Resumos
A partir de reflexões sobre a mulher e a feminilidade no período vitoriano, a explosão do mercado literário no século XIX e o acesso da mulher à educação, à literatura e ao jornalismo, o texto introduz a obra de Marianne North, pintora inglesa que viajava com o objetivo de pintar a flora de outros países, particularmente a exótica flora tropical. Marianne tornou-se uma das mais famosas viajantes globetrotters de sua época, ao percorrer inúmeros países, como Canadá, Estados Unidos, Jamaica, Brasil, Teneriffe, Japão, Bornéu, Java, Ceilão, Singapura, Índia, Gales, Austrália, Nova Zelândia, Tasmânia, África do Sul, as ilhas Seychelles e Chile. No total, ela deixou registrado aproximadamente 727 gêneros (quase 1.000 espécies) de plantas, algumas bem pouco conhecidas dos estudiosos. O texto trata, pois, da dupla condição de Marianne North como pintora e como autora de relatos dos países visitados. No Brasil, por exemplo, ela viveu entre 1872 e 1873. Seu profissionalismo e objetividade a distinguem das demais viajantes do século XIX.
viagens; mulheres; Marianne North
Starting from reflections about woman and femininity in the Victorian era, the explosion of literary market in the 19th century, and the access of women to education, literature, and journalism, this text introduces the work of Marianne North, English painter who used to travel aiming to paint the flora of other countries, particularly the exotic tropical flora. Marianne became one of the most famous globetrotter travelers of her time, visiting several countries such as Canada, USA, Jamaica, Brazil, Tenerife, Japan, Borneo, Java, Ceylon, Singapore, India, Wales, Australia, New Zealand, Tasmania, South Africa, Seychelles Islands, and Chile. In total, she left registers of about 272 genres (almost 1000 species) of plants, some of them little known by the experts. Hence, the text deals with the dual condition of Marianne North as a painter and author of reports about the visited countries. In Brazil, for instance, she lived between 1972 and 1873. Her professionalism and objectivity distinguish her from the other travelers of 19th century.
Travel Literature; Women; Marianne North
ARTIGOS TEMÁTICOS
O Brasil de Marianne North: lembranças de uma viajante inglesa
The Brazil of Marianne North: memories of an english traveler
Ana Lúcia Almeida Gazzola
Universidade Federal de Minas Gerais
RESUMO
A partir de reflexões sobre a mulher e a feminilidade no período vitoriano, a explosão do mercado literário no século XIX e o acesso da mulher à educação, à literatura e ao jornalismo, o texto introduz a obra de Marianne North, pintora inglesa que viajava com o objetivo de pintar a flora de outros países, particularmente a exótica flora tropical. Marianne tornou-se uma das mais famosas viajantes globetrotters de sua época, ao percorrer inúmeros países, como Canadá, Estados Unidos, Jamaica, Brasil, Teneriffe, Japão, Bornéu, Java, Ceilão, Singapura, Índia, Gales, Austrália, Nova Zelândia, Tasmânia, África do Sul, as ilhas Seychelles e Chile. No total, ela deixou registrado aproximadamente 727 gêneros (quase 1.000 espécies) de plantas, algumas bem pouco conhecidas dos estudiosos. O texto trata, pois, da dupla condição de Marianne North como pintora e como autora de relatos dos países visitados. No Brasil, por exemplo, ela viveu entre 1872 e 1873. Seu profissionalismo e objetividade a distinguem das demais viajantes do século XIX.
Palavras-chave: viagens; mulheres; Marianne North.
ABSTRACT
Starting from reflections about woman and femininity in the Victorian era, the explosion of literary market in the 19th century, and the access of women to education, literature, and journalism, this text introduces the work of Marianne North, English painter who used to travel aiming to paint the flora of other countries, particularly the exotic tropical flora. Marianne became one of the most famous globetrotter travelers of her time, visiting several countries such as Canada, USA, Jamaica, Brazil, Tenerife, Japan, Borneo, Java, Ceylon, Singapore, India, Wales, Australia, New Zealand, Tasmania, South Africa, Seychelles Islands, and Chile. In total, she left registers of about 272 genres (almost 1000 species) of plants, some of them little known by the experts. Hence, the text deals with the dual condition of Marianne North as a painter and author of reports about the visited countries. In Brazil, for instance, she lived between 1972 and 1873. Her professionalism and objectivity distinguish her from the other travelers of 19th century.
Key Words: Travel Literature; Women; Marianne North.
