Acessibilidade / Reportar erro

A potencialidade do Gênero: feminismos e filosofias na leitura de Chanter

RESENHAS

Universidade Federal do Rio de Janeiro

Gênero: conceitos-chave em Filosofia. CHANTER, Tina. Porto Alegre: Artmed, 2011. 182 p.

Tina Chanter, filósofa americana, inaugura sua participação no mercado editorial brasileiro com a tradução de Gender: key concepts in philosophy, feita por Vinicius Figueira. Tendo a revisão técnica de Edgard da Rosa Marques, o trabalho compõe a coleção Conceitos-chave em Filosofia, também composta por títulos como: epistemologia, ética, linguagem, mente, metafísica e política.

Originalmente lançado em 2006, o livro é dividido em sete capítulos que nos instigam a aprofundar a discussão sobre diferentes aspectos do debate sobre Gênero, a saber: a consolidação do patriarcado e suas repercussões sob a égide do capitalismo; o movimento feminista e a luta pela igualdade em relação aos homens, atenta à necessidade de não reprodução dos universalismos; e a inserção das mulheres no mundo público e sua acessibilidade aos direitos políticos, econômicos e sociais.

Com objetividade e riqueza de fontes - comentadas ao final de seu trabalho, constituindo-se em importantes referências para leituras posteriores - , Tina Chanter, nos três primeiros capítulos, mobiliza-nos para que, em um só fôlego, nos (re)encontremos com importantes questões sobre o sistema sexo/gênero e temas que lhe são correlatos. Assim é que, no capítulo inaugural, Momentos e conceitos formadores da história do feminismo, a autora reporta-se à igualdade buscada pelas mulheres, utilizando-se das ideias de Beauvoir para refletir sobre o papel que estas se permitem desempenhar no contexto de um já criticado 'sistema oprimido-opressor', ocasião em que há a remissão à concepção foucaultiana de poder.

Ao tratar da distinção sexo e gênero, a autora cita o trabalho da pioneira Margareth Mead e da contemporânea Judith Butler. Desenvolve, também, longa crítica ao feminismo maistream (branco, classe média e heterossexista) e "à dicotomia simplista e racialmente cega entre o público e o privado".1 1 Tina CHANTER, 2011, p. 29. Nesse intento, alicerça suas análises, principalmente, nas ideias de bell hooks, valorizando a interrelação gênero/raça/ classe/sexualidade sobre a qual a autora discorre cuidadosamente.

Na seção intitulada Feminismo e marxismo: a utilidade e as limitações dos modelos paralelos, as análises se adensam. Inicialmente, Tina Chanter centra o seu estudo em significativos paralelos: feminismo-marxismo/feminismo-teoria lésbica/feminismo-raça, tendo em vista a discussão sobre a opressão engendrada por sistemas hegemônicos que se entrelaçam (capitalismo-patriarcado-heterossexismo-imperialismo).

Apontando a subsunção do feminismo à teoria marxista denunciada por Heidi Hartmann, Tina Chanter tematiza a participação das mulheres nas relações de produção, na reprodução da força de trabalho, a desconsideração do trabalho doméstico (e sua articulação com a produção de mais valia), a relação capitalismo-patriarcado-racismo em tempos de transnacionalização da economia e suas consequências para os países situados à periferia.

Propõe o estudo das tensões enfrentadas pela teoria feminista no debate sobre 'inclusão', retomando a relação sexo/gênero com ênfase na análise proposta por Cheshire Calhoun. Na proposição dessa autora, Monique Witting e Judith Butler acabam por aliar heterossexismo e patriarcado: a primeira, porque entende a lésbica como a feminista exemplar, que sai de uma relação heterossexual subserviente, sendo excluída da categoria patriarcal 'mulher', e Butler, porque, apesar da refutação de que as relações lésbica/mulher não reproduzem simplesmente as relações heterossexuais, "faz muito pouco para contestar a conexão causal entre masculinidade e poder".2 2 CHANTER, 2011, p. 57.

