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A metáfora do corpo: um olhar sobre a obra de Emily Martin

RESENHAS

A metáfora do corpo: um olhar sobre a obra de Emily Martin

Fernanda de Carvalho Vecchi Alzuguir

Instituto de Medicina Social/UERJ

A mulher no corpo: uma análise cultural da reprodução.

MARTIN, Emily

Rio de Janeiro: Garamond, 2006. 378 p.

A obra da antropóloga americana Emily Martin é uma passagem obrigatória àqueles que se interessam pelo estudo da racionalidade médica e das representações do corpo feminino. Publicado em 1987,1 1 MARTIN, 2001. e traduzido para o português em 2006 com o título A mulher no corpo, o livro mostra como valores culturais mais amplos se inscrevem nos discursos médicos sobre a reprodução feminina e nas percepções das próprias mulheres acerca de seus corpos.

Diferentemente de muitos estudos na área das ciências sociais, que tendem a privilegiar a análise de apenas um nível discursivo, seja o científico, seja o leigo, a autora empreende uma pesquisa de fôlego sobre os pressupostos culturais que penetram a um só tempo os discursos médicos e de 165 mulheres residentes em Baltimore, Estados Unidos, de diferentes etnias e camadas sócio-econômicas.

Essa análise exige um empenho metodológico no sentido de desnaturalizar verdades muito caras vinculadas às concepções modernas sobre natureza e cultura. Nesse aspecto, a opção pela investigação do imaginário social em torno do corpo feminino, mediante a decodificação das vozes simultâneas de leigos e especialistas, já torna o trabalho de Martin instigante e inovador.

Investigando os discursos sobre a menopausa, a menstruação e o parto, a autora conduz o leitor à complexa trama semântica formada pela articulação entre os pressupostos mais gerais da organização social, a racionalidade biomédica e as percepções e práticas de mulheres comuns sobre seus corpos. A noção de metáfora é o conceito-chave para compreender a comunicação entre essas diferentes dimensões discursivas, ao mesmo tempo que preserva a singularidade e a gramática particular de estruturação de cada uma delas.

O livro é dividido em duas partes, que oferecem uma rica descrição dos saberes médicos e das mulheres entrevistadas, respectivamente. Na primeira, Martin mergulha no discurso médico sobre a reprodução feminina, mais especificamente na construção científica dos processos da menstruação, da menopausa e do parto, no período de fins do século XIX a meados do XX. A partir de uma convincente argumentação, a autora demonstra como o modelo médico sobre o funcionamento do corpo feminino está estreitamente relacionado ao modo de organização industrial capitalista.

À luz do que designa como "a metáfora da máquina", a autora descreve a concepção do corpo feminino como uma grande fábrica destinada a produzir bebês saudáveis. Assim, o útero equivaleria a uma máquina de produção desses bebês; a mulher, à operária da fábrica; e o médico, ao supervisor que coordena as atividades do complexo útero-mulher. Nesse modelo, as mulheres estariam alienadas do produto de seu trabalho e submetidas ao poder do médico-supervisor. Essa mecanização do corpo feminino é ilustrada pelo processo de substituição da mão das parteiras por instrumentos como o fórceps e o bisturi.

A metáfora do corpo como máquina também se explicita a partir da descrição da menstruação e da menopausa, ambas resultantes de uma espécie de falha no sistema produtivo. O sangue menstrual sinalizaria um fracasso naquilo que deveria ser o produto do processo reprodutivo. Já a menopausa seria representada como uma ruptura no funcionamento hierárquico do sistema de sinalização entre cérebro, hormônios e ovários; assim, ela resultaria da impossibilidade de os ovários cumprirem a ordem advinda do 'centro hipotalâmico' (cérebro), o que produziria uma desordem no sistema reprodutivo feminino.

Sendo o corpo da mulher representado como uma grande fábrica voltada para a produção de bebês saudáveis, tudo aquilo que se desvia de tal objetivo é desqualificado e visto como patológico, desperdício, inutilidade, desordem, excesso, falha. Martin faz um interessante questionamento à natureza teleológica desse modelo, que pauta o seu valor e a sua finalidade na reprodução.

Uma das qualidades da primeira parte do livro é desvelar – a partir de fontes médicas – as suposições culturais implícitas em um discurso altamente naturalizado e naturalizante. Ou seja, fundamentar aquilo que torna a ciência um sistema cultural e mostrar, assim, que as idéias subjacentes a um corpo reprodutor feminino são fomentadas por uma cultura. Desse modo, a autora descortina, com engenhosidade, o aspecto cultural e o seu papel na construção científica de uma natureza feminina.

