Acessibilidade / Reportar erro

Gótico & Queer: uma análise de Lost Souls, de Poppy Z. Brite

Gothic & Queer: an essay on Lost Souls, by Poppy Z. Brite

Gothic & Queer: un ensayo sobre Lost Souls, de Poppy Z. Brite

Resumo:

A subcultura gótica apresenta uma disposição altamente performática, algo que se reporta a sexualidade, corpo e gênero e, assim, a cena propicia o surgimento de identidades queer. O autor transgênero Poppy Z. Brite insere o romance Lost Souls nesse contexto, sendo um dos poucos autores de ficção gótica a relacionar sua obra à subcultura de mesmo nome. Nesse artigo, discorro sobre a subcultura gótica em paralelo à teoria de gênero de Butler, então analiso o desenvolvimento da personagem Nothing, de Lost Souls, em relação à estética da cena gótica.

Palavras-chave:
subcultura gótica; teoria de gênero; ficção gótica; identidade queer

Abstract:

The Gothic Subculture features a highly performative disposition relating to sexuality, body, and gender and, thus, the scene promotes the emergence of queer identities. The transgender author Poppy Z. Brite inserts his novel Lost Souls in this context as one of the few authors of Gothic fiction to relate his work to the subculture of the same name. In this article I discuss the Gothic Subculture parallel to Butler's theory of gender, and I approach the character development of Nothing, Lost Souls’ protagonist, relating it to the aesthetics of the Gothic scene.

Keywords:
Gothic Subculture; gender theory; gothic fiction; queer identity

Resumen:

La subcultura gótica presenta una disposición altamente performativa relacionada con la sexualidad, el cuerpo y el género y, por lo tanto, la escena promueve el surgimiento de identidades queer. El autor transgénero Poppy Z. Brite inserta su novela Lost Souls en este contexto como uno de los pocos autores de ficción gótica que relaciona su trabajo con la subcultura del mismo nombre. En este ensayo hablo sobre la subcultura gótica paralela a la teoría de género de Butler, y me acerco al desarrollo del personaje de Nothing, protagonista de Lost Souls, relacionándolo con la estética de la escena gótica.

Palabras clave:
subcultura gótica; teoría de género; ficción gótica; queer identidad

Introdução

Na primavera de 1992, a autora Dunja Brill (2008BRILL, Dunja. Goth Culture: Gender, Sexuality and Style. Oxford: Berg, 2008.) teve o primeiro contato com a subcultura gótica. No Ballhaus, um bar subterrâneo no centro de Bonn, na Alemanha, ela recorda ter ouvido estranhos sons de guitarras e vocais baixos e roucos em meio à névoa de gelo seco que se insinuava pelo lugar. Na pista de dança, figuras em veludo, maquiagens elaboradas e penteados chamativos. Em particular, uma garota esguia em maquiagem pálida e batom preto, dançando em meio às brumas. Levou mais de um minuto para que Brill percebesse que ela era, na verdade, ele. Essa sugestão de indefinição de gênero, fruto da androginia da figura na pista de dança, motivou o estudo da autora sobre gênero e sexualidade na subcultura gótica, Goth Culture, Gender, Sexuality and Style (2008), uma subcultura com a qual a própria autora veio a identificar-se.

Poppy Z. Brite (1992BRITE, Poppy Z. Lost Souls. Nova Iorque: Random House Inc., 1992.) é um autor transgênero de ficção gótica. Sua obra flerta com o horror e o gore e sua paisagem ficcional é habitada por personagens comumente gays ou bissexuais e descrições gráficas de sexo, morte e violência não são incomuns. Brite escreve um tipo de literatura chamado de gótico sulista, vertente que se estabeleceu a partir da segunda metade do século XX e, assim como a ficção gótica e o gótico americano, funda-se numa visão desencantada de mundo (Júlio FRANÇA, 2017FRANÇA, Júlio. “Medo e literatura”. In: FRANÇA, Júlio. Poéticas do Mal. Rio de Janeiro: Bonecker, 2017. p. 36-52.). O gótico sulista tornou-se exponencial na literatura norte-americana do século 20, tendo como pano de fundo o sul dos Estados Unidos. Esse tipo de ficção trabalha com temas comuns à região - questões sobre racismo, classe e a decadência das antigas famílias -, sobretudo as tensões entre um passado sombrio e urgências suprimidas em relação ao verniz apaziguador do presente, além da violência latente no discurso. Esses temas e elementos podem ser reconhecidos nas obras dos autores pioneiros desse tipo de ficção, como William Faulkner e Flanery O’Connor.

É interessante notar que Brite é um dos poucos autores a trabalhar com ficção gótica que de fato aproxima a literatura gótica da subcultura gótica. Em parte, talvez, pelo fato de que o próprio autor integrava a cena da Nova Orleans nos anos 1990. Considerando a característica performática da subcultura, algo que vai ao encontro da teoria de gênero de Judith Butler (2019BUTLER, Judith. Problemas de gênero. Feminismo e subversão de identidade. Tradução de Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2019.), tal aproximação acrescenta interessantes nuances à leitura crítica do romance Lost Souls (1992) quando consideramos Nothing e seu “death chic” ou a androginia de Zillah. Brite tem certa inserção na academia norte-americana, mas o pano de fundo da cena gótica parece escapar à crítica, uma vez que seus personagens costumam ser referidos de forma genérica como “gutter punks” ou similares (Renee VINCENT, 2015VINCENT, Renee. “Vampires as a Tool to Destabilize Contemporary Notions of Gender and Sexuality”. Ellipsis, Nova Orleans, University of New Orleans, v. 42, n. 1, mar. 2015. Disponível em https://scholarworks.uno.edu/ellipsis/vol42/iss1/25.
https://scholarworks.uno.edu/ellipsis/vo...
).

O estudo de Brill, por contemplar questões sobre gênero e sexualidade, serve como uma das principais bases para este artigo. Não proponho aqui que o romance de Brite se relacione apenas à subcultura gótica, o que seria reducionista; proponho sim outra abordagem ou entrada de leitura, de cunho interdisciplinar. É interessante notar que Brill, assim como eu, se identifica e apresenta certa inserção na cena, o que vai ao encontro do comentário de David Punter e Glennis Byron (2004PUNTER, David; BYRON, Glennis. The Gothic. Oxford: Blackwell Publishing, 2004.); os autores chegam a se perguntar se, de alguma forma, a subcultura gótica representa um tipo de recepção da estética da ficção gótica, uma vez que as letras de bandas góticas, assim como os temas, conforme menciono a seguir, muitas vezes se apropriam de temas da ficção gótica. Os autores mencionam que a subcultura gótica devia ser abordada com mais frequência nos estudos do gótico, mas também comentam que a cena se apresenta como um campo de estudos difícil e que “essa questão só será resolvida no campo dos estudos do gótico quando mais acadêmicos jovens, já inseridos de alguma forma na cena gótica, passarem a produzir trabalhos acadêmicos”1 1 Do original: [t]he problem will only be resolved for Gothic studies when more young scholars who are already positioned to some degree within the Gothic scene begin to do academic work (2004, p. 62). Todas as traduções foram feitas pelo autor do artigo. (2004, p. 62). Nessa lógica, assim como Brill, dedico-me a estreitar o hiato entre a ficção e subcultura gótica no âmbito da produção acadêmica. Neste artigo, discorro sobre a subcultura gótica em paralelo à teoria de gênero de Butler, então analiso o desenvolvimento da personagem Nothing, de Lost Souls, em relação à estética da cena gótica.

A subcultura gótica e o gênero enquanto performance

A subcultura gótica emergiu na efervescência cultural dos anos de 1980 e 1990, associada ou nascida da música pós-punk, principalmente na Grã-Bretanha (Joshua GUNN, 1999GUNN, Joshua. “Goth music and the inevitability of genre”. Popular Music and Society, Londres, v. 23, n. 1, p. 31-50, jul. 1999. Disponível em https://www.tandfonline.com/doi/abs/10.1080/03007769908591724.
https://www.tandfonline.com/doi/abs/10.1...
). É interessante notar que não há concordância sobre quando ou por que o termo “gótico” foi associado à cena. Antes de tudo, a subcultura gótica é uma “music-based subculture” (BRILL, 2008BRILL, Dunja. Goth Culture: Gender, Sexuality and Style. Oxford: Berg, 2008., p. 147), ou seja, fundamentada na estética musical das bandas que a compõem, e as demais fontes de (sub)capital cultural - moda, literatura, cinema - são características relevantes, mas secundárias. As bandas primais do gótico são bandas de pós-punk como Bauhaus, Siouxsie and The Banshees e Joy Division, caracterizadas por uma forte experimentação musical, pela relevância do baixo, por sons ecoantes - que, por vezes, anseiam flertar com a dissonância - e vocais profundos, comumente graves e roucos (Simon REYNOLDS, 2019REYNOLDS, Simon. Rip it up and start again. Londres: Faber Limited, 2019 (2005). [2005]).

A primeira questão apresentada por Brill se refere aos temas e letras que permeiam a música gótica, algo que não é mencionado com tanta frequência na crítica. Brill menciona que “as letras das músicas relacionam-se às angústias mais obscuras da alma humana: morte, sofrimento e destruição, assim como romance irrealizado e isolamento, mas também aos aspectos mais tabus e arcanos da magia e da mitologia (ex.: rituais antigos e vampiros)2 2 Do original: [s]ong lyrics revolved around the dark recesses of the human soul: death, suffering and destruction as well as unfulfilled romance and isolation, but also the more arcane, taboo aspects of magic and mythology (e.g. ancient rituals, vampires) (BRILL, 2008, p. 03). (BRILL, 2008BRILL, Dunja. Goth Culture: Gender, Sexuality and Style. Oxford: Berg, 2008., p. 03). Brill apresenta uma noção efetiva do conteúdo das letras; embora a menção a “dark recesses of the human soul” seja talvez elucidativa enquanto metáfora, seria mais pertinente mencionar que é nas letras que a música gótica mais se aproxima da literatura (gótica, ainda que não exclusivamente) e do cinema.

“Bela Lugosi’s Dead”, considerada um hino da banda Bauhaus, trata sobre o ator de mesmo nome, que interpretou Drácula no filme mudo de 1931. Antes da produção cinematográfica, o autor excursionou pela Europa, apresentando-se em montagens de uma adaptação teatral da obra de Bram Stoker (1965STOKER, Bram. Dracula. Nova Iorque: Signet, 1965 (1897). [1897]), tornando-se uma sensação devido à beleza sombria e à performance particular. Punter e Byron (2004PUNTER, David; BYRON, Glennis. The Gothic. Oxford: Blackwell Publishing, 2004.) mencionam que a figura de Lugosi se tornou uma representação fundamental relativa ao estilo de vestuário e à estética da cena, tornando-se um tipo de imagem que funde a personagem Drácula e o ator, como se não houvesse distinção. Essa artificialidade - no sentido de produto de um artifício, de manufatura - permeia de fato toda a subcultura e é um dos traços mais abordados quando se deseja aproximar a ficção gótica da subcultura gótica, mas voltarei a essa questão mais tarde.

