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O mapa íntimo: três telas de Frida Kahlo

Frida Kahlo's intimate map

Resumos

O artigo apresenta análises de três telas da pintora mexicana Frida Kahlo - Las dos Fridas, Autorretrato en la frontera entre México y Estados Unidos e Lo que el agua me dio - e está dividido em três partes, cada qual tratando de uma tela em particular, para, no momento seguinte, ligar seu estudo ao das demais. Norteia a leitura das primeiras a discussão da relação nacional/estrangeiro no trabalho de Kahlo; a análise da terceira mostra a superação da dicotomia através do conceito de mapa íntimo, no qual entra em cena uma tênue e instável territorialização da memória através da representação pictórica.

mapa; memória; dicotomia nacional/estrangeiro; Frida Kahlo


This article analyses three works by Mexican painter Frida Kahlo: Las dos Fridas (The Two Fridas), Autorretrato en la frontera entre México y Estados Unidos (Self-Portrait on the Borderline between Mexico and the United States), and Lo que el agua me dio (What the Water Gave Me). Each work is first analyzed separately and then connected with the others. The analysis of the first two is guided by the national/foreign dichotomy present in Kahlo; the analysis of the third shows the overcoming of the dichotomy through the concept of intimate map - in which a feeble and ever-changing territorialization of memory via plastic expression comes to show.

Map; Memory; National/Foreign Dichotomy; Frida Kahlo


ARTIGOS

O mapa íntimo: três telas de Frida Kahlo

Frida Kahlo's intimate map

Fabiano Seixas Fernandes

Universidade Federal de Santa Catarina

RESUMO

O artigo apresenta análises de três telas da pintora mexicana Frida Kahlo – Las dos Fridas, Autorretrato en la frontera entre México y Estados Unidos e Lo que el agua me dio – e está dividido em três partes, cada qual tratando de uma tela em particular, para, no momento seguinte, ligar seu estudo ao das demais. Norteia a leitura das primeiras a discussão da relação nacional/estrangeiro no trabalho de Kahlo; a análise da terceira mostra a superação da dicotomia através do conceito de mapa íntimo, no qual entra em cena uma tênue e instável territorialização da memória através da representação pictórica.

Palavras-chave: mapa; memória; dicotomia nacional/estrangeiro; Frida Kahlo.

ABSTRACT

This article analyses three works by Mexican painter Frida Kahlo: Las dos Fridas (The Two Fridas), Autorretrato en la frontera entre México y Estados Unidos (Self-Portrait on the Borderline between Mexico and the United States), and Lo que el agua me dio (What the Water Gave Me). Each work is first analyzed separately and then connected with the others. The analysis of the first two is guided by the national/foreign dichotomy present in Kahlo; the analysis of the third shows the overcoming of the dichotomy through the concept of intimate map – in which a feeble and ever-changing territorialization of memory via plastic expression comes to show.

Key Words: Map; Memory; National/Foreign Dichotomy; Frida Kahlo.

Como artista latino-americana vinculada ao pensamento de esquerda, a pintora mexicana Frida Kahlo não esteve isenta de preocupações artísticas a respeito da dicotomia nacional/estrangeiro; cedo ou tarde, todo artista de país em desenvolvimento minimamente engajado sente que precisa se relacionar com esse problema. Para esses artistas, o impasse gerado pela dicotomia e as dúvidas dele decorrentes podem servir de estímulo à sua produção, e não precisam ser encarados negativamente. O presente artigo recupera o tratamento dado por Frida ao problema em três de suas telas: Las dos Fridas (As duas Fridas), Autorretrato en la frontera entre México y Estados Unidos (Auto-retrato na fronteira do México com os Estados Unidos) e Lo que el agua me dio (O que a água me deu). Nas duas primeiras, identifica e analisa o modo como Kahlo agrega à expressão plástica de suas emoções e dos fatos de sua vida elementos que nos mostram sua preocupação para com as fronteiras da arte dos países em desenvolvimento; a terceira me parece a feliz superação do problema. Juntas, as telas parecem retraçar a trajetória de Frida Kahlo dentro do problema: o autoquestionamento pode não lhe haver dado a solução (que bem poderia estar equivocada), mas lhe deu algo talvez mais complexo e produtivo: um mapa de suas próprias dúvidas – um mapa de si mesma, um mapa íntimo.

