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EDITORIAL

Estamos escrevendo este editorial sentindo ainda cheiro de pimenta. Há poucos dias do aniversário infeliz do Golpe de Estado que iniciou o período de Ditadura que marcou o Brasil de 1964 a 1985, a poucos metros da sala em que esta revista é editada, a Polícia Federal e a Polícia Militar de Santa Catarina fizeram, sob a alegação do combate ao consumo de drogas no campus, uma operação, prendendo cinco estudantes, utilizando bombas (de efeito moral, mas cujos estilhaços feriram estudantes e professores), spray de pimenta e cassetetes, que muito lembrou a forma como agiam as forças ligadas à Ditadura. O pior de tudo não é o mérito da questão, ou o uso dessas armas, mas a atitude desses servidores públicos, que demonstraram desrespeito: (a) às leis - já que não tinham mandado judicial para as prisões - ; (b) à Universidade Federal de Santa Catarina - cuja administração não foi comunicada e muito menos consultada para essa ação e cujos administradores, como o diretor e a vice-diretora do Centro de Filosofia e Ciências Humanas, foram insultados e atingidos pelos sprays, como se vê em vídeos por toda a internet - ; e (c) aos cidadãos e cidadãs, estudantes, servidores públicos, pais de alunos e alunos do Núcleo de Desenvolvimento Infantil e do jardim de infância Flor do Campus. O cheiro de pimenta se espalhou por todo o centro e suas adjacências, fazendo arder não só os olhos, mas também a indignação de todas as pessoas que aqui convivem. Começamos assim esta revista, neste ano de 2014, indignadas e expressando nosso repúdio a essa ação violenta e injustificada.

Mas começamos também com grande fôlego para os estudos feministas. Entre os dias 17 e 21 de março de 2014, o Instituto de Estudos de Gênero da UFSC promoveu o 4º Curso de Curta Duração em Gênero e Feminismo, com apoio da Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência da República. O curso contou com 200 inscritos, entre alunos da universidade e pessoas da comunidade, e foi transmitido ao vivo, online, pela TV ABA (Associação Brasileira de Antropologia). O número de inscrições superou as expectativas e mostrou o interesse pelo tema. As aulas foram ministradas por professoras ligadas ao instituto da UFSC e da UDESC.

Outra notícia importante para iniciar o ano é a organização de um grupo de pesquisadoras e militantes brasileiras para participar do Congresso Women's Worlds (Mundos de Mulheres), que será realizado em Hyderabad, na Índia, em agosto de 2014. O propósito de tal grupo é levar a esse importante evento a participação plural brasileira e, ao mesmo tempo, divulgar o evento de 2017, que será realizado na UFSC, juntamente com o Fazendo Gênero 11.

Mas vamos ao conteúdo deste número da revista, que desta vez privilegiou a publicação de artigos, em detrimento de seções ou dossiês temáticos.

O trabalho de autoria de Carla Cecília Rodrigues Almeida e Maria Lígia Ganacim Granado Rodrigues Elias, "O conceito de liberdade como não dominação sob a perspectiva feminista", reflete sobre os pontos de encontro e oposição entre as concepções de Philip Pettit e algumas preocupações da teoria política feminista. Para tal, tomam como referência a avaliação crítica da obra desse teórico realizada por Marily Friedman, autora feminista que aprofundou estudos sobre a questão da autonomia e das relações entre feminismo e cidadania. Ressaltando, na crítica feita por Friedman, a permanência das dicotomias público/privado, mente/corpo e da concepção de um sujeito universal nas concepções de Pettit, as autoras do artigo resgatam, na obra desse teórico do neorrepublicanismo, a pertinência do conceito de liberdade como não dominação, no sentido de garantir o não isolamento da esfera privada sem abrir mão do reconhecimento de distinções entre esta e a esfera pública. Para além do conceito filosófico, liberdade como não dominação, usado como um regulador político, pode ser importante para a teoria feminista.

No artigo "Vendedoras: género y trabajo en el sector comercial (Buenos Aires, 1910-1950)", Graciela Amalia Queirolo aborda o trabalho de mulheres no comércio da cidade de Buenos Aires, utilizando-se de fontes diversas, como histórias de vida, anúncios classificados e reportagens. Ela intenta mostrar como essas atividades ligadas ao comércio ofereceram às mulheres que aspiravam ascender socialmente oportunidades de emprego, mas também muitas adversidades. Busca, ainda, discutir os significados atribuídos ao trabalho feminino nas biografias dessas trabalhadoras.

Os movimentos de mulheres do campo são a temática de "Limites e possibilidades da militância política em um movimento social rural de mulheres", de autoria de Giovana Ilka Jacinto Salvaro, Mara Coelho de Souza Lago e Cristina Scheibe Wolff. A partir de extensa pesquisa etnográfica e documental, realizada em três cidades da região Sul de Santa Catarina, as autoras discutem questões como o processo de envelhecimento feminino e a aposentadoria, os modelos locais de agricultura, o êxodo expressivo de parcelas da população rural, a não inserção e a participação restrita de mulheres mais jovens em atividades locais do movimento social rural da região estudada, os quais se apresentam como condições de possibilidade na análise dos limites da militância política em tais movimentos.