A banda inglesa Joy Division (1979JOY DIVISION. Unknown Pleasures. Manchester: Factory Records, 1979.; 1980JOY DIVISION. Closer. Manchester: Factory Records, 1980.) é considerada uma das precursoras do gótico, apresentando uma sonoridade inicialmente associada ao pós-punk. As letras da banda possuem uma forte relação com a literatura moderna; a fragmentação do texto ao gosto de Joice e Faulkner, além das imagens fraturadas de T. S. Eliot - a solidão do homem no coração da metrópole - e a relação direta entre a faixa “Atrocity Exhibition”, do álbum Closer (1980), com o romance contemporâneo de arquitetura complexa de James Graham Ballard (2009BALLARD, James Graham. The Atrocity Exhibition. Londres: Fourth Estate, 2009 (1970). [1970]), The Atrocity Exhibition (1970). Interessante notar que uma das características da ficção gótica, se não a principal dela, seria sua capacidade de representar ou simbolizar ansiedades sociais, o que também está presente na estética do Joy Division. A sensibilidade reconhecível em suas músicas e letras revela um ponto de vista político que rejeita os valores da modernidade capitalista tardia. O Joy Division explora extensivamente temas como alienação e isolamento; aliás, eu poderia sugerir que o uso recorrente de reverb nas faixas do álbum Unknown Pleasures (1979) seria uma metáfora para esvaziamento de significado e solidão. As letras de Ian Curtis, o vocalista, não apenas exploram a alienação do eu em uma Inglaterra pós-industrial como sugerem algo característico da ficção gótica: o entorpecimento e a fratura do eu diante de toda a maquinaria da sociedade hegemônica.

Essa sumária apresentação da banda Joy Division dá um bom exemplo do trabalho estético e temático que envolve a composição de letra e música na subcultura. Também sugere que, no geral, a temática das letras das bandas góticas não pode ser facilmente caracterizada. Ainda assim, posso destacar a relação com a literatura moderna; com a poesia romântica maldita e decadentista e a estetização da vida e aos temas tabu (como o incesto em “Sister”, faixa de She Wants Revenge); com a tradição gótica no romance e as inquietações sobre gênero e sexualidade.

Brill menciona que a temática da subcultura gótica também se aproxima “aos aspectos mais tabus e arcanos da magia e da mitologia (ex.: rituais antigos e vampiros)”3 3 Do original: more arcane, taboo aspects of magic and mythology (e.g. ancient rituals, vampires) (BRILL, 2008, p. 03). (BRILL, 2008BRILL, Dunja. Goth Culture: Gender, Sexuality and Style. Oxford: Berg, 2008., p. 03). No entanto, esse imaginário que recorre a temas místicos, à imagem do vampiro romantizado, é algo posterior, fruto do final dos anos de 1990 e início de 2000, quando as fronteiras da subcultura se diluem e a cena deixa de ser algo local - antes alguém precisava ir aos clubes e festas, agora fóruns na internet ganham expressividade (Paul HODKINSON, 2002HODKINSON, Paul. Goth: identity, style and subculture. Oxford: Berg, 2002.). A cena é de fato permeada por um tipo de obsessão acerca do mito literário do vampiro, e essa obsessão tem nascimento marcado: o sucesso massivo que a adaptação cinematográfica de 1994 do romance Interview with the Vampire, publicado por Anne Rice (1997RICE, Anne. Interview with the Vampire. New York: Ballantine Books, 1997 (1976).) em 1976, teve na subcultura. Inclusive, as características do vampiro descritas por Brill são reinterpretações do mito literário do vampiro realizadas por Rice. Trata-se de algo visto na interseção entre o público da autora e a cena gótica, uma vez que os leitores de Rice eram “uma congregação de jovens vestidos totalmente de preto, ostentando penteados e acessórios ‘alternativos’, que aparentemente adotaram a série Crônicas Vampirescas de Rice como um estilo de moda”4 4 Do original: assembly of young people - clothed entirely in black and sporting ‘alternative’ hairstyles and jewelry - who had apparently adopted Rice’s Vampire Chronicles series as a fashion statement (Ray BROWNE; Gary HOPPENSTAND, 1996, p. 2). (Ray BROWNE; Gary HOPPENSTAND, 1996BROWNE, Ray B.; HOPPENSTAND, Gary. “Introduction: Vampires, Witches, Mummies, and Other Charismatic Personalities: Exploring the Anne Rice Phenomenon”. In: BROWNE, Ray B.; HOPPENSTAND, Gary (Orgs.). The Gothic World of Anne Rice. Bowling Green, OH: Bowling Green State University Popular Press, 1996. p. 1-13., p. 2) - algo que também se faz notável no nome de usurário (de fórum) de um dos entrevistados de Brill: LaLestat (BRILL, 2008, p. 49) - Lestat é o amante e criador de Louis em Interview with the Vampire (Entrevista com o vampiro).

A moda, como elemento de integração e, ao mesmo tempo, de individualização e autoafirmação, exerce relevância notável na cena. Algumas autoras mencionam, como Elizabeth Wilson (1992WILSON, Elizabeth. “Fashion and the postmodern body”. In: ASH, Juliet; WILSON, Elizabeth (Eds.). Chic thrills: A fashion reader. Londres: Pandora, 1992. p. 3-16.) e Gwendolyn O’Neal (1999), que a estética gótica inicial não compreende apenas um vestuário monocor, a saber, apenas roupas pretas, embora seja verdade que o preto é de longe dominante. Nas vertentes iniciais do pós-punk, particularmente até o final dos anos de 1990, é possível discernir características como penteados extravagantes, cabelos desfiados, tingidos por cores como rosa, verde ou azul; meias arrastão, usadas tanto como meias quanto como luvas; casacos de couro e de veludo; acessórios como pingentes, cruzes, anéis, coleiras e arreios - a iconografia judaico-cristã é marcante aqui; e os elementos são essencialmente os mesmos para qualquer gênero.

A diluição das fronteiras da subcultura, particularmente na virada para os anos 2000, permite a entrada de temas afins, mas não necessariamente relativos ao gótico nascente, como a música eletrônica e industrial, a estética BDSM e as vertentes germânicas de música, como o EBM e o gothic metal - este último não muito bem aceito na subcultura. Isso propicia uma onda de novas influências de vestuário: roupas justas e de aspecto militar, advindas do EBM, eletrônico e rock industrial; couro, vinil e PVC da estética BDSM; veludo, renda, roupas de corte e estética anacrônica, inspiradas num passado vitoriano idealizado e em figuras míticas romantizadas, como o vampiro. Algo que persiste, no entanto, é o caráter individual do vestuário, uma vez que a estética gótica é permeada pela noção do “faça você mesmo” e da experimentação com as roupas.

Punter e Byron (2004PUNTER, David; BYRON, Glennis. The Gothic. Oxford: Blackwell Publishing, 2004.) levantam os problemas que a comercialização em larga escala de artigos e vestuários góticos representa para uma subcultura que investe tanto (capital cultural) na noção de autenticidade e de personalização. Não há como negar, claro, a existência da comercialização de produtos alinhados à estética da cena. No entanto, isso não significa que os integrantes da cena consumam indiscriminada e exclusivamente tais produtos. A partir disso, concordo com Brill quando ela menciona que seria possível afirmar que a subcultura gótica caracteriza-se por um “conglomerado de subgrupos sobrepostos, os quais diferem consideravelmente em estilo e música, apesar de distinguirem-se de maneira coletiva e relativamente marcante da cultura hegemônica”5 5 Do original: conglomerate of overlapping subgroups, which differ considerably in style and music despite displaying a relatively strong collective distinctiveness vis-a-vis general culture (BRILL, 2008, p. 04). (BRILL, 2008BRILL, Dunja. Goth Culture: Gender, Sexuality and Style. Oxford: Berg, 2008., p. 04). Justamente por ser uma categorização múltipla, Brill dá conta da paisagem diversificada da cena, uma vez que abre possibilidade para que as nuances relativas à cultura, à nacionalidade, à classe, ao gênero e à sexualidade, por exemplo, possam ser discutidas sob as matizes da cena.

As práticas distintivas da cena se fundamentam, em primeiro lugar, na música e, em segundo, nas práticas de vestuário. Seleção de materiais, criação, combinação e exibição de peças - roupas, acessórios, variações de penteado - são uma atividade central na cena. Joanne Eicher e Mary Higgins (1993EICHER, Joanne; HIGGINS, Mary. “Definition and classification of dress: implications for analysis of gender roles”. In: BARNES, Ruth; EICHER, Joanne (Eds.). Dress and gender. Making and meaning. Oxford: Berg, 1993. p. 8-28.) sugerem que tais práticas podem ser lidas como “modificações corporais”, no caso de tatuagens, piercings, maquiagem e cortes de cabelo, e “complementações corporais”, no caso de roupas, joias, calçados e acessórios; ambas as instâncias possuem importância equivalente para manutenção do status dentro da micropolítica da cena. Embora as práticas de vestuário sejam mais comuns em clubes, é comum que góticos usem uma versão suavizada dessa estética no dia a dia. Brill traça uma caracterização dessas práticas:

Estetizar e re-mistificar a vida moderna. A apropriação estética da vida e do ambiente cotidiano - ex.: através da decoração do próprio corpo, apartamento, carro e pontos de encontro favoritos, considerados elementos de um sagrado ‘microcosmo sombrio’ - é contrastada ao caráter profano de pragmatismo e funcionalidade do mundo moderno6 6 Do original: Aestheticising and re-mystifying modern life. The aesthetic appropriation of everyday life and surroundings - e.g. through decorating one's body, flat, car and favourite hangouts as elements of a sacred ‘dark microcosm’ - is set against the pragmatic and functional profanity of the modern world (BRILL, 2008, p. 10). (BRILL, 2008BRILL, Dunja. Goth Culture: Gender, Sexuality and Style. Oxford: Berg, 2008., p. 10).