1. Las dos Fridas

Temos diante de nós duas Fridas Kahlo, sentadas no que parece ser uma única cadeira sem encosto. O fundo e o chão são simples e mesmo desleixados: à exceção talvez da sombria escuridão das nuvens malfeitas que empastam o céu, não são motivo de grande interesse. A Frida à direita1 1 Quando aqui se falar em direita e esquerda de um quadro, entenda-se direita e esquerda do espectador. veste trajes típicos mexicanos; a Frida à esquerda, um vestido branco europeu, com delicados ornamentos ao peito e ao pescoço e umas poucas flores vermelhas à barra. Os vestidos – que não nos permitem adivinhar senão levemente o volume das coxas e, de maneira um pouco mais intensa, a saliência dos joelhos – tornam difícil dizer se estão de frente para o espectador ou voltadas uma para a outra. Seus rostos nos interpelam meio de perfil, com a seriedade e a indiferença que o rosto de Kahlo apresenta em inúmeros quadros: as lágrimas de Kahlo – aqui não as há, mas lembremo-nos de composições como La columna rota (A coluna partida) – são artificiais como as de um desenho infantil; são duras e parecem feitas de gesso. O choro como expressão ou símbolo da dor não parece exercer em Kahlo o papel de significante da dor; antes deseja chamar a atenção para esse papel, tornando-o artificial. O choro de Kahlo é cênico. Por sua vez, sua indiferença – a indiferença pode ser uma manifestação, em alguns casos bizarra, de uma serenidade de espírito, e a serenidade tem o hábito de ignorar as próprias bizarrias como se as não tivesse talvez seja mais poderosa, já que feita de uma cenicidade que procura representar e não evidenciar o fato de estar representando, como seu choro.

Eis a nota explicatória a Las dos Fridas, extraída do volume sobre a pintora mexicana Frida Kahlo das edições Taschen:

Pouco depois de se divorciar de Diego Rivera, Frida Kahlo terminou este auto-retrato composto de duas personalidades diferentes. Neste quadro, ela trata as emoções envolvidas na separação e na crise matrimonial. A parte de si que era respeitada e amada por Diego Rivera é a Frida mexicana, com roupas tehuana, enquanto a outra Frida tem um vestido mais europeu. Os corações das duas mulheres estão expostos e ligados um ao outro apenas por uma artéria. A parte rejeitada européia de Frida Kahlo corre o perigo de se esvair em sangue até à morte.2 2 Andrea KETTERMAN, 1994, p. 53.

A nota é imprecisa, e pode ser corrigida. Em Las dos Fridas, a expressão facial das Fridas não é exatamente a mesma: a Frida à esquerda, em traje europeu, tem uma expressão ligeiramente mais leve e, olhando de perto, esboça um sorriso. Olhando também de perto, percebemos que talvez não encare o espectador, como evidentemente o faz a Frida à direita.

A interpretação biográfica de que Kahlo estaria aqui trabalhando as dores do divórcio, embora verossímil, não esgota as possibilidades da composição. A esquizofrenia da divisão do eu da pintora em duas mulheres opostas e a iminente morte de uma delas são coisas que lemos na superfície do quadro. Suas sutilezas, contudo, desdizem tal interpretação. A nota supracitada fala da morte de uma Frida, mas isso é apenas meia-verdade.

Um dos recursos pictóricos presentes nas três telas aqui estudadas é a ligação entre os elementos através de linhas, fios, raízes e veias. Também as Fridas estão unidas por uma fina veia: a Frida mexicana segura um pequeno retrato em uma das mãos, que foi identificado como sendo de Rivera. Dele sai um cordão ou veia que, dando-lhe voltas ao braço, entra por dentro do vestido e se conecta a uma grossa artéria que lhe sai do coração, exposto sobre o vestido. Da artéria, sai a linha que a une à outra, uma linha que, passando por trás do pescoço da Frida européia, chega-lhe ao coração – exposto, aliás, de maneira diversa ao da outra Frida: o coração revela o seu interior e, para mostrar-se, rasga os babados do vestido – bifurcando-se antes disso em outra veia que termina nas lâminas de uma tesoura que tem à mão. Seu sangue mancha-lhe o vestido com um vermelho igual ao das flores nele pintadas (um espectador distraído talvez mesmo confunda umas e outras). Segundo a nota à tela, apenas uma delas parece correr risco de vida, mas seus corações estão diretamente ligados por uma veia. O sangue de uma corre pelas veias da outra.

