, 1970PAULO VI. “Proclamação de Santa Teresa de Jesus Doutora da Igreja”. Homilia do Papa Paulo VI. Santa Sé. Vatican, 1970. Disponível em Disponível em http://www.vatican.va/content/paul-vi/pt/homilies/1970/documents/hf_p-vi_hom_19700927.html . Acesso em 08/02/2021.
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) - a primeira de quatro doutoras - as outras, S. Catarina de Sena, em 04 de outubro de 1970, também pelo mesmo papa, S. Teresa de Lisieux, a Teresinha do Menino Jesus, em 19 de outubro de 1997, por João Paulo II, e S. Hildegarda de Bingen, em 07 de outubro de 2012, por Bento XVI. São quatro doutoras, frente a 32 doutores.

Os varões, como se vê, seguem determinantes nas histórias de acertos. Os erros pertencem às mulheres, aos não varões. Ou quase.

Tal desigualdade nos indica a contradição entre um discurso, aqui exemplificado pelo religioso, que se quer inclusivo e fraternal, e a prática institucional em que ele se insere, que exclui mulheres das posições de reconhecimento, também o simbólico. Contradição que, segundo Forcades, está na origem de qualquer reflexão crítica, também da Teologia Crítica Feminista: uma contradição, a um só tempo vivencial - pois é vivida no corpo e na existência - e intelectual -, pois pode conduzir à reflexão (Teresa FORCADES, 2011FORCADES, Teresa. La teología feminista en la historia. Tradução de Julia Argemí. Barcelona: Fragmenta, 2011. ) com buscas à denúncia e à transformação da realidade. Denúncia e desejo de transformação que, ainda conforme Forcades, se processa da experiência de contradição que é pessoalmente vivenciada, passando por um posicionamento pessoal e, ulteriormente, institucional (p. 19-20). Santa Teresa, por certo, não passou imune a tais vivências, reflexões e lutas por mudanças, visto que as primeiras convocam as segundas e impelem as terceiras - ela procurou, inclusive, manter os Carmelos livres da interferência dos padres, autonomia conventual que, logo após sua morte, soçobrou frente às investidas dos superiores (Michel de CERTEAU, 2015CERTEAU, Michel de. A fábula mística. Tradução de Abner Chiquieri. Rio de Janeiro: Forense, 2015. v. 1.). Teresa, portanto, errou como forma de resistir e de responder.

Teresa errou -- talvez essa seja uma das marcas de sua experiência mística. Experiência que, aqui, antes que uma vivência religiosa específica, tomamos como um modo de falar, um uso da língua, via escrita, que, ao testemunhar aquilo que ultrapassa os limites do sentido, dá notícias de outros modos de satisfação passíveis de encontrarem, no registro escrito, não uma hermenêutica, mas uma maneira de intensificação de suas ambiguidades e de seu gozo, e que tem, no corpo, seu lugar de realização. A mística, pois, como uma intensa poética do corpo e do não sentido, que pode encontrar em vocábulos singulares, tais como Deus, uma tentativa de dizer que, por sua vez, não esgota a intensidade do experimentado.

Aqui, toca-me falar dos erros de Santa Teresa, dentre os quais, enumero quatro. Por ora. Sobre o “erro”, substantivo masculino, sublinho que tem, pelo menos, duas significações das quais me aproprio e que, por isso, as considero determinantes no título, como pro-vocação in-vocante. Invocação na qual Teresa, permitam-me a intimidade, é a figura mirada, e este texto uma pequena seta de con-sideração, uma seta de-siderata: sim, sideradas na imensidão mais imensa, no regaço do infinito, no desejo da poesia, poderia acrescer, e no abraço de ambos.

Do erro, como dizia, chegamos a error, -ris, no latim: é desacerto, engano suscetível de condenação, falta - também moral. Também o é a errância, a destinação errante dos peregrinos, como a escrita, gesto que assume o risco do erro e o de se perder. Então, abordar os erros de Teresa pode ser uma aproximação dos perigos de heresia que, como a vários, assombraram livros e autora - a exemplo dos períodos em que sua obra foi investigada pelos eclesiásticos, e que, passando pelo crivo dessa censura, conheceu o caminho da publicação, ao contrário de outros que, como o Espelho das almas, o livro do amor e do Longeperto, da beguina Marguerite Porete, foi preservado até nossos dias graças ao apagamento de sua autoria - terrível gesto para salvar os livros das chamas, as mesmas que aniquilaram a vida de sua autora (Faustino TEIXEIRA, 2008TEIXEIRA, Faustino. “Apresentação”. In: PORETE, Marguerite. O espelho das almas simples e aniquiladas e que permanecem somente na vontade e no desejo do Amor. Tradução de Silvia Schwartz. Petrópolis: Vozes, 2008. p. 17-29.). Além disso, sob os critérios de uma certa moralidade cristã, que nutre uma desesperada vontade de salvação das almas e que, à custa dessa salvação, desinveste na vida e não se dedica à luta contra todas as formas de injustiça, é preciso que eu diga: de fato, Santa Teresa está errada. Ao menos, nos elementos que aqui elencarei.

Há, pois, esse erro. Mas também há o erro dos peregrinos, dos errantes, dos que, vagando, conhecem o risco e a vida que o inclui como aposta de-siderada. Conhecem os lugares encruzilhados e, em qualquer e em todos os lugares, não fixam morada:

Onde é minha morada? Nem eu, nem tu lá estamos.

Qual o fim encontrado? Onde nada encontramos.

Como prosseguir e o que fazer por certo?