Estetizar a vida moderna, algo que até sugeriria um tipo de dandismo, talvez seja a mais fecunda sugestão de Brill acerca da estética da cena. As práticas de vestuário, moda, maquiagem, acessórios, que constituem o cosmos de estilização da identidade individual, estão diretamente atreladas a questões de gênero e sexualidade. A estética de vestuário está calcada naquilo que hegemonicamente é considerado como “feminino” - um dos entrevistados do estudo etnográfico de Brill chega a mencionar que a subcultura gótica está fundamentada no “feminino” (BRILL, 2008BRILL, Dunja. Goth Culture: Gender, Sexuality and Style. Oxford: Berg, 2008.). Além disso, a cena em geral abarca e apresenta boa aceitação de práticas e temas considerados tabu, como BDSM, fetiche e gender play; Brill comenta que a cena é marcada por uma aceitação a sexualidades não hegemônicas, o que pode abranger desde um simples flerte homoafetivo em clubes ou mídias sociais à consolidação de gêneros não conformantes. Além disso, performances de gênero erotizadas são altamente aceitas na subcultura, sendo também fontes de um distintivo montante de capital cultural.

A relação entre vestuário, poder e resistência se estabelece de forma intrincada e conflituosa, frequentemente contraditória. Como Wilson (1992WILSON, Elizabeth. “Fashion and the postmodern body”. In: ASH, Juliet; WILSON, Elizabeth (Eds.). Chic thrills: A fashion reader. Londres: Pandora, 1992. p. 3-16.) menciona, as práticas de vestuário e moda são “uma poderosa arma de dominação e controle [...] dotada de qualidades simultaneamente subversivas”7 7 Do original: a powerful weapon of control and dominance [...] with simmultaneously subversive qualities (WILSON, 1992, p. 14). (p. 14). No geral, a teoria difere, mas esse aspecto dual - vestuário enquanto controle e subversão - é algo frequente. Enquanto algumas teóricas comentam que a moda atua na manutenção do regime capitalista por meio da inscrição da esfera política do vestuário na esfera do consumismo (Stuart EWEN; Elizabeth EWEN, 1992EWEN, Stuart; EWEN, Elizabeth. Channels of desire - Mass images and the shaping of American consciousness. Nova Iorque: McGraw-Hill, 1992.), há outras que veem potencial subversivo na apropriação específica de alguns elementos da cultura de massa ou popular (O’NEAL, 1999O’NEAL, Gwendolyn. “The power of style: on rejection of the accepted”. In: JOHNSON, Kim K. P.; LENNON, Sharron J. (Eds.). Appearance and power. Nova Iorque: Berg, 1999. p. 127-139.).

A retórica da subcultura gótica está marcada pelo que Brill chama de “fantasy of genderlessness” (algo como “fantasia da ausência de gênero”), associada diretamente à androginia. Essa característica também aparece associada a valores de autoafirmação e igualdade na subcultura. A “fantasia da ausência de gênero” expressa através de características teatrais encontra bases na teoria de gênero proposta por Judith Butler em Problemas de Gênero, publicado em 1990. Butler questiona a manutenção da noção de “mulher” enquanto sujeito do feminismo no intuito de tratar de uma concepção mais ampla e variável da construção da identidade. Por isso também ela rejeita a noção essencialista de sujeito, isto é, de uma verdade interna ao sujeito, uma estrutura coerente que regularia sexo, gênero e sexualidade; para ela, a noção essencialista é uma presunção nascida da chamada “heterossexualidade compulsória”, um preceito imposto pelas instituições reguladoras de poder, ou seja, o discurso hegemônico. Para Butler, essa falácia estaria fundamentada na filosofia ocidental, que insiste em separar corpo e mente, o que ela vê como impraticável. O corpo não possui nada de natural, nada aquém ao discurso; ele é construído e recebe sentido a partir das regulações e negociações com as instituições de poder. Por isso, Butler concebe o gênero sempre em relação ao sujeito, às práticas e valores negociados, na tentativa de não excluir nenhuma possibilidade de representação do jogo político.

Além disso, Butler também rejeita o dogma teórico de separar sexo (caráter biológico) do gênero (expressão cultural do sexo). Uma vez que o sexo biológico seria fundamentado numa noção discursiva de natural, não haveria como conceber o biológico como anterior ao discurso, uma vez que este é o que dá sentido àquele. Além disso, se a prática social da característica supostamente biológica do sexo é definida no nível do discurso, então não haveria distinção entre sexo e gênero, uma vez que possuem um sentido construído, porque “se o sexo é, ele próprio, uma categoria tomada em seu gênero, não faz sentido definir o gênero como interpretação cultural do sexo” (BUTLER, 2019BUTLER, Judith. Problemas de gênero. Feminismo e subversão de identidade. Tradução de Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2019., p. 27). Ou seja, dito de outra maneira, se é o discurso que confere sentido e coerência à noção de gênero, particularmente gênero enquanto uma leitura de matrizes e implicações socioculturais e filosóficas, não haveria razão ou necessidade de leitura de gênero e sexo como instâncias distintas, uma vez que o gênero pode receber coerência através de um discurso transgressivo. Butler confronta incessantemente a validade da matriz binária que regula as noções de gênero e essa defesa oferece um forte aporte ao texto da autora.

Butler compreende o gênero como uma ficção; ele é performado, é sempre um devir e, enquanto prática discursiva, está sempre em construção: “[...] gênero é a estilização repetida do corpo, um conjunto de atos repetidos no interior de uma estrutura reguladora altamente rígida, a qual se cristaliza no tempo para produzir a aparência de uma substância” (BUTLER, 2019BUTLER, Judith. Problemas de gênero. Feminismo e subversão de identidade. Tradução de Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2019., p. 69). A estrutura reguladora é o discurso e essa aparência de substância é o que garante ao gênero seu valor de verdade. Dessa forma, não há verdade interna referente ao gênero, ele é em si um artifício inscrito no corpo, uma estilização infinda e ininterrupta, realizada a partir de um desejo sempre em mudança. Tendo isso em vista, “os gêneros não podem ser nem verdadeiros nem falsos, mas somente produzidos como efeitos de verdade de um discurso sobre a identidade primária e estável” (BUTLER, 2019, p. 195).

A realidade do gênero, criada enquanto performance, sugere que a noção de um gênero, de masculinidade e feminilidade essenciais ou verdadeiras é também uma construção. Mas essa construção, quando se funda no discurso hegemônico, oculta o próprio caráter artificial de sua gênese por esse mesmo ato performático, o que justamente mina a possibilidade de difusão de variações performativas fora da matriz de regulação da heterossexualidade compulsória (BUTLER, 2019BUTLER, Judith. Problemas de gênero. Feminismo e subversão de identidade. Tradução de Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2019.). Mas Butler também ressalta a pertinência de se pensar na perspectiva ou aplicação política das teorias de gênero e, nesse sentido, a artificialidade, o caráter confeccionado da “fantasia da ausência de gênero” presente na subcultura gótica talvez forneça possibilidade de representações transgressivas.

Na subcultura, conforme já comentado, um dos entrevistados de Brill chega a ressaltar que a cena é basicamente “feminina”. Ou seja, não há distinção entre práticas de vestuário femininas e masculinas, todos os integrantes tendem a partir da mesma base estética - mesmos tipos de roupas, maquiagem e penteados. Brill se ocupa de discutir a utilização de saias por integrantes que se identificam como homens, encontrando resistência da parte deles apenas quando o gótico se dilui entre grupos organizados em torno da música industrial e EBM, o que já representa outra perspectiva estética. No geral, quando tratamos de integrantes da cena gótica que performam um gênero - ou a ausência de um gênero, expressa através da androginia - esse ato artificial, esse artifício ficcional inscrito no próprio corpo, pode desequilibrar e desorientar noções hegemônicas de gênero.

Teresa de Lauretis (1994LAURETIS, Teresa de. “A tecnologia do gênero”. In: HOLLANDA, Heloísa Buarque de (Org.). Tendências e impasses. O feminismo como crítica da cultura. Rio de Janeiro: Rocco, 1994. p. 206-244.) vê o gênero como algo produzido por diversos discursos e práticas e tecnologias sociais como o cinema e a moda, o que propicia a visão da mídia, moda, música, práticas sociais e discurso constituintes da subcultura gótica como forças que acomodam e desorientam, desconstroem e reconstroem discursiva, disciplinar e contraditoriamente, enquanto tecnologias do gênero, a identidade de gênero dos integrantes da cena. Lauretis vê possibilidades de construção de diferentes representações de gênero na margem do discurso hegemônico, quando estes se estabelecem a partir de práticas micropolíticas, justamente como a subcultura gótica. Para ela, “tais termos podem também contribuir para a construção do gênero e seus efeitos ocorrem ao nível ‘local’ de resistências, na subjetividade e na autorrepresentação” (LAURETIS, 1994LAURETIS, Teresa de. “A tecnologia do gênero”. In: HOLLANDA, Heloísa Buarque de (Org.). Tendências e impasses. O feminismo como crítica da cultura. Rio de Janeiro: Rocco, 1994. p. 206-244., p. 228). Seria possível argumentar que a questão da estetização do corpo, do ato performativo e da autorrepresentação é perpassada e talvez fundamentada por uma atitude altamente hiperbólica na subcultura. Isso fica mais claro quando traçamos um paralelo entre a subcultura e o sujeito queer, que se refere a “um jeito de pensar e de ser que não aspira ao centro nem o quer como referência; um jeito de pensar e de ser que desafia as normas regulatórias da sociedade, que assume o desconforto da ambiguidade” (Guacira Lopes LOURO, 2016LOURO, Guacira Lopes. Um corpo estranho - Ensaios sobre sexualidade e teoria queer. Belo Horizonte: Autêntica, 2016., p. 7).

Brill (2008BRILL, Dunja. Goth Culture: Gender, Sexuality and Style. Oxford: Berg, 2008.) define duas distinções gerais de estilo de vestuário - ou estilo corporal - vistas na subcultura gótica. Todavia, talvez por ter fundamentado suas proposições em dados coletados dos entrevistados, a autora define esses estilos a partir de noções hegemônicas de gênero: androginia masculina e hiperfeminilidade. Ainda assim, as noções são interessantes, particularmente os apontamentos sobre androginia. O que é interessante notar é que ideias a respeito de “feminilidade” são altamente valorizadas na subcultura: “[A] feminilidade é altamente valorizada nos códigos estéticos da cena e, em vez de afirmar que são criaturas ‘sem gênero’, diversos homens e mulheres góticos alinham-se explicitamente com o feminino”8 8 Do original: [f]emininity is highly valued in the aesthetic codes of the scene and, rather than claiming they are ‘genderless’ creatures, many male and female Goths explicitly align themselves with the feminine (BRILL, 2008, p. 38). (BRILL, 2008BRILL, Dunja. Goth Culture: Gender, Sexuality and Style. Oxford: Berg, 2008., p. 38).