Disse acima que a Frida européia talvez não nos encare, enquanto é certo que a Frida mexicana o faz. Se levarmos em consideração que o suicídio não é socialmente aceitável – mesmo os assassinos têm direito a um enterro cristão, o que é negado aos suicidas –, essa mulher talvez não se julgue no direito de nos encarar a nós, os que valorizam e preservam a própria vida. Quem nos encara é a outra, a que, embora não haja cortado a própria veia, será vítima desse corte: ela endossa o corte e vem em auxílio de quem o abriu, encarando-nos com uma expressão algo dura. Seu olhar nos interpela antes que interpelemos a suicida. Também estão de mãos dadas, servindo a mão mexicana de apoio à européia. A aparente dicotomia nacional/estrangeiro – aqui traduzida como o "eu" e o "outro em mim" – se descose em uma irmandade de si para si.

1.1. O nacional ou o estrangeiro: a divisão desnecessária e como escapar dela

Aqui, não nos interessa a relação entre Kahlo e Rivera, mas a legitimidade rejeitada da Frida européia. Interessa o fato de que não é tão simples quanto parece rejeitar o "estrangeiro", o "importado", o que é menos eu que um suposto eu puro e regional. O que chama a atenção em Las dos Fridas é sua exposição do fato de que Kahlo, por mais que o deseje, não pode eliminar algo nela própria que deixa de ser ela apenas a partir do momento em que estipula influenciada certamente por um conjunto de idéias "nacionais" que até hoje nos aborrecem – um eu que sou eu e um eu que não sou eu. O companheirismo secreto das duas mulheres retratadas na composição é prova de que a Frida européia tem uma legitimidade que, ao ser negada, põe em risco a legitimidade das demais Fridas. É da noção de europeu – da noção que o europeu erigiu de si em contraste com os povos que subjugou – que vem a noção de mexicano.3 3 Aqui, devido ao fato de que Las dos Fridas pode ser lida como percepção, consciente ou não, da impostura de rótulos nacionais quando se trata da constituição do eu – e de sua conseqüente impostura quando se trata de produção intelectual e artística –, é mais apropriado dizer que é a Frida mexicana quem se descobre como tal através do confronto com a européia. O mais comum, contudo, seria sugerir que é o discurso da dominação quem se constitui a partir da caracterização que faz do dominado – assim sendo, é a metrópole que desenvolve sua narrativa nacional a partir de seu relato dos povos subalternos. Para uma introdução ao conceito de narrativa nacional, ver Stuart HALL, 2000, p. 50-57. A Frida mexicana só o é em relação e não abstratamente.

A própria técnica utilizada para a composição do quadro, o óleo sobre tela, não é uma forma regional típica de expressão plástica, ou nunca foi assim encarada; a Frida mexicana, para ser legitimamente mexicana através da pintura, serve-se de uma forma artística européia. Podemos bem deslocar para o campo das artes plásticas a opinião expressa por Antonio Candido em "Literatura e subdesenvolvimento": as técnicas pictóricas européias, tornadas patrimônio comum da humanidade pelo colonialismo, continuam a ser desenvolvidas também pelos povos colonizados; embora não as hajam criado, esses povos não necessariamente prescindem de participação significativa em seu desenvolvimento como recurso expressivo.4 4 CANDIDO, 1987.

A formulação de Candido da dependência tornada interdependência é aqui retomada por dois motivos: 1) é uma espécie de resposta ou alívio ao trauma das nações subalternas diante do problema das condições de possibilidade de uma produção artística original – já que se trata de povos que sentem serem os próprios conceitos de arte, bem como as técnicas artísticas de que desejam fazer uso, importados. As noções de interdependência e patrimônio coletivo não resolvem a importação; descartam-na como irrelevante. 2) "Literatura e subdesenvolvimento", apesar da força política de sua formulação – da qual me sirvo para justificar a interpretação acima dada a Las dos Fridas –, ainda está atrelado ao projeto das Luzes do século XVIII. Existe, por trás do patrimônio coletivo, uma arte modelo e um modo universalmente válido de conhecimento. Lembremo-nos de que Candido começa a Formação da literatura brasileira pelo Classicismo: o Classicismo, diz, serve como moderador dos excessos em que descambara o Barroco. Sua tendência para o universal e o verdadeiro – para a centralidade e a unilateralidade do conhecimento puro, embasado em métodos puros e legítimos de conhecimento, talvez caiba acrescentar – seria ideal para impulsionar a produção artística brasileira do período colonial na direção do universalmente belo; conseqüentemente, seu pensamento admite um universalmente belo, identificado a um certo tipo de produção cultural mais que a outros, e que deve ser buscado por todos os homens.5 5 CANDIDO, 1997.

