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Além do embate o sujeito: a construção de um 'novo' homem e uma 'nova' mulher no MST

RESENHAS

Além do embate o sujeito: a construção de um 'novo' homem e uma 'nova' mulher no MST

Cezar Karpinski

Universidade Federal de Santa Catarina

Homens e mulheres em movimento: relações de gênero e subjetividades no MST.

SILVA, Cristiani Bereta da.

Florianópolis: Momento Atual, 2004. 182 p.

Pensar o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) como algo construído é, no mínimo, desconfortável principalmente para aqueles que acreditam num movimento social pronto, feito de sujeitos sem terra que dificilmente escapam da oposição submissãoresistência. Ao tratar o MST como um projeto histórico que tem uma pedagogia própria, disciplinas específicas, com sanções e prêmios, Cristiani Bereta da Silva, em seu livro Homens e mulheres em movimento: relações de gênero e subjetividades no MST, propõe uma análise dos sujeitos que se constituíram e se constituem nessas relações entre a liderança do MST e a 'massa' militante. Para a doutora em História pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e professora do Centro de Ciências da Educação na Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC), essa massa tem vários nomes, tem gênero, tem subjetividades e uma multiplicidade de relações de poder em seu interior.

O tema central do livro é a construção das subjetividades com ênfase nas relações de gênero que se engendram nesse espaço e nas diversas temporalidades que constituem o MST. A análise das diferentes maneiras de formar um novo homem e uma nova mulher dentro do movimento social deslinda uma cultura conservadora e machista. Os discursos, a disciplina, as exigências das lideranças do movimento que quer instalar uma sociedade mais justa e igualitária também segregam, excluem, marginalizam e reproduzem em seu interior diferenças nas relações de gênero.

Nesse sentido, as discussões de gênero estão fundamentadas nas construções de subjetividades, demonstrando uma heteroge-neidade, composta por múltiplos sujeitos no MST. Ao questionar os discursos sobre as mulheres – como elas deveriam ser, deveriam participar – a autora mostra qual o lugar do gênero no movimento, pois muitas vezes quem fala do 'lugar' da mulher são os homens e, assim, estudar as mulheres no devir MST é uma das formas de se perceber como são os homens nesse movimento ou, pelo menos, como se dá a relação entre homens e mulheres. A liderança é quase que totalmente formada por homens. Assim, o discurso dos líderes mostra quão masculinizado é o desejo de se constituir uma militante feminina no MST: atuante, companheira, decidida, ativa nas reuniões, nos embates e nos assentamentos. Ao mesmo tempo, esse discurso as estigmatiza como donas-de-casa, mães, com os afazeres domés-ticos, com os compromissos da casa, com os filhos, ou seja, com uma dupla jornada que reflete bem a entrada da mulher na esfera política, mas ainda com as obrigações da esfera privada.

Nessa nuance binária dos papéis masculinos e femininos, tais papéis não são apenas identificados pela autora, mas também questionados nas relações que os engendram. Além disso, a autora questiona o lugar dessas construções nas subjetividades de ser e viver esse projeto político-ideológico. Na construção da nova sociedade proposta pelo MST estão um 'novo homem' e uma 'nova mulher', mas até que ponto esse adjetivo 'novo' não reproduz apenas relações antigas e conservadoras, principalmente no que diz respeito às relações de gênero?

Ao assumir que o MST constrói subjetividades, Cristiani desenha uma rede de relações que vai do líder do movimento à mulher do acampa-mento. Nessa rede, os sujeitos se constituem num processo de inúmeras subjetivações que revela uma plasticidade no devir MST. Dessa forma, a autora sublinha a existência de uma desordem nos conceitos tão 'arrumados' e homogeneizados do MST – como o de igualdade, de liberdade, de identidade. Conseqüentemente, as ideologias propostas pelo movimento atingem de maneira diferente os sujeitos pela diversidade de subjetividades.

Ao estabelecer essa construção de subjetividades, a autora implicitamente questiona e abala a fixidez do conceito de identidade que o movimento quer estabelecer. A pluralidade de sujeitos com suas diversas formas de viver e resistir desmistifica a homogeneidade de saber que o MST procura instalar. Para Cristiani, as formas como as mulheres encaram seu papel no movimento, as suas 'resistências' em participar das reuniões ou outros eventos 'políticos' expõem justamente isso. Escapam às normas de que todas as mulheres devem participar dos eventos tidos como políticos, entretanto, não deixam de ser, por isso, alheias à sua causa. Sua presença no momento das ocupações, seus posicionamentos nos acampamentos diante da justiça e nos assentamentos com os trabalhos cooperativos demonstram essa especificidade.

O livro, que é a publicação de sua tese de doutorado, foi desenvolvido em sete anos de pesquisa (1997-2004). Nesse período, a autora visitou o acampamento Oziel Alves Pereira, em Aberlado Luz, e os assentamentos 30 de Outubro, em Campos Novos, e Conquista da Fronteira, em Dionísio Cerqueira, todos no Estado de Santa Catarina. Essa inclusão nos locais de pesquisa fornece dados muito interessantes. A historiadora mostra um MST que, desde a década de 1980, tinha um anseio de construir uma história e deixar um legado enquanto se constituía num movimento social. Entretanto, Cristiani apresenta um 'olhar' de suspeita, abordando não apenas o 'porquê' de certas atitudes, mas também 'como' estas se constituíram nas diversas relações de poder dentro do MST. Os discursos das lideranças, as falas e os silêncios dos militantes, os Cadernos de Formação e o momento das entrevistas vão demonstrando, na escrita da autora, os sujeitos que o movimento quer constituir e aqueles que estão nos acampamentos e assentamentos. Nesse processo, o discurso do movimento muitas vezes não se sustenta na práxis cotidiana de seus membros.