Os textos de viagem escritos por mulheres no século XIX entram em contraponto e diálogo com os relatos de autoria masculina nos quais a mulher figura como símbolo, nunca como sujeito da história. As mulheres viajantes construíram seus textos dentro de uma rede complexa de forças e eixos de poder, particularmente o poder patriarcal e o poder do colonialismo, os quais constituem o fundamento do pensamento vitoriano.1 1 A referência é ao reinado da Rainha Vitória, de 1837 a 1901. Tais noções marcam a produção feminina desse período revelando a relação entre gênero e poder. É nesse contexto que se situa a obra de Marianne North, pintora inglesa que viveu mais de um ano no Brasil, entre 1872 e 1873.2 2 Este ensaio, anteriormente publicado em Elogio da lucidez: uma homenagem a Tania Carvalhal, organizado por Eduardo Coutinho, em 2004, é uma versão reduzida da introdução a Marianne North: lembranças de uma vida feliz, de 2001, que organizei para a Coleção Mineiriana da Fundação João Pinheiro do Estado de Minas Gerais. Única tradução (feita em co-autoria com Julio Jeha) do relato de Marianne North ao português, o volume inclui reproduções dos quadros mais importantes de North com motivos da flora e da paisagem do Brasil. O Ipea patrocinou a inclusão das gravuras por meio do pagamento dos direitos a The Royal Botanic Gardens, Kew. Meus agradecimentos a seu Presidente, professor Renato Martins. A pesquisa é apoiada pelo CNPq por Bolsa de Produtividade.
O período vitoriano, de caráter extremamente prescritivo, revela uma obsessão com a regulamentação: o discurso médico, as leis, os sermões e os textos religiosos, os livros de conduta e os manuais sobre educação dos filhos, o gerenciamento da casa e da economia doméstica, a etiqueta e o comportamento, as atividades profissionais e até mesmo as viagens, tudo revela a compulsão vitoriana com o controle e a imposição de uma visão reguladora da sociedade. O ideal feminino do período - que a crítica Barbara Welter definiu como the cult of true womanhood - se baseava "em quatro virtudes cardiais - piedade, pureza, submissão e domesticidade. Coloque-se tudo isso junto e se soletra mãe, filha, irmã, esposa - mulher".3 3 Judith M. BENNETT, 1989, p. 262-263, tradução minha. O papel feminino era, assim, definido pelo espaço da casa, o que reforçava os limites rígidos entre a esfera pública e a privada, entre a casa e o espaço externo do trabalho. Por meio da polarização dos papéis sexuais definia-se uma separação de esferas para a atuação do homem e da mulher.
A noção de womanhood adquire uma importância simbólica, associando-se, como representação, a imagens de identidade nacional construídas pelo pensamento hegemônico e regulador. Na Inglaterra, é evidente a relação entre o projeto imperial e a produção da figura feminina - símbolo da casa e da pureza, base do conceito de Englishness no período vitoriano, que é também o período da grande expansão imperial inglesa. A representação do sujeito feminino, primordialmente construída em termos da família, da propriedade e da perpetuação da espécie, relaciona-se a outras mediações históricas e sociais, como classe, raça, colonialismo e neo-imperialismo. As mulheres não foram simplesmente vítimas passivas do patriarcalismo; ao contrário, o apoio das mulheres foi crucial à sobrevivência do modelo patriarcal. Além disso, as mulheres da elite dominante foram cúmplices e beneficiárias da expansão imperial de seus países.
É fato que a conceitualização vitoriana da mulher, embora bastante resistente a mudanças, foi sendo gradualmente desestabilizada durante o século XIX, que, nesse sentido, constitui um verdadeiro turning point na história da condição feminina, como afirmam Renate Bridenthal, Claudia Koong e Susan Stuart:
as normas enunciadas no início do século eram normas coletivas definindo uma função social - a de esposa e mãe -, estabelecendo os direitos da mulher como uma função de suas obrigações e definindo as mulheres como um grupo social cuja função e comportamento seriam estabelecidos de maneira standard e portanto idealizada. Mas essa formulação totalizadora gradualmente se desintegrou, e identidades femininas começaram a proliferar: mãe, trabalhadora, solteirona, mulher emancipada, etc.4 4 Renate BRIDENTHAL, Claudia KOONZ e Susan STUART, 1978, p. 4, tradução minha.
Ironicamente, enquanto o homem burguês formulava, com o auxílio de muitas mulheres, o ideal de feminilidade dominante no século, a mulher tratava de criar novos papéis e expandir os limites impostos pelo modelo patriarcal.
A questão da produção literária faz parte desse debate e da polêmica com relação à educação e ao trabalho da mulher que se desencadeou durante todo o século, na Europa e nos Estados Unidos. Uma das poucas profissões consideradas adequadas a mulheres de classe média era a de escritora ou tradutora, principalmente pelo fato de que o trabalho podia ser desenvolvido na esfera privada. Entretanto, no decorrer do século XIX, a explosão do mercado literário, o acesso da mulher a níveis mais altos de educação, os índices mais altos de alfabetização e a entrada da mulher em áreas como o jornalismo e o ativismo político resultam na transformação gradual da natureza da literatura feminina. Muda, inclusive, a própria questão da escrita como uma vocação feminina. Mulheres se envolvem na área de editoração (publishing): jornalistas, editoras, impressoras etc. Multiplicam-se as revistas e os jornais para mulheres, alguns de cunho feminista. Novas formas de transporte permitem que as escritoras conquistem um público nacional e até internacional.
