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Além de uma tela só para si

ARTIGOS

Além de uma tela só para si

Edina De MarcoI; Simone Pereira SchmidtII

IUniversidade Federal de Santa Catarina

IIUniversidade do Estado de Santa Catarina

Responda rapidamente: quem é Yoko Ono?

Para as comemorações de 8 de março deste ano, o Ministério da Educação brasileiro, entre outras atividades, promoveu uma exposição com quatro artistas mulheres. Algumas das descrições desses trabalhos foram: "tendo como tema principal a natureza, em especial as flores", "mostra em suas telas o alvorecer e o crepúsculo", "pinta flores", "retrata também a natureza".1 1 TORRES, Angélica. Dia internacional da mulher será comemorado com arte. Disponível em: www.moderna.com.br. Acesso em: 7 mar. 2003. Um breve olhar para esse evento e logo percebemos como estão arraigadas concepções do que é (ou como deve ser) uma arte feita por mulheres, instigando-nos a refletir sobre as dimensões de significados que estão inclusas nessas seleções.

Na última Bienal de São Paulo, a italiana Vanessa Beecroft, artista declaradamente feminista, realizou uma polêmica performance, chamada "VB50", onde 50 modelos brasileiras, pintadas de marrom, bronze e verde oliva, apenas de sandálias de salto alto cor-de-rosa do estilista Azzedine Alaca e perucas black-power ruivas e pretas, permaneceram por três horas realizando somente movimentos permitidos pela artista e caladas. A performance foi registrada em fotografia e vídeo e juntou-se a outros registros de performances anteriores expostos no local. Diz a artista ser sua intenção provocar desconforto com a nudez e opor-se a clichês associados à sensualidade e ao exotismo das mulheres brasileiras.2 2 CYPRIANO, Fabio. "'Nudez é uniforme', diz Beecroft". Folha de S. Paulo. São Paulo, 23 mar. 2002. Ilustrada, p. E3. Percebemos aqui estratégias para produzir deslocamentos de significados, polemizar o voyeurismo e desafiar a imagem especular.

Esses dois exemplos apontam para a pluralidade e simultaneidade das práticas artísticas contemporâneas, em que estereótipos e clichês permanecem, são desafiados e inventados. Observamos essa mesma heterogeneidade na história, na teoria e na crítica das artes feitas sobre mulheres e pelas mulheres.

De muitas 'representações' de mulheres se construiu a história oficial da arte ocidental - branca, masculinista e heterossexual. Desenhadas, pintadas, esculpidas, encenadas, descritas, essas mulheres que circulam entre a docilidade e a irracionalidade, que são todas e ninguém ao mesmo tempo, foram e permanecem como modelos, com toda a autoridade que a arte lhes delega. As imagens da arte, em sua pretensa neutralidade, gritam no silêncio da atemporalidade. Excedendo o lugar que lhes foi destinado, reiteram-se de formas inesperadas, mantendo e legitimando os estereótipos. De comerciais de televisão a copos de iogurte, gabrielas e moemas perpetuam lugares-comuns a que as mulheres são com-frontadas diariamente.

Com o amadurecimento do movimento feminista a partir dos anos 1960/70, tornaram-se centro do debate, entre outros temas, as políticas do olhar - a mulher como objeto de contemplação e o espectador gendrado (masculino), o empoderamento pela contemplação; as políticas da sexualidade - a representação das mulheres e gênero na cultura visual e os estereótipos do feminino; as políticas da subjetividade - os disfarces e as encenações de identidade; a arbitrariedade das instituições artísticas; a his-tory. Muitas mulheres (e alguns homens) têm levantado suspeitas, hesitado, investigado e se oposto às normas de subjetividade estabelecidas e ao modelo representacional dos discursos aceitos como doxa na sociedade ocidental. Das reivindicações iniciais dos movimentos de mulheres ao direito de expressão, à admissão das mulheres nas escolas de arte e à inserção das mulheres na história, caminhou-se para colocar em ação o engendramento dos discursos. Agora, mais do que inserir as mulheres em uma história, é a própria história que é colocada em questão.