Esse ato performático de caráter “feminino” praticado por sujeitos identificados como homens góticos, cujo objetivo final seria atingir, via vestuário e maquiagem, uma imagem andrógina, apresenta-se também como um ato transgressivo, ao menos, comparado à cultura dominante. “Os códigos andróginos de estilo masculino da subcultura libertam, ao menos em parte, homens góticos dos grilhões da masculinidade tradicional, permitindo-lhes desfrutar de prazeres que, em nossa cultura, são comumente considerados tabus ou, no mínimo, impróprios”9 9 Do original: The androgynous male style codes of the subculture partly free Goth men from the shackles of traditional masculinity, enabling them to indulge in pleasures normally branded taboo or at least improper for men in our culture (BRILL, 2008, p. 78). (BRILL, 2008BRILL, Dunja. Goth Culture: Gender, Sexuality and Style. Oxford: Berg, 2008., p. 78). Essa quase obsessão com a androginia se relaciona, segundo Gavin Baddeley (2006BADDELEY, Gavin. Goth Chic: A Connoisseur's Guide to Dark Culture. Medford: Plexus Publishing, 2006.), a uma das principais características da subcultura, o “death chic”, que se refere a uma certa aura de “morte”, o cultivo de um corpo esguio, pálido e frágil. Assim, Brill considera que, na cena, a androginia apresenta-se como uma força “potencialmente libertadora não apenas para homens, mas também para mulheres, pois é capaz de mitigar o rigor dos estereótipos de gêneros comuns e separar os significantes de vestuário atribuídos a gêneros específicos de sua rígida associação tanto à feminilidade quanto à masculinidade”.10 10 Do original: potentially liberating not only for men but also for women, because it can work to loosen up common gender stereotypes and to sever gendered sartorial signifiers from their rigid association with either femininity or masculinity (BRILL, 2008, p. 73)

Performance de gênero e estética gótica em Lost Souls

Lost Souls (1992) é o primeiro romance de Poppy Z. Brite, uma narrativa gótico sulista ambientada parte em Missing Mile, uma cidade fictícia da Carolina do Norte, parte na célebre Nova Orleans, no Luisiana. A obra apresenta um enredo complexo, seguindo os músicos Steve e Ghost, uma trupe de vampiros errantes composta por Twig, Zillah e Molochai, além de Nothing, o protagonista adolescente que embarca numa roadtrip para assistir ao show de Lost Souls?, banda de Steve e Ghost. A narrativa de Nothing se mostra uma narrativa identitária e ele é o fio condutor do romance. A personagem esbarra na trupe de vampiros que viaja pelos Estados Unidos numa van preta, o que joga luz sobre seu processo de autorreconhecimento, uma vez que o próprio Nothing se descobre um vampiro.

A releitura que Brite realiza do mito literário do vampiro se apresenta, de fato, de forma um tanto secular: todos os elementos místico-religiosos são excluídos do jogo ficcional; cruzes, água benta, prata, luz do sol ou fogo, nada disso tem efeito místico sobre os vampiros de Brite. O próprio legado ficcional parece ser relegado a segundo plano, uma vez que não há menções a heranças sanguíneas nem a tradições vampirescas, como em obras como Camilla (1872) ou Dracula (1897), ou preocupações ético-teológicas a respeito do mal como nas “Crônicas Vampirescas” (1974-corrente) de Anne Rice. Em Brite, os vampiros não são criados como uma corrupção ou maldição do paradigma humano; eles são uma raça aparte e se reproduzem através de relações heterossexuais, algo que sempre culmina na morte da mãe.

Punter e Byron (2004PUNTER, David; BYRON, Glennis. The Gothic. Oxford: Blackwell Publishing, 2004.) mencionam que não é tarefa simples caracterizar a ficção gótica. Para os autores, assim como para Jerrold E. Hogle (2002HOGLE, Jerrold E. “Introduction”. In: HOGLE, Jerrold E. (Ed.). The Cambridge Companion to the Gothic Fiction. Londres: Cambridge University Press, 2002, p. 1-20.), o gótico se apresenta como um tipo de ficção capaz de tratar ou renderizar ansiedades sociais, principalmente relativas a classe, raça, gênero e sexualidade. Entre a profusão de características traçáveis na ficção gótica, França destaca três: os monstros (as personagens atormentadas e heróis byronianos), a potestade (o sentido de sublime e o medo como uma emoção estética) e o passado sombrio (o retorno do reprimido e de tudo aquilo que é visto como abjeto pela sociedade hegemônica). Essa última característica, o retorno do passado ou daquilo que foi reprimido, se relaciona diretamente às ansiedades sociais em relação a gênero e sexualidade.

Hogle (2002HOGLE, Jerrold E. “Introduction”. In: HOGLE, Jerrold E. (Ed.). The Cambridge Companion to the Gothic Fiction. Londres: Cambridge University Press, 2002, p. 1-20.) menciona que a ficção gótica funciona ou ganha forma a partir de um tipo de exagero de sua própria ficcionalidade; através da renovação, alteração e releitura de suas próprias características constituintes dentro da tradição. Punter e Byron se utilizam desse caráter artificial, de artefato estético, para traçar um paralelo entre ficção gótica e subcultura gótica: “a insistente artificialidade do estilo gótico parece sugerir a continuidade da disposição fabricada que tem caracterizado o gótico desde o século XVIII”11 11 Do original: the insistent artificiality of Goth style might seem to suggest a continuation of the counterfeiting tendency which has characterized Gothic since the eighteenth-century [...] (2004, p. 62). (2004, p. 62). Os autores concordam com Hogle ao mencionar que esse processo promove um esvaziamento do passado a fim de produzir um repositório ficcional no qual questões modernas são projetadas e abjetas.

Nothing é representado como um típico garoto gótico, tanto no que se refere à aparência quanto à teatralidade que ele investe em sua autorrepresentação. Ao início do romance, Nothing escreve uma carta diante da janela e encara seu próprio reflexo: “[o] garoto na janela tinha o mesmo cabelo longo e escorrido pintado de preto, o mesmo queixo pontiagudo, os mesmos olhos escuros de amêndoa - mas seu sorriso era mais frio, muito mais frio”12 12 Do original: [t]he boy in the window had the same long sheaf of dyed black hair, the same pointed chin, the same almond-shaped dark eyes - but his smile was colder, far colder (BRITE, 1992, p. 26). (BRITE, 1992BRITE, Poppy Z. Lost Souls. Nova Iorque: Random House Inc., 1992., p. 26). Um momento depois, “ele enrolou a colcha nas pernas e tocou as próprias costelas e os ossos do quadril, apreciando o quão esguio era”13 13 Do original: he pulled his quilt around his legs and touched his ribs and hipbones, liking how thin he was (BRITE, 1992, p. 27). (BRITE, 1992, p. 27). Nothing possui todas as características da beleza desejada em uma figura integrante da cena gótica (HODKINSON, 2002HODKINSON, Paul. Goth: identity, style and subculture. Oxford: Berg, 2002.). O cabelo tingido de preto em ondas negras e os imensos olhos escuros, além do reflexo “muito mais frio”,14 14 Do original: far colder. o que sugere a representação de um tipo de dignidade sombria cultivada na subcultura - valorizada em questão de (sub)capital cultural. Além disso, o queixo pontiagudo, o fato de ser magro e ter quadris e costelas salientes sugere que uma das características mais investidas de capital cultural, a androginia, ocorre como um fato inerente à representação de Nothing.

Ele possui um senso de isolamento e uma forte necessidade por conexão e pertencimento. A personagem sabe que é adotada e crescera com essa inquietação no peito, mas a situação se intensifica quando ele encontra um bilhete afirmando que seu nome não é Jason, como os pais o chamam, mas Nothing. O mote para o sentimento íntimo de isolamento é dado ao início do romance. Diante da janela, o jovem nota a inclemência com que o outono chega, a noite fria que se aproxima e a escuridão por trás das árvores ao longe, o que culmina em solidão: “[c]ada árvore estava sozinha lá fora. Os animais estavam sozinhos, cada um na própria toca, dotados de uma tênue pelagem, e qualquer coisa que fosse atropelada na estrada hoje à noite morreria sozinha. Antes de alvorada, ele considerou, o sangue ia congelar nas rachaduras do asfalto”15 15 Do original: [e]very tree was alone out there. The animals were alone, each in its hole, in its thin fur, and anything that got hit on the road tonight would die alone. Before morning, he thought, its blood would freeze in the cracks of the asphalt (BRITE, 1992, p. 25). (BRITE, 1992BRITE, Poppy Z. Lost Souls. Nova Iorque: Random House Inc., 1992., p. 25). Por isso ele deixa sua casa em Maryland, no intuito de encontrar algo mais para si nesse mundo e para descobrir a si mesmo.

Brill (2008BRILL, Dunja. Goth Culture: Gender, Sexuality and Style. Oxford: Berg, 2008.) comenta que, assim como a androginia, a bissexualidade possui alto valor de capital cultural na subcultura gótica. De fato, a questão da androginia, que representa as inquietações de gênero e sexualidade da cena, parece atrelada à afirmação de uma sexualidade divergente da norma. A autora ressalta que ser visto e reconhecido como bissexual, seja a partir de demonstrações públicas de afeto, de relações bissociais ou de atestações em fóruns on-line, atua ativamente sobre a performance da identidade de gênero dos indivíduos, além de somar ao status de alguém na micropolítica da cena.

Essa questão pode ser identificada a partir das relações que formam o círculo social de Nothing em Maryland, antes de deixar a cidade para trás. Esses jovens góticos costumam reunir-se na casa de Laine depois da escola para fumar maconha - o quarto de Laine, assim como o de Nothing, é um haven decorado com itens atrativos à subcultura, como o narguilé de Laine, herdado do irmão mais velho, “um elaborado objeto de cerâmica em forma de crânio com vermes retorcendo-se para dentro e para fora das órbitas oculares. Você punha o dedo sobre uma das narinas para segurar a fumaça”16 16 Do original: an elaborate ceramic affair shaped like a skull with worms twining in and out of the empty eye sockets. You put your finger over one of the nostrils to hold the smoke in (BRITE, 1992, p. 31). (BRITE, 1992BRITE, Poppy Z. Lost Souls. Nova Iorque: Random House Inc., 1992., p. 31). Na cena:

Ele olhou ao redor da sala. Muitos deles apalpavam um ao outro um tanto sem jeito, trocando beijos molhados e desajeitados. Veronica Aston tinha puxado a saia de Lily Hartung para cima e posto dois dedos dentro da calcinha dela. Nothing observou-as desinteressado por um tempo. Bissexualidade estava muito na moda entre esse pessoal. Era um dos únicos jeitos que eles podiam se sentir ousados. O próprio Nothing já tinha se pegado com vários deles, mas, ainda que tivesse provado aquelas bocas e tocado-os nas partes mais tenras, nenhum deles o interessava de verdade. Pensar nisso o entristeceu, embora ele não tivesse certeza da razão17 17 Do original: He looked around the room. Several of the kids were groping each other ineptly, kissing each other with sloppy wet mouths. Veronica Aston had pulled Lily Hartung’s skirt up and had two fingers inside the elastic of Lily’s panties. Nothing stared at this for several minutes, dully interested. Bisexuality was much in vogue among this crowd. It was one of the few ways they could feel daring. Nothing himself had made out with several of these kids, but though he had tasted their mouths and touched their most tender parts, none of them really interested him. The thought made him sad, though he wasn’t sure why (BRITE, 1992, p. 31). (BRITE, 1992BRITE, Poppy Z. Lost Souls. Nova Iorque: Random House Inc., 1992., p. 31).