Ultrapassando Deus, entrar pelo deserto (I,7) (Angelus SILESIUS apud Dora Ferreira da SILVA; Hubert LEPARGNEUR, 1986SILVA, Dora Ferreira da; LEPARGNEUR, Hubert. Angelus Silesius: a mediação do nada. São Paulo: T. A. Queiroz, 1986., p. 5).

Tais versos seriam seu paradigma. São os transeuntes, não obstante, todos o sermos, a cada vez e por vezes, também no pensamento e na escrita que, se não se arvoram numa sistematização desesperada, erram e erram, tentam, se arriscam, retornam e avançam. Por errâncias.

Alguns escritores são dessa comunidade: dos errantes. Escritoras, mais particularmente, como Teresa, a errante entre as fundações de carmelos descalços, errante de faltas: “por minha pouca memória, creio, omitirei muitas coisas bem importantes e direi outras que poderia escusar. Em suma, mostrarei em tudo meu pouco engenho e saber, e também a falta de vagar com que escrevo” (Santa Teresa de JESUS, 1956JESUS, Santa Teresa de. As fundações. Tradução das Carmelitas Descalças do Convento de Santa Teresa do Rio de Janeiro. Petrópolis: Vozes, 1956. (Obras completas de Santa Teresa de Jesus, tomo II), p. 9). No vagar de sua escrita, pouca memória e muito desejo. E a falta de vagar, o vagar pelas faltas, a errância mais íntima de quem escreve. A escrita, pois, também se dá, nalgumas experiências, como um labor errante - que erra e vaga, erros atravessando erros. Entender não entendendo, por certo, também se faz de erro e falta - enfraquecido todo conteúdo moral - e, em seu vagar, a escrita parece ser uma trajetória de, frente à espessura da Verdade como univocidade e concordância, fazer ver o vazio em que estão entregues as coisas, o vazio que é próprio delas. E escrever, este modo de a-bordá-las abrasadas, para permanecer no vocabulário de nossa madre. Pois, se “a verdade da literatura estaria no erro do infinito” e a “errância, o fato de estarmos a caminho sem poder jamais nos deter, transforma o finito no infinito” (Maurice BLANCHOT, 2005BLANCHOT, Maurice. O livro por vir. Tradução de Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Martins Fontes, 2005., p. 136-137), o erro da escrita é uma forma de cura para a língua. No que tange à Santa Teresa, são quatro os erros, ou as curas, testemunhadas por sua escrita, é certo. Deles, delas, agora me ocupo.

Erro um: ortografia

Em primeiro lugar, Teresa erra sobre a língua dos varões em sua “tendência a teorizar [...] num princípio rígido” (Hans Urs von BALTHASAR, 1993BALTHASAR, Hans Urs von. Teodramática 3: Las personas del drama: El hombre en Cristo. Tradução de Eloy Bueno de la Fuente e Jesús Camarero. Madrid: Ediciones Encuentro, 1993., p. 272, tradução minha). Para algumas mulheres escritoras, há rigor, não rigidez, e rigor não apenas naquilo que se dizem e escrevem, mas no modo como o fazem: “esclareceu-me Deus a inteligência, umas vezes com palavras, outras sugerindo-me o modo de me exprimir” (JESUS, 1961JESUS, Santa Teresa de. Livro da vida. Tradução das Carmelitas Descalças do Convento de Santa Teresa do Rio de Janeiro. Petrópolis: Vozes, 1961b. (Obras completas de Santa Teresa de Jesus, tomo I (b))b, p. 133), ela escreve, no Livro da vida. O infinito, em sua instauração como infinito, alcança a pretensa espessura do finito: com 26 letras, nosso alfabeto e as suas infinitas possibilidades, escrever algumas palavras, escrever a pobreza de algumas palavras. Como Deus, nesse uso da língua que chamamos mística, avança sobre a semântica dos amantes e é a própria presentação, a sua e a de um pedido: se há um modo de o exprimir, a mística, como escrita, o encontra, ou inventa, não havendo, entre as experiências, diferença, mas uma vertigem, a do dizer o que não se pode numa língua que, agora há pouco, inexistia, e, já agora, é insuficiente.

Quando estrangeira à língua, Teresa a escreve pela ortografia do som; tal qual escuta (John Michael COHEN, 2010COHEN, John Michael. “Introdução”. In: D’ÁVILA, Santa Teresa. Livro da vida. Tradução de Marcelo Musa Cavallari. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2010. p. 15-28. ), registra pelo ouvido, como uma forma de obedecer: ob-audire, etimologicamente, escutar atentamente para, talvez, des-obedecer. Escreve de ouvido a língua da autoridade, o latim, e o faz no trajeto do erro, como na citação do Sl 101,8, em que registra: “Vigilavi ed fatus sun sicud passer solitarius yn tecto”, quando o ortograficamente aceito seria: “Vigilavi et factus sum sicut passer solitarius in tecto”: “Vigiava e fui feito como um pássaro solitário no teto”. Se, por um lado, tal erro indica a ignorância de Teresa acerca do latim, por outro, é um gesto de desobediência à língua oficial, da Igreja e dos padres - pois, certamente, ela teria acesso a uma versão da vulgata - e, por ainda outro, marca a invenção de sua língua mística através do seu corpo: seu modo de dizer em pedaços e em exercício de erros, reconhecendo, em si, aquilo que, de ouvido, escrevera: “E assim me lembro desse verso, então, que parece que o vejo em mim” (D’ÁVILA, 2010D’ÁVILA, Santa Teresa. Livro da vida. Tradução de Marcelo Musa Cavallari. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2010., p. 181).

