Conceito complexo e amplo, a “democracia”, de acordo com Norberto Bobbio, Nicola Matteucci e Gianfranco Pasquino (1998), pode ser compreendida por diferentes sujeitos ideológicos de distintas formas: para o liberalismo, o sufrágio universal configuraria o objetivo final, enquanto para o socialismo, expressaria apenas o início para a articulação de inúmeros objetivos de igualdades em um horizonte possível. No entanto, torna-se necessário, a partir da leitura realizada pela filósofa feminista Nancy Fraser (1990), reconhecermos os limites impostos à democracia na contemporaneidade, devido às novas conjunturas expressas no seio do capitalismo tardio (Ernest MANDEL, 1985).
Neste sentido, Democracia para quem? Ensaios da resistência (2023) reúne três discursos de três personalidades para pensarmos os caminhos da democracia e suas limitações: Angela Davis (1944-), professora, filósofa e ativista estadunidense, realiza suas críticas e análises a partir de uma perspectiva feminista e marxista; Patricia Hill Collins (1948-), professora de Sociologia da Universidade de Maryland, atua com o conceito de interseccionalidade para a análise das violências e desigualdades sociais; e Silvia Federici (1942-), filósofa, professora e ativista feminista que explora o papel central do trabalho reprodutivo e de cuidado, não remunerados, como um dos alicerces do capitalismo. Convidadas para participarem do debate realizado no evento “Democracia em colapso?” (2019), organizado pela Boitempo, as autoras convergem na construção da democracia como um espaço excludente, o qual, por vezes, impulsionou a organização de movimentos responsáveis por criar, o que Nancy Fraser (1990, p. 67) cunhou enquanto “contrapúblicos subalternos”.
Logo, após a apresentação do livro, realizada por Marcela Soares, encontra-se a primeira transcrição da entrevista concedida por Angela Davis. A partir do resgate de algumas mulheres negras brasileiras, como Lélia Gonzalez e Marielle Franco, a filósofa tece seu raciocínio, por meio de um apanhado histórico, argumentando que a palavra “democracia”, em sua amplitude, pode ser definida por diversos adjetivos (Angela DAVIS; Patricia COLLINS; Silvia FEDERICI, 2023), os quais mudam sua funcionalidade. Além disso, explicita o tipo de democracia pela qual se deve lutar: a democracia econômica e social.
Ainda, a filósofa acrescenta que vivemos em uma democracia capitalista, a qual fornece os meios para a participação no sistema político, porém apenas em eleições. Traçando um paralelo entre os sistemas políticos do Brasil e dos Estados Unidos, demonstra as limitações que garantem a manutenção das desigualdades. Partindo dessa perspectiva, que possui como eixo central a abolição do sistema carcerário, ela explora as formas pelas quais as hierarquias são condicionadas dentro das sociedades, levando mulheres negras e homens negros à situação do que aqui chamaremos de “subcidadania” (Jessé SOUZA, 2003, p. 229-230) - ou seja, a formalização dos direitos desacompanhada de seu acesso.
Por sua vez, Collins, centrada na análise da interseccionalidade e focalizando a experiência das mulheres negras como vetor de transformação social, propõe o rompimento do medo como tecnologia de poder e controle de Estado, exercido contra a população negra por meio das diversas violências - raciais, sexuais, físicas e psicológicas - (DAVIS; COLLINS; FEDERICI, 2023), através do empoderamento de narrativas históricas marginalizadas simbólico e materialmente. Na sequência, aborda a heterogeneidade expressa pelas pessoas negras, lembrando a impossibilidade de uma liberdade que não seja aplicada à coletividade, local em que o pensamento do feminismo negro diverge do branco, ao elaborar-se a partir de experiências profundamente marcadas pela raça, imposta pelo colonialismo.
Desenvolvendo seu argumento, a autora percorre cinco categorias centrais do pensamento feminista negro, guiando suas estratégias políticas. Aqui faz-se necessário dedicarmos algumas linhas para o estabelecimento do diálogo entre Davis e Hill Collins, de forma explícita. Ambas utilizam a ideia da interseccionalidade como determinante à maneira com a qual as pessoas irão experienciar a vida em sociedade e o acesso aos direitos civis - pensando aqui a democracia. Nesta categoria, conforme explorado pelas debatedoras e entrevistadoras, poderíamos ainda acrescer a ideia de territorialidade.
Ademais, concordam que a política formal não implica, essencialmente, o desfrute de sistemas democráticos, já que, ao pensarmos o conceito de democracia a partir da cientista política Teresa Sacchet (2016), para que fosse conferida seria necessário a ampla presença de sujeitos diversos em espaços de representação. Logo, os grupos sociais marginalizados e explorados possuem como alternativa, de acordo com Collins (2023), a criação de comunidades para a luta por políticas que irão gerir as materialidades e condições sociais necessárias à existência, antes do engajamento em demais pautas.
Por fim, Silvia Federici, ao abordar o capitalismo e a exploração do trabalho reprodutivo, percebe nos corpos de mulheres a base do acúmulo do capital e argumenta a intensificação desenfreada, no capitalismo moderno, de desigualdades sociais, impulsionadas por hierarquias que demandam a luta coletiva social para a autodeterminação no processo democrático, em que o povo participe ativamente do governo em seu benefício (DAVIS; COLLINS; FEDERICI, 2023). Realizando esta reflexão a partir do trabalho reprodutivo, Federici (2023) aborda como o domínio dos corpos reprodutores sempre foi de grande interesse ao capital, e que no interior da democracia possibilitou-se a institucionalização de violências incumbidas de controlar estes corpos.