Apesar da cautela necessária quanto ao segundo ponto, a noção de patrimônio coletivo mencionada no primeiro nos mostra que o impasse e a secreta cumplicidade das Fridas não precisam ser necessariamente abordados como beleza "colonial" ou beleza "universal"; a tela de Kahlo pode ser politicamente instigante, mas a noção de Candido lhe dá o direito de ser simplesmente bela – ou seja, as Fridas da tela ganham o direito de se afastarem do impasse que as gerou, e de buscar sua riqueza significante alhures.

2. Autorretrato en la frontera entre México y Estados Unidos

Las dos Fridas não deixa de ser uma espécie de resgate pessoal de importantes momentos da vida de Kahlo traduzíveis como lugares:6 6 Aqui, devido à relação entre os países e a memória, aos componentes afetivos que não só mantêm (e não raro distorcem) a memória, mas também relacionam o sujeito e seu desenvolvimento psíquico ao mundo físico que o cerca, e graças à espacialização dos símbolos que nos permite a pintura, o conceito de lugar assumirá a conotação cognitivo-afetiva que o distingue de espaço, sendo este tão somente "o vazio volumétrico e englobador onde estão posicionadas todas as coisas" e aquele "o meio ambiente imediato de um corpo vivo – uma arena de ação que é à uma física e histórica, social e cultural" (Edward CASEY, 2001, p. 683, minhas traduções). Para uma discussão mais aprofundada do conceito de lugar, ver CASEY, 2001; para uma breve introdução, HALL, 2000, cap. 4. a saber, o México e, embora fale de uma Frida européia, os Estados Unidos. A viagem para os Estados Unidos em 1930 foi um ponto importante em sua carreira, como na de seu marido. Lá, organizou sua primeira exposição individual, vendo-se pela primeira vez financeiramente independente de Rivera. Se pensarmos nos corpos distintos das Fridas – se pensarmos, melhor dizendo, em sua irremediável finitude –, bem como na singela linha que os une, podemos vê-los como alegorias territoriais, em que o território é não porção de terra, mas um conceito (ou um conjunto deles) representado(s) como lugar(es). A veia que os une pode ser descrita como uma fronteira – a linha imaginária que separa e une duas finitudes deslocada.

Embora talvez mais difuso que Las dos Fridas, há também uma forte divisão entre os elementos dispostos em Autorretrato en la frontera entre México y Estados Unidos. Acima, a opinião de Candido sobre o Classicismo foi mencionada; seria curioso perceber como o apreço clássico pela proporção e pelo equilíbrio de uma pintura, aparentemente ausentes do Autorretrato, informam-no significativamente. O corpo de Frida Kahlo divide a tela em duas metades, e há um forte paralelismo entre os elementos presentes que as compõem. À direita, a bandeira americana pairando apagada entre a fumaça que sobe das chaminés de uma fábrica, nas quais se lê FORD; à esquerda, o sol e a lua pairando nítidos em frente a nuvens que se tocam para formar o relâmpago que desce ao chão. (Talvez possamos subentender um paralelismo temporal subjacente ao paralelismo dos elementos: ao tempo cronológico e numerado do fordismo, opõe-se o tempo cíclico das forças naturais.) À direita, a fábrica e os prédios sem janela da cidade grande; à esquerda, o templo de pedra. À direita, em primeiro plano, as máquinas "estadunidenses", quase abstratas e sem função definida; à esquerda, em primeiro plano, os estranhos e eróticos vegetais "mexicanos".

Ao centro (na verdade, ligeiramente à direita do centro), um pequeno pedestal: à sua direita, uma das máquinas conecta-se a ele por uma tomada; à sua esquerda, roçam-lhe vegetais. Sobre o pedestal, a própria Kahlo. Traz à mão esquerda uma bandeira do México e um cigarro entre os dedos da direita. Os braços, porém, estão cruzados: a bandeira, que deveria figurar no lado estadunidense (direito) da tela, aparece à esquerda; o cigarro, que deveria figurar no lado mexicano (esquerdo), aparece à direita. Mais que estar na fronteira entre os dois países, Kahlo é a fronteira, e à fronteira cabem tarefas contrárias: separar os mundos e mantê-los em contato; a recusa de uma das tarefas (implícita no ato de cruzar os braços para que bandeira e cigarro fiquem "em seus devidos lugares") não a impede de se realizar. Também as flores e as máquinas em primeiro plano se conectam por raízes subterrâneas: a máquina ligada ao pedestal pela tomada liga-se também a um dos vegetais "mexicanos". O ato consciente do eu-fronteira não cancela o contato entre os mundos, pois mesmo as forças insconscientes – sejam naturais ou culturais – o realizam. Note-se, finalmente, o desequilíbrio gerado pelo fato de Kahlo estar fora de centro: o lado mexicano da tela é ligeiramente maior, mas isso causa a impressão de que Kahlo está mais próxima do lado estadunidense.