O verso, qualquer que seja ele, gravado no corpo, é o erro que macula a língua oficial, da autoridade, dos varões que, não é preciso afirmar, já no tempo teresiano, são os que têm o direito à palavra. Desobedecê-la, por vias indiretas, como num latim incorreto, ou por vias diretas, na con-frontação decidida: eis a tarefa de Teresa.

Erro dois: mulher numa sociedade de homens

O seu segundo erro, conforme registrado na primeira versão de Caminho de perfeição, no chamado manuscrito del Escorial - anterior a 1567, é o manuscrito teresiano mais antigo conservado - em que encontramos traços de um texto absolutamente frontal:

[...] Não aborrecestes, Senhor de minha alma, quando andastes no mundo, as mulheres; antes, sempre favorecestes com muita piedade e encontrastes muito amor e mais fé nelas do que nos homens [...] Não basta, Senhor, que o mundo nos encurrale... que não possamos fazer nada por vós em público e que ousemos falar algumas verdades que choramos em segredo, como se não houvesse de ouvir nossa petição tão justa; não o creio, Senhor de bondade e justiça, pois sois juiz justo e não como os juízes do mundo, para os quais - como filhos de Adão e, enfim, todos homens - não há virtude de mulher que não tenham por suspeita (Santa Teresa de JESUSJESÚS, Santa Teresa de. “Camino de perfección (Codice del Escorial)”. Congregação para o clero. Clerus, [s.d.]. Disponível em Disponível em http://www.clerus.org/bibliaclerusonline/pt/e1o.htm . Acesso em 22/09/2020.
http://www.clerus.org/bibliaclerusonline...
, [s.d.]. Tradução minha).

O trecho, Santa Teresa o apagou da versão que, postumamente, em 1589, foi publicada - ela morrera em 1584. Nessa versão, lemos: “nem aborrecestes, Senhor, as mulheres quando andastes no mundo, antes as favorecíeis com muita piedade” (JESUS, 1951JESUS, Santa Teresa de. Caminho de perfeição. Tradução das Carmelitas Descalças do Convento de Santa Teresa do Rio de Janeiro. Petrópolis: Vozes, 1951. (Obras completas de Santa Teresa de Jesus, tomo III), p. 19). Destaco, da versão não publicada, dois elementos. O primeiro, relativo ao modo de dizer - modo que, como lemos, é inspirado na escolha de palavras -, ao tom de prece, o costumeiro na poética teresiana: uma poética do espontâneo, de uma expansiva intimidade, numa língua que torna, de algum modo, indireta a discursividade: em direção a Cristo, acusa a opressão que as mulheres sofrem. O texto de Teresa, por um lado, situa-se na zona de uma escrita dedicada ao impossível de escrever que se escreve, apontando para tal impossibilidade na ponta de suas penas: frases simples e curtas, um tom coloquial de alguém que está próximo e se dirige a vários interlocutores (Antonio SICARI, 2003SICARI, Antonio. “Teresa de Jesus (Santa)”. In: BORRIELO, Luigi; CARUANA, Edmundo; DEL GENIO, Maria Rosaria; SUFFI, Nicola. Dicionário de mística. Tradução de Benoni Lemos, José Maria de Almeida, Silva Debetto Cabral Reis e Ubenai Lacerda Fleuri. São Paulo: Paulus, 2003. p. 1013-1015.) (Deus, os padres que ordenaram a escrita, as irmãs que, de certo, teriam acesso ao texto, também os clérigos e inquisidores que julgariam a ortodoxia daquilo que continham). Não escrevendo para si, tanto que não corrige e parece escrever de um impulso; assim, são frequentes as expressões “como direi agora”, “disse mal”, “como direi depois”, “risque o senhor isso que disse, se lhe parecer bem, e considere como uma carta para si” (D’ÁVILA, 2010D’ÁVILA, Santa Teresa. Livro da vida. Tradução de Marcelo Musa Cavallari. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2010., p. 152).

Ler Teresa aproxima-nos de sua voz, falada na intimidade da vida conventual, na clausura ou no locutório; leio-a hoje, e não sou leitor, mas sua irmã de hábito no hábito de escrever. O desejo vira o hábito que veste o corpo:

Teresa se põe a falar escrevendo, a escrever falando. Texto oral, com efeito, riscado por escapadas e rupturas, cortado de impaciências [...] e escrito em letras separadas sem fio cheio nem desligado [...], lançadas com rapidez sobre o papel como pedras arrancadas umas após as outras do silêncio do corpo (CERTEAU, 2015CERTEAU, Michel de. A fábula mística. Tradução de Abner Chiquieri. Rio de Janeiro: Forense, 2015. v. 1., p. 304).

Nesse particular, Teresa fala, como a sua irmã, da situação das mulheres: sempre sob suspeita, depreciadas pelos homens que, à diferença do amado, constantemente as aborrecem, as encurralam - “Não basta, Senhor, que o mundo nos encurrale”. E as aborrecem e encurralam, por vezes, de modo literal. Caladas, impedidas de usar sua viva voz para falar dos amores e de suas experiências, mesmo com Deus - “que não possamos fazer nada por vós em público e que ousemos falar algumas verdades que choramos em segredo” - afinal, Teresa só escreveu porque autorizada pelos proprietários da palavra. Cabe a elas, a nós, como a Teresa, “de palavra ou por escrito, sua fala era um hábito indomável, rebelde à menor pressão externa” (Ramon Menendez PIDAL, 1987PIDAL, Ramon Menendez. “El estilo de Santa Teresa”. In: JESUS, Santa Teresa de. Obras completas. Madrid: Aguilar, 1987. p. 35-49., p. 40), escrever obedientes ao desejo de escrever, por isso, rebeldes. Haja vista que, mesmo na versão autorizada, permanece a afirmação: “não aborrecestes, senhor [...]”, como a dizer que, já agora, quando o senhor não anda pelo mundo - “não o creio, Senhor de bondade e justiça, pois sois juiz justo e não como os juízes do mundo” -, mas o faz institucionalmente seu séquito masculino - “para os quais - como filhos de Adão e, enfim, todos homens - não há virtude de mulher que não tenham por suspeita” -, há quem as aborreça, não apenas via o mandato da moralidade, comportamental e judicativa, misógina, mas também pelo impedimento de falar.