A explosão da produção feminina em um ambiente ideológico que lhe era desfavorável marca discursivamente os textos escritos por mulheres, que oscilam entre a afirmação e a subversão da ideologia dominante. No caso da literatura de viagens, os relatos escritos por mulheres viajantes oferecem exemplo privilegiado dessas tensões por partirem, por premissa, de um deslocamento - literal e simbólico - da mulher. Nesses textos, tempos e espaços se entrecruzam, redesenhando mapas; a mulher, outro do homem, opõe-se ao colonizado, outro do ocidental, e de seu lugar, na encruzilhada de gênero, raça, classe e "nação", constrói uma visão de alteridade necessariamente marcada por sua própria alteridade; seu texto, também, constitui o que Miriam Moreira Leite chama de "dupla documentação", ao "retratar" a condição feminina no país visitado e, por implicação, no país de origem. Também a posição múltipla da mulher, como dominada/dominadora, periferia/centro, chama a atenção para a complexidade das relações de poder nas quais se situa. Além disso, os textos se colocam em uma cadeia de produção e recepção, e as mulheres escritoras terão de negociar sua inserção nessa cadeia. As pressões ideológicas e culturais e a preocupação com a recepção se tornam determinantes no ato de produção, deixando marcas discursivas visíveis em seus textos.
A viajante é uma figura que vive em um espaço liminar, deslizando nos pontos de intersecção cultural. Arlequim, ora na posição masculina - aventura, perigo, deslocamento -, ora na feminina que lhe garantia a continuidade da aceitação social, reverte por um lado a ideologia dominante ao empreender a jornada, mas estabelece, por meio dela, um espaço de poder no lugar visitado. Figura ambígua, liminar, é ao mesmo tempo centro e periferia, constituindo simultaneamente identidade e alteridade. Superior como raça, inferior como gênero, a mulher-viajante se situa em uma rede complexa de relações de dominação e subordinação, assumindo posições de sujeito contraditórias em lugares de poder (ou falta de poder) que se encontram em processo constante de deslocamento e mutação. Essa instabilidade na posição da mulher - de descentramento/recentramento - resulta na acentuada bitextualidade dos textos de viagem de autoria feminina.
Pode-se, então, falar em um texto feminino de viagem ou em um gênero paralelo de literatura de viagem? O ponto que se deve ressaltar é que há uma marca de gênero na significação tanto das viagens quanto dos relatos escritos por mulheres, e que as pressões decorrentes da posição feminina definem uma diferença com relação à produção masculina.
No caso das mulheres, até o século XVIII ainda eram poucas as que se aventuravam a viajar e quase sempre suas viagens no interior ou exterior se relacionam a problemas de saúde ou deveres familiares. Surgem, entretanto, vários nomes femininos entre os autores de relatos de viagem, como o de Mrs. Goodwin Vigor, Lady Mary Wortley Montagu e Mrs. Jemima Kindersley.5 5 Mrs. Kindersley visitou a Bahia em uma escala do navio que a levava, com o marido, para a África e a Ásia. Seu texto Letters from the Island of Tenneriffe, Brazil, the Cape of Good Hope, and the East Indies, de 1777, é o primeiro texto escrito por uma mulher sobre o Brasil. Os textos de viagem tinham enorme demanda tanto nos Estados Unidos como na Inglaterra, perdendo em popularidade apenas para o romance. Embora esse tipo de texto se associasse a uma atividade na esfera externa a casa, por outro lado se situava na linha da literatura confessional considerada mais feminina. Além disso, havia, para muitos já e cada vez mais no decorrer do século, o atrativo de serem textos escritos por mulheres.
O século XIX, particularmente sua segunda metade - a era vitoriana -, foi o século de ouro da literatura de viagens escrita por mulheres. No decorrer desse século, as mulheres apresentaram uma mobilidade geográfica crescente graças à melhoria do sistema de transportes e comunicações, bem como à sua entrada em várias áreas profissionais e à crescente movimentação da esfera privada para a pública, entre outros fatores. São mulheres de classe média ou alta: nobres que acompanham os maridos em viagens diplomáticas, esposas de militares, oficiais da Marinha, comerciantes, cientistas, representantes consulares; jovens viajando com as famílias; viúvas em visita a familiares; senhoras viajando por problemas de saúde; artistas, cientistas ou jornalistas viajando por razões profissionais; algumas mulheres nobres viajando com a família como turismo. Outras, as chamadas globetrotters, exploram o globo em todas as direções. No decorrer do século, há um alargamento no que diz respeito à classe social e incluem-se algumas mulheres de situação social mais baixa que viajam sozinhas ou com familiares para "ganhar a vida" ou tentar a sorte no país estrangeiro. Várias dessas viajantes de diferentes nacionalidades vieram ao Brasil no decorrer do século XIX. Muitas escreveram relatos de viagem, a maioria com publicação póstuma.6 6 Na pesquisa que venho desenvolvendo, encontrei 35 textos sobre o Brasil escritos por 33 mulheres. No século XVIII, a única viajante que relatou sua visita ao Brasil foi Mrs. Kindersley (nota anterior). As demais nos visitaram no século XIX. Maria Graham e Marion Mulhall publicaram dois textos com referências ao Brasil. Entre as viajantes, algumas das mais famosas são, além de Marianne North, Maria Graham, Izabel Burton, Elizabeth Agassiz e Ina von Binzer. Seus relatos foram traduzidos e publicados em português.