Ratificando a leitura de Calhoun, Chanter pondera que "ser lésbica é uma questão de desejo [...]. Não é uma questão de fugir de relações heterossexuais".3 3 CHANTER, 2011, p. 54. Igualmente lembra que "mesmo que as lésbicas evitem estar em relações de subserviência com os homens, elas não evitam as normas estruturais, sociais e heterossexistas [...] que continuam a sujeitá-las à notória discriminação".4 4 CHANTER, 2011, p. 55.

Para finalizar essa seção, a autora considera a questão racial em sua interface com o nacionalismo e a fase imperialista do capital. Afirma, assim, o quanto gênero-raça-classe-sexualidade são construções históricas que se imbricam, apesar de suas especificidades. Por fim, Tina Chanter põe em questão, recordando novamente bell hooks, bem como Angela Davis e Kimberlé Crenshaw, o 'modelo aditivo' (esse, de acordo com Elizabeth Spelman), pelo qual toda relação é possível desde que o feminismo maistream seja preponderante e 'gênero' subsidie 'sexualidade', 'raça' e 'classe' - o que corroboraria o quão supérfluas são essas 'diferenças' se comparadas às "preocupações reais das feministas".5 5 CHANTER, 2011, p. 61.

Considerando que aliar a influência desses diferentes constructos na análise das desigualdades sociais é trabalho de grande monta, a filósofa lembra que, na tentativa de associar tais perspectivas, as teorias feministas vêm adotando diversos modelos interseccionais para evitar o modelo do tipo "acrescente e misture" na consideração de gênero, classe, raça, etnia, entre outros marcadores, em um mesmo estudo.6 6 CHANTER, 2011, p. 61.

O tema da interseccionalidade, bastante atual, carece, por certo, de debates mais ampliados. Kimberlé Crenshaw, uma das referências na reflexão sobre esse viés analítico, bem define que:

A interseccionalidade uma conceituação do problema que busca capturar as conseqüências estruturais e dinâmicas da interação entre dois ou mais eixos da subordinação. Ela trata especificamente da forma pela qual o racismo, o patriarcalismo, a opressão de classe e outros sistemas discriminatórios criam desigualdades básicas que estruturam as posições relativas de mulheres, raças, etnias, classes e outras. Além disso, a interseccionalidade trata da forma como ações e políticas específicas geram opressões que fluem ao longo de tais eixos, constituindo aspectos dinâmicos ou ativos do desempoderamento.7 7 Kimberl CRENSHAW, 2002, p. 177.

Um dos entraves para que a perspectiva interseccional possa se concretizar está no campo político, ainda que Chanter não se detenha em situar a atuação das diferentes organizações que militam em torno das distintas categorias sob as quais a desigualdade se sustenta. A título de exemplificação, conforme Crenshaw analisa, quando são abordadas as "desigualdades de gênero", a despeito dos desafios, há muitas instituições atuantes para pleitear mudanças. Quando o tema refere-se raça, isso não se repete, ou seja, há um número reduzido de organizações coletivas que encampam as reivindicações, se comparado com o das que defendem os aspectos ligados ao gênero. Soma-se a isso o fato de que "a afirmação de que a raça, ou outra diferença correlata, continua a permear a maioria das sociedades altamente contestada, a construção de um consenso sobre a importância de sua incorporação pode ser uma luta árdua".8 8 CRENSHAW, 2002, p. 184.

Sandra Lee Barthy é outra autora com a qual Tina Chanter dialoga com insistência no breve e elucidativo terceiro capítulo, Disciplinar, controlar e normalizar a sexualidade feminina com Foucault e as amigas feministas: corpos dóceis e resistentes, para analisar as contribuições do filósofo francês na constituição do ideal de feminilidade socialmente valorizado no mundo ocidental.

A partir das concepções de Michel Foucault quanto à constituição e ao exercício do poder e à ideia do policiamento, que tem no Panóptico seu exemplo mais contundente, a autora afirma, por analogia, que os muitos instrumentos midiáticos trabalham para que as mulheres internalizem certo olhar masculino.