Para Marjorie Garber (1999GARBER, Marjorie. “Extracts from Vice versa: bisexuality and the eroticism of everyday life”. In: STORR, Merl (Ed.). Bisexuality: A critical reader. London: Routledge, 1999. p. 138-143.), a bissexualidade representa um campo de desejos fluidos, que desafia e derrota qualquer categorização, noção que vai ao encontro do comentário de Maria Pramaggiore (1996PRAMAGGIORE, Maria. “Bi-ntroduction I: epistemologies of the fence”. In: HALL, Donald E.; PRAMAGGIORE, Maria (Eds.). Representing bisexualities - Subjects and cultures of fluid desire. Nova Iorque: New York University Press, 1996. p. 1-7.): “uma prática que recusa as fórmulas restritivas que definem gênero de acordo com categorias binárias”18 18 Do original: a practice that refuses the restrictive formulas that define gender according to binary categories (PRAMAGGIORE, 1996, p. 3). (p. 3), possuindo a capacidade de subverter mecanismos sociais definidores do gênero. Claro que esse campo de desejos fluidos, visto enquanto prática, pode sugerir um tipo de celebração da bissexualidade como forma de superação da matriz binária, algo também discutido - e rejeitado - por Butler (2019BUTLER, Judith. Problemas de gênero. Feminismo e subversão de identidade. Tradução de Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2019.). No entanto, o que Brite realiza é um tipo de acomodação da bissexualidade, algo que assume o valor de uma naturalização, mas se apresenta claramente manufaturado, uma vez que a bissexualidade se fundamenta no anseio de “se sentir ousados”.19 19 Do original: feel daring. Essa acomodação não mascara a discussão sobre gênero e, ao “naturalizar” o gênero e a sexualidade dos personagens, Brite desaloja tais questões do discurso direto, alocando-as na ação.

Essa ação, que se estabelece enquanto um ato performático, exemplifica como o discurso hegemônico sobre sexualidade é desmembrado e deslocado por Nothing e seus amigos; fundamentados na estética da subcultura gótica, eles desejam e buscam a transgressão, realizando-a a partir da experimentação bissexual e homossexual. Mas esse processo, ao passo que denuncia o poder do discurso sobre sexualidade, também oculta a manufatura de sua origem, conforme exposto por Butler. Isto porque, na micropolítica da cena a que Nothing pertence, a performance da sexualidade - e, por consequência, das identidades de gênero - tem valor de verdade e valor de uma naturalização e, por isso, embora possa desequilibrar noções hegemônicas de gênero, também se oculta justamente por possuir valor de verdade e valor de uma naturalização.

Há também a sugestão de uma sexualidade livre entre os integrantes da cena, uma vez que “o próprio Nothing já tinha se pegado com vários deles”.20 20 Do original: Nothing himself had made out with several of these kids. No entanto, Nothing não foi capaz de estabelecer uma conexão duradoura, pois “nenhum deles o interessava de verdade”.21 21 Do original: none of them really interested him. A ânsia por conexão e pertencimento se estraçalha contra a concretude de seus desejos e experiências e isso marca seu espírito com melancolia: “[p]ensar nisso o entristeceu, embora ele não tivesse certeza da razão”.22 22 Do original: [t]he thought made him sad, though he wasn’t sure why. Isso não o impede de performar essa sexualidade livre ou incontida. Nessa mesma cena, embalada por música pós-punk, Laine e a namorada dão demonstrações de sexualidade: “alguém pôs uma fita do Bauhaus no rádio e aumentou o volume ao máximo. Laine e Julie giraram na cama, fingindo se amassar”23 23 Do original: someone put a Bauhaus tape on and turned it all the way up. Laine and Julie rolled around on the bed, pretending to make out (BRITE, 1992, p. 31). (BRITE, 1992BRITE, Poppy Z. Lost Souls. Nova Iorque: Random House Inc., 1992., p. 31). Mas Nothing duvida sobre o quanto Laine gosta de meninas, comentando o fascínio que o garoto sente por Robert Smith, vocalista da banda inglesa de rock alternativo The Cure, apreciada na cena gótica. Nothing menciona que “Julie usava o cabelo arrepiado e espetado em várias direções. Ela gostava de aplicar muito delineador preto e usava um batom vermelho borrado. Nothing desconfiava que Laine gostava dela sobretudo porque ela era levemente parecida com Robert Smith”24 24 Do original: Julie wore her hair wildly teased in all directions, and she favored lots of black eyeliner and smudged red lipstick. Nothing suspected that Laine liked her mainly because of her superficial resemblance to Robert Smith (BRITE, 1992, p. 31). (BRITE, 1992, p. 31). Além da sugestão da homossexualidade de Laine, temos a androginia de Julie, valorizada na cena em termos estéticos, que se soma ao ato performático da identidade.

Quando Julie vai embora, Laine oferece a Nothing sexo oral. Nothing questiona sobre a namorada do outro e a resposta vem associada à sugestão de reconhecimento do status de Nothing na subcultura (local): “‘A Julie não me dá muito tesão’, Laine disse. ‘Mas eu gosto de você. Eu te acho muito cool’”25 25 Do original: ‘Julie doesn’t turn me on much,’ said Laine. ‘I like you, though. I think you’re really cool’ (BRITE, 1992, p. 33). (BRITE, 1992BRITE, Poppy Z. Lost Souls. Nova Iorque: Random House Inc., 1992., p. 33). Laine diz que Nothing é “cool”, algo que se reporta a essa dignidade teatral, distante e ao mesmo tempo engajada, cultivada como fonte de capital cultural na cena. O diálogo culmina na afirmação um tanto cômica de Laine: “‘Sério’, ele disse. ‘Desde agosto eu não te pago um boquete. Eu quero’”26 26 Do original: Seriously,’ he said. ‘I haven’t given you a blowjob since August. I want to’ (BRITE, 1992, p. 31). (BRITE, 1992, p. 31). Depois de aceitar, Nothing se esparrama pela cama e encara o pôster de Rober Smith, adentrando numa discreta fantasia homoerótica a respeito da boca do vocalista: “Nothing encarou a boca ampliada de Robert Smith. A voz suculenta e coagulada do vocalista o envolveu, fazendo com que ele sentisse de novo que estava caindo entre aqueles lábios”27 27 Do original: Nothing stared up at Robert Smith’s magnified mouth. The singer’s lush clotted voice surrounded him, making him feel again as if he were tumbling between those lips (BRITE, 1992, p. 33). (BRITE, 1992, p. 33).

Esse tipo de caracterização de personagem não é exclusividade de Nothing. Cabelos desfiados, maquiagem pesada e roupas em couro e veludo ganham coerência sob um espectro estético que ecoa a “fantasia da ausência de gênero” mencionada por Brill (2008BRILL, Dunja. Goth Culture: Gender, Sexuality and Style. Oxford: Berg, 2008.). Christian, um dos vampiros do romance, caça em um bar gótico em Nova Orleans. O próprio vampiro poderia ser identificado como um membro da cena, uma vez que ele apresenta a mesma estética em sua autorrepresentação: “Christian ainda usava um casaco longo, preto e revestido de seda toda vez que saía”28 28 Do original: Christian still wore a cloak, long and black and lined with silk, whenever he went out (BRITE, 1992, p. 62). (BRITE, 1992BRITE, Poppy Z. Lost Souls. Nova Iorque: Random House Inc., 1992., p. 62). O mesmo pode ser dito dos jovens que a personagem encontra diante do bar inominado onde caça; são jovens “de olhos repletos de maquiagem preta borrada e roupas pretas batidas, diminutos fantasmas, como negativos de libélulas”29 29 Do original: swith eyes smudged black and ripped black clothes, little ghosts, like photonegatives of the dusky dancers (BRITE, 1992, p. 62). (BRITE, 1992, p. 62).

Christian rememora sobre quando aquele ainda era um bar de jazz, então reafirma a estética da subcultura na contínua evocação de temas noturnos: “a música vertia da entrada em direção à lua, uma música dispersa, sombria e estranha, um hino a todas as crianças perdidas que só começam a viver à noite, depois que os bares abrem e a música passa a tocar”30 30 Do original: the music that drifted out of the doorway and up toward the moon was sparse and dark and strange, the anthem of all the lost children who began their lives at night, when the bars opened and the music began to play (BRITE, 1992, p. 63). (BRITE, 1992BRITE, Poppy Z. Lost Souls. Nova Iorque: Random House Inc., 1992., p. 63). São figuras trajadas em preto, usando maquiagem pesada e cabelos peculiares, além das evocações atmosféricas sobre “todas as crianças perdidas que só começam a viver à noite”.31 31 Do original: all the lost children who began their lives at night. Aqui, a banda Bauhaus é novamente mencionada: “Agora o santificado Bauhaus, os deuses esguios e pálidos dessa multidão tocavam ‘Bela Lugosi’s Dead’. Os olhos maquiados estavam vidrados, os lábios em batom preto acompanhavam a letra da música e os jovens dançavam lentamente”32 32 Do original: Right now it was sainted Bauhaus, the pale long-boned gods of this crowd, doing ‘Bela Lugosi’s Dead.’ The eyeliner eyes glazed and the black lipstick lips moved in time with the words, and the children danced slowly (BRITE, 1992, p. 63-64). (BRITE, 1992, p. 63-64). Christian acaba fugindo de Nova Orleans e vê-se em Missing Mile, onde ele encontra o Sacred Yew, um bar alternativo decorado com paredes com citações em neon, pôsteres e pinturas e povoado pelas mesmas “jovens de preto”33 33 Do original: children in black (BRITE, 1992, p. 69). (BRITE, 1992, p. 69).

