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Estudos de gênero e o cinema francês: entrevista com Geneviève Sellier

PONTO DE VISTA

IUniversidade Federal de Santa Catarina

IIUniversité Paris IV Sorbonne

No sentido inverso à expansão das pesquisas sobre gênero e cinema no Brasil, que alcançaram crescimento significativo na última década,1 1 Miriam Adelman, Amélia S. Corrêa e Lennita O. Ruggi organizaram o livro Mulheres, Homens, Olhares e Cenas, que trata de questões sobre gênero e cinema. José Gatti, Sônia Maluf, Ana Carolina Trovão e Ramayana Lyra também estão entre os autores e autoras que trabalham com o tema. Além da bibliografia, os GTs sobre gênero e cinema são cada vez mais numerosos em encontros como o da Socine e o Seminário Internacional Fazendo Gênero, que acontece periodicamente na Universidade Federal de Santa Catarina. os trabalhos sobre o campo na França ainda caminham a passos lentos, em um movimento que já chega a quase trinta anos, mas que ainda encontra obstáculos e resistência nos âmbitos da crítica cinematográfica e da própria academia. Falar em relações de gênero, questionar representações e subjetividades nas obras dos "grandes autores" do cinema francês, ou mesmo mundial, seria expor algumas fraturas sociais que ainda se mantêm encobertas por uma suposta politesse francesa. O próprio conceito "gênero" ainda é tabu na academia francesa, que ignora a atualidade do termo, restringindo seu uso àquilo que em linguagem fílmica se denomina "gênero cinematográfico", como veremos mais detalhadamente na entrevista concedida a Ana Maria Veiga e Alberto da Silva para a Revista Estudos Feministas2 2 Tradução de Ana Maria Veiga. por uma importante pesquisadora francesa da temática gênero e cinema.3 3 Esta entrevista, realizada em Paris em maio de 2012, é parte da pesquisa para a tese de doutorado intitulada Cineastas brasileiras em tempos de ditadura: cruzamentos, fugas, especificidades, defendida por Ana Maria Veiga em 2013 no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Santa Catarina.

Ainda nos anos 1980, período de consolidação da crítica feminista do cinema, Geneviève Sellier iniciou suas pesquisas acadêmicas, contrariando a hegemonia da abordagem estética sobre os filmes franceses, reafirmada a partir dos anos 1960, com o movimento da Nouvelle Vague. O encontro com o estadunidense Noël Burch - cineasta, crítico e historiador do cinema, que se afastou do formalismo presente em suas primeiras pesquisas,4 4 Como exemplo podemos citar o clássico Práxis do Cinema. São Paulo: Perspectiva, 2001. aproximando-se das correntes dos estudos culturais e de gênero e adotando uma perspectiva feminista5 5 A revista estadunidense Women and Film já trazia em 1974 (v.1, n. 5-6, p. 20-34) uma entrevista com Burch e a discussão de suas teorias, citando-o como pioneiro dos estudos feministas do cinema em seu país. Acervo da Cinémathèque Française, Bibliothèque du Film, consultado por Ana Maria Veiga em julho de 2012. - enriqueceu ainda mais seu trabalho e trouxe a base teórica para sua abordagem social, fazendo de Sellier uma referência na literatura francesa sobre o campo.

Ex-aluna da École Normale Supérieur de Fontanay-Saint-Cloud, professora de estudos cinematográficos na Université de Bordeaux e especialista em estudos culturais e de gênero no cinema francês, em 2005 Sellier lançou o livro La Nouvelle Vague: un cinéma au masculin singulier.6 6 SELLIER, 2005. Nele, a autora busca analisar as representações de gênero nos filmes do movimento cinematográfico francês, o mais importante da história do cinema em seu país. O trabalho adota uma perspectiva histórica cultural, articulando a análise dos filmes com o contexto sociocultural de produção e recepção e relacionando-os às aspirações de uma "nova geração" de cineastas, com interesses próprios, intrinsecamente ligados à construção de "identidades sexuais", de acordo com ela.7 7 SELLIER, 2005, p. 5.

Partindo do conceito "cinema de autor" (cinéma d'auteur), relacionado à reivindicação de uma legitimidade para o cinema como criação artística individual, suas análises levam a perceber neste movimento cinematográfico uma herança do romantismo, quase sempre associada à "construção trágica da identidade masculina", com uma forte influência do modernismo tal como foi elaborado a partir do século XIX por Flaubert e Baudelaire. De acordo com Sellier, era a busca de afirmação de uma autonomia artística em relação às questões sociais. As experiências formais se transformariam em "valor estético absoluto".8 8 SELLIER, 2005, p. 114.

No final dos anos 1950 e início dos 1960, os novos cineastas ligados à redação dos Cahiers du Cinéma, como Claude Chabrol, François Truffaut, Jean-Luc Godard, Jacques Rivette e Eric Rohmer, lançaram a Nouvelle Vague e transformam esse movimento em um modelo de arte cinematográfica, associado ao mesmo tempo à subjetividade de seus criadores, ao controle incontestável das técnicas cinematográficas e à transgressão das normas morais e culturais. Assim, se a subjetividade e o "gênio criador" masculinos ocupavam lugar central na trama de seus filmes, jovens atores como Jean-Paul Belmondo, Jean-Louis Trintignant e Jean-Claude Brialy encarnavam os papéis de alter egos dos cineastas, que colocavam em cena suas próprias aventuras. As personagens femininas, por sua vez, eram elaboradas em uma "mistura de arcaísmo e modernidade" e situadas dentro da narrativa entre o medo e o desejo. Nesse contexto, mesmo reconhecendo a renovação das representações da sedução feminina de uma maneira menos sexista do que as das jovens estrelas dos anos 1950 - especialmente através de uma mise en scène que privilegiava os rostos das atrizes, sublimando assim os corpos femininos - , Geneviève Sellier aponta a subjetividade masculina como o centro da narrativa fílmica, impregnando assim o "cinema de autor" com o modelo do universal masculino, construindo, a partir disso, um "cinema no masculino singular".9 9 SELLIER, 2005, p. 115.