Do modo de dizer, da escolha do tom e das palavras, este é o segundo elemento do erro, em intrínseca relação com o primeiro: a ousadia de uma posição crítica, na escrita, a respeito do lugar da mulher. Acerca disso, outra Teresa, dos nossos tempos, diz com precisão:

Os escritos de santa Teresa deixam clara sua plena consciência do problema das mulheres tal e como o define o feminismo atual:

a. o sistema social, cultural e religioso preponderante restringe as mulheres ao âmbito privado e lhes dificulta/impede o acesso ao âmbito público;

b. isto vai contra a vontade de muitas mulheres e de seus dotes e inclinações naturais, e é, portanto, imoral;

c. isto é uma desvantagem para o conjunto da sociedade; e

d. Deus não quer nem abençoa isso, por muito que preguem seus representantes na Terra

Santa Teresa amava às mulheres, cria em suas possibilidades, e soube criar laços de solidariedade e cumplicidade que perduraram além de sua vida (FORCADES, 2011FORCADES, Teresa. La teología feminista en la historia. Tradução de Julia Argemí. Barcelona: Fragmenta, 2011. , p. 73, tradução minha).

Mas “não basta” que os homens as aborreçam, as encurralem, as silenciem: para além de sua morte, os laços que uniram Teresa a suas irmãs persistem na escrita que, hoje, lemos. E, nesta afirmação, ressoa a sua escrita como denúncia e como crítica e, sobretudo, como uma esperança alicerçada na leitura do mundo.

Erro três: corpo amado

Em Teresa, leio a intensidade de uma voz que, no modo e no pensamento, intima, aqui, a falar de um lugar alvo de silenciamentos. Também, e sobretudo, leio alguém que fala do amor e do ser amada, alguém que lê o amor desde a sua posição de amante e de amada: lê o Cântico dos cânticos. Esse o seu terceiro erro.

Do Cântico, seguimos o começo do poema, o primeiro verso. As suas traduções. O texto diz: “Beija-me/ com os beijos da tua boca/ o teu amor é melhor do que o vinho”, e nós transcrevemos: “Que ele me beije com os beijos de sua boca! São melhores que o vinho teus amores” (Ct. 1,2 In: BÍBLIA SAGRADA TRADUÇÃO DA CNBB, 2002BÍBLIA SAGRADA TRADUÇÃO DA CNBB. São Paulo: Loyola, 2002.); “Béseme de besos de su boca: porque buenos (son) tus amores mas que el vino” (Ct. 1,2 In Fray Luís de LEÓN, 1985LEÓN, Fray Luís de. Cantar de cantares. Buenos Aires: Hyspamérica, 1985. (Coleção Jorge Luis Borges - Biblioteca Personal), p. 35); “Desses-me os beijos da tua boca as tuas carícias Iluminação maior do que a do vinho” (Ct. 1,2. In: Fiama Hasse Pais BRANDÃO, 1985BRANDÃO, Fiama Hasse Pais. Cântico maior, atribuído a Salomão. Lisboa: Assírio & Alvim, 1985., p. 15); “Ele me beijará/ com beijos de sua boca/ pois melhor teu amor/ que o sabor do vinho” (Ct. 1,2 In: Haroldo de CAMPOS, 2004CAMPOS, Haroldo de. Éden: Um tríptico bíblico. São Paulo: Perspectiva, 2004., p. 113); “Béseme el Señor con el beso de su boca, porque más valen tus pechos que el vino, etc.” (Ct. 1,1 In: Santa Teresa de JESÚS, 2016JESÚS, Santa Teresa de. “Los ‘conceptos del amor de Dios’”. In: JESÚS, Santa Teresa de. Obras completas. Cambridge-UK: Greenbooks Editore, 2016 [ebook]., p. 1268): “Beije-me o Senhor com o beijo de sua boca, porque melhores são os teus peitos do que o vinho” (Ct. 1,1 InJESUS, 1961JESUS, Santa Teresa de. “Conceitos do amor de Deus”. In: JESUS, Santa Teresa de. Opúsculos. Tradução das Carmelitas Descalças do Convento de Santa Teresa do Rio de Janeiro. Petrópolis: Vozes, 1961a. p. 7-59. (Obras completas de Santa Teresa de Jesus, tomo V (a))a, p. 9). Amor, iluminação, entre tradutores e poetas; peitos, pela pena de uma mulher enamorada, que lê:

Tem me dado o Senhor, de alguns anos para cá, um gosto muito grande cada vez que ouço ou leio algumas palavras dos Cânticos de Salomão, e isto de modo tão extremado que eu, sem entender com clareza o latim em língua vulgar, me recolhia mais e tinha minha alma mais movida do que pelos livros muito devotos que compreendo; e isso é uma coisa quase comum e, ainda que me declarassem em vernáculo, eu tampouco o entenderia mais... que sem entendê-lo minha... apartar a alma de si...

