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A mulher na sociedade de classes: contribuições para uma historiografia feminista

Women in Class Society: Contributions to a Feminist Historiography

Resumo:

Ao completar cinquenta anos do livro A mulher na sociedade de classes: mito e realidade, este artigo propõe revisitar a obra da socióloga Heleieth Saffioti (1934-2010). O objetivo é realizar uma análise historiográfica questionando qual é a interpretação da história do Brasil elaborada pela autora e qual a sua contribuição para uma perspectiva teórica feminista. A autora dedicou o segundo capítulo a discutir “A evolução da condição da mulher no Brasil”. Saffioti recorreu a debates com alguns dos principais intérpretes da história do país - Antonio Candido, Caio Prado Jr., Gilberto Freyre - e fez uso de diversas fontes documentais - relatos de viajantes, dados estatísticos, cartas - para corroborar seus argumentos sobre o caráter patrimonial e patriarcal da sociedade brasileira. Nesse sentido, o artigo procura examinar o livro como uma obra que contribuiu para a história das mulheres no Brasil.

Palavras-chave:
Heleieth Saffioti; história das mulheres; historiografia brasileira; teoria feminista

Abstract:

At the 50th anniversary of the book A mulher na sociedade de classes: mito e realidade (Women in class society: myth and reality), this article proposes to revisit the work of the sociologist Heleieth Saffioti (1934-2010). The objective is to perform a historiographical analysis questioning what interpretation of the history of Brazil the author developed and its contribution to a feminist theoretical perspective. The author dedicated the second chapter to discuss “The evolution of the condition of women in Brazil”. Saffioti made use of debate with some of the leading interpreters in the country’s history, such as Antonio Candido, Caio Prado Jr., and Gilberto Freyre. At the same time, she made use of various documentary sources such as traveler reports, statistic data and letters in order to corroborate her arguments about patrimonial and patriarchal character of the Brazilian society. In this sense, the article seeks to examine the book as a work that contributed to the history of women in Brazil.

Keywords:
Heleieth Saffioti; Women history; Brazilian historiography; Feminist theory

50 anos de A mulher na sociedade de classes

O cinquentenário do livro A mulher na sociedade de classes: mito e realidade surge como um convite para reler uma das obras mais impactantes para os estudos feministas brasileiros. Era o fim da década de 1960 quando Heleieth Saffioti defendeu sua tese de livre-docência de mesmo título. Neste artigo, proponho examinar algumas tensões que aparecem no livro em relação à teoria feminista. A partir de diálogos com reconhecidos intelectuais brasileiros, a perspectiva de Saffioti era mostrar que o sexo, tomado como categoria social, era relevante para compreender as relações do Brasil dentro do sistema capitalista e o tipo de sociedade de classes que aqui se estabeleceu. Em um segundo momento, o enfoque deste artigo passa a ser a contribuição de Saffioti para a constituição de uma história das mulheres no Brasil. Entendo que seu livro representou uma inovação nas interpretações vigentes da historiografia brasileira, construindo uma narrativa que se valeu de aspectos teóricos e metodológicos desse campo.

Este trabalho utiliza como fonte principal a segunda edição do livro, publicada em 1976, e uma entrevista realizada com Saffioti em 2008. Na primeira seção, direcionarei meu olhar, sobretudo, às apresentações do livro.1 1 A apresentação é composta de um prefácio escrito por Antonio Candido e uma nota preliminar, escrita pela própria autora. A escolha preferencial pelo exame de prefácios considera as reflexões de François Hartog, para quem estes constituem “pontos de observação a partir dos quais […] se pode apreender um projeto historiográfico singular, configurações do saber, conjunturas intelectuais e políticas”. (HARTOG, 2001HARTOG, François (Org.). A história de Homero a Santo Agostinho. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2001., p. 10). Na segunda parte, o enfoque será na parte II do livro, intitulada “Evolução da condição da mulher no Brasil”. A autora dividiu o capítulo em uma introdução e sete subcapítulos com os seguintes temas: a formação da economia brasileira, posição social da mulher na ordem escravocrata-senhorial e suas sobrevivências na sociedade atual, instrução feminina na Colônia e no Império, instrução feminina na perspectiva das correntes de pensamento da fase pré-republicana, instrução feminina na República, força de trabalho feminina e, por fim, manifestações feministas.

Escrever este artigo, na data em que lembramos o cinquentenário de A mulher na sociedade de classes, significou retomar essa obra que foi objeto de estudo do meu doutorado e que, atualmente, integra a bibliografia obrigatória de disciplinas que ofereço para estudantes de graduação no curso de História. A cada nova leitura, o trabalho de Saffioti provoca reflexões sobre as discussões perspicazes que ela realizou referentes às peculiaridades do sistema patriarcal brasileiro, especialmente na articulação entre classe, sexo e raça. Nos dias atuais, as análises que relacionam essas categorias são mais recorrentes nas Ciências Humanas, mas era assim nos anos 1960. Portanto, é necessário destacar a inovação que Saffioti apresentou naquele contexto. Do mesmo modo, ressalto um aspecto já trabalhado em minha tese de doutorado, que se refere às estratégias da autora para inserir a teoria feminista no campo intelectual brasileiro.

Recuperar a leitura desse livro e elaborar um processo de escrita significou, também, uma forma de homenagem a essa intelectual que é uma referência para os estudos de gênero e para o movimento feminista. Minha convivência com Heleieth Saffioti foi curta, mas impactante. Me deparei com uma pensadora generosa, disposta a falar sobre sua trajetória, a refletir sobre seus escritos e a atender, com paciência, uma jovem pesquisadora, ansiosa diante da sua entrevistada. Destaco um ponto da nossa conversa que evidencia o cuidado dela com as palavras, o modo como Saffioti, ao longo de toda sua trajetória, não teve receio em rever posições e ideias. Lembro com emoção daquele encontro. Questionei Saffioti sobre a possibilidade de se falar, naquele momento, em uma epistemologia feminista. Pensou por alguns segundos e, com a calma que lhe era peculiar, respondeu:

A defesa desse ponto de vista eu tenho mais dúvidas do que certeza. Não posso lhe dizer nem sim nem não. Há alguns anos […], eu organizei uma mesa na ANPOCS que se chamava mais ou menos assim: teriam os estudos de gênero contribuído para a construção de um novo paradigma metodológico? Contribuído, já é bem mais modesto e, mesmo assim, será que nós chegamos a construir um paradigma metodológico distinto? Não sei! Quanto mais a gente aprende […] mais dúvidas aparecem. Quando se é jovem, não se tem dúvida nenhuma. (SAFFIOTI, 2010SAFFIOTI, Heleieth. “Entrevista com Heleieth Saffioti”. [Entrevista cedida a] Natalia Pietra Méndez. MÉTIS: História & Cultura, v. 9, n. 8, p. 275-294, jul./dez. 2010., p. 294).

Esse trecho também revela um lado de Saffioti que conheci naquela tarde e que muitas de suas ex-alunas já destacaram: a paixão pelo ensino, a disposição para contribuir com a formação das novas gerações. Que a presença desses ensinamentos e dos escritos da Professora Heleieth nos ajudem a atravessar os tempos de incertezas que vivemos, apostando na educação, na cultura e na ciência como linguagens capazes de construir um mundo mais justo.