Vale mencionar que há um fator homoerótico na alimentação de Christian, o que se reporta às sexualidades queer presentes na subcultura. Christian deixa o bar em Nova Orleans na companhia de um garoto esguio e levemente andrógino. Eles caminham pelas ruas escuras às margens do rio Mississipi, então Christian alimenta-se do garoto. Há um evidente erotismo na cena, algo frequentemente associado ao sangue e à figura do vampiro na literatura gótica. Quando Christian beija o garoto, “[s]uas línguas se fundiram. A saliva do garoto era agridoce feito vinho. Christian sugou a língua dele, deixou que a saliva escorresse garganta abaixo, aquecendo-o, atiçando-lhe ainda mais a fome”34 34 Do original: [t]heir tongues melted together. The boy’s spit was as sour and sweet as wine. Christian sucked at the boy’s mouth, let the spit flow down his throat, warming him, awakening his hunger even more (BRITE, 1992, p. 66). (BRITE, 1992BRITE, Poppy Z. Lost Souls. Nova Iorque: Random House Inc., 1992., p. 66). Na passagem, as línguas das personagens “se fundiram”, o que demonstra uma intensa interação erótica. Além disso, fluídos corporais como “saliva” e “suor” também são mencionados carregados de sentido erótico, comparados ao vinho e aos sabores da noite do French Quarter. Na passagem, esse erotismo culmina na fome por sangue.

Na sequência, “Christian envolveu o garoto intimamente, aconchegou-o, beijou-lhe a garganta”35 35 Do original: Christian held the boy close, cradled him, kissed his throat (BRITE, 1992, p. 66). (BRITE, 1992BRITE, Poppy Z. Lost Souls. Nova Iorque: Random House Inc., 1992., p. 66), então o vampiro finalmente penetra na tenra pele de sua vítima. O ato da alimentação aqui não está apenas metaforicamente ligado à experiência sexual; eles se interconectam, uma vez que, enquanto bebe, Christian “deslizou a mão por baixo do cinto do jeans do garoto e encontrou ali algo quente, vacilante e liquefeito. O garoto arqueou as costas e ofegou baixo”36 36 Do original: slipped one hand beneath the belt of the boy’s jeans and found molten trembling heat there. The boy’s back arched; he made a low gasping sound (BRITE, 1992, p. 66). (BRITE, 1992, p. 66). O ato masturbatório culmina no orgasmo da vítima, representado no romance como um tipo de deleite estético bem ao gosto do gótico (FRANÇA, 2017FRANÇA, Júlio. “Medo e literatura”. In: FRANÇA, Júlio. Poéticas do Mal. Rio de Janeiro: Bonecker, 2017. p. 36-52.); um deleite resultante da comunhão sublime entre o prazer de se render ao vampiro e o horror da consciência de que essa entrega resultará em morte. E o ato do orgasmo é arrebatador também para Christian: “[o] cálido esperma do garoto inundou os dedos de Christian. Então Christian levou a mão aos lábios e sugou aquilo também. Dois sabores mesclando-se na boca, um cremoso e delicado, outro amargo e salgado, era cru feito a vida, quase primoroso demais para suportar”37 37 Do original: [t]he boy’s sperm flooded warm over Christian’s fingers. Christian brought his hand up to his lips and sucked at that too. The two tastes mingling in his mouth, creamy and delicate and bitter and salty, raw as life, were almost too exquisite to bear (BRITE, 1992, p. 67). (BRITE, 1992, p. 67). Quando o vampiro consome o sangue e o esperma, Brite concede materialidade à metáfora, ou melhor, encarna a metáfora que associa o sangue à vida nos fluidos corporais. Esse tipo de prazer, “cru feito a vida”,38 38 Do original: raw as life. arrebata Christian e sugere que o vampiro, em Brite, pode ser lido como um catalisador da experiência corporal. Os vampiros de Brite ainda bebem sangue, como na tradição do mito literário; por outro lado, eles podem sair de dia e não há, de fato, limitações tão marcantes para sua existência. Nesse lógica, os vampiros de Brite não seriam tanto uma alegoria ao sujeito queer, mas o próprio sujeito queer renderizado em corpos estranhos para a ótica e o discurso hegemônico.

O sangue e o consumo do sangue são fonte de obsessão de Nothing. Ele perfura seu pulso com uma pena e usa seu próprio sangue para retraçar um cartão postal. Depois de contemplar o ferimento, “ele lambeu o sangue, que deixou seus lábios pegajosos. Ele sorriu para si mesmo no reflexo da janela”39 39 Do original: he licked the blood away. It smudged his lips sticky, and he smiled at himself in the window’s reflection (BRITE, 1992, p. 26). (BRITE, 1992BRITE, Poppy Z. Lost Souls. Nova Iorque: Random House Inc., 1992., p. 26). Aqui há uma inegável relação erótica com o sangue, o sangue que “deixou seus lábios pegajosos”40 40 Do original: smudged his lips sticky. e que ressoa os lábios vibrantes do músico Robert Smith, que Nothing encara enquanto recebe sexo oral de Laine. Essa conexão com o sangue o leva, mais tarde, a devorar Laine na companhia de Zillah, Twig e Molochai. Essa cena é representada de forma visceral, gráfica - Nothing, sentado sobre Laine e cercado pelos vampiros, destroça o pescoço do garoto em uma mordida feral e desajeitada, jorrando sangue pelo interior da van. Apesar de acometido pela culpa, essa cena marca uma mudança profunda na personagem e, ao dividir o sangue de Laine com sua nova família, Nothing conclui que sua solidão chegou ao fim, uma vez que “ele estava na verdade bebendo vida, engolindo-a por inteiro. Ele sentiu-se sobrecarregado pelas convulsões agoniantes e instintivas do corpo esguio sobre si e pelo som agitado da guitarra das aranhas de Marte”41 41 Do original: he was actually drinking a life, swallowing it whole. He felt himself borne up by the mindless, agonized convulsions of the thin body beneath him and the churning guitar of the spiders from Mars (BRITE, 1992, p. 158). (BRITE, 1992, p. 158) e, por fim, a afirmação de que “o sabor do sangue significava o fim da solidão”42 42 Do original: [t]he taste of blood meant the end of aloneness (BRITE, 1992, p. 158). (BRITE, 1992, p. 158).

Nothing conclui, de certa forma para a si mesmo, que “[e]les eram mesmo vampiros, ele pensou. Você se entregou a uma vida de sangue e matança. Você nunca mais vai poder voltar ao mundo diurno. Então ele disse a si mesmo: Tá bom, desde que eu não tenha que ficar sozinho de novo”43 43 Do original: [t]hey really are vampires, he thought. You’ve consigned yourself to a life of blood and murder, you can never rejoin the daytime world. And he answered himself: Fine. As long as I don’t have to be alone again (BRITE, 1992, p. 171). (BRITE, 1992BRITE, Poppy Z. Lost Souls. Nova Iorque: Random House Inc., 1992., p. 171). No entanto, essa primeira aceitação carrega em si algo forçoso. “Tá bom”,44 44 Do original: Fine. ele pensa, desejando apenas não ser abandonado. Nesse ponto da narrativa, Nothing ainda não consegue lidar bem com Zillah, o líder da trupe, um vampiro de (quase) cem anos, andrógino, por vezes doce, por vezes maquiavélico - Christian chega a mencionar que talvez Zillah tenha enlouquecido com o passar das décadas.

Zillah apresenta-se como uma figura pertinente na narrativa, uma vez que, desde o primeiro momento em que se encontram, ele se torna o amante de Nothing. Mais tarde, também descobrimos que ele é o pai de Nothing. No prólogo do romance, a trupe de vampiros chega a Nova Orleans durante o Mardi Grass e irrompe no bar de Christian. Enquanto Molocha e Twig se entretêm com Christian, dividindo sangue e paixão, Zillah passa a noite com Jessy. A garota engravida e dá à luz, ao custo de sua vida, a Nothing. Christian leva o bebê para longe, para Maryland, na esperança de que talvez ele nunca se torne de fato um vampiro, pois Christian compreende que seria melhor para o menino se ele jamais tivesse contato com um “mundo de sangue”45 45 Do original: world of blood (BRITE, 1992, p. 228). (BRITE, 1992BRITE, Poppy Z. Lost Souls. Nova Iorque: Random House Inc., 1992., p. 228). Mas Nothing encontra seu caminho de volta e quando a trupe chega ao Sacred Yew, o bar onde Christian agora trabalha, Christian revela que Zillah é seu pai.

Zillah não parece dar tanta atenção ao tabu do incesto - algo bem ao gosto da ficção gótica. Ele menciona “que Bom’, Zillah começou. Ele parecia mais pálido que de costume, mas manteve-se firme, os olhos repletos de uma feroz felicidade. Porém, Christian notou que era mais do que isso. Zillah tinha orgulho nos olhos. ‘Bom, isso muda as coisas, não é mesmo? Isso deixa tudo ainda melhor, deixa adorável’”46 46 Do original: Well,’ said Zillah. He was paler than usual, but he held himself straight, and his eyes were fiercely happy. More than that, Christian realized. Zillah’s eyes were proud. ‘Well. That changes things, doesn’t it? That makes things even better. Lovely’ (BRITE, 1992, p. 219). (BRITE, 1992BRITE, Poppy Z. Lost Souls. Nova Iorque: Random House Inc., 1992., p. 219). Nothing questiona-se sobre o parentesco, despendendo uma torrente furiosa de pensamentos sobre sua relação com Zillah. Ele atesta que “ele tinha Zillah, seu pai, seu amante. E ele tinha Molochai, Twig e Christian. Eles estariam sempre com ele, vivos”47 47 Do original: he had Zillah, his father, his lover. And he had Molochai and Twig and Christian. They would be there with him, alive (BRITE, 1992, p. 226). (BRITE, 1992, p. 226), o que sugere a construção de uma noção de família não apenas não conformante, como aquém a qualquer sentido moral fomentado pela sociedade hegemônica. Ele aceita, em um primeiro momento, Zillah como pai e amante, assim como os demais vampiros como membros eleitos de sua família noturna. Temos então uma cena que espelha a cena inicial, em que Nothing encara a si mesmo a partir do reflexo na janela de seu quarto e vê apenas solidão. Aqui, no entanto, a transformação na personalidade de Nothing torna-se notável:

Ele fitara a si mesmo no espelho do banheiro. Ainda conseguia olhar nos próprios olhos. Então disse a si mesmo:Já faz uma semana que você tem fodido seu próprio pai. A língua dele esteve na sua boca mais vezes do que você poderia contar. Você o chupou... você engoliu coisas que poderiam ter sido seus irmãos e irmãs!

Ainda assim, ele não era capaz de sentir aversão por si mesmo. Não conseguia se obrigar a sentir vergonha. Ele sabia que essas eram coisas que ele deveria sentir, coisas que o mundo diurno e racional esperaria que ele sentisse. Mas ele não era capaz de forçar-se a sentir nada disso. Em um mundo noturno, um mundo de sangue, de que essas pálidas regras valiam? (BRITE, 1992BRITE, Poppy Z. Lost Souls. Nova Iorque: Random House Inc., 1992., p. 228).48 48 Do original: He had looked at himself in the bathroom mirror, still able to meet his own eyes, and he had told himself: For a week now you have been fucking your own father. His tongue has been in your mouth more times than you could count. You’ve sucked him off… you’ve swallowed stuff that could have been your brothers and sisters! But he could not disgust himself. He could not make himself ashamed. He knew these were things he was supposed to feel, things the rational daylight world would expect him to feel. But he could not force himself to feel them. In a world of night, in a world of blood, what did such pallid rules matter? (BRITE, 1992, p. 228).