Há mais ou menos dois anos me parece que o Senhor me permite entender, para meu propósito, algo do sentido de algumas palavras. E parece-me que serão para o consolo das irmãs que Nosso Senhor leva por este caminho, e até para o meu, pois algumas vezes o Senhor me dá tanto a entender que eu fico com o desejo de não esquecer, mas não tinha coragem de pôr coisa alguma por escrito.

Agora, com a opinião de pessoas a quem estou obrigada a obedecer, escreverei alguma coisa daquilo que o Senhor me dá a entender, que se encerra em palavras de que a minha alma gosta (JESUS, 1961JESUS, Santa Teresa de. “Conceitos do amor de Deus”. In: JESUS, Santa Teresa de. Opúsculos. Tradução das Carmelitas Descalças do Convento de Santa Teresa do Rio de Janeiro. Petrópolis: Vozes, 1961a. p. 7-59. (Obras completas de Santa Teresa de Jesus, tomo V (a))a, p. 70-71).

Dos amores, os vinhos, o não entender, mesmo as traduções, o não entender alastrado com o gosto muito grande que o encontro com as palavras manifesta - sendo difícil, se não impossível, saber se ela teve contato com a tradução de Luís de Léon, tradução poética e acusada de herética, pelo muito erotismo e por sua versão vernácula. O entender, para nossa madre Teresa, parece ter relação com o escrever; ou seria o contrário? Escrever como o gesto que pode abrir corpo e desejo para a memória de que o entendimento é apenas uma parte, e pouca, quase nada, e, ainda assim, muita, a parte mais preciosa: falar daquilo que a alma gosta, a saber, os seios inebriantes de Deus. Do não entender, entre a impossibilidade de falar e de calar, nasce a obediência à determinação do texto: crise na relação com a linguagem (Roland BARTHES, 1973BARTHES, Roland. Le plaisir du texte. Paris: Seuil, 1973.) - “ainda que me declarassem em vernáculo, eu tampouco o entenderia mais... que sem entendê-lo minha... apartar a alma de si...”, assim: entendê-lo sem entendê-lo, fragmento a fragmento, erro a erro.

Em “sus pechos”, Teresa parece escrever pelo corpo, pelo ouvido, como no verso que vê em seu corpo e, como em latim, escrever de ouvido: “e assim me lembro desse verso, então, que parece que o vejo em mim” (D’ÁVILA, 2010D’ÁVILA, Santa Teresa. Livro da vida. Tradução de Marcelo Musa Cavallari. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2010., p. 181), escrever de ouvido, como faz em relação ao latim (COHEN, 2010COHEN, John Michael. “Introdução”. In: D’ÁVILA, Santa Teresa. Livro da vida. Tradução de Marcelo Musa Cavallari. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2010. p. 15-28. ). Ouvir o peito, escrever o peito: na pena de Teresa, assim como na de alguns antigos, pois é de uma antiga tradução que o recebe, os amores e as carícias são também os peitos: da Vulgata: “a palavra hebraica usada, dependendo de como seja lida, tanto pode representar ‘o ser amado’ (dod) como ‘seio’ (dad). A Septuagésima e a Vulgata traduzem por “seio”. ‘Quia meliora sunt ubera tua vino’ é a tradução de São Jerônimo” (Geraldo Holanda CAVALCANTI, 2005CAVALCANTI, Geraldo Holanda. Cântico dos cânticos: um ensaio de interpretação através de suas traduções. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2005., p. 250): os peitos do amado, de Deus, os seus seios. Tais peitos, ora são palavra que nomeia os perfumes inebriantes, unguentos mais aromáticos que todos os perfumes, que brotam do corpo do amado e que são sentidos por quem dele se aproxima (ORÍGENE, 1995ORÍGENE. Omelie sul cantico dei cantici. Tradução de Maria Ignazia Danieli. Roma: Cittá Nuova Editrice, 1995.) - leitura em relação direta com “o discípulo, então, recostando-se sobre o peito de Jesus, perguntou: ‘Senhor, quem é?’” (Jo. 13,25 In: BÍBLIA SAGRADA TRADUÇÃO DA CNBB, 2002), versículo que guia a linhagem daqueles que experimentam Deus como intimidade amorosa -, ora são palavras dispostas para múltiplas leituras: “o autor não nos diz de quem são essas palavras e nos deixa em liberdade para as atribuir em nosso comentário a quem melhor se adaptem” (SAN BERNARDO, 2014SAN BERNARDO. Sermones sobre El Cantar de los cantares. Tradução de Iñaki Aranguren e Mariano Ballano. Madrid: BAC Biblioteca de Autores Cristianos, 2014., p. 95, tradução nossa).

O amado e seus peitos, a respeito do qual errou, escrevendo versos “sospechos”, suspeitos versos que arfam de peito a peito: “sus pechos”. Versos, “sus pechos”, versos “sospechos”. Suspeitos, os peitos que arfam na pena de uma mulher:

Conta o mesmo Padre [Padre J. Graciano da Madre de Deus, então primeiro Provincial dos Carmelitas Descalços] que Santa Teresa escrevera um livro sobre o Cântico dos Cânticos, mas um Confessor, com o fim de provar-lhe a obediência, mandou-lhe que o lançasse ao fogo, alegando não serem assuntos esses para mulheres, e sim para teólogos e letrados. Obedeceu logo a Santa; mas havendo uma de suas filhas tirado cópia deste pequeno trabalho, chegou ele até nós. Está completo, como se vê pelo princípio e pelo fim, faltando-lhe apenas algumas linhas no Prólogo por estar estragada no original a primeira página (JESUS, 1961JESUS, Santa Teresa de. “Conceitos do amor de Deus”. In: JESUS, Santa Teresa de. Opúsculos. Tradução das Carmelitas Descalças do Convento de Santa Teresa do Rio de Janeiro. Petrópolis: Vozes, 1961a. p. 7-59. (Obras completas de Santa Teresa de Jesus, tomo V (a))a, p. 7, nota 1).