Na segunda parte do livro, Martin se atém aos depoimentos de mulheres, numa tentativa de identificar os focos de incorporação do modelo médico, mas, sobretudo, de resistência e de liberação ao mesmo modelo. Nessa parte, ficam evidentes as implicações de sua abordagem feminista da ciência – posição assumida no prefácio da edição de 1992 –, o que contribui para uma atitude analítica diferencial em relação às falas das mulheres quando comparada à análise do discurso médico. A autora investiga os depoimentos de mulheres sobre temas como a 'síndrome pré-menstrual', a menstruação, o parto e a menopausa. Porém, de modo distinto da análiseu e efetuada na primeira parte, busca ativamente os signos de resistência à opressão contra a mulher.

O sentimento de raiva, por exemplo, um dos sintomas da 'síndrome pré-menstrual', é concebido como uma manifestação da indignação das mulheres pela situação de opressão vivenciada por elas. Para Martin, o problema maior, nesse caso, residiria na atribuição de uma causalidade física pelas mulheres ao que seria resultante de um funcionamento social mais geral. A conscientização da real significação dessa raiva (a opressão vivida pelas mulheres) é defendida pela pesquisadora como um caminho para a liberação, evidenciando, em seus argumentos, a influência do pensamento marxista.

Martin segue a mesma linha argumentativa ao afirmar que existiria uma 'experiência corporal comum' às mulheres. Paralelamente à defesa da conscientização dos mecanismos sociais que transformam o corpo da mulher numa fábrica de produção, ela postula que a experiência corporal feminina pode ser usada como um veículo de resistência e libertação da subordinação da mulher.

Nas narrativas das informantes, a autora vislumbra algumas tentativas de reintegração e apropriação das forças produtivas do próprio corpo, através da vivência íntima das experiências corporais e da destituição – mesmo que não integral – da intervenção do médico-supervisor no processo reprodutivo feminino. No caso do parto, por exemplo, ela identifica as estratégias das gestantes de adiar a chegada ao hospital e vivenciar ao máximo as contrações do parto em casa. Isso seria uma forma de resistência ao modelo médico, que expropriaria a operária-mulher do produto de sua força de trabalho.

À medida que os capítulos avançam, intensifica-se o engajamento de Martin em prol de uma autonomização e reintegração das mulheres a partir das suas experiências corporais. No último capítulo, essa posição é levada ao extremo, através da argumentação de que tais experiências femininas, diferentemente das masculinas, favoreceriam uma visão de mundo global – que integraria dicotomias tais como público e privado, trabalho manual e mental, entre outras.

O trabalho de Martin tem o mérito de evidenciar o modo como a cultura afeta as construções médicas e de mulheres comuns. Porém, a alusão a uma experiência comum a todas as mulheres remete, de modo paradoxal, a uma espécie de essência feminina calcada no corpo. A afirmação de uma experiência feminina comum parece associada ao fato de a pesquisadora não problematizar os pressupostos culturais que qualificam como 'femininas' determinadas experiências corporais. Nesse sentido, o feminino acaba se vinculando muito rapidamente a um corpo específico e se torna uma espécie de substantivo, que, como tal, está indissociavelmente associado a esse corpo.

Essa questão conduz à reflexão sobre a concepção de gênero implícita na obra de Martin. Quanto a esse aspecto, é interessante notar que a autora fala na realidade de 'corpos de mulheres', o que não parece equivaler, em última instância, à idéia de 'corpos femininos'. Assim, chama a atenção o fato de que a autora dialoga mais com indivíduos empíricos e menos com categorias analíticas e abstratas que classificam e ordenam os indivíduos em um espaço social. Tal ponto de vista parece facilitar a aproximação das mulheres a um corpo comum, uma vez que Martin fala de seres empíricos, cuja classificação (em um corpo feminino que se opõe a um outro, masculino) foi previamente estabelecida.

Martin acaba positivando a experiência física do corpo, que serve, dessa forma, como base comum às mulheres para a liberação da opressão social a que elas estariam submetidas. Em certos momentos, a defesa da resistência e liberação da dominação masculina acaba se antecipando e conduzindo a própria interpretação dos dados, reafirmando-se, assim, a premissa da opressão feminina.2 2 Fabíola ROHDEN, 1998.

Mesmo considerando os riscos inerentes a essa argumentação, a sua análise não deixa de ser provocativa. Conforme Rohden salienta na apresentação do livro de Martin, ao mesmo tempo que a antropóloga americana trabalha nos marcos de um construcionismo social, não deixa de conceder um valor particular à experiência do corpo. Poucos cientistas sociais tiveram a audácia de arriscar esse tipo de leitura, o que confere à obra um sentido de novidade, que permanece até hoje, apesar de passados vinte anos desde a sua publicação.

Notas

  • MARTIN, Emily. The Woman in the Body: A Cultural Analysis of Reproduction Boston: Beacon Press, 2001 [1987]
  • ROHDEN, Fabíola. "O corpo fazendo a diferença". Mana, v. 4, n. 2, p. 127-141, 1998.
  • 1
    MARTIN, 2001.
  • 2
    Fabíola ROHDEN, 1998.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      28 Jul 2008
    • Data do Fascículo
      Abr 2008
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