Em um resgate histórico, a autora retorna ao período da escravização para analisar a maneira pela qual os corpos das mulheres escravizadas proporcionavam a produção de mais trabalhadores escravizados, da mesma maneira que a reprodução de mulheres livres resultava na produção de mais mão de obra assalariada, impulsionando a constituição de um exército industrial de reserva (Karl MARX, 2024) e, consequentemente, a diminuição de salários pagos pelos capitalistas. Assim, quando as esquerdas tradicionais se organizaram, ao final do século XIX e início do século XX, excluíram o trabalho reprodutivo das questões relacionadas à luta de classes, exercido por mulheres ao longo da história moderna. Esta negligência, de acordo com Federici, foi retomada por diversos movimentos sociais, os quais, inclusive, ampliaram a problemática, buscando sua raiz e seu combate na luta anticolonial. No entanto, a resistência social em temáticas como o aborto encontrou neste mesmo sistema, como contraponto, a esterilização em massa, orquestrada na segunda metade do século XX, com dois principais objetivos: o embranquecimento das populações e o temor da possibilidade de rebelião de um número elevado de trabalhadores explorados e empobrecidos (DAVIS; COLLINS; FEDERICI, 2023).
Cabe ponderar, contudo, que apesar das três entrevistadas partirem de perspectivas interseccionais e colaborarem profundamente na investigação das desigualdades sociais enquanto vetores do capitalismo, suas teorias e experiências possuem como suporte central o norte global, local no qual gestou-se o capitalismo moderno e que, inclusive, gozou de seus benefícios no pós-guerra, em contraste com países como o Brasil, que sentiu seus efeitos, de forma predatória, a posteriori. Para tanto, é crucial que seus trabalhos sejam pensados, no contexto brasileiro, levando em consideração as materialidades alteradas pelo processo colonial.
Justamente no processo colonizatório apontado, porém pouco explorado pelas autoras, está a chave para o entendimento das violências, neste caso, mais identificada pelo racismo e machismo, junto à misoginia. Ademais, vale destacarmos a fala de Collins (2023, p. 76), “[...] democracia, para mim, é um ideal. Nós ainda não a tivemos, para além de políticas informais [...]”, que encontra seus correspondentes em Davis e Federici, para refletirmos outro ponto basilar: se não há representações plurais em espaços de decisão, ou até mesmo se a população é impedida de participar destes espaços, não há como afirmarmos a existência da democracia. Não ao menos da democracia pela qual lutamos.
Em momentos políticos nos quais governos retiram direitos de cidadãos e buscam resgatar a categoria dos contratualistas modernos, onde “cidadão” é apenas o sujeito inserido na categoria cisheteropatriarcal (Carole PATEMAN, 2023), com a ascensão do conservadorismo e da extrema direita, a atualidade do texto é indiscutível. Os caminhos apresentados, pela organização coletiva e luta social, unindo as mais diversas identidades, nas três perspectivas, nos aponta uma direção possível para a alteração das realidades desiguais: a luta contínua e a conquista da autonomia para a autodeterminação democrática.
Referências
- BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de política Trad. de Carmen C. Varriale, Gaetano Lo Mônaco, João Ferreira, Luís Guerreiro Pinto Cacais e Renzo Dini. 11. ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1998.
- DAVIS, Angela; COLLINS, Patricia Hill; FEDERICI, Silvia. Democracia para quem?: ensaios de resistência Trad. de VComunicações. São Paulo: Boitempo, 2023.
- COLLINS, Patricia Hill. “Patricia Hill Collins”. In: DAVIS, Angela; COLLINS, Patricia Hill; FEDERICI, Silvia. Democracia para quem?: ensaios de resistência Trad. de VComunicações. São Paulo: Boitempo, 2023, p. 53-79.
- FEDERICI, Silvia. “Silvia Federici”. DAVIS, Angela; COLLINS, Patricia Hill; FEDERICI, Silvia. Democracia para quem?: ensaios de resistência Trad. de VComunicações. São Paulo: Boitempo, 2023, p. 80-102.
- FRASER, Nancy. “Rethinking the Public Sphere: A Contribution to the Critique of Actually Existing Democracy”. Social Text, v. 5, n. 26, p. 56-80, 1990.
- MANDEL, Ernest. O Capitalismo Tardio Trad. de Carlos Eduardo Silveira Matos, Regis de Castro Andrade e Dinah de Abreu Azevedo. São Paulo: Nova Cultural, 1985.
- MARX, Karl. O Capital Livro I: O processo de produção do capital. Trad. de Rubens Enderle, Celso Naoto Kashiura Jr. e Márcio Bilharinho Naves. São Paulo: Boitempo, 2024.
- PATEMAN, Carole. O contrato sexual Trad. de Marta Avancini. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2023.
- SACCHET, Teresa. “Questões centrais do debate sobre mulher e política no Brasil”. Revista Eletrônica de Ciência Política - RECP, v. 7, p. 7-13, 2016.
- SOUZA, Jessé. A construção social da subcidadania: para uma sociologia política da modernidade periférica Minas Gerais: Editora UFMG, 2003.
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Como citar esse artigo de acordo com as normas da revista:
FAÉ BARP, Renata Juliana; PEDRO, Joana Maria. “Entre a existência e a cidadania, quem acessa a democracia?”. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 33, n. 3, e107095, 2025.
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Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
11 Ago 2025 -
Data do Fascículo
2025
Histórico
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Recebido
20 Maio 2025 -
Revisado
01 Jul 2025 -
Aceito
03 Jul 2025