Do fogo às mãos ardentes de uma de suas filhas, o texto resiste; resiste não todo e débil, com falhas, apagamentos, com erros, “sus pechos”. Amor, iluminação, os peitos: do afeto, passando pela clarificação dos sentidos, chegando ao corpo, a não todo o corpo, senão que a uma parte revestida de erotismo. Peitos mais deliciosos que o vinho, outro modo de escrever que a experiência com esse amado é ponto de atravessamento entre entendimento, ou pensamento, e gozo, que tem lugar no corpo. Leitura suspeita, em perigo e ordenada ao fogo: um deus que oferece seus peitos, vinho dos vinhos, transe dos transes: assunto para amantes: “quando esse Esposo riquíssimo a quer enriquecer e regalar mais, converte-a tanto em si que ela, como alguém que desmaia a um grande prazer e contentamento, tem a impressão de estar suspensa naqueles braços divinos e encostada àquele sagrado lado e àqueles peitos divinos”, gozo dos gozos, “ela não sabe mais que gozar, sustentada por aquele leite divino que o Esposo vai criando para ela, melhorando-a para poder regalá-la” (JESUS, 1961JESUS, Santa Teresa de. “Conceitos do amor de Deus”. In: JESUS, Santa Teresa de. Opúsculos. Tradução das Carmelitas Descalças do Convento de Santa Teresa do Rio de Janeiro. Petrópolis: Vozes, 1961a. p. 7-59. (Obras completas de Santa Teresa de Jesus, tomo V (a))a, p. 110-111). “Não sabe mais que gozar”, “no sabe más de gozar”; é ainda a própria Teresa quem nos diz: “eu só podia pensar em Cristo como homem” (D’ÁVILA, 2010D’ÁVILA, Santa Teresa. Livro da vida. Tradução de Marcelo Musa Cavallari. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2010., p. 95); “nos afazeres e perseguições e tormentos, quando não se pode ter tanta quietude, e em tempo de secura, é muito bom amigo Cristo, porque o vemos Homem e o vemos com fraquezas e tormentos, e faz companhia” (D’ÁVILA, 2010, p. 204); e:

Via eu que o Senhor me estava falando: olhava aquela grande formosura e notava a suavidade - por vezes o rigor - das palavras daquela formosíssima e divina boca. Desejava em extremo perceber a cor de seus olhos e saber a sua altura para o dizer depois, mas jamais o mereci, nem há esforço que o consiga; antes tudo se desvanece diante de minha vista. Bem vejo, algumas vezes, que me olha com piedade; mas tem tanta força este olhar, que o não pode sofrer a alma e fica em tão subido arroubamento que, para mais gozar do Senhor, perde esta formosa vista. Aqui, pois, não há querer e não querer (JESUS, 1961JESUS, Santa Teresa de. Livro da vida. Tradução das Carmelitas Descalças do Convento de Santa Teresa do Rio de Janeiro. Petrópolis: Vozes, 1961b. (Obras completas de Santa Teresa de Jesus, tomo I (b))b, p. 227).

Perder de vista para tornar a ver, mirar o desvanecimento do que não cabe, talvez, na língua que dicotomiza os corpos. Os seios de Deus, o leite do divino esposo, o esposo como tendo um corpo maravilhoso que não cabe na vista: a errância de uma experiência cujas palavras inspiradas para a dizer transparecem que o amado de que se trata, na experiência de Teresa, é um amado para além do binarismo masculino/feminino, “más allá” dos gêneros que, como tal e apesar da cultura/social/simbólica afirmar a peremptória verdade, apoiada na biologia, não cabe na viseira de uma linguagem que, sabemos, lê e inventa, nessa leitura, um mundo de pares - quando, na vida, é do ímpar que se trata, da singularidade, do um a um. O amado, na experiência mística de Teresa e na sua irrupção corporal e poética, irrompe numa linguagem já dada e rompe com suas diretrizes de gênero, oferecendo-se como um corpo de delícias contrafeito ao corpo rígido dos varões aflitos pela Verdade de sua autoridade. Deus, então, “nem um De*s patriarcal nem uma De*sa matriarcal, nem o Masculino nem o Feminino” (Elisabeth Schüssler FIORENZA, 2009FIORENZA, Elisabeth Schüssler. “Mariologia, ideologia de gênero e discipulado de iguais”. Tradução de Marie Krahn. In: DOMEZI, Maria Cecília; BRANCHER, Mercedes. Maria entre as mulheres. São Leopoldo: CEBI, 2009. p. 27-54., p. 48),1 1 A importante teóloga feminista Elisabeth Schüssler Fiorenza afirma, a respeito do uso do [*] em De*s e De*sa: “Feministas usam ou teologia (a partir do grego masculino theos = Deus) ou tealogia (a partir da forma feminina thea = Deusa). Para superar esta divisão e para indicar que o divino não é masculino nem feminino, eu escrevo De*s [G*d, no original] com um asterisco para chamar a atenção dos/as leitores/as para o problema” (FIORENZA, 2009, p. 27, nota 1). aponta para um corpo poético e ético, já o diz a palavra, com incidência na reflexão sobre o lugar inferiorizado das mulheres, na crítica sobre a superioridade dos homens e na denúncia sobre a exclusão dos outros.