Heleieth Saffioti: encontros e tensões com a teoria feminista

Durante a elaboração da tese de livre-docência e publicação de seu livro, Heleieth Saffioti deparou-se com uma questão: como faria para que um trabalho sobre as mulheres fosse aceito pelo campo intelectual brasileiro? O conceito campo intelectual se refere ao funcionamento de uma sociedade intelectual, suas regras de legitimação. Para Pierre Bourdieu (1969BOURDIEU, Pierre. “Campo intelectual y proyecto creador”. In: BOURDIEU, Pierre et al. Problemas del estructuralismo. México: Siglo XXI, 1969. p. 135-182.), o campo intelectual pode ser entendido como um campo de forças que opõe e, ao mesmo tempo, agrega os agentes ou sistemas que o integram. Nesse percurso de escrita e pesquisa, quais foram as tensões visíveis na escrita de Heleieth Saffioti com a teoria feminista?

Nesta seção, o prefácio do livro A mulher na sociedade de classes: mito e realidade e uma entrevista realizada com a autora serão os fios condutores para examinar as estratégias e as brechas construídas por Saffioti para empreender seu percurso intelectual. Na nota preliminar do livro, redigida para a primeira edição (1969), Saffioti dizia que seu livro não era uma obra feminista:

Se esta obra não se dirige apenas às mulheres, não assume, de outra parte, a defesa dos elementos do sexo feminino. Não é, portanto, uma obra feminista. Denuncia, ao contrário, as condições precárias de funcionamento da instituição familiar nas sociedades de classes em decorrência de uma opressão que tão somente do ponto de vista da aparência atinge apenas a mulher. (SAFFIOTI, 1976SAFFIOTI, Heleieth. A mulher na sociedade de classes: mito e realidade. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1976., p. 14, grifos da autora).

É curioso notar o esforço da autora por evitar que sua obra fosse, eventualmente, associada pelo público leitor a um conteúdo feminista. Nesse empreendimento, ela afirmava que o livro não se dirigia apenas às mulheres, e menos ainda à defesa do sexo feminino. A publicação pretendia denunciar as condições precárias da instituição familiar. Segundo a autora, a ideia de que apenas as mulheres eram atingidas pela opressão era fruto das aparências. Considerações autorais à parte, o título do livro remetia a uma questão central: os mitos a que estavam submissas as mulheres na sociedade de classes. Na entrevista realizada com a socióloga em 2008, ela sugeriu algumas pistas sobre o que a motivou a afirmar o caráter não feminista de seu livro:

Hoje a minha compreensão de processo é diferente. […]

Ah, sim, veja bem, não é que eu não fosse feminista. É que os meios de comunicação pegavam sempre o que era pior para usar como rótulo de feministas. Então, houve uma corrente que nunca foi muito expressiva, mas que era a pior, que era das feministas radicais. Elas nunca foram radicais do ponto de vista político. Elas eram radicais porque advogavam uma sociedade só de mulher. E eu sou partidária do radicalismo, mas do radicalismo político, o que este não era. Toda a vez que eu ia à televisão ou ao rádio eu tinha que explicar de que feminismo eu era, por isso que saiu assim. (SAFFIOTI, 2010SAFFIOTI, Heleieth. “Entrevista com Heleieth Saffioti”. [Entrevista cedida a] Natalia Pietra Méndez. MÉTIS: História & Cultura, v. 9, n. 8, p. 275-294, jul./dez. 2010., p. 289-290).

Ao que parece, um dos motivos que levou Heleieth a negar o caráter feminista do livro foi uma tentativa de desvincular seu trabalho de uma visão preconceituosa. O tratamento pejorativo dos meios de comunicação tornava desinteressante qualquer identificação com o feminismo. Por outro lado, a socióloga reconhecia que havia um desconhecimento - da imprensa, do público e da própria academia - sobre as diferenças entre os feminismos. Tudo indica uma tentativa de neutralizar essa identidade que poderia, no meio intelectual brasileiro, ser confundida com uma bandeira política ‘perigosa’. É plausível que o preconceito com o termo tenha colaborado para que Saffioti evidenciasse uma afinidade teórica com essa abordagem. No Brasil, o feminismo não era visto com bons olhos. Posições conservadoras - tanto de direita quanto de esquerda - criticavam quem aderisse a tais ideias, acusando-as ora de querer destruir as famílias e a ordem natural da vida, ora de deturpar a luta de classes. De qualquer modo, é notório que o diálogo com o feminismo está presente em todo o livro, desde os subtítulos que falam em feminismo/movimento feminista, passando pelas referências intelectuais utilizadas pela autora.

O contexto intelectual do período era influenciado pela corrente cepalina,2 2 A Comissão Econômica para a América Latina e Caribe (CEPAL) foi criada no final dos anos 1940, reunindo intelectuais da América Latina que defendiam um conjunto de teorias econômicas a fim de promover o desenvolvimento econômico no continente através da industrialização, estimulada pelo Estado. que, preocupada em analisar as relações de subordinação dos países do hemisfério Sul em relação à supremacia do desenvolvimento norte-americano e europeu, enfatizava as contradições entre desenvolvimento e subdesenvolvimento como elemento central para compreender a realidade social. Nesse cenário se desenvolveram os estudos voltados para a problemática das relações sociais entre os sexos, ao que tudo indica, algo que não combinava com o status quo científico do momento. Heleieth Saffioti dialogava com as vertentes consolidadas no pensamento social brasileiro. Todavia, apresentava questionamentos e divergências. Por exemplo, a socióloga fez referências ao erro de uma sabedoria convencional que tentava explicar a inferioridade feminina limitando a situação social da mulher à esfera doméstica. Tais explicações, de acordo com Saffioti, salientavam o patriarcalismo como um aspecto que limitava a atuação das mulheres ao domínio masculino legitimado na vida privada. Concepções como estas - a autora apontava - eram encontradas em alguns clássicos como Casa grande e senzala, de Gilberto Freyre. Em contraponto, Saffioti procurava inserir a população feminina em todas as estruturas sociais.

A autora compartilhava interpretações consolidadas no meio intelectual, como o estágio inferior de desenvolvimento do capitalismo brasileiro. Para ela, a relação das estruturas econômicas do país com o capitalismo mundial era determinante de características específicas para os papéis femininos na sociedade brasileira. O raciocínio predominante ao longo do livro A mulher na sociedade de classes segue um eixo central: o estágio de dependência do Brasil em relação aos países de capitalismo central impactou a situação feminina gerando especificidades que, no entanto, só podiam ser entendidas ao examinar a unidade nacional dentro de uma totalidade capitalista mais ampla. Ou seja, a hipótese, defendida por Saffioti, era que a situação das mulheres precisava ser compreendida do ponto de vista nacional, mas dialeticamente vinculada à função do país no capitalismo mundial:

Cada vez mais se impõe a necessidade de tomar-se como totalidade histórica inclusiva o sistema capitalista internacional dentro do qual as sociedades e globais nacionais não são senão subsistemas que, embora guardando um mínimo de autonomia funcional, mantêm, com o sistema geral e com o seu núcleo, uma identidade fundamental. […] A análise, mesmo que vise à explanação das questões femininas no modo capitalista de produção em geral, ultrapassando o nível de sua realização nos subsistemas constituídos pelas sociedades nacionais, deve captar não apenas o movimento do real e do essencial, mas também a relação dialética por eles mantida. (SAFFIOTI, 1976SAFFIOTI, Heleieth. A mulher na sociedade de classes: mito e realidade. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1976., p. 13-14).

Tal perspectiva indica uma proximidade teórica aos desenvolvimentistas e aos marxistas, duas vertentes que não enfocavam a condição feminina. Quando muito, esta era avaliada de modo sumário, como um subproduto dos antagonismos entre as nações desenvolvidas e subdesenvolvidas e as contradições de classe. Nota-se que, para construir sua proposta de trabalho, Saffioti lançou mão de diversas categorias de análise consagradas pelo universo intelectual brasileiro da época, tais como: nação, classes, unidade nacional, totalidade histórica, modo capitalista de produção, sistemas e subsistemas, autonomia, dependência. Esses conceitos não são meras palavras que constituem um vocabulário usual da época. Eles apontam para um relacionamento intelectual com uma rede de pensadores que se dedicava a estudar as relações de autonomia/dependência do Brasil (e da América Latina) com o sistema capitalista internacional.