2.1. Autorretrato e Las dos Fridas: constatação e conseqüências

Autorretrato en la frontera entre México y Estados Unidos é de 1932; Las dos Fridas, de 1939. Como aqui estão sendo interpretadas como se abordassem o mesmo tema, é pertinente pensarmos em uma tela como a seqüência da outra. Assim sendo, note-se que o tenso desequilíbrio na divisão da tela em Autorretrato dá lugar a uma composição de centro mais bem definido em Las dos Fridas. Note-se também, e não só a título de curiosidade, que os componentes mexicanos e "estrangeiros" trocam de posição: Europa/Estados Unidos estão à direita em Autorretrato e à esquerda em Las dos Fridas.

Mais importante é a mudança de perspectiva: em Autorretrato, Kahlo cerca sua imagem de símbolos polarizados (embora discretamente conectados pelo paralelismo da composição, pelas linhas que unem vegetais a máquinas e pelos braços cruzados de Kahlo) e "externos"; em Las dos Fridas, a própria Kahlo é o símbolo. Em Autorretrato, Kahlo se coloca como fronteira; em Las dos Fridas, como os territórios são internos,7 7 Apesar de os "territórios" (ou seja, as posturas "nacional" ou "colonizada") estarem simbolizados principalmente pelos vestidos, penso que os vestidos representam uma atitude mental, e portanto são alegorias de estados mentais ou espirituais. a fronteira também o é: não está mais entre os territórios, mas é ou se assume como os territórios, e também como a fronteira. Trata-se de importantes progressos: a descrição da dicotomia nacional/estrangeiro em Autorretrato (onde os elementos são simplesmente dispostos, como em uma natureza morta) dá lugar à narrativa implícita em Las dos Fridas (cuja cena sugere não só um ato imediatamente anterior, mas suas conseqüências). Do reconhecimento simbólico e descritivo da divisão, Kahlo passa à sua rejeição em uma narrativa plástica que a reconhece como um conceito introjetado, e que não pode ser rigorosamente levado a sério, sob pena do desaparecimento completo do eu.

Seria possível pensar em Autorretrato en la frontera entre México y Estados Unidos como em um mapa – um mapa simbólico, ou um mapa de símbolos –; a relação aqui feita entre Autorretrato e Las dos Fridas permite que esta tela também seja assim encarada. Ambas podem ser descritas como mapas de um si mesmo que busca desenhar os próprios limites – talvez por sentir que já não cabe dentro deles, talvez para tentar caber dentro deles à força, talvez simplesmente para sentir que os tem; um si mesmo que, para achar as próprias dimensões, precisa achar as do exterior em que se encontra e as dos elementos nele presentes, com os quais se relaciona e nos quais se vê como no escuro espelho da Epístola de Paulo (1 Coríntios 13, 12), ou em uma poça parada de água.

3. Lo que el agua me dio: o mapa íntimo

Torna-se mais fácil pensar as telas acima estudadas como mapas se as relacionarmos a Lo que vi en el agua (O que vi na água), também intitulada Lo que el agua me dio, composta em 1938. Esse quadro pode ser descrito como a representação pictórica – como a tentativa de fixação por um esforço de memória – de um mapa íntimo.

Embora não vejamos o rosto de quem se banha, sabemos pelas unhas vermelhas que se trata de uma mulher; pelos elementos dispersos na água, que se trata de Kahlo. O banho de banheira é popularmente descrito como relaxante: deparamo-nos, portanto, com Kahlo – que, em outras ocasiões, representou a si mesma nua, aberta, sangrenta e traspassada de flechas– em um momento de descontração. Relaxa imóvel, fitando os próprios pés e a água parada na banheira (embora não lhe vejamos o rosto, creio ser plausível e proveitoso dizer que o rosto do espectador sobrepõe-se ao dela: ao discretamente perder-se no espectador, Kahlo habilmente o convida à empatia).