Embora constantemente expresso numa linguagem do gênero masculino (Ivone GEBARA, 2017GEBARA, Ivone. O que é teologia feminista. São Paulo: Brasiliense, 2017. (Coleção Primeiros Passos) [ebook].), esse corpo parece-nos necessário, para uma linguagem e experiência religiosa que seja um labor de libertação - ou cristificação, para dizer em termos teológico-cristãos:

Se a feminilidade e a masculinidade existem em Deus e, portanto, têm uma característica essencial que perdura além de nossa vida histórica, então Cristo a mim, como mulher, não me salvou, porque não assumiu essa parte fundamental de mim que seria a feminilidade. Se, ao contrário, entendemos que o feminino e o masculino, que todas as características que dividem a humanidade, que nos colocamos como etiquetas de identidade mas que não são nossa identidade última, que são uma identidade parcial, são reais mas transcendíveis, então a coisa muda. Então não tenho que depreciar o corpo para chegar à igualdade ou para falar de minha cristificação como minha plenitude antropológica.

Quando digo cristificação, já se sabe que não me cristifico de hoje para amanhã, certo!? Isso, na antropologia teológica, é uma realidade escatológica: minha cristificação plena se dará por graça, se vai dando já por graça, e vai se dar plenamente no momento dessa plenitude escatológica. Portanto, no momento vamos viver com algo que vamos tentar descrever entre todos, e que cada cultura e cada geração tem que explicar como melhor saiba, mas que isso que chamamos feminino e masculino é algo com o que vamos coexistir, com o que vamos conviver. Mas é muito diferente pensar o feminino e o masculino como categorias fixas (que se eu que sou mulher tenho que ser feminina e se é um homem tem que ser masculino), a pensá-lo, dizendo: “melhor que eu entenda que em meu ser feminino, em meu ser mulher, talvez vou ver características que sejam distintas de outro que se define de outra maneira, mas eu vou tentar me relacionar com o outro desde essa categoria de gênero ou vou tentar transcender essa categoria e chegar ao outro desde sua identidade de peça única de concreção do amor de Deus na terra” (FORCADES, 2014FORCADES, Teresa. “¿Existe lo feminino en Dios?”. Teresa Forcades página web oficial, 2014. Disponível em Disponível em https://teresaforcades.files.wordpress.com/2014/07/lo-femenino-en-dios.pdf . Acesso em 08/02/2021.
https://teresaforcades.files.wordpress.c...
, p. 23-24).

De um lado, discordo da necessidade da existência de uma plenitude antropológica, como se existisse, nalguma forma de preexistência e/ou superexistência e/ou culminância metafísica, um ideal de humanidade a ser atualizado, ideal que, livre das contingências, justifica a inocuidade das dicotomias. Algo como, talvez, afirmar que nem homens, nem mulheres, nem outres, todos somos humanos, o que, se não deixa de ser uma “verdade” necessária, não é suficiente para a discussão do respeito pelas diferenças, discussão que também invade, e o deve, o espaço das trocas sociais/simbólicas/civis. Antes, parece que tal afirmação sempre se faz presente como modo de atenuar as discussões, denunciar-lhes o despropósito, o que as converte, por vias de uso, em silenciadoras e conformistas.

Por outro lado, concordo com a inocuidade das dicotomias, com o erro que seria lhes atribuir uma existência para além da cultura/sociedade - seja esse além determinante a natureza ou a sobrenatureza -, e com o respiro que significa o seu além: a compreensão de que cada um é uma peça única, um corpo único, uma voz única.

A escrita teresiana parece nos indicar que, na experiência mística, o corpo amado de Deus, apesar de prioritária e metaforicamente ser explicitado em uma linguagem masculina, também encontra livre expressão, numa linguagem feminina, de uma erótica que, ainda que metaforicamente, indica a não sujeição de uma tal expressão aos reguladores de gênero presentes e atuantes na linguagem. É Deus, por certo, o amado de nossa madre, e ele é o divino que lhe oferece o leite de seus seios, os seios do divino abraço, do divino corpo que a ultrapassa, e aos limites binários de nossa língua. A escrita mística, aqui, seria um trabalho de romper com todos os limites linguageiros, também com os que dividem o mundo em dois grupos biologicamente estabelecidos, e que tem incidência, por vezes devastadora, sobre os corpos e seus desejos de liberdade.

Quarto erro: leve, o corpo

Nem masculino nem feminino, além do gênero, um corpo expresso na língua poética de Teresa que aqui nos interessa: um corpo de delícias, corpo de gozo e gozo no corpo, corpo de Deus e sua vulnerabilidade - pois alegria e dor são modos de padecimento que indicam que a vulnerabilidade da vida tem lugar no corpo - “não há ocasião de haver mágoa nem de padecer, porque logo vem o gozar” (JESUS, 1961JESUS, Santa Teresa de. Livro da vida. Tradução das Carmelitas Descalças do Convento de Santa Teresa do Rio de Janeiro. Petrópolis: Vozes, 1961b. (Obras completas de Santa Teresa de Jesus, tomo I (b))b, p. 233) - e são escritos por uma língua. Um corpo além dos gêneros que trava relação com o corpo de uma mulher: Teresa. E é, por uma poética igualmente singular escrita, a que revela do corpo não seu peso moral, mas seu chamado à leveza do gozo e de uma língua que tenta dizê-lo.