Ao mesmo em tempo que Saffioti representava uma linha de filiação com essa tradição, ela questionou alguns de seus pontos. Propôs uma mudança ao considerar, juntamente com a noção de classe social, a categoria sexo como uma possibilidade de interpretar o Brasil. Assim, a obra de Saffioti compartilha de conceitos já integrados no pensamento intelectual brasileiro, mas acrescenta inovações teórico-metodológicas ao considerar que a categoria ‘sexo’ poderia determinar padrões de ocupação e relacionamento no espectro social e econômico que eram estruturantes do sistema capitalista. E como essas tentativas de ‘reinterpretações’ foram recebidas por seus pares?

O prefácio do livro A mulher na sociedade de classes: mito e realidade foi escrito pelo sociólogo Antonio Candido, que havia sido professor de Heleieth Saffioti na Universidade de São Paulo e que também participou de sua banca de livre-docência. Ao comentar sua relação com o então orientador, Florestan Fernandes, Heleieth recorda que se identificava mais com Antonio Candido, apesar da formalidade que marcava sua relação. A citação a seguir é longa, mas acredito que seja relevante para aproximar-se das relações acadêmicas construídas por Saffioti:

Muito a crítica metodológica porque meu livro era escancaradamente marxista, e Florestan, a meu ver, foi socialista do ponto de vista político, mas como intelectual não. Quando ele leu (e eu já trouxe prontinha a tese, não havia mais mudança) aí ele leu e disse: “Mas você é muito boba, ter dividido em três partes.” A primeira e segunda ele achou que devia ser a livre-docência. E a terceira ele achou que devia ser do concurso de cátedra, mas eu já quis fazer com tudo e fiz e não parei de produzir. Então é curioso porque eu acho que eu me identifico muito mais com Antonio Candido, de quem eu fui aluna em sociologia, na última turma antes dele bandear para a Teoria da Literatura, mas ainda é “O Professor”, eu sou a “Dona Heleieth” para ele, ele sempre foi muito formal e nunca me apadrinhou; mas, com Florestan é curioso porque ele foi rigorosíssimo, e eu entrei pagã nessa história, eu podia ter sido reprovada. Eu pensava: “Será que ele finge que eu sou a aluna do coração dele porque não é possível, falou tão mal da tese e quer que eu vá para a livre-docência, na docência ele vai reprovar.” Olha, eu fiquei uns quinze dias sem poder trabalhar pensando nisso. Aí como eu sempre tomei tudo como desafio, eu falei: “Vou mostrar para ele quem sou eu”; sentei e fiz as mudanças que me pareceram corretas. As outras eu não fiz, às vezes, até acentuei meu ponto de vista e ele foi genial, porque ele aceitou. (SAFFIOTI, 2010SAFFIOTI, Heleieth. “Entrevista com Heleieth Saffioti”. [Entrevista cedida a] Natalia Pietra Méndez. MÉTIS: História & Cultura, v. 9, n. 8, p. 275-294, jul./dez. 2010., p. 285-286).

As dificuldades enfrentadas por Heleieth no processo de orientação do seu trabalho, ao que tudo indica, tiveram como resultado uma produção autônoma da tese de livre-docência. Ela recorda que sua trajetória intelectual foi realizada sem apadrinhamentos. Em suas palavras, entrou “pagã” para sua defesa de tese e com receio de que o próprio orientador a reprovasse, uma vez que ele teria criticado o trabalho. A partir do relato, é possível mensurar alguns dos obstáculos para aceitação de uma pesquisa - identificada por ela, na ocasião da entrevista, como marxista e feminista - em um contexto que a colocava sob o alvo de críticas tanto dos conservadores quanto dos intelectuais de esquerda. Ao mesmo tempo, essa voz que recordou a falta de apadrinhamento trouxe à tona a memória de um êxito, de uma vida acadêmica marcada pela superação.

A boa relação com o ex-professor talvez explique o fato de que o prefácio de A mulher na sociedade de classes tenha sido redigido por Antonio Candido e não pelo orientador, Florestan Fernandes. O antigo mestre destacou que o livro se tratava de “uma sólida contribuição ao estudo da mulher na sociedade”, tecendo elogios a uma “combatividade intelectual” presente na obra, salientando que:

O grande mérito da autora foi não separar o problema da mulher dos problemas gerais da sociedade, mostrando como formigaram racionalizações ideológicas ligadas à estrutura social e às formas de dominação. […] Sobre esta base, levanta a segunda parte, referente à condição da mulher no Brasil, discriminando elementos peculiares à nossa formação histórica e à nossa organização social. (CANDIDO, 1976CANDIDO, Antonio. “Prefácio”. In: SAFFIOTI, Heleieth. A mulher na sociedade de classes: mito e realidade. São Paulo: Expressão Popular, 1976. p. 9-10., p. 9).

O prefácio demonstra um reconhecimento do trabalho de Heleieth por seus pares, pelo campo dentro do qual ela fez sua formação e que, a partir de seu trabalho, passava a integrá-lo. Entretanto, essa integração ao campo intelectual revelava tensionamentos. Ao propor um tema/problema de investigação pouco abordado e que, de acordo com o prefácio, apresentava ineditismo teórico e metodológico. Escrito por um nome reconhecido, o prefácio do livro é um sinal de aceitação da obra de Heleieth Saffioti por seus pares. Com efeito, a própria circunstância de submeter-se a uma banca, composta por seus antigos professores, é parte de um dos tantos rituais da vida acadêmica. A história de Heleieth Saffioti é uma demonstração de que havia brechas - ainda que muito estreitas - para desenvolver pesquisas que questionassem visões tradicionais. Era possível encontrar, entre os renomados intelectuais brasileiros, alguns interlocutores dispostos a orientar teses e a apresentar livros que não fossem tão convencionais.

Apesar das divergências, Antonio Candido e Florestan Fernandes, eram sociólogos identificados como marxistas. Assim, Saffioti buscou apoio entre aqueles que mais se aproximavam de suas opções teóricas e metodológicas. Contudo, a inovação de seu trabalho residia na escolha pela aproximação das categorias classe e sexo. Inovação que, para legitimar-se, necessitaria do aval de seus semelhantes. Seu trabalho não pode ser visto como uma continuidade aos estudos de nenhum de seus mestres uma vez que apresenta uma inflexão em relação a tais pensamentos. O custo dessa originalidade talvez tenha sido a necessidade de realizar uma caminhada mais solitária na construção de sua trajetória intelectual, percurso comum quando se opta por estudar temas que ainda são marginais nos espaços acadêmicos.

Em seu livro, Saffioti chamou a atenção para o fato de que a hierarquia entre os sexos era um fator estruturante do sistema capitalista: “A valorização da força física do homem serve de justificativa à hierarquização dos sexos. […] Preconceitos de raça e sexo desempenham, pois, um papel relevante quer na conservação do domínio do homem branco, quer na acumulação de capital.” (SAFFIOTI, 1976SAFFIOTI, Heleieth. A mulher na sociedade de classes: mito e realidade. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1976., p. 47). Examinava que outras contradições, e não apenas a de classe, organizavam o processo de extração da mais-valia. Essa análise era inovadora mesmo no interior do marxismo, especialmente por situar ‘o homem branco’ como aquele que exerce o domínio e não apenas uma classe social abstrata.