Boiando sobre a água, vestígios flutuantes da memória de Kahlo: referências a outras composições suas (inclusive as acima estudadas), ao trabalho de artistas como Max Ernst e Hieronimus Bosch, a episódios de sua vida (ou episódios de vidas alheias que pertencem à sua narrativa pessoal, tal como a referência à árvore genealógica na tela Mis abuelos, mis padres y yo [Meus avós, meus pais e eu], de 1936).8 8 A explicitação das relações intertextuais da tela foi extraída de KETTERMAN, 1994, p. 48. Cabe aqui um esclarecimento: apesar de Las dos Fridas ser posterior a Lo que el agua me dio, alguns elementos presentes nesta a prefiguram. Em Lo que el agua me dio, Ketterman relaciona algumas veias presas ao tampão da banheira com as veias expostas das duas Fridas; também, um vestido muito semelhante ao utilizado pela Frida mexicana em Las dos Fridas e presente nas telas Mi vestido está colgado allí o Nova Iorque (Meu vestido está pendurado ali ou Nova Iorque, 1933) e Recuerdo o El corazón (Recordação ou O coração, 1937) aparece boiando na água da banheira. No caso de Kahlo, é fácil perceber como suas filiações enquanto artista plástica se misturam a suas experiências pessoais. Trazidas à tona por sua imobilidade íntima, as sobras da memória se acumulam, como se, no vazio transparente da água, a memória pudesse projetar a maquete de uma ilha íntima, composta por escombros recolhidos ao passado, distante e recente. Os vestígios da memória formam uma ilha feita não de terra (há, sim, uma pequena porção de terra, mas é composta principalmente por um vulcão em erupção, dentro do qual há um prédio em chamas: certamente, não se pode dizer que denote estabilidade), mas da água parada da banheira– parada, importante lembrarmos, apenas enquanto o corpo ali imerso permanecer imóvel. As imagens bóiam e se prendem umas às outras através de fios, semelhantes à veia crucial que une as duas Fridas e aos fios/raízes que unem máquinas e vegetais em Autorretrato, e não por uma continuidade fixa de terra. A diferença é que, desta vez, os fios servem de caminho a inúmeros insetos, e mesmo a uma equilibrista.

O mapa íntimo é transitório. Portanto, não serve de orientação, mas é a sua conseqüência: trata-se de um arranjo provisório composto por uma mente já orientada. Seus componentes afundam e mudam de posição ao serem embalados pela suave água da mente9 9 A metáfora da memória como água merece ser brevemente historiada. Em alguns fragmentos de Heráclito, lemos sobre a relação entre a "umidade da alma" e a incoerência: os bêbados umedecem a alma em demasia, e portanto perdem o equilíbrio (HERÁCLITO, 1987, fragmento 117; ver também fragmentos 77 e 118). No Teeteto, Sócrates apresenta um modelo da memória como um bloco de argila (mais tarde aproveitado por Aristóteles): quanto mais sólido o bloco, tanto mais duradouras as impressões nele gravadas (PLATÃO, 1984); em um bloco mais mole – ou seja, poderíamos supor, em um bloco com maior teor de água – as imagens tendem a ser frouxas e a se apagar, gerando esquecimento. Também, João Cabral de Melo Neto possui um quase inocente poema sobre um ébrio para quem a cachaça é a água do passarinho que canta em sua alma (MELO NETO, 1980). A metáfora da alma ou mente úmida, tradicionalmente abordada como negativa, pode ser producente na perspectiva aqui trabalhada. Estudos contemporâneos sobre a memória buscam abandonar a metáfora da memória como um depósito onde são armazenadas representações fixas e distintas (ver John SUTTON, 2004); a alma gotejante dos ébrios de Heráclito e João Cabral e dos obtusos de Platão é, atualmente, um modelo de memória teoricamente mais eficaz: como o bêbado de alma cantante, e conforme teorias mais recentes de memória, a memória aquosa não é somente construtiva, mas reconstrutiva – criativa e portanto canora (Robert STERNBERG, 2000). Esses textos endossam, portanto, a proposta de que pensemos Lo que el agua me dio como um mapa mnemônico legítimo, e não conforme a lógica fixa do Ocidente. (Esta nota, fazendo uso de certa licença antes poética que científica, parece equiparar inadvertidamente os conceitos de alma e memória. A equiparação se deve ao fato de que alma, aqui, pode ser encarada como sinônimo de mente, sendo certamente a memória uma operação mental; também se deve ao fato de que qualquer conceito novo de memória terá provavelmente impacto sobre o conceito de mente – o que torna a equiparação ao menos parcialmente verdadeira.) contemplativa, ou, como no caso do vulcão, devido à sua própria instabilidade. No entanto, mesmo sua posição original não é uma descrição de uma realidade externa (como no caso de mapas geográficos), mas uma intervenção que os posiciona desta ou daquela maneira. Isso torna impossível uma territorialização fixa de seus elementos: quando a narrativa for posteriormente retomada, os elementos podem todos mudar de posição.

