Open-access A alteridade à flor da pele

A alteridade à flor da pele

Família, fofoca e honra: etnografia das relações de gênero e violência em grupos populares

FONSECA, Cláudia.

Porto Alegre: Editora da Universidade/UFRGS, 2000. 245 p.

A autora é uma ótima contadora de histórias, tal como suas interlocutoras das vilas Cachorro Sentado e São João em Porto Alegre. Essa sua engenhosidade acaba por nos presentear com uma leitura envolvente do início ao fim do texto. São seis capítulos que analisam as famílias e suas relações cotidianas; as fofocas; a situação de classe e os pormenores que criam diferença e estranhamento intraclasse; o poder e sua associação com a violência, a honra e o humor; tudo isso ao descortinar seus códigos, suas formas e seus simbolismos espraiados nas dinâmicas de gênero e de classe social. Segue prefácio, sobre a importância do olhar etnográfico; e epílogo, sobre a alteridade na sociedade de classes. Enganar-se-ia quem pensasse que as histórias dos sujeitos falam por si. Elas só ganham sentido pleno quando recuperadas habilmente na sua integridade sociopolítica e interpretadas a partir de um olhar aberto à sua complexidade. Como pesquisadoras e pesquisadores vislumbramos que essa é nossa tarefa, e de fato o é; todavia, normalmente estamos tão informados por 'nossas' teorias que elas viraram autos-de-fé e parcamente de pesquisa. Minha intenção com esse breve preâmbulo é atentar o leitor interessado para as qualidades do texto de Cláudia Fonseca: a captura das lógicas simbólicas dos sujeitos, o desprendimento valorativo e classificatório e, mais importante, a capacidade de explorar outras e possíveis interpretações teóricas, contrapondo, aos modos de ver recorrentes, a análise da complexidade. Os modelos explicativos não são tomados a priori; são antes trabalhados como possibilidades de entendimento. A pesquisadora se debruça sobre os seus dados etnográficos e pensa esses modelos ao apontar suas pertinências, impertinências e limitações na compreensão de comunidades locais.

A beleza do trabalho está na descrição densa sobre a vida de mulheres, homens, jovens, idosos e crianças; na trama de suas existências, em um vaivém de proximidades e distâncias criadas para mostrar suas distinções, suas particularidades e seu destino em comum. A autora recria habilidosamente a concretude das perspectivas dos sujeitos, das sutilezas presentes no cotidiano e dos equilíbrios instáveis e frágeis que regem as relações cotidianas. A análise teórica é tecida, sobretudo, a partir da inflexão sobre a etnografia detalhadamente trabalhada, produzindo conhecimento situado. Assim, os lugares ganham nitidez na imaginação do leitor: a Vila Cachorro Sentado, "rodeada de ruas habitadas pela classe média (...) em torno, muros construídos ou fortificados durante os últimos cinco anos pelos proprietários das ruas circunvizinhas (...) que acreditam assim se proteger da contaminação e dos perigos dos roubos" (p.22); e a Vila São João, com "essas ruas que sobem e descem [em analogia à própria vida dos sujeitos] (...) um emaranhado de trilhas que levam em ziguezague para o território mais pobre do bairro" (p.92-3).

A análise da Vila São João aponta para a vida em sanduíche entre os que têm pouco e os que não têm nada. O cotidiano é recheado de observações jocosas sobre casos particulares. Em especial, os supostos maridos traídos são o alvo predileto das anedotas: "Ah, Leco não te cumprimentou hoje? É que as guampas tão tapando a vista dele!" (p.133). São incontáveis as fofocas pormenorizadas, maldizentes ou bendizentes, conforme o caso, sobre os outros e que fazem a festa no pedaço. Essa 'arma feminina', mas não exclusivamente, abriga a "manipulação da opinião pública" (p.46) e ganha espaço "espalhando boatos (...) para Deus e todo mundo" (p.48), mostrando mulheres astutas, observadoras e hábeis no uso da palavra. Há os enfrentamentos "para fazer-se respeitar", quando importa "provar que não é 'trouxa'".