A proposta de análise enunciada lançava um questionamento sobre as explicações tradicionais, baseadas em um discurso pretensamente científico, que mantinham a mulher na condição de ‘segundo sexo’. Heleieth Saffioti alertava para as múltiplas dimensões que repercutiam na condição feminina: “A emancipação feminina é, pois, problema complexo cuja solução não apresenta apenas uma dimensão econômica.” Para ela, mesmo uma mulher com autonomia econômica sofria “o impacto de certas injunções nacionais e internacionais”. A socióloga concluía afirmando que “desde o desenvolvimento da indústria farmacêutica até as ideologias, tudo reflete na condição feminina” (SAFFIOTI, 1976SAFFIOTI, Heleieth. A mulher na sociedade de classes: mito e realidade. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1976., p. 87).

Mas, como reivindicar um espaço legítimo para essa ‘sabedoria não convencional’? A filósofa espanhola Celia Amorós assinala que a experiência das intelectuais feministas é perpassada por essa tensão: de um lado, assumimos o discurso ‘do outro’ nos nossos processos de formação-deformação profissional; por outro lado, através das experiências, passamos a refletir sobre nossa própria prática profissional de forma crítica, redefinindo seus sentidos (AMORÓS, 1991AMORÓS, Célia. Hacia una critica de la razón patriarcal. 2. ed. Barcelona: Anthropos, 1991., p. 11).

Ao mesmo tempo que o campo intelectual oferece um repertório limitado de ação, ele também possibilita uma reflexão sobre elementos cotidianos que geram, por exemplo, condições diferenciadas para a ascensão profissional de homens e mulheres. O que se verifica, a partir dos anos de 1960, é o surgimento, no Brasil, de perspectivas teóricas que faziam um contraponto às concepções tradicionais. Na nota preliminar do seu livro Saffioti apresentava sua percepção sobre as mudanças que estavam em curso no tempo da publicação da obra. Iniciou com uma citação de John Kenneth Galbraith, A sociedade da abundância: “[…] o que distingue a sabedoria convencional é a aceitabilidade, o merecer a aprovação daqueles a quem se dirige […]” (GALBRAITH, 1963 apudSAFFIOTI, 1976SAFFIOTI, Heleieth. A mulher na sociedade de classes: mito e realidade. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1976., p. 13). Para Saffioti, havia um crescente descompasso entre as transformações no mundo (que exigiam um papel cada vez mais dinâmico das mulheres na sociedade) e, em contraponto, o que a autora chamou de mística feminina. Essa mística seria um conjunto de ideias e práticas sociais que reafirmavam a inferioridade feminina, conduzindo, de acordo com a própria autora, a “concepções fechadas de masculinidade e feminilidade”. Quanto aos objetivos de seu trabalho ela foi enfática: “expor as flagrantes incongruências entre um mundo em mudança e ideias consagradas sobre a condição da mulher nas sociedades competitivas”. (SAFFIOTI, 1976, p. 13).

No prefácio, a autora parecia estar convicta do seu papel intelectual: a contestação aos saberes tradicionais. Ainda dentro da nota preliminar, a autora anunciava: “Este livro dirige-se a todos, homens e mulheres, quantos não se acomodaram na sabedoria convencional e àqueles cuja postura mental oferece-lhes possibilidades de abandonar tal acomodação” (SAFFIOTI, 1976SAFFIOTI, Heleieth. A mulher na sociedade de classes: mito e realidade. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1976., p. 13). E Saffioti prosseguiu com uma narrativa que dialoga com o feminismo ao clamar pela insurgência coletiva:

Insurge-se, portanto, [o estudo] contra a sabedoria convencional na medida em que esta faz parte constitutiva do conjunto de mitos que situam a mulher, direta ou indiretamente, consciente ou inconscientemente, num plano inferior àquele em que está colocado o homem e que tentam explicar tal inferioridade em termos de uma evolução desarmônica da sociedade. A família seria, pois, segundo tal postura, aquela esfera da vida social, dentre as que mais afetam a condição feminina, que com maior vigor teria resistido à mudança. Os fatos, todavia, discordam de tal afirmação. A descoberta desses fatos, por si só, constitui uma desmistificação e, neste sentido, passa a construir a sabedoria não convencional e mesmo anticonvencional. (SAFFIOTI, 1976SAFFIOTI, Heleieth. A mulher na sociedade de classes: mito e realidade. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1976., p. 13).

Na ocasião da nossa entrevista, Heleieth Saffioti recordou que tomou o termo do economista John Kenneth, quando este afirmava que a sabedoria convencional se manifesta em todos os níveis de conhecimento. Seu livro possui, na primeira parte, quatro subtítulos tratando, respectivamente, dos temas: níveis de consciência do problema da mulher, a perspectiva socialista, a Igreja Católica e, por último, a “solução” feminista (ênfase da autora). Mais adiante, a terceira e última parte do livro é dedicada a discutir “A mística feminina na era da ciência”, tendo dois tópicos destinados a examinar o papel da psicanálise e da antropologia. Para Saffioti, o conhecimento científico era assentado em antigos paradigmas que sustentavam a sabedoria convencional, completando que: “[…] Não se trata, pois, de iniciar uma competição com a sabedoria tradicional. Ao contrário, trata-se de situá-la como parte integrante dos mitos, já que não corresponde à realidade observada aqui exposta e analisada”. (SAFFIOTI, 1976SAFFIOTI, Heleieth. A mulher na sociedade de classes: mito e realidade. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1976., p. 14). Verifica-se, ao longo do livro, a formulação de um discurso que tenta opor o novo ao velho. A sabedoria denominada de tradicional é considerada um mito, que - superado pela realidade - vigorava arraigado a lugares intelectuais e sociais. Em contraposição ao saber-mito, ela propunha um novo saber, sustentado na observação e na análise da realidade, sob um olhar pautado por uma nova postura mental. Saffioti defendia que, para compreender um mundo em mudanças, era necessário analisá-lo também por novos prismas. De acordo com ela, as categorias que até então haviam produzido verdades absolutas estavam sendo postas por terra, não apenas por novas ideias, mas, principalmente, pelo curso da história. Ressaltava as modificações sociais, tecnológicas e econômicas e tratava de demonstrar o quanto essas transformações intensificavam-se em sua experiência histórica. Saffioti identificava o século XX como a sociedade do capital, procurando compreender como as relações entre as categorias sexo e classe criavam intersecções com o funcionamento do sistema capitalista. Explicitava seus objetivos da seguinte forma:

a desvendar as verdadeiras raízes deste alijamento justificado ou em termos de uma tradição, conforme à qual à mulher cabem os papéis domésticos ou, de maneira mais ampla, todos aqueles que podem ser desempenhados no lar, ou por teorias cujo conteúdo explicita pretensas deficiências do organismo e da personalidade femininos. (SAFFIOTI, 1976SAFFIOTI, Heleieth. A mulher na sociedade de classes: mito e realidade. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1976., p. 15).

Para a autora, as sociedades de classe não foram lançadas ao mundo econômico pelo capitalismo, porém, esse sistema apropriou-se de certas tradições e papéis sociais existentes nas sociedades pré-capitalistas para promover o que ela chamou de exclusão da estrutura ocupacional. A mulher na sociedade de classes vivia presa a uma tendência que o capitalismo desenvolveu de renovar constantemente “as crenças nas limitações impostas pelos caracteres naturais de certo contingente populacional […]” (SAFFIOTI, 1976SAFFIOTI, Heleieth. A mulher na sociedade de classes: mito e realidade. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1976., p. 29). Conforme a autora, a sociedade de classes incorporou a categoria sexo - presente no pensamento tradicional - como um fator de discriminação: “Cabe, pois, indagar se à mulher, enquanto membro da categoria de sexo sempre dependente e submissa, o sistema em questão chegaria a oferecer plenas possibilidades de integração social” (SAFFIOTI, 1976, p. 31). Para responder a essas questões, Saffioti dedicou uma parte substancial de seu livro ao exame do lugar das mulheres na história do Brasil.