O trabalho seguinte também se refere à região rural, mais especificamente a um estudo de caso sobre a organização das mulheres extrativistas na região Sudoeste do estado do Mato Grosso. No artigo, os autores Maurício Ferreira Mendes, Sandra Mara Alves da Silva Neves, Ronaldo José Neves e Tânia Paula da Silva demonstram a importância econômica e social dessa produção extrativista sustentável realizada pelas mulheres, ao mesmo tempo que discutem a necessidade de políticas públicas voltadas para elas, que valorizem sua contribuição na produção e reprodução familiar e sua contribuição ao desenvolvimento da região.

Carla Zibecchi reflete, em "Mujeres cuidadoras en contextos de pobreza. El caso de los Programas de Transferencias Condicionados en Argentina", sobre o vínculo desses programas (representados no Brasil pela sigla PTCR) com trabalhos de cuidados realizados com mulheres em contexto de pobreza (e atribuídos tradicionalmente às mulheres). Analisa as concepções sobre mulheres contidas nos textos do Plan Jefes e Jefas de Hogar Desocupados e do Programa Família por la Inclusión Social, importantes programas argentinos, detendo-se nas estratégias de cuidado utilizadas por mulheres "beneficiárias" desses programas. A autora reflete também sobre a influência de programas assistenciais na reconfiguração das relações nos espaços comunitários, com a construção de novos dispositivos de atenção às crianças, em que as mulheres desempenham um papel importante no cumprimento das condicionalidades, como aumento de seu protagonismo e também de suas atribuições. Carla Zibecchi aponta como um aspecto positivo dos PTCR o debate sobre as questões da distribuição de renda para as populações em situação de pobreza e também a abertura para programas que possam significar alternativas e rupturas em relação às perspectivas dos PTCR.

"Casamentos mistos: novas sociabilidades e quadros coletivos. Aspectos da imigração de brasileiras na Itália" é o estudo de João Carlos Tedesco sobre aspectos da imigração de brasileiras para a Itália e possíveis uniões conjugais com italianos, resultando desses casamentos mistos preconceitos, redes de sociabilidades étnicas e reconfigurações fronteiriças e familiares.

Por seu turno, em "Directoras asiáticas en acción: Aparna Sen (1945)", de Alejandra Val Cubero, é apresenta a obra cinematográfica dessa diretora bengali, ainda desconhecida na América Latina, dando visibilidade ao cinema que ela faz, sua qualidade técnica e estética. Destaca na análise os conflitos étnicos e religiosos e a destruição do meio ambiente na perspectiva de gênero.

Privilegiando um aspecto pouco estudado, Valéria Rosito apresenta o artigo "(Obs)cena: o lugar do desejo feminino em Gustav Klimt e Clarice Lispector", no qual procura mostrar para onde se desloca o desejo feminino. A leitura é centrada na relação linguagem pictórica e literária, voltando-se para a economia composicional da tela de Klimt "As Três idades da mulher" e do conto clariceano "Ruído de passos".

Cláudia da Silva Pereira e Germano Andrade Penalva, em "Nem todas querem ser Madonna: representações sociais da mulher carioca, de 50 anos ou mais", refletem sobre as representações sociais da mulher com 50 anos, combinando o estudo antropológico com o discurso midiático: o que se encontra no discurso das cariocas de 50 anos consideradas "enxutas" e o imaginário social hegemônico e globalizado.

No artigo "Contando estórias e inventando metodologias para discutir a violência contra as mulheres", Érika Cecília Soares Oliveira discorre sobre a importância de se criarem metodologias alternativas para trabalhar com a violência contra as mulheres dentro do campo da Psicologia, amparada em dispositivos artísticos como estratégias de resistência e construção de subjetividades dissidentes.

Abordando as "Condições e possibilidades de uma tecnopolítica de gênero/sexualidade", Lucas Aguiar Goulart e Inês Hennigen apresentam uma análise genealógica acerca da composição de movimentos que se propõem a pensar a cibercultura enquanto ferramenta política para abrir espaços para modos de vida não misóginos e não heteronormativos, tendo como principal foco os jogos digitais.

No estudo seguinte, "Normas de gênero em um currículo escolar: a constituição dicotômica de corpos e posições de sujeitos meninos-alunos", Cristina D'Ávila Reis e Marlucy Alves Paraíso discutem resultados de sua pesquisa etnográfica desenvolvida com uma turma de ensino fundamental de escola de rede pública. Na perspectiva dos estudos queer e estudos culturais, as autoras analisam a eficácia das normas de gênero na constituição de corpos masculinos e femininos e também daqueles que não condizem com os padrões culturais de normalidade, os dos meninos-alunos estigmatizados como mulherzinha ou bichinha. Trabalhando com noções de Butler, como performatividade de gênero e corpos abjetos, as autoras buscam problematizar as práticas curriculares que, ao classificarem e hierarquizarem os corpos dos alunos, produzem-nos como normais e anormais. Com a análise das observações contidas em seus diários de campo e das falas de sujeitos no ambiente escolar, as autoras objetivam as práticas e relatos que mostram, nas escolas pesquisadas, a exclusão de meninos que fogem aos padrões normatizadores da masculinidade, alvo de desrespeito, isolamento e agressões - o que definem como as abjeções de um currículo generificado.