O rompimento com o discurso hegemônico fica evidente aqui, na separação entre o mundo diurno e o mundo noturno. Além disso, a aceitação de uma vida vivida à margem se reporta ao comentário de Lauretis (1994LAURETIS, Teresa de. “A tecnologia do gênero”. In: HOLLANDA, Heloísa Buarque de (Org.). Tendências e impasses. O feminismo como crítica da cultura. Rio de Janeiro: Rocco, 1994. p. 206-244.) sobre o sujeito queer. A partir desse momento, Nothing assume o controle de sua própria narrativa; ele assume-se como uma figura à margem, buscando significado à margem. Em um primeiro momento, a narrativa sugere um sentido condenável na relação de Zillah e Nothing, implícito em “a língua dele esteve na sua boca mais vezes do que você poderia contar”.49 49 Do original: [h]is tongue has been in your mouth more times than you could count. No entanto, Nothing afirma que não poderia rebaixar ou denegrir a si mesmo e a chave para essa autodescoberta se mostra quando ele percebe que o mundo em que habita, um mundo noturno, nada tem a ver com “o mundo diurno e racional”50 50 Do original: the rational daylight world. e com as coisas que esse mundo “esperaria que ele sentisse”.51 51 Do original: would expect him to feel. Nothing performa uma identidade queer que, na margem da hegemonia, o liberta.

Conforme o enredo avança, Zillah é ferido por Steve e, na ânsia por vingar-se do músico, ele seduz e engravida sua ex-namorada, Ann. Quando a trupe de vampiros deixa Missiling Mile, Ann os segue, na esperança de reencontrar Zillah. Ghost e Steve vão a Nova Orleans no intuito de encontrar Ann. Eles acabam topando com uma loja exotérica e com Arkady, um tipo de necromante que retém uma quantidade notável de informações sobre os vampiros e que lhes oferece ajuda. Relutantes, eles aceitam. Mesmo assim, Anne acaba morrendo durante o parto de uma criança malformada e natimorta. Steve é um sujeito dado a rompantes de raiva e isso o enfurece. Ele sai à caça dos vampiros, o que resulta na morte de Zillah. E esse é outro momento em que a narrativa de Nothing muda.

Apesar da união entre Zillah e Nothing, Zillah parecia mesclar crueldade e amor na mesma medida; de fato, paixão talvez seja uma palavra-chave para compreender a representação de Zillah, uma vez que tudo o que ele faz, seja um ato de compaixão ou de crueldade, está no limite extremo do sentimento, transbordando de intensidade. Depois da morte de seu pai e amante, Nothing decide partir ao lado de Molochai e Twig em vez de buscar vingança; ele assume o lugar do pai como protetor e líder da trupe de vampiros, não mais pertencendo ao grupo como um objeto, quando era objeto do prazer de Zillah, mas assumindo para si um papel de protagonismo. Isso completa seu caminho de autorreconhecimento e, assim, habitando “[e]m um mundo noturno, um mundo de sangue”,52 52 Do original: [i]n a world of night, in a world of blood (BRITE, 1992, p. 228). ele se vê capaz de traçar para si mesmo seu próprio conjunto ético e moral e viver sob a égide de seu próprio desejo.

Considerações finais

Em Lost Souls, o fato de Nothing estar relacionado à subcultura gótica atua sobre sua autorrepresentação, principalmente porque Nothing apresenta uma identidade queer. A subcultura gótica, como Brill (2008BRILL, Dunja. Goth Culture: Gender, Sexuality and Style. Oxford: Berg, 2008.) menciona, está permeada por questões relativas a gênero, corpo e sexualidade; é marcada por performatividade, por vezes manifesta de forma hiperbólica; e pela tendência a aceitar identidades não conformantes; tais características podem servir como pano de fundo para o surgimento de identidades queer. Por habitar um mundo à margem, talvez isso tenha preparado Nothing para buscar, também na margem, sentido e resolução - ou ao menos aceitação - de suas angústias. É claro que a cena gótica é apenas mais um elemento na maquinaria gótica da obra de Brite, e merece atenção como tal.

Por outro lado, a obra de Brite parece caracterizada por uma representação de mundo homossocial. Praticamente todos os personagens expressivos da obra são homens e as figuras femininas atuam, quase sempre, como objeto de coerência das identidades masculinas; este é o caso de Ann, ex-namorada de Steve, que garante a ele seu papel seguro e hegemônico enquanto homem heterossexual, protegendo-o das urgências eróticas e afetivas em relação ao seu companheiro de banda, Ghost. Tanto que, quando o relacionamento acaba, a identidade de Steve entra em colapso.

Assumindo a figura do vampiro como metáfora para o gênero, a representação de Nothing parece, em um primeiro momento, ir à contramão das concepções de Butler (2019BUTLER, Judith. Problemas de gênero. Feminismo e subversão de identidade. Tradução de Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2019.). Ao início do romance, a natureza vampiresca parece apresentar-se como um tipo de identidade essencial (uma vez que parece existir algo visceral em Nothing que o motiva a fugir de casa em busca de uma verdade, assim como há algo em Zillah que o impele à loucura e ao sangue), o que sugeriria um tipo de noção essencialista de gênero. A resolução a essa questão encontra-se na relação do vampiro com o sangue.

A sede de sangue do vampiro briteano está associada à sua libido. Aliás, a libido de Nothing apresenta-se distribuída entre poesia, música e em sua pose associada à subcultura gótica. Lembremos que Nothing utiliza-se de uma caneta de pena para penetrar a própria pele e, embebida de sangue, retraçar o cartão postal que ele envia a Ghost - o cartão postal que, de certa forma, representa suas expectativas para o futuro, como se Nothing retraçasse toda a sua vida em sangue. Esse ato é fundamental para compreender a performance da identidade de gênero de Nothing e como ela está associada à cena gótica: essa relação se estabelece enquanto ato estilizado.

Quando Christian leva o bebê Nothing para longe de Nova Orleans e o deixa na porta de estranhos, ele pondera que talvez fosse possível ao bebê crescer como uma criança normal. Ou seja, poderíamos presumir que alguém nasce vampiro, mas apenas na medida em que essa determinação já é uma construção de linguagem apreensível. Nessa lógica, como se caracteriza o vampiro briteano? Nothing se torna um vampiro à medida que interage e viaja com Molochai, Twig e Zillah. É a partir da ação, na performance, que ele performa sua identidade de gênero e, nessa lógica, o vampiro não apresenta muitas distinções de um indivíduo pertencente à cena gótica. Eles têm, aqui, o mesmo valor, reportando-se a uma representação identitária que é essencialmente queer.