Contribuições para pensar a história do Brasil

O livro publicado por Saffioti em 1969 ainda é pouco lembrado, fora do círculo dos estudos feministas, como uma referência que contribuiu para pensar o Brasil. Um exemplo disso é o livro As identidades do Brasil: de Varnhagen a FHC, do historiador José Carlos Reis, que arrola, entre esses pensadores da nação, nomes como Caio Prado Jr., Florestan Fernandes e Fernando Henrique Cardoso. Curiosamente, nem uma mulher consta entre esses intelectuais que mereceram destaque. Vale recordar que Saffioti, em seu livro, debateu com todos esses historiadores e sociólogos, confrontando suas visões. Em todo caso, não foi conferida à obra de Saffioti uma atenção semelhante, mesmo considerando que o tema dependência e desenvolvimento nacional perpasse boa parte de seu livro, como discutido no segmento anterior. O fato de que a chave de leitura utilizada pela autora foi enfocar as relações entre sexo e classe pode ter contribuído para que ela não conste entre os cânones que pensaram o Brasil? Tudo indica que sim, somado ao fato de que se trata de uma mulher, que, por si só, dificulta que seja legitimada entre os cânones.

Foi dentro dos estudos e da militância feminista que Saffioti obteve, primeiramente, seu maior reconhecimento, como indica o fato de que o Dicionário mulheres do Brasil, publicado em 2000, possui um verbete sobre ela, dando destaque ao seu primeiro livro:

Diplomou-se em Ciências Sociais pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo (USP) em 1960, quando começou suas primeiras pesquisas acadêmicas sobre a condição feminina no Brasil. Resultou de seus estudos a tese de livre-docência para a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Araraquara, da Universidade Estadual de São Paulo (UNESP), A mulher na sociedade de classes: mito e realidade, sob orientação do professor Florestan Fernandes. Essa tese, defendida por Heleieth em 1967, constitui importante contribuição ao estudo do lugar da mulher na sociedade brasileira e foi republicada pela editora Vozes em 1976. O livro alcançou a condição de best-seller, reflexo da efervescência do movimento de mulheres na década. (Schuma SCHUMAHER; Érico Vital BRAZIL, 2000SCHUMAHER, Schuma; BRAZIL, Érico Vital (Orgs.). Dicionário mulheres do Brasil: de 1500 até a atualidade. Rio de Janeiro: Zahar Ed., 2000., p. 256).

Outra publicação, também nascida dos debates feministas e que confere relevo à Saffioti, é o livro Brasileiras guerreiras da paz, coordenado por Clara Charf, o qual surgiu a partir da indicação de mulheres brasileiras para concorrer ao Prêmio Nobel da Paz. Heleieth Saffioti estava entre as 52 finalistas no Brasil. A indicação teve desdobramento na publicação de um livro com o perfil dessas selecionadas. Assim como o Dicionário mulheres do Brasil, é uma edição dirigida a um público mais amplo do que aquele da academia. Vale ressaltar um trecho do texto que trata da autora:

Fez história, quando em 1966, em meio aos puxa-sacos da ditadura militar e da estreiteza dos acadêmicos ortodoxos, defendeu sua tese de livre-docência com um tema irreverente: “A mulher na sociedade de classes.” Sustentou com maestria e brilhantismo o viés de gênero na análise histórica, social, política e econômica. (CHARF, 2006CHARF, Clara. Brasileiras guerreiras da paz. São Paulo: Editora Contexto, 2006., p. 68-69).

Os dois livros salientam o pioneirismo de Heleieth dentro da academia, sobressaindo-se, também, como uma mulher que “fez história”. Destacam o impacto da publicação que, no final da década de 1960, desafiou a ditadura civil-militar com temática e abordagem teórica que poderiam ser consideradas subversivas. Sua atuação intelectual também foi lembrada pela contribuição para o movimento feminista que se organizou a partir da década de 1970.

Um dos primeiros textos acadêmicos voltado à análise da obra de Saffioti data de 1995. Trata-se de um pequeno artigo de Bila Sorj intitulado “Dois olhares sobre Heleieth Saffioti” e foi apresentado em um seminário comemorativo dos 25 anos da publicação de A mulher na sociedade de classes. Nesse escrito, Sorj destacou a importância do livro para os debates acadêmicos feministas dos anos 1970:

Estas três correntes de pensamento marcam os debates da década de 70 - modernização v acumulação desigualdades de classe v desigualdades de gênero - procurando promover ao mesmo tempo uma maior compreensão da origem da opressão feminina e um esforço para que derivem estratégias políticas de emancipação das mulheres. A mulher na sociedade de classes ocupa um lugar destacado neste debate. Sua importância transcende em muito as nossas possíveis discordâncias teóricas até porque Heleieth revê muitas das suas posições em trabalhos posteriores advogando por uma visão mais integrada do capitalismo e do patriarcalismo do domino público e privado da produção e reprodução. (SORJ, 1995SORJ, Bila. “Dois olhares sobre Heleieth Saffioti”. Revista Estudos Feministas, Rio de janeiro, v. 3, n. 1, p. 156-158, 1995., p. 157-158).

Se no início dos anos 2000 Heleieth Saffioti era pouco analisada do ponto de vista acadêmico, obteve reconhecimento através dos movimentos sociais (especialmente os movimentos feministas) que encontraram em seu trabalho referências para pensar o Brasil pelo ‘viés de gênero’. Cabe salientar que pesquisas voltadas ao seu pensamento começaram a surgir, com maior fôlego, na década de 2000. E, após sua morte, houve um crescimento de artigos e entrevistas publicados em periódicos. De acordo com levantamento realizado pela página Marxismo 21 (2016), até então haviam sido contabilizados 26 artigos e três entrevistas publicadas em periódicos acadêmicos.

Mapeando as publicações anteriores aos anos 2000, encontra-se, também, um artigo de 1995 que versa sobre as mulheres na historiografia brasileira, de autoria de Margareth Rago. Nesse texto, a historiadora ressaltou o trabalho de Saffioti, situando-a como uma pioneira nos estudos sobre as formas de integração das mulheres na sociedade brasileira, especialmente no mundo do trabalho. Rago analisa que o livro A mulher na sociedade de classes, assim como boa parte das primeiras produções sobre mulheres no campo da História, da Antropologia e da sociologia, foram influenciadas pelo marxismo. Essa perspectiva, segundo Rago (1995RAGO, Margareth. “As mulheres na historiografia brasileira”. In: SILVA, Zélia Lopes (Org.). Cultura história em debate. São Paulo: UNESP, 1995. p. 81-91., p. 81), situava a mulher “como produto das determinações econômicas e sociais, vítima das injunções do sistema, dando pouco destaque à sua dimensão de sujeito histórico, consciente e atuante.” O artigo, embora saliente o pioneirismo de Saffioti, não aprofunda a análise da sua obra e afirma que, somente nos anos 1980, as historiadoras “propriamente ditas” começaram a publicar pesquisas.