Na análise da autora, ao disciplinamento foucaultiano alia-se o controle, tal qual estudado por Gilles Deleuze, para complexificar a reflexão sobre os tempos hoje vividos:

Nós nos investimos de normas patriarcais de feminilidade [...] disciplinando nossos corpos justamente para que se conformem a esses ideais [através de 'exercícios, dietas, moda, maquiagem']. [...] Nós jamais seremos tão perfeitas, graciosas e naturalmente femininas como as imagens das supermodelos de cabelos esvoaçantes cujas fotos nos compelem a tentar alcançar esses ideais artificiais e inatingíveis que representam.9 9 CHANTER, 2011, p. 69.

A autora recorda que "não é surpreendente que algumas mulheres negras, especialmente as lésbicas, tenham se visto sujeitas ao policiamento de outras mulheres negras tipicamente heterossexuais e burguesas".10 10 CHANTER, 2011, p. 72. Retomando a análise sobre o tratamento que é dado às temáticas sexualidade e raça, a autora lembra o caso de Sara Baartman,11 11 Mulher negra africana, nascida no grupo khoi-san e que viveu no período de 1789 a 1815. Em seus últimos anos de vida, foi tratada como uma 'aberração e vilmente explorada por meio de sua exposição (no sentido literal do termo) em eventos circenses londrinos. Considerado exótico, seu corpo era visto com estranheza, pelas dimensões de seus quadris e nádegas (DAMASCENO, 2008). adiantando brevemente conteúdos que serão abordados no sexto capítulo ao comentar a ideia de abjeção da filósofa húngaro-francesa Julia Kristeva, cuja exiguidade de produção traduzida para o português é sentida entre nós.12 12 Mara Coelho de Souza LAGO, 2010, p. 197.

O tema Epistemologia feminista: ciência, conhecimento, gênero, objetividade, desenvolvido no quarto capítulo do livro, faz menção ao "legado cartesiano para refletir sobre a natureza da ciência, num contexto no qual a "precisão [era] o fator supremo.13 13 CHANTER, 2011, p. 81. Verdade, objetividade, neutralidade e universalidade seriam atributos inerentes à constituição dos saberes científicos. Esses pseudonortes foram colocados em xeque pelas feministas, e Tina Chanter, citando Rorty, Habermas, Feyerabend e, novamente, Foucault, elenca outras características do 'fazer ciência: a expressividade dos julgamentos de valor e a influência das relações de poder no campo da episteme, destacando o conceito de "objetividade forte e a importância do empiricismo e do pós-modernismo feministas de Sandra Harding autora com maior intervenção feminina na ciência para a qual haveria a possibilidade de produção de resultados não tendenciosos e mais objetivos. Tina Chanter pondera, contudo, o quão contraproducente seria universalizar as experiências das mulheres e concluir acerca da isenção e completude do conhecimento produzido pelas pesquisadoras.

Nos capítulos finais, Teoria feminista pós-colonialista: o embate retórico entre o 'Oriente e o 'Ocidente e A teoria feminista psicanalítica e pós-estruturalista e as respostas deleuzianas, a autora apresenta a obra de Gayatri Chakravorty Spivak e sua importância no âmbito da teoria feminista pós-colonial, situando traços da experiência da Índia. Os diálogos que essa autora estabelece com Jacques Derrida, Deleuze e Foucault, seja para corroborar seus pontos de vista ou pôlos em xeque, enriquecem as reflexões de Tina Chanter.

Em seguida, ela discorre também sobre as ideias de Derrida e as críticas de Gilles Deleuze influência da psicanálise e da teoria pós-estruturalista nos enfoques feministas. A aposta da autora recai sobre o rechaçamento da relação vítima-inimigo, característico dos grandes modelos explicativos. Julia Kristeva inspira novamente a análise da autora, preocupada em costurar categorias psicanalíticas e linguísticas nas reflexões que propõe.

Além de perfazer uma caminhada por momentos da história da Filosofia (do cogito de Descartes contribuição de Espinosa), a autora recorre a Luce Irigaray, Ellen Feder e Emily Zakin para tematizar o falogocentrismo, porque "a regulação do falo central para a interpretação de todo sentido no mundo ocidental".14 14 CHANTER, 2011, p. 134. Contudo, estabelece outros contrapontos, apoiando-se em Abigail Bray e Clare Colebrook, para os quais há, no ocidente, uma excessiva ênfase representação e aos dualismos (mente-matéria; representação-materialidade; ativo-passivo), exemplificando seu ponto de vista a partir da análise do corpo anoréxico.