Aclarando-se as relações entre arte, saber e poder, expõem-se as regras, desorientam-se as normas abrindo brechas dentro do sistema da arte. Nesse sentido, artistas têm desafiado tanto as técnicas e suportes quanto as categorias canônicas como belo e sublime, para valer-se de outras, como ironia e paródia, colocando em questão não somente as 'obras de arte' mas também o próprio sistema institucional da arte. Nesses discursos, o corpo e o texto ganham lugar de destaque. O corpo com seu potencial disciplinador, mas também emancipatório, e a exposição do imperativo da linguagem tornam-se loci privilegiados para colocar em questão o engendramento dos discursos e as relações assimétricas de poder. Os temas do corpo, ou o corpo mesmo como suporte, são maneiras que procuram tanto indagar sobre a produção serializada e instrumentalizada de corpos que se querem assépticos e mudos, quanto sobre a forma e o estatuto da arte, fugindo das categorias impostas e das verdades inquestionáveis. Da body art e performances do fim dos anos 60 e início dos 70, julgadas muitas vezes como celebratórias e presas a um essencialismo, às artes dos anos 80 e 90 atravessadas pela semiótica, psicanálise e desconstrutivismo, as artes feministas contribuíram para que a criação e a reflexão tenham fronteiras cada vez mais difusas. Às narrativas biográficas e discursos da diferença, acrescentaram-se relatos que se estabelecem como ficções, reivindicando identidades múltiplas. Enquanto nos anos 60 o corpo era estratégia de representação pública das mulheres para a crítica das oposições, sem apagar as diferenças, agora se desloca para o elogio do artifício, para as perspectivas que exploram o fazer artístico e a significação como atos performativos através dos quais sujeitos incorporados negociam e encenam posições discursivas.

No Brasil, embora exista uma consistente produção acadêmica nos estudos feministas/de mulheres/de gênero em algumas áreas, por outro lado, nas artes, talvez exceto na literatura, as reflexões são incipientes. Entretanto, muitos trabalhos de arte parecem informados por essas práticas/teorias. Pode-se localizar alguns traços nas estratégias que adotam, nos temas que trabalham, nos meios que usam. Contudo, para a maioria das artistas, há uma negação a priori de qualquer identificação com o movimento de mulheres, principalmente com o feminismo, ancoradas normalmente em uma estigmatização de que todas as práticas/teorias feministas são essencialistas ou sexistas. A participação de algumas mulheres nos movimentos de arte muitas vezes leva a conclusões precipitadas, como se o sistema de arte brasileiro não fosse marcado pelo sexismo e permeado por relações assimétricas de poder entre homens e mulheres.

As perspectivas através das quais a arte é estudada no Brasil não contemplam as teorias e práticas feministas e de gênero; estas, quando mencionadas, o são a partir de referências rápidas a autores que discutem o que se costuma chamar de pós-modernismo. Além disso, são raras aqui as traduções de obras feministas já consagradas de teorização e apreciação crítica da arte.

Longe de buscar uma especificidade e tendo o cuidado para não cair na 'guetização' ou nas armadilhas de um paroquialismo residual, esta seção temática abre espaço para reflexões diversas que, menos do que ver a arte das mulheres como categoria, procuram ver como a arte das mulheres, ou a arte que fala das mulheres, adquire sentidos.

O trabalho Procuro-me, de Lenora de Barros, uma versão exclusiva para esta publicação, desafia-nos a pensar os domínios da vida em que nos subjetivamos. Seu 'pôster-poema' - é assim que a artista se refere a esta série de trabalhos - remete-nos a uma busca obsessiva por identidade, atravessada pelos códigos de gêneros. Dialogando com o trabalho de Lenora de Barros, o 'texto-poema' de Noemi Jaffe - assim nos permitimos chamá-lo - provoca-nos a perdermos-nos para encontrar no disfarce algo que gostaríamos de ser.

No artigo "O corpo perigoso", Linda Hutcheon e Michael Hutcheon associam suas áreas de conhecimento - a crítica literária e cultural e a medicina - de forma a articular uma análise de apurado alcance interpretativo da ópera Salomé, de Richard Strauss. Centrado na mítica e provocante figura de Salomé, o ensaio a considera, mais do que uma conhecida personagem da literatura e da música, um vigoroso signo dos muitos discursos da cultura do século XIX que se sobrepuseram ao corpo da mulher, constituindo-o como lugar de sedução e de ameaça. Este "corpo perigoso" é paradoxalmente frágil - enquanto objeto do olhar masculino, definido a partir desse olhar - e poderoso, cuja força reside justamente em se saber olhado. Em última instância, o poder do corpo perigoso reside, portanto, na consciência que tem de ser objeto do olhar do outro. Naquilo que os autores definem como uma política do olhar, Salomé, afirmam Linda e Michael Hutcheon, é como a medusa: olhá-la é sentir seu poder.