Assim, cinquenta anos depois da primeira edição, é oportuno um debruçamento sobre o livro de Saffioti para refletir sobre como ela contribuiu para a escrita da história das mulheres no Brasil. Mesmo não sendo historiadora de formação, Heleieth elaborou uma narrativa que dialogava com as preocupações dos historiadores3 3 Utilizo o termo no masculino por reconhecer que, naquele período, a profissão de historiador era ocupada amplamente por homens. da época ao se dedicar aos temas da escravidão, do desenvolvimento/subdesenvolvimento da sociedade brasileira, às relações entre classes sociais, ao legado da sociedade escravista para o século XX, entre outros. A partir de debates com historiadores, antropólogos, sociólogos e economistas, Saffioti procurava evidenciar que essas pesquisas necessitavam enfocar as relações entre os sexos para melhor desvendar a complexidade dos processos históricos brasileiros. Ao mesmo tempo, a autora engendrava uma narrativa muito próxima à dos historiadores, apresentando documentos diversificados (cartas, relatos de viajantes, dados estatísticos) com o propósito de referendar suas afirmações. Meu argumento é que o fato de Heleieth Saffioti não ser referenciada como uma cientista social que contribuiu para o campo da História se deve menos a questões de fronteiras disciplinares e mais aos processos de reconhecimento/invisibilidade da produção de mulheres na historiografia. Concordo com Maria da Glória Oliveira (2018OLIVEIRA, Maria da Glória. “‘Os sons do silêncio’: interpelações feministas decoloniais à história da historiografia”. Revista História da Historiografia, v. 11, n. 28, set/dez. 2018., p. 108) quando ela salienta que “as produções intelectuais femininas não se configuraram como tema privilegiado da chamada história das mulheres, nem da história intelectual, mantendo-se, em larga medida, como o ‘outro’ silenciado pelos cânones e pela memória disciplinar”.

O recorte proposto para a análise se concentra na parte II do livro, segmento que foi dedicado a um debate historiográfico para pensar a evolução das mulheres na sociedade brasileira. Nesse capítulo, Saffioti procurava discutir como a categoria sexo opera no sistema capitalista mundial e quais foram as especificidades dessa relação na história do Brasil. Para ela, o sexo feminino constituía uma categoria subalterna, especialmente quando relacionado às mulheres da classe trabalhadora em países periféricos:

Assim, se para o centro da dominância do sistema capitalista mundial as relações internacionais permitem atenuar as tensões geradas pela estruturação em classes sociais dessas sociedades, diminuindo a necessidade de utilização social do fator sexo como marginalizado da força de trabalho feminina, para os países perifericamente integrados naquele sistema o problema da mulher não encontra, tão facilmente, nem mesmo essa solução parcial. Nos países de economia dependente, portanto, mais um fator se vem acrescentar aos já típicos de uma economia de mercado. (SAFFIOTI, 1976SAFFIOTI, Heleieth. A mulher na sociedade de classes: mito e realidade. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1976., p. 137).

Em sua obra, há uma crítica à importação de modelos explicativos que não coadunassem com a realidade do Brasil. Afirmava que a reflexão sobre a condição da mulher, tanto no presente quanto no passado, era um aspecto relevante para compreender a sociedade de classes no Brasil. A esse respeito, Céli Pinto (2014PINTO, Céli. “O feminismo bem-comportado de Heleieth Saffioti”. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 22, n. 1, p. 321-333, jan./abr. 2014.), observou que o centro da análise de Saffioti, em seu primeiro livro, circunda em torno da problemática da classe social, enquadrando-se na tradição acadêmica marxista, o que acabou gerando alguns problemas teóricos para conciliar classe e sexo. Compreendo que, embora Saffioti enfatizasse a classe (talvez como parte da estratégia de tornar seu trabalho aceitável pelos pares), o aspecto inovador de sua obra reside na inserção da categoria sexo - articulada também à categoria raça. É essa interpretação da história do Brasil, enfocando essas três categorias, que tornou o livro original e relevante.

O diálogo com cientistas sociais, mesmo os do campo marxista, não foi realizado sem divergências. No capítulo em tela, Saffioti teceu críticas à historiografia, assinalando que algumas interpretações careciam de valor heurístico e tomavam como modelo esquemas abstratos:

As distorções interpretativas, decalcadas em esquemas abstratos e destituídos de valor heurístico, de que tem sido objeto a história brasileira, podem induzir o estudioso da condição da mulher na sociedade nacional a assimilar essa condição com a da mulher da Europa Medieval e, portanto, a explicá-la em função de sua suposta economia feudal. Até mesmo autores que não se propõem investigar senão a condição atual da mulher brasileira, interpretam-na como se ela representasse um estágio variavelmente avançado da superação de uma economia estruturada em moldes feudais. Ainda que se recusem a reduzir totalmente a situação da mulher na nação brasileira à situação da mulher européia da época medieval, como é o caso de Olga Werneck, não deixam de praticar, pelo menos parcialmente, aquela redução. (SAFFIOTI, 1976SAFFIOTI, Heleieth. A mulher na sociedade de classes: mito e realidade. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1976., p. 138).

Saffioti fez uma referência ao artigo publicado por Olga Werneck na Revista Civilização Brasileira sob o título “O subdesenvolvimento e a situação da mulher”, em 1965.4 4 Não foi possível ter acesso ao artigo de Olga Werneck. Mas vale ressaltar que ela trabalhava regularmente para a revista, sendo encarregada de uma seção sobre literatura. Olga é filha do historiador Nelson Werneck Sodré. No entanto, sua divergência principal era dirigida a Nelson Werneck Sodré, historiador que foi defensor da tese de que no Brasil foram construídas relações de produção feudais ou semicapitalistas. (REIS, 2007REIS, José Carlos. As identidades do Brasil: de Varnhagen a FHC. 9. ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2007.). Em outro trecho do livro, ela retoma o tema para, novamente, afirmar oposição à noção de feudalismo brasileiro:

A própria constituição da economia colonial brasileira, voltada que era para o mercado externo, levaria ao fortalecimento do patrimonialismo mais próximo do tipo patriarcal em detrimento de um patrimonialismo estamental, que oporia maiores obstáculos ao desenvolvimento das relações capitalistas de produção, já em formação. Diferentemente do feudalismo, (caso limite) da estrutura patrimonial no sentido de estereotipização e fixação das relações entre os senhores e vassalos, a estrutura patrimonialista de poder apresenta grau bastante elevado de compatibilidade com o desenvolvimento do capitalismo em suas primeiras etapas de constituição. (SAFFIOTI, 1976SAFFIOTI, Heleieth. A mulher na sociedade de classes: mito e realidade. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1976., p. 161-162).

Em sua exposição, é perceptível a influência do historiador Caio Prado Jr., crítico à interpretação de Werneck Sodré. Apesar da aproximação teórica com Prado Jr., Heleieth Saffioti divergia deste (e de outros intelectuais) quanto ao debate da condição feminina. Em seu livro, ela buscou escapar a uma noção de mulher universal. Discutiu os efeitos do capitalismo para a população feminina, considerando a posição diferencial - e periférica - do Brasil no sistema capitalista. Também se propôs a comparar a relação entre mulheres brancas e mulheres negras na história. Para ela, a mulher branca representava aquela com quem o homem branco pretendia estabelecer matrimônio nos moldes da família patriarcal. Todavia, em sua leitura, a mulher negra não poderia ser reduzida a um objeto sexual uma vez que a exploração econômica da escrava era mais elevada que a do escravo homem.5 5 Caio Prado Jr. afirmava que a relação sexual entre senhores e escravizadas não ultrapassava “o nível primário e puramente animal do contato sexual”, negando qualquer papel relevante às mulheres. (PRADO JR., 1976 apud GONZALEZ, 1984, p. 231). A mulher negra, segundo a autora, era explorada como trabalhadora, como mulher e como reprodutora da força de trabalho e “[…] se constituía no instrumento inconsciente que, paulatinamente, minava a ordem estabelecida, quer na sua dimensão econômica, quer na sua dimensão familiar”. (SAFFIOTI, 1976SAFFIOTI, Heleieth. A mulher na sociedade de classes: mito e realidade. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1976., p. 165). Ao comentar a crítica que Heleieth Saffioti elaborou a estudiosos que ignoraram essa condição diferencial da mulher negra escravizada, Lélia Gonzalez dirigiu-se especialmente a Caio Prado Jr. e, com uma pitada de humor, afirmou que, valendo-se das regras do discurso acadêmico, a interpretação elaborada por Saffioti “deu um baile” no renomado historiador:

Depois que a gente lê um barato assim, nem dá vontade de dizer nada porque é um prato feito. Mas vamos lá. Quanto aos dois fatos apontados e conjugados, é só dar uma olhadinha, de novo, no texto de Heleieth. Ela dá um baile no autor, dentro do mesmo espaço discursivo em que ele se colocou. Mas, nosso registro é outro, vamos dar nossa chamadinha também. Pelo exposto, a gente tem a impressão de que branco não trepa, mas comete ato sexual e que chama tesão de necessidade. E ainda por cima, diz que animal só tira sarro. Assim não dá prá entender, pois não? Mas na verdade, até que dá. Pois o texto possui riqueza de sentido, na medida em que é uma expressão privilegiada do que chamaríamos de neurose cultural brasileira. (Lélia GONZALEZ, 1984GONZALEZ, Lélia. “Racismo e sexismo na cultura brasileira”. Revista Ciências Sociais Hoje, Anpocs, p. 223-244, 1984., p. 231-232).

Esse registro é interessante para pensar a influência do livro de Saffioti para a história das mulheres no Brasil. Mesmo que o foco central de sua obra não fosse a relação entre sexo e raça - e sim entre sexo e classe - ela apresentou uma perspectiva crítica em relação ao pensamento hegemônico nas Ciências Humanas do período. Na contramão das interpretações que viram os escravizados como uma coisa, um não sujeito, para a autora, a mulher negra representou uma inconsistência da sociedade escravocrata, uma vez que cabia a elas - além de uma função no sistema produtivo - um papel sexual que gerava tensões: “o produto desta relação assume, na pessoa do mulato, a forma de um foco dinâmico de tensões sociais e culturais. A exigência da prestação de serviços sexuais, que o senhor fazia em relação à negra escrava, tornava-a, pois, simultaneamente, res e pessoa humana”. (SAFFIOTI, 1976SAFFIOTI, Heleieth. A mulher na sociedade de classes: mito e realidade. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1976., p. 164).

Sua reflexão a respeito das mulheres brancas pertencentes à elite escravocrata também era interessante, examinando como ocorria a submissão destas à família patriarcal. No entanto, ela menciona um relato do viajante Charles Expilly, publicado na França em 1863, para afirmar que algumas mulheres conseguiam burlar os comportamentos esperados e chegavam a viver aventuras amorosas fora do seu grupo social, inclusive com escravos. O livro, intitulado Mulheres e costumes do Brasil, foi publicado no Brasil apenas em 1935. O autor escreveu uma apresentação dedicada à sua filha Marta, que teria nascido no Brasil e sido alimentada pela ‘mãe preta’ identificada como Julia a Monjola. Nesse texto de apresentação, o autor firma posição contrária à escravidão e fala da importância de que sua filha tenha gratidão pela escravizada Julia: “Quem sabe, aquela que te deu a vida, terá morrido sob o chicote do feitor?” (Charles EXPILLY, 1935EXPILLY, Charles. Mulheres e costumes no Brasil. São Paulo: Edições da Companhia Editora Nacional, 1935., p. 9). É possível que essas e outras leituras de relatos de viajantes, tenham contribuído para a reflexão elaborada por Saffioti sobre o papel ativo das mulheres negras na geração de tensões no sistema escravocrata. De fato, as crônicas de viajantes que percorreram ou viveram no Brasil oitocentista estão presentes em diversos momentos do livro. Saffioti recorreu a esses relatos, ora como bibliografia, ora para arrolá-los como documentos que conferissem efeitos de prova para suas afirmações. A respeito do uso desses relatos, Temístocles Cezar (2018CEZAR, Temístocles. Ser historiador no século XIX: o caso Varnhagen. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2018., p. 83) comenta que neles parece haver uma “intenção de verdade” (grifo do autor) e que “[…] a historiografia, desde o século XIX, momento de sua primeira aproximação consistente com a ciência, serve-se desses relatos como documento histórico.” Desse modo, vejo nesse uso das crônicas de viajantes uma prática historiográfica. Ao falar em prática, refiro-me à discussão de Michel de Certeau sobre a operação historiográfica:

Encarar a história como uma operação será tentar, de maneira necessariamente limitada, compreendê-la como a relação entre um lugar (um recrutamento, um meio, uma profissão, etc.), procedimentos de análise (uma disciplina) e a construção de um texto (uma literatura). É admitir que ela faz parte da “realidade” da qual trata, e que essa realidade pode ser apropriada “enquanto atividade humana”, “enquanto prática”. (DE CERTEAU, 1982DE CERTEAU, Michel. A escrita da história. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1982., p. 66).

Na parte II de A mulher na sociedade de classes, Heleieth elaborou uma narrativa amalgamada em fontes documentais diversas para abordar as transformações na educação e na participação social das mulheres, do Brasil Colônia até o século XX. Dados de censos demográficos, anuários estatísticos, recenseamentos, coleções de leis e decretos, anais do parlamento brasileiro, e, em menor número, jornais, foram utilizados para abordar os percursos da população feminina. A partir da interpretação dessas fontes, ela organizou a seguinte periodização: colônia e império (momento marcado pela ausência e dificuldade de acesso ao ensino para as meninas); fase pré-republicana (nas últimas duas décadas do século XIX houve um crescente debate público sobre a instrução feminina, defendido especialmente por cientificistas e liberais); fase republicana até 1930 (gradativo acesso das mulheres ao ensino primário, porém, com representação insignificante no ensino superior); fase republicana após 1930 (aumento do acesso feminino à escolarização, especialmente com a regulamentação das escolas normais em diversos estados).

Apesar dessa periodização que pode parecer, de certo modo, uma linha evolutiva, Heleieth Saffioti enfocou não apenas aspectos de avanço, mas também de recuos conservadores. Como exemplo, ela menciona a Lei Orgânica do Ensino Secundário, aprovada no escopo da Reforma Capanema, em 1942, que representou, segundo a autora, um golpe no lento processo de aceitação social da educação mista: “Sem instituir a obrigatoriedade da educação segregada para os dois sexos, sugere que a educação da mulher se faça em classes especiais, isto é, em classes exclusivamente femininas.” (SAFFIOTI, 1976SAFFIOTI, Heleieth. A mulher na sociedade de classes: mito e realidade. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1976., p. 226).

Isto posto, longe de sustentar uma percepção de que a história das mulheres no Brasil era marcada por um progresso irrestrito, Saffioti ofereceu uma interpretação atenta aos movimentos de transformações, permanências e - por que não - dos retrocessos. Sua história da “evolução da condição da mulher no Brasil”, ao contrário do que sugere esse título dado ao capítulo, não considerou que a população feminina obteve uma ascensão linear. Tampouco asseverou uma noção universal da categoria mulher. Ao contrário, desde sua primeira obra, mostrou-se uma pensadora preocupada com o modo como a classe, o sexo e a raça elaboraram relações complexas no sistema patriarcal, tema que a instigaria até o fim da sua jornada intelectual.