Os relatos escritos por mulheres viajantes partem, por premissa, de um deslocamento literal e simbólico da mulher, quebrando a homologia estabelecida entre as ordens social, simbólica e espacial. A separação de esferas - pública x privada - para a atuação do homem e da mulher é desestabilizada pela viagem. Os papéis sexuais, já definidos de forma polarizada e delimitados por espaços sociais prescritos socialmente, sofrem o impacto desse deslocamento a novos espaços, nos quais as mulheres terão de negociar sua inserção. A radicalidade dessas mudanças leva, então, paradoxalmente, à reafirmação do sentido do feminino por meio de sua ancoragem no espaço doméstico. Embora em deslocamento permanente no espaço público, tanto pela viagem que opõe fora e dentro, casa e país visitado, como pela escrita que passará a circular fora do espaço privado, as viajantes definem um locus de observação sempre associado a casa, com o qual a conexão com o país de origem e suas determinações ideológicas é restabelecida. Mulher e casa se rearticulam nos textos à medida que a viajante simultaneamente desafia e reafirma os ideais domésticos que sustentam a construção vitoriana dos gêneros.
A viagem proporciona o distanciamento da casa, o que representa uma possibilidade de liberação, e a viajante expressa um sentido simultâneo de aproximação e afastamento de sua cultura. A visão da "casa" se delineia, com maior clareza, como resultado da distância: partida e chegada, momentos que emolduram a viagem, constituem-se por sua relação com a casa, as raízes, a referência conhecida. Ao mesmo tempo, a experiência do distanciamento transforma a conexão da viajante com a casa: a viagem pressupõe a domesticação do não familiar e a desfamiliarização do familiar, pois o olhar da viajante só pode operar por analogia e contraste. A percepção da cultura outra torna a percepção da cultura própria mais complexa.
Por outro lado, a viagem também resulta na redefinição de espaços culturais, abrindo novas perspectivas para a mulher no retorno a casa. Como indica Maria H. Frawley, "a viagem para longe da Inglaterra facilitou a transformação no front doméstico, pois conferiu às mulheres [...] o 'capital simbólico' com o qual passaram a competir no mercado cultural da sociedade vitoriana".7 7 Maria H. FRAWLEY, 1994, p. 29, tradução minha. O grande número de relatos de viagem de autoria feminina e sua crescente popularidade no decorrer do século XIX refletem essa transformação. Viajar, para muitas dessas mulheres, adquire um caráter quase profissional, resultando em livros, convites para palestras etc. Algumas das viajantes traziam outros produtos culturais, como fotografias, quadros, ou recolhiam amostras de plantas, madeiras, artesanato, insetos etc. O caso de Marianne North é emblemático, pois não só viajava com o objetivo de pintar a flora de outros países, particularmente a exótica flora tropical, como chegou a viajar com o objetivo de encontrar itens específicos que faltavam em sua coleção, revelando, portanto, um grau de profissionalização que a distingue de tantas viajantes do século XIX. Da mesma forma, a referência, no texto, a possíveis leitores aos quais deseja agradar indica uma visão mais profissional da atividade da escrita bem como sua preocupação com a recepção da obra.
Uma vida feliz
Marianne North nasceu em 1830 e morreu em 1890. Filha de Frederick North, um membro do Parlamento inglês, passou sua infância em Hastings, na propriedade da família em Norfolk. Além de uma meia-irmã do primeiro casamento de sua mãe, tinha um irmão mais velho, Charles, e uma irmã mais nova, Catherine, que editou parte de suas memórias.
Além de passar alguns meses em uma escola em Norwich, Marianne não recebeu educação formal. Como tantas jovens inglesas de seu nível social, aprendeu canto e piano, e desenvolveu sozinha, desde muito cedo, sua aptidão para a pintura.
Em 1847, quando tinha 16 anos, Marianne realizou sua primeira viagem, passando três anos com a família no continente. Após a morte da mãe, em 1855, ela assumiu os cuidados domésticos. Nessa época sua dedicação à pintura tornou-se bastante intensa; nas várias viagens que fez com o pai e os irmãos, ela adquiriu o hábito de levar tanto o diário, no qual registrava suas impressões, como o seu caderno de desenhos.
Após o casamento de sua irmã, Catherine, com o poeta e crítico John Addington Symonds em 1864 e a perda da representação parlamentar por seu pai, Marianne o acompanhou em várias viagens pela Europa, pelo Egito e pela Síria. Com o artista australiano Dowling aprendeu pintura a óleo, abandonando definitivamente as aquarelas. Jardinagem, estudo de botânica nos jardins botânicos de Hastings e Kew e pintura eram suas principais atividades até a morte do pai, em 1869. Já beirando os quarenta anos de idade e após quase um ano de repouso em Teneriffe, Marianne decide dedicar sua vida à pintura de plantas e flores em seu ambiente natural.