Giancarlo Cornejo, em "Las políticas reparativas del movimiento GLBT peruano: narrativas de afecto queer", analisa a produção das políticas de reparação como necessária para a sobrevivência da militância e de militantes lésbicas, gays, bissexuais e transexuais no Peru. O autor refere algumas formas de políticas reparadoras das feridas produzidas pela heteronormatividade nos ativistas LGBT, como a distribuição mais equitativa do amor, a legitimação de certos erotismos e sexualidades, a construção de redes de suporte quando os corpos são mais vulneráveis por atravessarem períodos de modificações farmacológicas, o encontro de amigos/as em momentos de sofrimento, companhia nos momentos de alegria, etc. Enfatiza a importância das políticas reparadoras na produção de espaços coletivos que abracem e protejam os/as militantes. Narrando histórias sobre ativistas dos movimentos LGBT, o autor reflete sobre a persistência do esforço dos sujeitos para a produção de afetos no interior desses coletivos, dedicados a lutas que, numa lógica instrumentalista, trazem seguramente mais custos e fracassos do que benefícios.

Chamando atenção para o surgimento de um mercado GLS, Camilo Albuquerque de Braz escreve o artigo "De Goiânia a 'Gayânia': notas sobre o surgimento do mercado 'GLS' na metrópole do cerrado" utilizando as falas de frequentadores/as e empresários/as do mercado de lazer ligado à homossexualidade em Goiânia, para pensar nas relações entre a produção de lugares e de um senso de "comunidade" ou de pertencimento local. Ao refletir sobre esse processo em Goiânia, o autor problematiza a constituição de categorias classificatórias em torno das homossexualidades, mostrando que essa discussão precisa ser complexificada.

"Políticas públicas de segurança para populações LGBT no Brasil", de autoria de Luiz Mello, Rezende Bruno de Avelar e Walderes Brito, é o próximo estudo dessa seção, no qual é apresentada uma análise de ações, planos e programas governamentais voltados para a população LGBT no Brasil. Apesar da elaboração de muitas propostas, várias delas envolvendo espaços de discussão entre governo e sociedade civil, o balanço realizado pelos/a autores/a ressalta um grande desequilíbrio entre a violência homofóbica que ocorre no país e a atuação do governo no sentido de mudança desse quadro, o que torna compreensível a desconfiança das pessoas e movimentos LGBT em relação ao Estado, especialmente ao setor de Segurança Pública, em que o questionamento da norma heterossexual não ocorre, o que contribui para a recorrência das manifestações de violência homofóbica.

No ensaio "O feminismo bem-comportado de Heleieth Saffioti", de Céli Regina Jardim Pinto, é destacada a importância dessa grande pesquisadora, socióloga, professora e feminista para a constituição do campo dos estudos sobre mulheres e gênero no Brasil, enfatizando seu significado político, a extensão e qualificação de sua obra e sua contemporaneidade.

Lastimamos neste número a perda de Nicole Claude-Mathieu, teórica feminista francesa falecida em março deste ano.

A entrevista publicada neste número da REF foi realizada por Ana Maria Veiga e Alberto da Silva, em Paris, com a crítica de cinema Geneviève Sellier, pesquisadora de destaque nos estudos desse campo na academia francesa. Enfatizando a dificuldade para a introdução da perspectiva de gênero no âmbito da crítica cinematográfica e da própria academia francesa, a entrevistada narra sua trajetória profissional em oposição à hegemonia de abordagem estética dos filmes franceses, reforçada pelo movimento da Nouvelle Vague, centrado na concepção de cinema de autor. Professora de estudos cinematográficos e especialista em estudos culturais e de gênero no cinema francês, Geneviève Sellier é autora de Nouvelle Vague: un cinema au masculin singulier e de outras obras escritas em parceria com Noel Burch, cineasta norte-americano, crítico e historiador de cinema, com uma perspectiva que o aproxima dos estudos culturais, feministas e de gênero.

Por fim, neste número, são publicadas nove resenhas de livros recentes que abordam diferentes aspectos das pesquisas sobre mulheres, gênero e sexualidades e demonstram como esse campo de estudos tem adquirido diversidade, profundidade e problematização não somente no campo acadêmico, mas também enquanto campo de atuação e protagonismo político.

Cristina Scheibe Wolff

Mara Coelho de Souza Lago

Tânia Regina de Oliveira Ramos

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Maio 2014
  • Data do Fascículo
    Abr 2014
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