As duas telas anteriormente estudadas podem ser descritas em semelhantes termos: como esforços de memória, como vestígios aproximados pela água da mente. Para reconhecer a si mesma, a mente tenta pisar sobre um chão: um chão tênue e sem fundações, um chão flutuante que ela mesma cria na tentativa de se mapear. A diferença entre esta tela e as anteriores é o arranjo errático dos elementos. A dicotomia nacional/estrangeiro que está na origem das outras telas é nesta irrelevante: dentro da líquida memória que constitui e reconstitui o eu, não há nacional ou estrangeiro. Tudo é itinerante, nenhuma relação é duradoura ou necessária, e todas as fronteiras trocam de lugar.

4. Palavras finais: arte e dúvida, ou a arte de duvidar

A arte, como o conhecimento ou a liberdade, é fruto da ignorância. A afirmação talvez soe estranha, mas não falo de um nível qualquer de ignorância: falo das limitações físicas, psicológicas e cognitivas fundamentais que impedem a humanidade de explicar o que é e onde está; da ignorância contraposta à estupidez – esta, a falta de consciência de que há algo por ser descoberto; aquela, a consciência de que é necessário descobrir, e mesmo a humilde e prazerosa vontade de descobrir.

Assim sendo, para o artista, não há necessidade de que a arte seja encarada como resposta ou tese; mesmo os chamados romances de tese às vezes são menos interessantes por suas teses que por suas beiradas, ou ainda seus fracassos. A arte pode assumir um ar de pergunta, de elaboração de uma dúvida pessoal ou de posicionamentos talvez não inteiramente conscientes e amadurecidos, e em favor de cujo amadurecimento concorre a própria expressão plástica. Por vezes, pode vir recheada de pequenas contradições e impasses que talvez antecipem posicionamentos teóricos futuros.

Dessa maneira, prefiro não pensar nas telas acima estudadas como a afirmação de alguma coisa; diria que representam antes o desenvolvimento e a sofisticação de – dúvidas relacionadas, em nível pessoal, a Rivera, ao divórcio e à viagem aos Estados Unidos; em nível extrapessoal, possivelmente político, à subalternidade imposta pela situação colonial e à situação de esquizofrenia cultural por ela imposta aos artistas politicamente engajados. A obra de arte, diferentemente do tratado científico preocupado em demonstrar processos e conclusões "prontas" (sei que se trata de uma generalização falível, mas não creio que seja completamente equivocada), pode ser vista como pensamento em processo. A cumplicidade e a quase morte das Fridas não são o resultado, mas o processo de uma Kahlo tão divorciada quanto mexicana. O mapa íntimo, portanto, não resolve nossas dúvidas, mas permite que nelas habitemos, como nossos lares; não é um estado final das coisas, mas um arranjo temporário; não é o direcionamento, mas a direção.