Nos anos seguintes, Marianne visita todos os continentes, retornando sempre à Inglaterra para períodos de repouso. Até cinco anos antes de sua morte, percorreu inúmeros países: Canadá e Estados Unidos, Jamaica, Brasil, Teneriffe, Japão, Bornéu, Java, Ceilão, Singapura, Índia, Gales, Austrália, Nova Zelândia, Tasmânia, África do Sul, as ilhas Seychelles e Chile. Torna-se, assim, uma das mais famosas viajantes globetrotters de sua época. Entre seus amigos contavam-se Charles Darwin, que se interessou muito por seu trabalho e sugeriu que visitasse a Austrália, Joseph Hooker, diretor do Kew Botanic Gardens, e as viajantes Francis Galton e Lucie Duff Gordon.
Em suas duas grandes viagens ao redor do globo, Marianne North pintou 727 gêneros (quase 1.000 espécies) de plantas, muitas delas eram pouco conhecidas na época em que ela as pintou. Algumas, como a Nepenthes northiana de Sarawak, a Northia seychellana das ilhas Seychelles e a Crinum northianum de Bornéu eram totalmente desconhecidas pela ciência e receberam seu nome, tendo esta última sido descrita com base em seus desenhos. Isso significava, como registrado no catálogo original dos quadros, um reconhecimento da precisão científica de sua representação pictórica.
Seus quadros, com o tempo, começaram a ser conhecidos. Marianne North foi, inclusive, visitada várias vezes por personagens ilustres, como o Imperador D. Pedro II, e recebeu convites para expor sua obra. Em 1879, ela organizou uma exposição, com grande sucesso, em uma galeria. A partir daí, desenvolveu o projeto de construir uma galeria para exposição permanente de seus quadros e ofereceu a Sir Joseph Hooker o conjunto de sua obra e os recursos para a construção do prédio no Kew Botanic Gardens.
Envolvendo-se plenamente em cada detalhe do projeto, inclusive desenhando ela mesma o prédio e o painel com 246 amostras de madeiras recolhidas em suas viagens, Marianne organizou a coleção, apresentada ao público em 1882. Um catálogo completo, com prefácio de Joseph Hooker, acompanha a coleção da North Gallery, que inclui 832 pinturas a óleo colocadas lado a lado nas paredes, sem nenhum espaço entre elas, como uma colagem. Em um mês foram vendidos dois mil exemplares do catálogo, e Marianne recebeu da Rainha Vitória uma carta de agradecimento.
A partir da fundação da Galeria, Marianne se dedicou a preencher as lacunas da coleção. Viajou para a África em 1882, depois às ilhas Seychelles e finalmente ao Chile. Já desgastada com tantas viagens, Marianne retorna definitivamente à Inglaterra em janeiro de 1885, instalando-se em Alderley, Gloucestershire. Adoece no final de 1887 e, acompanhada pela família, vive os últimos anos de sua vida, vindo a falecer em 30 de agosto de 1890.
Seus diários, editados por sua irmã, Catherine Symonds, foram publicados postumamente: Recollections of a Happy Life (Macmillan, 1892) e Some Further Recollections of a Happy Life (Macmillan, 1893). Atestando o grau de reconhecimento que Marianne North atingira, foram publicados obituários no Athenaeum (06/09/1890), no Critic (27/09/1890) e no Scientific American (08/10/1890).
Geografias imaginadas
É na dupla condição de pintora e autora de relatos que Marianne North representa os países visitados em tantas viagens. Esse outro espaço, lugar sempre distante e diferente da casa, encontra expressão verbal e pictórica no conjunto de sua obra. Embora seu relato não tenha sido publicado juntamente com reproduções dos quadros, é interessante conhecê-los, pois isso permite que se observe a forma como o olhar estrangeiro de uma das mais famosas viajantes do século XIX constitui o espaço visitado, seja por palavras, seja por meio de imagens visuais.
Como a expressiva maioria das viajantes, Marianne North confere ao espaço da casa, referência primeira e fundamental, uma posição de destaque em seus relatos. Ancorando seu texto no espaço doméstico, North não só se adapta às prescrições sociais quanto à posição feminina aceitável, como também se situa na tradição feminina do relato de viagens. Seu primeiro capítulo, que nos remete às origens familiares e às experiências da infância, cumpre uma função particular no relato, pois estabelece um locus de referência, uma moldura familiar, uma ancoragem e uma explicação para a viagem delineada no próprio espaço familiar. Uma atividade supostamente transgressora é familiarizada, portanto. A ancoragem no espaço familiar, feminino, não se limita ao primeiro capítulo, mas é reiterada em todo o relato. Marianne se preocupa, por exemplo, com a descrição dos ambientes e dos arranjos domésticos, das comidas, dos costumes e da etiqueta na rotina doméstica. Enfoca, com freqüência, a relação dos escravos e dos patrões na vida diária e a distribuição do trabalho nas casas, enfatizando as atividades desenvolvidas pelas mulheres que encontra. Tanto nesse aspecto quanto na descrição detalhada de jardins e de casas, inclusive dos quartos em que dorme, a autora contribui para a documentação sobre a vida brasileira no século XIX e possibilita comparações interessantes entre os seus hábitos e os dos grupos com os quais entra em contato. Assim como as outras mulheres viajantes do período, North apresenta ao leitor contemporâneo a dupla documentação que constitui uma das contribuições mais interessantes de seu relato de viagens.