"Verdade ou não, as pessoas gostam de contar como, pela malandragem, enrolaram o patrão, o psiquiatra, o proprietário da casa ou o juiz" (p.21). A revanche contra situações difíceis, aparentemente inelutáveis para o observador externo, é uma resposta para sobreviver física e subjetivamente aos infortúnios de contextos tão adversos, quanto o são a pobreza, a falta de condições nas vilas, o abandono pelas instituições públicas que pouco ou nada se importam com aqueles que mais precisam delas. Apesar disso, os sujeitos que a autora nos apresenta não se dobram, não esmorecem; eles e elas se vingam simbolicamente ao desdenhar de empregados e empregadores. Os primeiros são alvo porque não sabem viver, não têm coragem de ser trabalhadores autônomos ou não conseguem ser proprietários de qualquer coisa, mesmo que seja de um carrinho de papeleiro. Os últimos, os empregadores, embora distantes fisicamente, são tratados ora como burros ora como opressores. Pois bem, os desafetos são enfrentados por meio do desdém, do rebaixamento e, desse modo, infla-se a própria auto-estima, mostra-se aos outros que se é "dono do próprio nariz". Em relação aos "ricos desdenhosos" da Vila São João, por exemplo, quer-se deixar claro que têm uma moral superior quando não viram as costas aos vizinhos e amigos menos afortunados.

As performances dramáticas dos sujeitos trazem a verve da história oral, encantam a assistência e conjugam informação e formação com pitadas saborosas de imaginação: "Sabe o que eu fiz? Me vesti de velha. Botei um xale, assim, na cabeça (que eu sempre tinha xale, ainda tenho). Botei um vestido bem comprido e fui atrás. Ah! Peguei uma bengala e saí" (p.121). As encenações carregam propósitos tanto de mostrar a coragem, a audácia, a decisão da contadora, quanto de entreter a platéia de vizinhas, parentes e mulheres mais jovens. Ao mesmo tempo, voluntária ou involuntariamente, que se educam os sentidos, são ampliados os horizontes de atuação e enfrentamento.

As inúmeras mulheres valentes que aparecem no texto são, antes de tudo, indignadas com as traições amorosas: "A primeira Ana que encontrei, meti o pé na casa dela e quebrei tudo. (...) Só depois, fui saber que não era ela (...) a amante do meu marido" (p.130). Mesmo que as mulheres não expressem comumente o uso da violência, como o fazem os homens para lustrar e ilustrar sua honra, elas se defendem como podem, usando desde as palavras ferinas até o facão, se for preciso. A valentia e a violência são tão caras aos homens que o preço pode ser a própria vida, e estão, dessa forma, associadas à masculinidade hegemônica. Sua manifestação dá-se por meio de confrontações e acertos de contas diante das humilhações sofridas. As reações violentas têm, na maior parte das vezes, a finalidade de recuperar ou deixar clara sua honra, pois "um homem não faz isso para outro sem estar pronto para morrer" (p.192). Até mesmo os mais fracos, os mais desafortunados, como bem mostra a autora, têm chances de mostrar sua bravura no domínio da proteção da casa.

Poderia, ainda, continuar enumerando os murmúrios, os risos, as dores e as paixões, mas convém deixar às leitoras e aos leitores se deliciarem com sua busca. Todos esses relatos dão vida concreta aos modos de ser e viver de pessoas que olhamos cotidianamente, mas que não vemos porque nos negamos a pensá-las como dignas de estudo para além dos "simulacros de alteridade" (p.224) e da folclorização, por vezes, tão ao gosto da academia, dos agentes sociais e das políticas públicas; todos interessados nos pobres. Sua expressão máxima aparece nos modelos que criam o "hiper-real", o "mais real do que real", nos quais viceja "uma alteridade pré-fabricada", reificando "a beleza do morto" (p.225).

O trabalho de análise da autora é um encontro renovado com a questão de classe social, historicamente um tema caro às esquerdas. O cotidiano das relações e seus arranjos possíveis são o mote para o questionamento teórico, confrontando categorias analíticas. Dentre outras, a contribuição da autora é suspender o reducionismo econômico, que centra sua atenção nas respostas às condições de pobreza ¾ renda e emprego ¾ e que deixa fora da análise os modos de enfrentar as adversidades, a complexidade das relações e a condição de agente dos sujeitos.

A viagem que a autora empreende não é uma odisséia intercontinental para ver o exótico; é um mergulho, logo ali, nas cercanias da cidade. Os questionamentos se dirigem aos pesquisadores que "opuseram tão pouca resistência no que diz respeito à reflexão sobre 'os pobres' de sua própria sociedade" (p.226). O olhar da pesquisadora se volta para sujeitos "demasiadamente próximos de nós" (p.227), não raras vezes, e talvez por isso mesmo, desprestigiados pelos modismos acadêmicos.

MARIE JANE SOARES CARVALHO

Universidade Federal do Rio Grande do Sul

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Set 2002
  • Data do Fascículo
    Jan 2002
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