Este o quarto erro de Teresa: tomar o corpo por leveza: “parecia que deixava o corpo tão leve que todo o peso dele tirava, e às vezes era tanto que eu quase não percebia estar pondo os pés na terra” (D’ÁVILA, 2010D’ÁVILA, Santa Teresa. Livro da vida. Tradução de Marcelo Musa Cavallari. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2010., p. 185). A irrupção do corpo de Deus, na sua amável e gozável vulnerabilidade, leva a um retorno à amabilidade e ao gozo do corpo liberto do peso - do conteúdo moral, acrescento - e isso a partir da experiência de “um prazer que não é bem de todo dos sentidos, nem bem é espiritual” (D’ÁVILA, 2010, p. 99), não totalmente corpóreo, não totalmente espiritual, mas realmente corpóreo e realmente espiritual, de alma e de corpo inteiros.

Trata-se de uma poética da verdade do corpo que goza que, além de testemunhá-lo, discute as compreensões dos “espirituais”, como aqui: “Isso de se afastar do corpóreo deve ser bom, com certeza, pois gente tão espiritual o diz. Mas, na minha opinião, há de ser estando a alma muito avançada, porque, até então, está claro que se deve buscar ao Criador pelas criaturas” (D’ÁVILA, 2010D’ÁVILA, Santa Teresa. Livro da vida. Tradução de Marcelo Musa Cavallari. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2010., p. 202). E aqui: “nós não somos anjos, ao contrário, temos corpo. Querer fazer-nos anjos estando na terra - e tão na terra quanto eu estava - é desatino. Ao contrário, é preciso ter apoio, o pensamento, para a vida normal” (D’ÁVILA, 2010, p. 203). Assim, no primeiro, o acento recai sobre uma certa ironia, acerca das posições dos “espirituais”, para quem, na melhor tradição dicotômica e sem grandes novidades, o corpo é o pesadelo de uma vida, e a fonte de seus pesadelos - ou desejo - e o progresso espiritual empurra a alma e a liberta do peso - ou pecado - do corpo. Já no segundo, nossa madre, sem palavras mitigadas, acusa que tal compreensão é desatino e não no sentido poético: o corpo, se indica a impossibilidade de ser anjo, é apoio e pensamento, suporte de delícias, vulnerabilidade e gozo, também reflexão e escrita - modo de gozo no corpo da língua e da carne - que sustenta a possibilidade de uma vida cotidiana, sem o inferno de uma moralidade que o condena por medo de suas alegrias. Vida cotidiana, por certo, pois não no meio dos poderosos, mas entre irmãs, na ceia benéfica e no canto e nos hábitos. Aí dá-se a irrupção, para Teresa, do “doce caçador [que]/ me atingiu com sua seta” (JESUS, 1961JESUS, Santa Teresa de. “Conceitos do amor de Deus”. In: JESUS, Santa Teresa de. Opúsculos. Tradução das Carmelitas Descalças do Convento de Santa Teresa do Rio de Janeiro. Petrópolis: Vozes, 1961a. p. 7-59. (Obras completas de Santa Teresa de Jesus, tomo V (a))a, p. 170).

Considerações: depois do erro, ainda errar

Acerca do lugar ocupado pelas mulheres numa sociedade e numa instituição marcadamente masculinas, uma posição crítica e transformadora. Tais elementos, marcas de uma reflexão crítica feminista, também no que tange à escrita de Santa Teresa d’Ávila; seguindo as proposições de Teresa Forcades, destacamos que, à vivência de tais complexidades corresponde uma consciência reflexiva sobre elas, igualmente marcada pela experiência mística vivenciada e pela escrita que a testemunha.

Procuramos, neste texto, refletir a partir da mística teresiana, dando destaque para quatro elementos principais: a ortografia, a condição da mulher em uma instituição masculina, a imagem de Deus para além do masculino e do feminino e a compreensão vivencial do corpo como realidade humana de afirmação do prazer.

A tais elementos denominamos erros, compreendendo seu duplo sentido: de um lado, são traços de errância próprios da experiência mística, que, antes que formar corpus doutrinal, é um lastro de significação com múltiplas implicações sobre a vida, o corpo, o cotidiano. De outro lado, podem ser, por vezes, lidos pela instituição, com seu pendor exclusivista, como erros, desacertos e equívocos frente à determinação do que é o certo, o ortodoxo. Santa Teresa, terrena mulher que erra e o escreve, dá seu testemunho como resistência, resposta, desejo de transformação.

Mais do que quatro encontraria, se por mais erros procurasse. Contudo, apraz-me ter chegado a este ponto. Se foram quatro os erros de Santa Teresa que aqui recolhi, o fiz em vistas a uma consideração simples: se erros são, por isso salvam a minha vida.

Referências

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  • 1
    A importante teóloga feminista Elisabeth Schüssler Fiorenza afirma, a respeito do uso do [*] em De*s e De*sa: “Feministas usam ou teologia (a partir do grego masculino theos = Deus) ou tealogia (a partir da forma feminina thea = Deusa). Para superar esta divisão e para indicar que o divino não é masculino nem feminino, eu escrevo De*s [G*d, no original] com um asterisco para chamar a atenção dos/as leitores/as para o problema” (FIORENZA, 2009, p. 27, nota 1).
  • Como citar esse artigo de acordo com as normas da revista:

    SAMUDIO, Jonas Miguel Pires. “Os quatro erros de Santa Teresa: reflexões para uma escrita mística feminista”. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 30, n. 3, e80403, 2022.
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    Não se aplica
  • Consentimento de uso de imagem:

    Não se aplica
  • Aprovação de comitê de ética em pesquisa:

    Não se aplica

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    14 Nov 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    30 Mar 2021
  • Revisado
    07 Dez 2021
  • Aceito
    08 Abr 2022
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