Outro aspecto que associa o texto de Marianne North à já existente tradição de uma escrita feminina de viagens é o movimento circular da narradora entre as esferas pública e privada. Como indica Mary Louise Pratt, a mulher viajante organiza seu relato "de forma centrípeta ao redor de locais sucessivos de residência a partir dos quais a protagonista se lança ao mundo mas sempre retorna".8 8 Mary Louise PRATT, 1992, p. 158-159, tradução minha.
Dessa posição inicial fixa na esfera privada, Marianne North expande os limites domésticos por meio de visitas, excursões e sessões de pintura ao ar livre. North executa vários movimentos para pintar seus objetos: alguns lhe são trazidos a casa ou ao jardim, outros ela retrata em seu habitat, próximo ou distante da casa em que se hospeda. Paisagens são captadas, muitas vezes, a partir de uma posição fixa em janelas ou varandas das casas que visita. Janelas, varandas e jardins constituem espaços liminares, fronteiras entre dois mundos, duas esferas, ao mesmo tempo abertura e separação, mas ainda se mantêm como espaços protegidos conectados à esfera privada.
É interessante observar, por exemplo, que a relação de Marianne North com a flora que retrata sempre passa pela noção de domesticação. Embora viajando por tantos lugares exóticos, se considerados do ponto de observação da cultura e do espaço de origem, Marianne o faz sempre por meio de uma rede de segurança que mantém sua referência ao conhecido, ao doméstico: as famílias que a convidam, as amigas e os amigos que a acompanham são pessoas de expressão nas comunidades que visita e lhe garantem a inserção nesses espaços estranhos. Além disso, uma rede de mediações se estabelece inclusive para fornecer-lhe espécimes das floras locais: literal e simbolicamente, a flora exótica se desloca de seu habitat e vem até o espaço protegido de Marianne para entregar-se como objeto ao processo de pintura e catalogação - de mais domesticação pelo olhar classificatório, portanto. É nesse sentido que a obra de Marianne North responde com clareza ao projeto eurocêntrico, que trata de incorporar a realidade dos países visitados às ordens e às categorias do conhecimento europeu. A tendência classificatória, tão em moda nos wonder cabinets desde o século XVI, encontra-se expressa na obsessão de Marianne por sua coleção, o que a leva inclusive a organizar viagens com objetivos bem específicos, como pintar uma determinada planta, e na fixação em uma precisão cientificista e naturalista pelo detalhamento. Também a organização da coleção na North Gallery, feita pela própria artista, reproduz os mesmos princípios classificatórios: a tendência a incluir objetos e amostras "autênticos" trazidos dos países visitados e a própria disposição dos quadros, lado a lado e sem espaço entre as obras, como uma coleção de selos colada nas paredes.
North se situa, em termos de seus objetos e estilo, totalmente dentro da tradição, pois opta pelo naturalismo, que caracteriza a maioria dos chamados artistas viajantes, e escolhe como objeto privilegiado aquilo que, na natureza, mais se afina ao sujeito feminino: a flora, que predomina sobre as paisagens, seu outro campo de interesse. Ao descrever paisagens urbanas e naturais, oscila entre comentários ancorados numa posição de superioridade cultural, quando se refere à decadência e sujeira de vários lugares que visita, e afirmações sobre a beleza e a grandiosidade da natureza. A natureza retratada é sempre exuberante, grandiosa, e contrasta com a pequenez do elemento humano, sempre colocado em posição secundária, descentrada no quadro, sempre visto a distância, como que sem foco ou até mesmo totalmente ausente. Seus quadros paisagísticos confirmam a tradição da pintura de paisagens inglesas dos séculos XVIII e XIX: a representação da natureza se dá como uma realidade desprovida de história, um espaço vazio, em que as relações sociais se encontram totalmente ausentes.
Vale a pena ressaltar, ainda, a opção de Marianne North pela pintura não problemática e sua fixação em um tipo de objeto que em nada desafiava, e até mesmo confirmava, a posição feminina prescrita pela sociedade vitoriana. Talvez seja essa a razão principal de sua aceitação pelos contemporâneos, como indica o reconhecimento da própria Rainha Vitória em carta a ela enviada após a doação de suas pinturas ao Kew Botanic Gardens.