As perspectivas de Espinosa, Deleuze e Felix Guatarri auxiliam a autora na elucidação "de um pensamento afirmativo", em detrimento do "pensamento reativo",15 15 CHANTER, 2011, p. 139. no trato das questões de Gênero, redarguindo ao universalismo dos sistemas de pensamento dos quais o capitalismo e o marxismo fariam parte, privilegiando uma noção aberta de sistema e atribuindo relevo heterogeneidade e diferença.

Ao final, a leitura do provocativo Gênero: conceitos-chave em Filosofia convida, por certo, a outras leituras que esclareçam e aprofundem as já densas temáticas nele estudadas - isso, principalmente, se há o interesse em se 'tomar parte' da discussão. É um livro para seguidos retornos. Soma-se a isso o fato de que, em cada capítulo, cabal o esforço de Chanter que se situa na pós-modernidade - , com a atualidade dos temas que traz ao público leitor. Qualidades essas importantes em uma obra que faz parte de uma Coleção na qual a síntese uma exigência e, por certo, nesse caso, ainda mais, um grande desafio. Desafio esse cumprido com êxito pela autora.

Notas

  • CRENSHAW, Kimberlé. "Documento para o encontro de especialistas em aspectos da discriminação racial relativos ao gênero". Estudos Feministas, Florianópolis, v. 10, n. 1, p. 171-188, jan. 2002.
  • DAMASCENO, Janaína. "Corpo do outro. Construções raciais e imagens de controle do corpo feminino negro: o caso da Vênus Hotentote". In: FAZENDO GÊNERO, 8., 2008, Florianópolis. Anais... Florianópolis: UFSC, 2008. Disponível em: <http://www.fazendogenero.ufsc.br/8/st69.html>. Acesso em: 9 set. 2011.
  • LAGO, Mara Coelho de Souza. "Feminismo, psicanálise, gênero: viagens e traduções". Estudos Feministas, Florianópolis, v. 18, n. 1, p. 189-204, jan./abr. 2010.
  • A potencialidade do Gênero: feminismos e filosofias na leitura de Chanter

    Ana Paula Tatagiba
  • 1
    Tina CHANTER, 2011, p. 29.
  • 2
    CHANTER, 2011, p. 57.
  • 3
    CHANTER, 2011, p. 54.
  • 4
    CHANTER, 2011, p. 55.
  • 5
    CHANTER, 2011, p. 61.
  • 6
    CHANTER, 2011, p. 61.
  • 7
    Kimberl CRENSHAW, 2002, p. 177.
  • 8
    CRENSHAW, 2002, p. 184.
  • 9
    CHANTER, 2011, p. 69.
  • 10
    CHANTER, 2011, p. 72.
  • 11
    Mulher negra africana, nascida no grupo khoi-san e que viveu no período de 1789 a 1815. Em seus últimos anos de vida, foi tratada como uma 'aberração e vilmente explorada por meio de sua exposição (no sentido literal do termo) em eventos circenses londrinos. Considerado exótico, seu corpo era visto com estranheza, pelas dimensões de seus quadris e nádegas (DAMASCENO, 2008).
  • 12
    Mara Coelho de Souza LAGO, 2010, p. 197.
  • 13
    CHANTER, 2011, p. 81.
  • 14
    CHANTER, 2011, p. 134.
  • 15
    CHANTER, 2011, p. 139.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      19 Maio 2014
    • Data do Fascículo
      Abr 2014
    Centro de Filosofia e Ciências Humanas e Centro de Comunicação e Expressão da Universidade Federal de Santa Catarina Campus Universitário - Trindade, 88040-970 Florianópolis SC - Brasil, Tel. (55 48) 3331-8211, Fax: (55 48) 3331-9751 - Florianópolis - SC - Brazil
    E-mail: ref@cfh.ufsc.br