Referências

  • BADDELEY, Gavin. Goth Chic: A Connoisseur's Guide to Dark Culture Medford: Plexus Publishing, 2006.
  • BALLARD, James Graham. The Atrocity Exhibition Londres: Fourth Estate, 2009 (1970).
  • BRILL, Dunja. Goth Culture: Gender, Sexuality and Style Oxford: Berg, 2008.
  • BRITE, Poppy Z. Lost Souls Nova Iorque: Random House Inc., 1992.
  • BROWNE, Ray B.; HOPPENSTAND, Gary. “Introduction: Vampires, Witches, Mummies, and Other Charismatic Personalities: Exploring the Anne Rice Phenomenon”. In: BROWNE, Ray B.; HOPPENSTAND, Gary (Orgs.). The Gothic World of Anne Rice Bowling Green, OH: Bowling Green State University Popular Press, 1996. p. 1-13.
  • BUTLER, Judith. Problemas de gênero. Feminismo e subversão de identidade Tradução de Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2019.
  • EICHER, Joanne; HIGGINS, Mary. “Definition and classification of dress: implications for analysis of gender roles”. In: BARNES, Ruth; EICHER, Joanne (Eds.). Dress and gender. Making and meaning Oxford: Berg, 1993. p. 8-28.
  • EWEN, Stuart; EWEN, Elizabeth. Channels of desire - Mass images and the shaping of American consciousness Nova Iorque: McGraw-Hill, 1992.
  • FRANÇA, Júlio. “Medo e literatura”. In: FRANÇA, Júlio. Poéticas do Mal Rio de Janeiro: Bonecker, 2017. p. 36-52.
  • GARBER, Marjorie. “Extracts from Vice versa: bisexuality and the eroticism of everyday life”. In: STORR, Merl (Ed.). Bisexuality: A critical reader London: Routledge, 1999. p. 138-143.
  • GUNN, Joshua. “Goth music and the inevitability of genre”. Popular Music and Society, Londres, v. 23, n. 1, p. 31-50, jul. 1999. Disponível em https://www.tandfonline.com/doi/abs/10.1080/03007769908591724
    » https://www.tandfonline.com/doi/abs/10.1080/03007769908591724
  • HODKINSON, Paul. Goth: identity, style and subculture Oxford: Berg, 2002.
  • HOGLE, Jerrold E. “Introduction”. In: HOGLE, Jerrold E. (Ed.). The Cambridge Companion to the Gothic Fiction Londres: Cambridge University Press, 2002, p. 1-20.
  • JOY DIVISION. Unknown Pleasures Manchester: Factory Records, 1979.
  • JOY DIVISION. Closer Manchester: Factory Records, 1980.
  • LAURETIS, Teresa de. “A tecnologia do gênero”. In: HOLLANDA, Heloísa Buarque de (Org.). Tendências e impasses. O feminismo como crítica da cultura Rio de Janeiro: Rocco, 1994. p. 206-244.
  • LOURO, Guacira Lopes. Um corpo estranho - Ensaios sobre sexualidade e teoria queer Belo Horizonte: Autêntica, 2016.
  • O’NEAL, Gwendolyn. “The power of style: on rejection of the accepted”. In: JOHNSON, Kim K. P.; LENNON, Sharron J. (Eds.). Appearance and power Nova Iorque: Berg, 1999. p. 127-139.
  • PRAMAGGIORE, Maria. “Bi-ntroduction I: epistemologies of the fence”. In: HALL, Donald E.; PRAMAGGIORE, Maria (Eds.). Representing bisexualities - Subjects and cultures of fluid desire Nova Iorque: New York University Press, 1996. p. 1-7.
  • PUNTER, David; BYRON, Glennis. The Gothic Oxford: Blackwell Publishing, 2004.
  • RICE, Anne. Interview with the Vampire New York: Ballantine Books, 1997 (1976).
  • REYNOLDS, Simon. Rip it up and start again Londres: Faber Limited, 2019 (2005).
  • STOKER, Bram. Dracula Nova Iorque: Signet, 1965 (1897).
  • VINCENT, Renee. “Vampires as a Tool to Destabilize Contemporary Notions of Gender and Sexuality”. Ellipsis, Nova Orleans, University of New Orleans, v. 42, n. 1, mar. 2015. Disponível em https://scholarworks.uno.edu/ellipsis/vol42/iss1/25
    » https://scholarworks.uno.edu/ellipsis/vol42/iss1/25
  • WILSON, Elizabeth. “Fashion and the postmodern body”. In: ASH, Juliet; WILSON, Elizabeth (Eds.). Chic thrills: A fashion reader Londres: Pandora, 1992. p. 3-16.
  • 1
    Do original: [t]he problem will only be resolved for Gothic studies when more young scholars who are already positioned to some degree within the Gothic scene begin to do academic work (2004, p. 62). Todas as traduções foram feitas pelo autor do artigo.
  • 2
    Do original: [s]ong lyrics revolved around the dark recesses of the human soul: death, suffering and destruction as well as unfulfilled romance and isolation, but also the more arcane, taboo aspects of magic and mythology (e.g. ancient rituals, vampires) (BRILL, 2008, p. 03).
  • 3
    Do original: more arcane, taboo aspects of magic and mythology (e.g. ancient rituals, vampires) (BRILL, 2008, p. 03).
  • 4
    Do original: assembly of young people - clothed entirely in black and sporting ‘alternative’ hairstyles and jewelry - who had apparently adopted Rice’s Vampire Chronicles series as a fashion statement (Ray BROWNE; Gary HOPPENSTAND, 1996, p. 2).
  • 5
    Do original: conglomerate of overlapping subgroups, which differ considerably in style and music despite displaying a relatively strong collective distinctiveness vis-a-vis general culture (BRILL, 2008, p. 04).
  • 6
    Do original: Aestheticising and re-mystifying modern life. The aesthetic appropriation of everyday life and surroundings - e.g. through decorating one's body, flat, car and favourite hangouts as elements of a sacred ‘dark microcosm’ - is set against the pragmatic and functional profanity of the modern world (BRILL, 2008, p. 10).
  • 7
    Do original: a powerful weapon of control and dominance [...] with simmultaneously subversive qualities (WILSON, 1992, p. 14).
  • 8
    Do original: [f]emininity is highly valued in the aesthetic codes of the scene and, rather than claiming they are ‘genderless’ creatures, many male and female Goths explicitly align themselves with the feminine (BRILL, 2008, p. 38).
  • 9
    Do original: The androgynous male style codes of the subculture partly free Goth men from the shackles of traditional masculinity, enabling them to indulge in pleasures normally branded taboo or at least improper for men in our culture (BRILL, 2008, p. 78).
  • 10
    Do original: potentially liberating not only for men but also for women, because it can work to loosen up common gender stereotypes and to sever gendered sartorial signifiers from their rigid association with either femininity or masculinity (BRILL, 2008, p. 73)
  • 11
    Do original: the insistent artificiality of Goth style might seem to suggest a continuation of the counterfeiting tendency which has characterized Gothic since the eighteenth-century [...] (2004, p. 62).
  • 12
    Do original: [t]he boy in the window had the same long sheaf of dyed black hair, the same pointed chin, the same almond-shaped dark eyes - but his smile was colder, far colder (BRITE, 1992, p. 26).
  • 13
    Do original: he pulled his quilt around his legs and touched his ribs and hipbones, liking how thin he was (BRITE, 1992, p. 27).
  • 14
    Do original: far colder.
  • 15
    Do original: [e]very tree was alone out there. The animals were alone, each in its hole, in its thin fur, and anything that got hit on the road tonight would die alone. Before morning, he thought, its blood would freeze in the cracks of the asphalt (BRITE, 1992, p. 25).
  • 16
    Do original: an elaborate ceramic affair shaped like a skull with worms twining in and out of the empty eye sockets. You put your finger over one of the nostrils to hold the smoke in (BRITE, 1992, p. 31).
  • 17
    Do original: He looked around the room. Several of the kids were groping each other ineptly, kissing each other with sloppy wet mouths. Veronica Aston had pulled Lily Hartung’s skirt up and had two fingers inside the elastic of Lily’s panties. Nothing stared at this for several minutes, dully interested. Bisexuality was much in vogue among this crowd. It was one of the few ways they could feel daring. Nothing himself had made out with several of these kids, but though he had tasted their mouths and touched their most tender parts, none of them really interested him. The thought made him sad, though he wasn’t sure why (BRITE, 1992, p. 31).
  • 18
    Do original: a practice that refuses the restrictive formulas that define gender according to binary categories (PRAMAGGIORE, 1996, p. 3).
  • 19
    Do original: feel daring.
  • 20
    Do original: Nothing himself had made out with several of these kids.
  • 21
    Do original: none of them really interested him.
  • 22
    Do original: [t]he thought made him sad, though he wasn’t sure why.
  • 23
    Do original: someone put a Bauhaus tape on and turned it all the way up. Laine and Julie rolled around on the bed, pretending to make out (BRITE, 1992, p. 31).
  • 24
    Do original: Julie wore her hair wildly teased in all directions, and she favored lots of black eyeliner and smudged red lipstick. Nothing suspected that Laine liked her mainly because of her superficial resemblance to Robert Smith (BRITE, 1992, p. 31).
  • 25
    Do original: ‘Julie doesn’t turn me on much,’ said Laine. ‘I like you, though. I think you’re really cool’ (BRITE, 1992, p. 33).
  • 26
    Do original: Seriously,’ he said. ‘I haven’t given you a blowjob since August. I want to’ (BRITE, 1992, p. 31).
  • 27
    Do original: Nothing stared up at Robert Smith’s magnified mouth. The singer’s lush clotted voice surrounded him, making him feel again as if he were tumbling between those lips (BRITE, 1992, p. 33).
  • 28
    Do original: Christian still wore a cloak, long and black and lined with silk, whenever he went out (BRITE, 1992, p. 62).
  • 29
    Do original: swith eyes smudged black and ripped black clothes, little ghosts, like photonegatives of the dusky dancers (BRITE, 1992, p. 62).
  • 30
    Do original: the music that drifted out of the doorway and up toward the moon was sparse and dark and strange, the anthem of all the lost children who began their lives at night, when the bars opened and the music began to play (BRITE, 1992, p. 63).
  • 31
    Do original: all the lost children who began their lives at night.
  • 32
    Do original: Right now it was sainted Bauhaus, the pale long-boned gods of this crowd, doing ‘Bela Lugosi’s Dead.’ The eyeliner eyes glazed and the black lipstick lips moved in time with the words, and the children danced slowly (BRITE, 1992, p. 63-64).
  • 33
    Do original: children in black (BRITE, 1992, p. 69).
  • 34
    Do original: [t]heir tongues melted together. The boy’s spit was as sour and sweet as wine. Christian sucked at the boy’s mouth, let the spit flow down his throat, warming him, awakening his hunger even more (BRITE, 1992, p. 66).
  • 35
    Do original: Christian held the boy close, cradled him, kissed his throat (BRITE, 1992, p. 66).
  • 36
    Do original: slipped one hand beneath the belt of the boy’s jeans and found molten trembling heat there. The boy’s back arched; he made a low gasping sound (BRITE, 1992, p. 66).
  • 37
    Do original: [t]he boy’s sperm flooded warm over Christian’s fingers. Christian brought his hand up to his lips and sucked at that too. The two tastes mingling in his mouth, creamy and delicate and bitter and salty, raw as life, were almost too exquisite to bear (BRITE, 1992, p. 67).
  • 38
    Do original: raw as life.
  • 39
    Do original: he licked the blood away. It smudged his lips sticky, and he smiled at himself in the window’s reflection (BRITE, 1992, p. 26).
  • 40
    Do original: smudged his lips sticky.
  • 41
    Do original: he was actually drinking a life, swallowing it whole. He felt himself borne up by the mindless, agonized convulsions of the thin body beneath him and the churning guitar of the spiders from Mars (BRITE, 1992, p. 158).
  • 42
    Do original: [t]he taste of blood meant the end of aloneness (BRITE, 1992, p. 158).
  • 43
    Do original: [t]hey really are vampires, he thought. You’ve consigned yourself to a life of blood and murder, you can never rejoin the daytime world. And he answered himself: Fine. As long as I don’t have to be alone again (BRITE, 1992, p. 171).
  • 44
    Do original: Fine.
  • 45
    Do original: world of blood (BRITE, 1992, p. 228).
  • 46
    Do original: Well,’ said Zillah. He was paler than usual, but he held himself straight, and his eyes were fiercely happy. More than that, Christian realized. Zillah’s eyes were proud. ‘Well. That changes things, doesn’t it? That makes things even better. Lovely’ (BRITE, 1992, p. 219).
  • 47
    Do original: he had Zillah, his father, his lover. And he had Molochai and Twig and Christian. They would be there with him, alive (BRITE, 1992, p. 226).
  • 48
    Do original: He had looked at himself in the bathroom mirror, still able to meet his own eyes, and he had told himself: For a week now you have been fucking your own father. His tongue has been in your mouth more times than you could count. You’ve sucked him off… you’ve swallowed stuff that could have been your brothers and sisters! But he could not disgust himself. He could not make himself ashamed. He knew these were things he was supposed to feel, things the rational daylight world would expect him to feel. But he could not force himself to feel them. In a world of night, in a world of blood, what did such pallid rules matter? (BRITE, 1992, p. 228).
  • 49
    Do original: [h]is tongue has been in your mouth more times than you could count.
  • 50
    Do original: the rational daylight world.
  • 51
    Do original: would expect him to feel.
  • 52
    Do original: [i]n a world of night, in a world of blood (BRITE, 1992, p. 228).
  • Como citar esse artigo de acordo com as normas da revista:

    SANTOS, Andrio de Jesus Rosa dos. “Gótico & Queer: uma análise de Lost Souls, de Poppy Z. Brite”. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 30, n. 1, e75409, 2022
  • Financiamento:

    O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001
  • Consentimento de uso de imagem:

    Não se aplica
  • Aprovação de comitê de ética em pesquisa:

    Não se aplica

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Mar 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    02 Jul 2020
  • Revisado
    27 Nov 2020
  • Aceito
    18 Dez 2020
Centro de Filosofia e Ciências Humanas e Centro de Comunicação e Expressão da Universidade Federal de Santa Catarina Campus Universitário - Trindade, 88040-970 Florianópolis SC - Brasil, Tel. (55 48) 3331-8211, Fax: (55 48) 3331-9751 - Florianópolis - SC - Brazil
E-mail: ref@cfh.ufsc.br