Outro aspecto a ser considerado é o fato de que, embora viajar para pintar não fosse uma ocupação considerada feminina, a pintura fazia parte das atividades prescritas para mulheres do nível social de North, como a música (piano e canto). Em um artigo publicado em 1831 na revista Gardener's Magazine, por exemplo, John Claudius Loudon afirma que "saber desenhar flores botanicamente, e flores horticulturalmente [...] constitui uma das maiores realizações de nossas jovens da sociedade que vivem no interior".9 9 John Claudius LOUDON apud Anthony HUXLEY, 1980, p. 9, tradução minha. Por outro lado, North acaba por romper com a ideologia dominante ao revelar uma visão profissional de sua atividade como pintora. Em vez de compactuar com a visão ornamental das atividades artísticas como complemento ao tipo de educação considerada adequada para mulheres, North pinta para ganhar a vida e revela ser esse o objetivo de suas viagens. Também sua forma de lidar com o conjunto de sua obra responde à mesma visão profissional: deseja torná-la accessível ao público, preservá-la como uma coleção, como uma série que adquire sentido em conjunto. Ao construir o "museu" que abriga sua obra, North reforça sua importância como bem simbólico e a contextualiza em um espaço cultural privilegiado, aumentando, pela aura, o seu valor. Vale lembrar que, quando se inaugurou a North Gallery, a fotografia estava em seus primórdios e a pintura era o meio mais adequado para retratar paisagens e objetos de países distantes. Isso explica por que houve tanto uma moda de missões artísticas visitando países, inclusive a convite de governos locais, como o hábito de incluir artistas nos grupos que organizavam expedições científicas já desde o século XVIII. No caso do Brasil, por exemplo, destacam-se a Missão Artística Francesa, a participação de William James na Thatcher Expedition de Louis Agassiz, os quadros de Maria Graham e os de Marianne North. No caso de North, a combinação de dois interesses - a pintura e a botânica - resultou no conjunto de uma obra que teve, além do apelo ao gosto do público contemporâneo por países "exóticos", um certo valor científico. Entretanto, suas 832 pinturas receberam avaliações discrepantes quanto à qualidade artística: enquanto o catálogo da exposição que inaugurou a Galeria as apresentava como obra de uma verdadeira artista, outros comentaristas as consideravam frias e "desprovidas de sensibilidade [...] causando uma impressão desagradável".10 10 Wilfrid BLUNT apud HUXLEY, 1980, p. 13.
Porém, a realização de North deve ser valorizada quando se avaliam as condições de trabalho e de transporte das telas. Sem dúvida, a própria quantidade de quadros já representa um enorme investimento. Os quadros eram pintados em papel preparado e fixados em tela no retorno à Inglaterra, o que permitia a restauração dos estragos causados pela armazenagem e pela viagem. Embora sua técnica seja bastante constante, não apresentando transformações significativas ao longo dos anos e nunca perdendo um ar bem comportado, por outro lado trata-se de um registro importante para a botânica, inclusive quando se considera que muitos dos habitats retratados por Marianne North sofreram posteriormente um processo de deterioração causado pela ação humana.
O Brasil de Marianne North
Marianne North foi uma das viajantes que melhor conheceram o Brasil, onde permaneceu por mais de um ano entre 1872 e 1873. Visitou várias cidades - Recife, Salvador, Rio de Janeiro, Petrópolis e Teresópolis - e passou oito meses em Minas Gerais. Esteve em Juiz de Fora, Barbacena, Congonhas, a capital Ouro Preto, Morro Velho, o Seminário do Caraça, Caeté, Mariana, Curvelo, Cocais, Santa Luzia, Sabará e Lagoa Santa. Visitou fazendas e grutas, conheceu o doutor Lund e fez amigos entre os mineiros e os ingleses residentes no Estado. Ao deixar Minas e seus amigos, manifesta, em seu habitual tom algo contido, uma certa tristeza. Aparentemente, foi bem recebida e gostou da viagem, visto que veio para ficar três semanas e aqui residiu por oito meses.
Entretanto, o sentimento positivo não é constante em seu relato. Ao contrário, com um texto extremamente irônico, North critica costumes locais e faz avaliações às vezes bastante duras sobre as pessoas com quem entra em contato, exceto, é claro, seus amigos. Embora expresse várias vezes seu agradecimento pela hospitalidade que recebe, inclusive de famílias desconhecidas em cujas casas solicitava hospedagem durante suas viagens, North não se cansa de apresentar comentários bastante agressivos. Refere-se, por exemplo, ao "desejo costumeiro [dos mineiros] de saberem o preço de tudo", considera vários de seus conhecidos "desprovidos de idéias", registra que "patriotas são raros no Brasil", menciona repetidamente a sujeira de casas e pessoas e representa de maneira grosseira e caricatural aspectos físicos e costumes locais. Sobre uma família que lhe oferece hospedagem, por exemplo, comenta que "teria feito fortuna em um parque de diversões"; cita a referência feita por uma inglesa a uma senhora conhecida como sendo "muito respeitável [...] para uma brasileira"; menciona a pouca curiosidade dos brasileiros pelas coisas do País; revolta-se com a impunidade dos criminosos e a falta de justiça. Mesmo ao elogiar, critica: uma horta bem cuidada é "um milagre de limpeza para o Brasil"; uma das casas que aluga é "limpa [...] considerando as pessoas que a cuidam"; a família que a hospeda gosta de música mas "é uma platéia sem talento", e assim por diante.