Recebido em fevereiro de 2007 e aceito para publicação em maio de 2007

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  • 1
    Quando aqui se falar em direita e esquerda de um quadro, entenda-se direita e esquerda
    do espectador.
  • 2
    Andrea KETTERMAN, 1994, p. 53.
  • 3
    Aqui, devido ao fato de que
    Las dos Fridas pode ser lida como percepção, consciente ou não, da impostura de rótulos nacionais quando se trata da constituição do eu – e de sua conseqüente impostura quando se trata de produção intelectual e artística –, é mais apropriado dizer que é a Frida mexicana quem se descobre como tal através do confronto com a européia. O mais comum, contudo, seria sugerir que é o discurso da dominação quem se constitui a partir da caracterização que faz do dominado – assim sendo, é a metrópole que desenvolve sua narrativa nacional a partir de seu relato dos povos subalternos. Para uma introdução ao conceito de
    narrativa nacional, ver Stuart HALL, 2000, p. 50-57.
  • 4
    CANDIDO, 1987.
  • 5
    CANDIDO, 1997.
  • 6
    Aqui, devido à relação entre os países e a memória, aos componentes afetivos que não só mantêm (e não raro distorcem) a memória, mas também relacionam o sujeito e seu desenvolvimento psíquico ao mundo físico que o cerca, e graças à espacialização dos símbolos que nos permite a pintura, o conceito de
    lugar assumirá a conotação cognitivo-afetiva que o distingue de
    espaço, sendo este tão somente "o vazio volumétrico e englobador onde estão posicionadas todas as coisas" e aquele "o meio ambiente imediato de um corpo vivo – uma arena de ação que é à uma física e histórica, social e cultural" (Edward CASEY, 2001, p. 683, minhas traduções). Para uma discussão mais aprofundada do conceito de
    lugar, ver CASEY, 2001; para uma breve introdução, HALL, 2000, cap. 4.
  • 7
    Apesar de os "territórios" (ou seja, as posturas "nacional" ou "colonizada") estarem simbolizados principalmente pelos vestidos, penso que os vestidos representam uma atitude mental, e portanto são alegorias de estados mentais ou espirituais.
  • 8
    A explicitação das relações intertextuais da tela foi extraída de KETTERMAN, 1994, p. 48. Cabe aqui um esclarecimento: apesar de
    Las dos Fridas ser posterior a
    Lo que el agua me dio, alguns elementos presentes nesta a prefiguram. Em
    Lo que el agua me dio, Ketterman relaciona algumas veias presas ao tampão da banheira com as veias expostas das duas Fridas; também, um vestido muito semelhante ao utilizado pela Frida mexicana em
    Las dos Fridas e presente nas telas
    Mi vestido está colgado allí o Nova Iorque (Meu vestido está pendurado ali ou Nova Iorque, 1933) e
    Recuerdo o El corazón (Recordação ou O coração, 1937) aparece boiando na água da banheira.
  • 9
    A metáfora da memória como água merece ser brevemente historiada. Em alguns fragmentos de Heráclito, lemos sobre a relação entre a "umidade da alma" e a incoerência: os bêbados umedecem a alma em demasia, e portanto perdem o equilíbrio (HERÁCLITO, 1987, fragmento 117; ver também fragmentos 77 e 118). No
    Teeteto, Sócrates apresenta um modelo da memória como um bloco de argila (mais tarde aproveitado por Aristóteles): quanto mais sólido o bloco, tanto mais duradouras as impressões nele gravadas (PLATÃO, 1984); em um bloco mais mole – ou seja, poderíamos supor, em um bloco com maior teor de água – as imagens tendem a ser frouxas e a se apagar, gerando esquecimento. Também, João Cabral de Melo Neto possui um quase inocente poema sobre um ébrio para quem a cachaça é a água do passarinho que canta em sua alma (MELO NETO, 1980). A metáfora da alma ou mente úmida, tradicionalmente abordada como negativa, pode ser producente na perspectiva aqui trabalhada. Estudos contemporâneos sobre a memória buscam abandonar a metáfora da memória como um depósito onde são armazenadas representações fixas e distintas (ver John SUTTON, 2004); a alma gotejante dos ébrios de Heráclito e João Cabral e dos obtusos de Platão é, atualmente, um modelo de memória teoricamente mais eficaz: como o bêbado de alma cantante, e conforme teorias mais recentes de memória, a memória aquosa não é somente construtiva, mas
    reconstrutiva – criativa e portanto canora (Robert STERNBERG, 2000). Esses textos endossam, portanto, a proposta de que pensemos
    Lo que el agua me dio como um mapa mnemônico legítimo, e não conforme a lógica fixa do Ocidente. (Esta nota, fazendo uso de certa licença antes poética que científica, parece equiparar inadvertidamente os conceitos de
    alma e
    memória. A equiparação se deve ao fato de que
    alma, aqui, pode ser encarada como sinônimo de
    mente, sendo certamente a memória uma operação mental; também se deve ao fato de que qualquer conceito novo de
    memória terá provavelmente impacto sobre o conceito de
    mente – o que torna a equiparação ao menos parcialmente verdadeira.)
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      28 Jul 2008
    • Data do Fascículo
      Abr 2008

    Histórico

    • Aceito
      Maio 2007
    • Recebido
      Fev 2007
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