Os auto-retratos de Cindy Sherman, em seus trabalhos fotográficos dos anos 70 e início dos 80, constituem o objeto da análise de Annateresa Fabris, no ensaio "Cindy Sherman ou de alguns estereótipos cinematográficos e televisivos". A partir da problematização do próprio conceito de auto-retrato, a artista norte-americana, segundo a autora, discute a construção dos estereótipos femininos na cultura contemporânea, através da encenação, apresentada em diferentes séries de trabalhos da artista, de diversos papéis femininos veiculados pela mídia, tais como o cinema e a televisão. Através de tais performances, as noções de representação e auto-representação são discutidas, uma vez que a identidade se apresenta, nas séries fotográficas, como encenação. Assim, segundo Annateresa Fabris, "Sherman afirma o domínio da linguagem", pois faz da fotografia, como diz Joan Fontcuberta, "uma forma de reinventar o real, extrair o invisível do espelho e revelá-lo".

Assim como o artigo que o antecede, "Tinta e sangue: o diário de Frida Kahlo e os 'quadros' de Clarice Lispector", de Lucia Helena Vianna, também aborda o tema da identidade como constructo, ao enfocar a vida/obra das duas grandes artistas latino-americanas, Frida Kahlo e Clarice Lispector, como exercícios simultâneos de ocultação e desvendamento, nos constantes deslocamentos que se desenham em suas obras entre o público (a obra canonizada) e o privado (a obra íntima). Ao escolher trabalhar com porções menos reconhecidas, menos auráticas, do conjunto da obra das duas artistas, Lúcia Helena Vianna mergulha em território que lhe permite discutir o modo como se construiu, nos seus discursos íntimos e de auto-representação, aquilo que Foucault denomina uma "estética da vida". Seu artigo vem portanto se somar ao conjunto das discussões em torno de uma política da subjetividade, instaurada nas últimas décadas pelo feminismo e por outros campos investigativos preocupados com as questões da identidade e da subjetividade.

Edward McCaughan, em "Navegando pelo labirinto do silêncio: artistas feministas no México", analisa as estratégias desenvolvidas pelas artistas feministas mexicanas, das décadas de 70 a 90, de resistência e afirmação política de seu trabalho artístico, em confronto com o desinteresse e o silêncio que lhes foram impostos por diferentes instâncias do sistema cultural em seu país. Desde os mais conservadores defensores da tradição artística, passando pelos movimentos de esquerda, e mesmo as ativistas feministas ou as artistas não identificadas com o feminismo, todos esses setores, que constituiriam aliados potenciais das artistas feministas, foram responsáveis por criar uma barreira de silêncio e indiferença contra uma arte de programa assumidamente feminista no México pós-68. Da vivência de tais impasses resultou a estratégia de criação, por parte dessas artistas, de espaços próprios para a valorização e a divulgação de seus trabalhos. Com essa orientação, vários grupos de artistas feministas foram criados no México nas décadas de 70 a 90. O artigo de McCaughan nomeia e analisa os trabalhos mais representativos desses grupos.

É também sobre estratégias para afirmação e conquista de visibilidade às obras de artistas mulheres que nos fala o artigo "O grotesco como estratégia de afirmação pictórica feminina", de Giulia Crippa. Enfocando o trabalho de algumas artistas representativas das vanguardas estéticas do início do século XX, Giulia Crippa analisa como, afinadas com os propósitos que se congregavam nas agendas modernistas, essas artistas criaram linguagens específicas, amparadas no princípio do grotesco, para representação do corpo feminino. Assim, artistas de diferentes lugares, e com graus diferentes de consciência política acerca de seu projeto, como Tarsila do Amaral, Frida Kahlo, Tâmara de Lempicka e Georgia O'Keeffe, lograram construir uma estética em que o grotesco foi utilizado como estratégia para a auto-representação e a representação do outro. Ao mesmo tempo que desse modo afirmaram o seu trabalho e conquistaram um lugar para si no sistema da arte, questionaram ou provocaram um estranhamento sobre a representação e o lugar do corpo feminino no contexto da modernidade dos anos 20.