Considerações finais

Nos anos de 1960 e 1970, pesquisar e escrever livros que dessem ênfase à condição feminina significava, de certa forma, um desvio da problemática central das análises intelectualizadas da época. Naquele contexto, mesmo não se apresentando como feminista, Heleieth Saffioti trouxe à tona a necessidade de pensar o Brasil na perspectiva das relações entre os sexos. Desse modo, a principal contribuição teórica do livro A mulher na sociedade de classes: mito e realidade foi questionar a noção corrente de que a sociedade brasileira podia ser interpretada apenas através de uma ou duas categorias homogêneas e sem considerar as mulheres como sujeito fundamental das relações de produção e reprodução.

Saffioti pavimentou um caminho para pensar a história das mulheres no Brasil, entrelaçando-as ao sistema capitalista que ela definiu como patriarcal e patrimonialista. Desde seu primeiro estudo, realçou a necessidade de teorizar a história a partir do conceito de patriarcado. Embora suas afirmações possam, à luz dos estudos atuais sobre o tema, ser lidas como generalizáveis e talvez simplificadoras, seu livro teve o mérito de salientar a relevância das mulheres para a compreensão do nosso tecido social, abrindo novas perspectivas de interpretações históricas atentas ao caráter estruturante das relações de gênero. Além disso, questionou as leituras recorrentes sobre a escravidão, ao assegurar que as mulheres negras escravizadas tiveram um papel desarticulador da sociedade escravista patriarcal. Na época, atribuiu esse aspecto a uma resposta “inconsciente” das mulheres negras. Uma década depois, essa interpretação passou a ser revista por estudiosas como Lélia Gonzalez e Beatriz Nascimento, intelectuais atentas às estratégias de resistência do povo negro e, especialmente, das mulheres. Na entrevista realizada em 2008 a autora comentou que suas análises também se transformaram, evidenciando sua característica de intelectual inquieta que não se conformou a esquemas explicativos fechados. Quando perguntada sobre as críticas que ela recebeu, nos anos de 1960, por parte de intelectuais de esquerda, ela respondeu trazendo o debate para o presente:

Até atualmente eu sou criticada pelos marxistas porque eu não sou uma marxista ortodoxa, e sou criticada pelos não marxistas porque sou uma marxista ortodoxa. Veja bem! Numa conferência que eu fiz a convite da Boitempo [editora] um deles se manifestou e disse assim: não podia aceitar essa minha ideia de colocar no mesmo patamar o sexismo, o racismo e as classes sociais. Então, tem gente que hierarquiza e é firme em esta hierarquização, e eu acho que na medida em que se continue a hierarquizar se dá uma importância maior às classes quando, na verdade, você vê que quando nós nascemos, qualquer pessoa, já tem um destino traçado. São três destinos: de acordo com o sexo, o da raça e o da classe social. […]

Mas eu trabalho com o espaço do imponderável, ao mesmo tempo que eu reconheço um certo determinismo. Eu sei, porque eu mesma fui capaz de mudar meu destino, então, por que os outros não iriam conseguir? Muita mulher, muito homem mudou o seu destino nas três contradições. Pra começar, esse conceito de identidade, quando é usado de modo fixo, é uma tragédia, só atrapalha, não ajuda em nada. Eu prefiro trabalhar com subjetividades. A identidade é dada por uma série de subjetividades, e nós matamos algumas delas, damos nascimento a novas, estamos em permanente mudança. (SAFFIOTI, 2010SAFFIOTI, Heleieth. “Entrevista com Heleieth Saffioti”. [Entrevista cedida a] Natalia Pietra Méndez. MÉTIS: História & Cultura, v. 9, n. 8, p. 275-294, jul./dez. 2010., p. 293).

Nos anos 1980, o campo da história das mulheres expandiu-se no Brasil. Houve um crescente número de núcleos e grupos de pesquisa, publicações em revistas especializadas, teses e dissertações. Ao longo das décadas de 1990 e 2000, pode-se dizer que esse campo galgou maior reconhecimento entre os pares e, também, intensificaram-se os diálogos com outras disciplinas que, assim como a História, passaram a se especializar nos estudos de gênero. Esse movimento contribui para aproximar pesquisadoras e pesquisadores, inserindo os estudos sobre gênero e mulheres em uma área cada vez mais interdisciplinar. A expansão também teve como resultado o surgimento de leituras críticas aos trabalhos das estudiosas pioneiras. No caso do livro de Saffioti, as principais giraram em torno de duas questões: o livro privilegiou a análise de classe em detrimento do sexo; adotou uma perspectiva macro, focada nos efeitos do sistema capitalista para as mulheres, conferindo-lhes pouca agência como sujeitos históricos.

Apesar dessas e de outras críticas que lhe foram dirigidas, há atualmente um reconhecimento de que A mulher na sociedade de classes: mito e realidade delineou caminhos para a inserção da teoria feminista no campo intelectual brasileiro, influenciando as pesquisadoras das gerações subsequentes. Suas análises trouxeram novos elementos, substanciais para que a história do Brasil deixasse de ser centrada em um sujeito universal masculino que relegava a história das mulheres à invisibilidade.

Referências

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  • CANDIDO, Antonio. “Prefácio”. In: SAFFIOTI, Heleieth. A mulher na sociedade de classes: mito e realidade São Paulo: Expressão Popular, 1976. p. 9-10.
  • CEZAR, Temístocles. Ser historiador no século XIX: o caso Varnhagen Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2018.
  • CHARF, Clara. Brasileiras guerreiras da paz São Paulo: Editora Contexto, 2006.
  • DE CERTEAU, Michel. A escrita da história Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1982.
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  • PINTO, Céli. “O feminismo bem-comportado de Heleieth Saffioti”. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 22, n. 1, p. 321-333, jan./abr. 2014.
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  • SAFFIOTI, Heleieth. A mulher na sociedade de classes: mito e realidade 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1976.
  • SAFFIOTI, Heleieth. “Entrevista com Heleieth Saffioti”. [Entrevista cedida a] Natalia Pietra Méndez. MÉTIS: História & Cultura, v. 9, n. 8, p. 275-294, jul./dez. 2010.
  • SCHUMAHER, Schuma; BRAZIL, Érico Vital (Orgs.). Dicionário mulheres do Brasil: de 1500 até a atualidade Rio de Janeiro: Zahar Ed., 2000.
  • SORJ, Bila. “Dois olhares sobre Heleieth Saffioti”. Revista Estudos Feministas, Rio de janeiro, v. 3, n. 1, p. 156-158, 1995.
  • 1
    A apresentação é composta de um prefácio escrito por Antonio Candido e uma nota preliminar, escrita pela própria autora.
  • 2
    A Comissão Econômica para a América Latina e Caribe (CEPAL) foi criada no final dos anos 1940, reunindo intelectuais da América Latina que defendiam um conjunto de teorias econômicas a fim de promover o desenvolvimento econômico no continente através da industrialização, estimulada pelo Estado.
  • 3
    Utilizo o termo no masculino por reconhecer que, naquele período, a profissão de historiador era ocupada amplamente por homens.
  • 4
    Não foi possível ter acesso ao artigo de Olga Werneck. Mas vale ressaltar que ela trabalhava regularmente para a revista, sendo encarregada de uma seção sobre literatura. Olga é filha do historiador Nelson Werneck Sodré.
  • 5
    Caio Prado Jr. afirmava que a relação sexual entre senhores e escravizadas não ultrapassava “o nível primário e puramente animal do contato sexual”, negando qualquer papel relevante às mulheres. (PRADO JR., 1976 apud GONZALEZ, 1984, p. 231).
  • Como citar este artigo de acordo com as normas da revista:

    MÉNDEZ, Natalia Pietra. “A mulher na sociedade de classes: contribuições para uma historiografia feminista”. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 29, n. 1, e76728, 2021.
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Maio 2021
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2021

Histórico

  • Recebido
    26 Ago 2020
  • Revisado
    09 Nov 2020
  • Aceito
    07 Dez 2020
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