O que ressalta nesses comentários é que a percepção da realidade do Brasil está marcada pelos padrões de referência europeus, e mais precisamente ingleses, que informam o olhar de Marianne. Tudo é medido a partir da posição eurocêntrica: a avaliação de pessoas, comportamentos e locais é positiva quando há uma aproximação aos padrões da cultura de referência, e é negativa quando ocorre um distanciamento. As observações sobre o que é europeu denotam sempre um sentido de superioridade, marcando como absoluto e universal um gosto que, obviamente, é uma construção cultural. Entre os europeus, ela ressalta muitas vezes a superioridade inglesa. Petrópolis, por exemplo, não passa de "uma imitação ruim de uma estação de águas alemã de segunda classe"; ela sempre se senta à cabeceira das mesas, por ser considerada "a estrangeira mais importante"; as mercadorias européias são muito melhores que os produtos locais; as crianças mais bonitas do mundo são as inglesas; a bela vila cornualesa de Morro Velho contrasta com a sujeira dos ambientes brasileiros; as horríveis estradas brasileiras lembram a Itália e constituem "abominações [que] parecem uma praga comum a todas as nações latinas". A posição de superioridade cultural é explicitada inúmeras vezes. No enterro de um velho compatriota que fora envenenado, por exemplo, os ingleses de Morro Velho dão uma demonstração de união para não "deixar os nativos pensarem que os ingleses podiam ser tratados assim". A oposição fica clara e se estabelece não mais entre brasileiros e ingleses, mas entre ingleses e nativos, um termo que carrega as marcas de uma história de dominação colonial e denota a identificação da autora com a posição imperial da Inglaterra.
Também as relações sociais estabelecidas no Brasil recebem uma avaliação crítica por parte de Marianne. Ao descrever a forma como pessoas de nível social alto eram carregadas em liteiras, Marianne estabelece um contraste com o bom costume inglês de andar a pé. Ao se referir aos negros, ela não esconde seu preconceito: as descrições os reduzem ao grotesco, ao ridículo ou ao pitoresco. Eles são "figuras estranhas, enormes, espalhafatosas", são preguiçosos e sorrateiros, e bastaria tê-los como empregados para perceber que os que os defendem estão equivocados. Em nenhum momento, ao abordar a questão da escravidão, Marianne contextualiza o comportamento dos negros. O que fica implícito é uma visão negativa dessa raça, sem uma avaliação das determinantes culturais que explicam as estratégias de sobrevivência utilizadas. Os elogios à "branda forma" que toma a escravidão no Brasil e as freqüentes referências à alegria e ao contentamento dos escravos não convencem, pois Marianne se trai ao afirmar que esses são "tão mimados como nós mimamos nossos animais de estimação"! No retrato do outro, seja ele o negro ou o brasileiro, a autora opera por generalização e homogeneização, reduzindo a alteridade a um sistema fixo de diferenças em que a superioridade da cultura de referência fica assegurada.
Também na descrição de paisagens rurais e urbanas percebe-se a ancoragem do olhar observador em sua própria cultura. Marianne contrasta "as belezas da natureza e as misérias da humanidade" e apresenta sempre uma avaliação negativa de tudo que resulta da intervenção humana no Brasil: os prédios "são de mau gosto", o "espalhafato berrante dos jardins" contrasta com a "beleza adorável" e "abundante" das paisagens, as cidades são mais bonitas "a distância", o país só tem a oferecer as "maravilhosas curiosidades naturais". Aliás, convém observar que tais curiosidades têm valor de mercado na Europa, algo que Marianne conhece bem. Além de explicitar a intenção de vender alguns de seus quadros, ela se refere ao alto preço que poderia conseguir se levasse mudas de plantas para vender. Da mesma forma, borboletas e amostras de madeiras são colecionadas e visam a um mercado específico. A relação de Marianne com o Brasil se dá, assim, dentro de uma perspectiva comercial e a partir de interesses bem estabelecidos e nada neutros ou inocentes. Aliás, bem afinados à visão inglesa referente aos países da América do Sul.
O olhar de Marianne, portanto, não se desloca nunca de seu locus de "origem": a Inglaterra é o ponto de partida e chegada tanto para a viagem como para a representação que a viajante faz do país visitado. A lembrança de casa, da pátria, da "terra distante", dos rituais de "nossa igreja" e da "brumosa velha Inglaterra" está sempre presente. E mesmo quando se percebe, no relato que cobre os intervalos das viagens, que a autora tem dificuldade em permanecer por muito tempo em seu próprio país, que de alguma forma a oprime, é pelo distanciamento que ela faz uma aferição mais completa da casa. Não é, pois, imprevisível que sejam estas as palavras com as quais conclui seu relato: "Nenhuma vida é tão encantadora quanto aquela vivida nos campos ingleses, e nenhuma flor é mais perfumada que as prímulas, primaveras, campainhas e violetas que crescem em abundância à minha volta aqui". Ao constituir uma visão própria do Brasil e de tantos outros locais percorridos nas inúmeras viagens, Marianne a mede a partir da visão que já traz consigo. E para ela, como para tantos outros viajantes, there is no place like home [...].
[Recebido em setembro de 2008
e aceito para publicação em outubro de 2008]
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Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
27 Mar 2009 -
Data do Fascículo
Dez 2008
Histórico
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Aceito
Out 2008 -
Recebido
Set 2008