A seção temática encerra-se com um artigo dedicado à análise de um espetáculo brasileiro de dança contemporânea. Em "Corpos em tensão: feminino, masculino e barroco no espetáculo Bach", Tereza Virginia de Almeida propõe-se a estudar o espetáculo que o Grupo Corpo, de Minas Gerais, levou à cena em 1996. A partir da investigação das relações que o espetáculo estabelece com a estética neobarroca, a autora analisa o modo como as relações de gênero são performatizadas na dança, indagando as interações entre corpo, sexualidade e gênero, e reconfigurando lugares e papéis em que os mesmos têm sido historicamente situados. Trata-se, como diz a autora, de "abordar algumas formas pelas quais o espetáculo Bach se utiliza da diferença de gênero para, através desta, performatizar tensões entre masculino e feminino no limiar das relações entre o humano e a matéria orgânica e inorgânica, tensões estas que se tornam cruciais como expressão neobarroca".

Depois de exorcizado qualquer destino do corpo, acreditamos que não basta revelar desigualdades; é necessário produzir o inesperado, a estranheza, o inquieto, a audácia e a ousadia. Em tempos de panóplia de imagens, cinemas multiplex, hiperexibicionismo, reality shows e blogs, o desafio são as práticas/teorias que produzam agenciamentos de subjetivação que rompam com o puramente artístico, próprio do establishment, para construir subjetividades mutantes que atravessem as fronteiras logocêntricas da representação, para além das construções binárias, sejam estas quais forem.

Essa cara de assustada é porque ela se achou ou porque não conseguiu se achar?

Freud conta que uma vez, dentro de uma cabine de trem, ele acidentalmente viu seu reflexo no espelho de um banheiro contíguo e pensou quem poderia ser aquele velho monstruoso. Será que foi isso que ela viu? Um monstruoso reflexo acidental? Será que no meio de tantos cabelos, ela viu o seu verdadeiro rosto? Ou será que mesmo depois de tantos, ela continua sem ver rosto nenhum? Será que, trocando-se tanto, e procurando-se, ela encontrou um brilho perdido, lá no fundo do olho da máquina fotográfica, mas ele fugiu e ela nunca mais vai encontrá-lo? Em qual destes rostos será que vamos encontrar o brilho perdido que ela viu (ou não viu)? E nós, que estamos vendo o que ela possivelmente viu, o que vemos? Mas nós não pensamos que esse rosto assustado pode ser por ela estar nos vendo, e estar nos vendo a vê-la. Vamos imitar esse rosto. Susto com susto. Não é fácil. Ficar feio é coisa de muita fibra. Mas talvez a feiúra seja fundamental para procurar-se.

E se no meio de um mundo de tanto disfarces não nos achamos, talvez a solução não seja desnudar-se, mas disfarçar-se ainda mais, até enfeiar-se, "desmedar-se". Ser linda é fácil; quero ver é ser feia, errada, torta, com as veias saltadas e sair por aí, se expondo.

E se a palavra procurar vem do latim representar, substituir, fazer sacrifício de purificação e de expiação, não será esconder-se a melhor maneira de achar-se? Se tudo pede que nos revelemos, revelemo-nos ao contrário, não deixemos que nos achem, para que nós nos achemos. Vamos passar a procuração de nós mesmos para nós mesmos. Autorizar, na minha ausência, que eu assine por mim, já que eu não estou. Substituir-me; representar-me. Se eu fingir que eu sou eu, será que vão descobrir quem eu sou? Se ninguém me vê quando eu não finjo que eu sou eu, será que fingindo-me irão me reconhecer? E será que eu mesma me reconheço então?

Quando você vir as imagens, mude sua expressão disfarçadamente. O que você vê? Qual dos rostos é o verdadeiro? Há pistas? Não responda que são todas verdadeiras, mesmo se for verdade. Perca-se procurando. Assim talvez você ache. Não se acha um eu assim, quando se determina uma procura. É preciso distrair-se, como fazia o personagem criado por Guimarães Rosa no conto "O Espelho". Quando ele menos esperava, olhava-se de rompante no espelho, para ver se flagrava algum rosto desconhecido. Só sem querer é que talvez se veja o velho monstruoso, o inseto, o anjo.

Noemi Jaffe

Copyright © 2003 by Revista Estudos Feministas.

* Publicado originalmente no folder da mostra Procuro-me, de Lenora de Barros, no Espaço Cultural Sérgio Porto, Rio de Janeiro, setembro/outubro 2002.

  • 1
    TORRES, Angélica. Dia internacional da mulher será comemorado com arte. Disponível em:
    www.moderna.com.br. Acesso em: 7 mar. 2003.
  • 2
    CYPRIANO, Fabio. "'Nudez é uniforme', diz Beecroft". Folha de S. Paulo. São Paulo, 23 mar. 2002. Ilustrada, p. E3.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      15 Out 2003
    • Data do Fascículo
      Jun 2003
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