No diálogo com suas fontes Cristiani afirma que as regras são claras no MST: ou os participantes aceitam a disciplina ou são expulsos e isso indica um controle rígido nas tentativas de se construir os(as) militantes do MST (p. 35). Porém, segundo ela, essas regras parecem ser mais rígidas às mulheres, principalmente nas questões morais e que envolvem sexualidade.

A autora trabalha com as diversas temporalidades dos sujeitos no MST como se cada etapa exigisse um comportamento bem delimitado dentro da política do movimento. As análises feitas nas publicações oficiais do MST mostraram diferenças que se engendram em relações de poder bem específicas entre acampados, assentados e nas relações de gênero. Cristiani cita vários depoimentos e historiciza um movimento normativo, conservador e hierárquico nas etapas de cada evento. Segundo ela, os assentados – por já terem passado pelo acampamento – têm um lugar diferenciado no movimento. E essas e outras formas se constituem como hierarquias e contrariam, de certa forma, a noção de igualdade no MST.

No capítulo três a autora aprofunda a discussão de como se constituíram as relações de gênero na construção do MST. Para ela, existem dois momentos na caracterização do papel das mulheres no movimento. Na década de 1980, quando acontece a instauração do movimento como um grupo constituído em nome de uma causa, as publicações do MST e os estudos acadêmicos que se faziam sobre ele utilizavam a categoria "mulheres". Seguidamente, obedecendo à própria temporalidade dos estudos de gênero, foi na década de 1990 que a categoria "gênero" propriamente dita começou a aparecer nas publicações do movimento. Essa historicidade da própria categoria de análise dá a noção da construção do lugar das 'novas' mulheres e dos 'novos' homens dentro do MST. Contudo, independentemente da categoria de análise que se usou, o importante para a autora é discutir a dimensão que o gênero adquiriu no discurso do MST sobre a construção da "sociedade ideal" (p. 85).

Na opinião de Cristiani, o MST – mesmo apresentando nos seus discursos a discussão de gênero reproduz em seu interior papéis normativos distintos aos homens e às mulheres. Segundo ela, nas lideranças do movimento existe uma crítica constante à falta de consciência política das mulheres e que elas não demonstram interesse em preencher os espaços que o movimento lhes reserva. Sobre essa questão, Cristiani é bem contundente ao explicar que "falar da participação feminina como uma ausência e como um problema não deixa de se constituir também em formas de contribuir para o fortalecimento de uma idéia de que as mulheres são 'criadoras de problemas'" (p. 91).

Afirma, ainda, que esses espaços que o MST deu às mulheres e que, no discurso da liderança, legitimam a cobrança de uma presença feminina não é algo que se fundamenta numa prática cotidiana. Antes disso, esse espaço foi construído diante de necessidades políticas e com interesses nem sempre voltados à causa feminina. Segundo ela, ONGs e seus possíveis recursos financeiros exigiam uma ampliação da participação feminina. Isso fez o MST constituir espaços para as militantes e discursos pautados na igualdade de gênero. Entretanto, nas subjetividades dos sujeitos sem-terra, líderes ou não, essas práticas não se concretizavam.

Esse é um momento bastante problemático da obra, pois, na falta de documentação que legitime as afirmações sobre os recursos de ONGs e espaços femininos, a autora, em vez de afirmar, protege-se dessa tarefa no recuo da pergunta. São questões muito pertinentes que ficam em suspenso por falta de uma segurança nas fontes. Talvez uma abordagem mais segura pautada em uma quantidade maior de documentos daria a essa problemática um caráter mais coeso e fundamentado e não ficaria na forma de uma provocação como se apresenta no livro.

Mesmo assim, para Cristiani é importante afirmar que houve uma construção sobre o espaço feminino no MST. Isso ocorreu pelas lideranças e através das exigências de quem fornecia recursos financeiros ao movimento. Contudo, o movimento não conseguiu se desvencilhar dos estereótipos e continuou a reproduzir papéis e lugares de gênero. Além disso, segundo Cristiani, as discussões de gênero são fundamentadas no MST pelas discussões de classe, um discurso que se pauta na união das mulheres para ajudar os maridos na luta. Uma luta que reproduz lugares diferentes para homens e mulheres.

Para a autora, não se fala, por exemplo, do corpo, do sexo, de sexualidade, que são questões tratadas ainda de forma unilateral e preconcei-tuosa, como se as mulheres não tivessem outros direitos além dos políticos. Cristiani apresenta alguns documentos do MST que ainda se fixam na oposição masculino–feminino e fundamentam essa binariedade nas referências à mulher como "mãe", "natureza" e "gravidez", que são muitas vezes sinônimos da própria causa do MST: a Terra. Esses aspectos ainda reafirmam o lugar da mulher na natureza e dos homens na cultura.

Esses paradoxos que a autora apresenta, fundamentados em inúmeras fontes, mostram o MST como uma instituição política que procura estabelecer em seus discursos a igualdade. É uma crítica que não macula a importância social e política do movimento na luta pela Reforma Agrária no Brasil. Entretanto, é extremamente pertinente, pois apresenta um MST formado por homens e mulheres com inúmeras formas de resistência dentro de suas singularidades. Nesse sentido, podemos dizer que a objetividade dos discursos da liderança que quer constituir a massa militante faz parte apenas de uma dobra da imensa pele que envolve o MST.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Out 2007
  • Data do Fascículo
    Dez 2006
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