Como contraponto, dentro do livro, a autora analisa a carreira de Jeanne Moreau, musa da Nouvelle Vague, que, segundo ela, teve sua imagem constantemente associada à encarnação da mulher moderna por excelência, em representações ambíguas, que oscilavam entre a mulher "desesperadamente apaixonada" e a femme fatale. Moreau era o modelo da verdadeira "estrela" da Nouvelle Vague, em oposição à imagem de Brigitte Bardot, ícone da cultura de massa no mesmo período.10 10 SELLIER, 2005, p. 173.

Sellier utiliza e atualiza os suportes teóricos e metodológicos que já havia empregado em La drôle de guerre des sexes du cinéma français 1930-1956,11 11 BURCH e SELLIER, 1996. livro conjunto com Noël Burch, no qual os autores abordam o período precedente à Nouvelle Vague na história cinematográfica francesa. Esse trabalho foi pioneiro no cenário dos estudos cinematográficos na França, inspirando-se nos instrumentos teóricos e metodológicos utilizados na Inglaterra por Ginette Vincendeau.12 12 Um dos livros mais conhecidos de Ginette Vincendeau é Star and Stardom in French Cinema (London: Continuum, 2000). Segundo os autores, esse cinema dito "popular" tinha tendência a reproduzir as relações entre as personagens de homens mais velhos e mulheres mais jovens, formando um esquema denominado "o reino do pai", no contexto histórico da ocupação nazista na França, no qual essas figuras aparecem repetitivamente em diversos filmes desse período. Se antes da guerra as representações da figura paterna reinam nos filmes considerados "clássicos", como Le jour se lève (O dia se levanta), de Marcel Carné, e La règle du jeu (A regra do jogo), de Jean Renoir, ambos de 1939, a humilhação e a decepção da ocupação nazista colocam essas mesmas figuras paternas em segundo plano, abrindo um espaço para personagens femininas idealizadas, permitindo a reconstrução do imaginário de uma identidade nacional e moral gravemente marcada pela humilhação.13 13 BURCH e SELLIER, 1996, p. 100.

Como resultado desse contexto histórico-social, Sellier e Burch percebem uma avalanche de filmes melodramáticos, um gênero que os autores apontam como a forma idealizada da obsessão moralizadora do regime de Vichy. Nesse contexto, todas as questões relativas ao desejo são sublimadas, como forma de compensação e segurança para a identidade masculina.14 14 BURCH e SELLIER,1996, p. 107. A situação é revertida no momento da Liberação, período em que são retomadas as representações misóginas subordinadas aos modelos das mulheres culpadas e dos homens vitimados. Para os autores, mesmo com a visão das personagens femininas como mulheres liberadas - como a de Brigitte Bardot em Et Dieu créa la femme (1956), de Roger Vadim - , essas representações guardam uma ambiguidade na qual a imagem das mulheres está associada ao corpo feminino, onde elas existem única e exclusivamente na ordem do desejo físico.15 15 BURCH e SELLIER,1996, p. 277.

Seguindo essa linha de abordagem histórica e sociocultural, Geniviève Sellier e Noël Burch publicaram em 2009 um segundo livro conjunto, Le cinéma au prisme des rapports de sexe,16 16 BURCH e SELLIER, 2009. um manual onde os dois pesquisadores expõem vários aspectos de seus trabalhos sobre as representações de gênero, tratadas por eles como "representações de sexo", tendo como ponto de partida uma visão dos filmes como construções culturais e propondo a elaboração de análises baseadas em uma "interação entre o texto e o contexto".17 17 BURCH e SELLIER, 2009, p. 9-10.

Atualmente Sellier é membro do Institut Universitaire de France e dirige seminários sobre as relações de gênero no campo cultural Genre et gender. Em seu apartamento parisiense, ela concedeu uma entrevista à REF, na qual fala sobre abordagens teórico-metodológicas, a visão sobre o "cinema popular" e o "cinema de autor" e as dificuldades latentes encontradas por quem trabalha sobre as questões de gênero no meio acadêmico francês, além de expor a maneira como percebe as problemáticas de gênero no cinema atual. Sua entrevista pode surpreender quem imagina a França como um campo fértil e aberto, marcadamente no âmbito de produção e estudos cinematográficos. Vamos a ela.

Ana Maria Veiga (AV): Como foi sua aproximação dos estudos de gênero?

Geneviève Sellier (GS): No começo, meu interesse pelos estudos de gênero foi ao mesmo tempo intelectual e pessoal. Dentro da tradição dos estudos fílmicos, existiam duas perspectivas, uma formalista e estética, outra cultural e semiológica, capaz de considerar as ralações de gênero. Do meu ponto de vista, era frustrante não abordar do que e como falavam os filmes. Essa foi minha motivação intelectual, o que me induziu ao interesse pelos filmes de ficção, em particular às ficções francesas dos anos trinta e quarenta, e mais precisamente à obra de Jean Grémillon. O cinema de ficção conta histórias essencialmente de relações entre homens e mulheres, então me parecia evidente que era necessário ser capaz de trabalhar sobre este cinema. A outra dinâmica que me impulsionou, de ordem pessoal, estava baseada no confronto da jovem estudante, depois professora e intelectual, que eu era, com as normas sexuadas, o casamento, a constatação das relações de dominação dentro de um casal e a recusa dessa dominação. Aos vinte e cinco anos de idade, a orientação da minha vida mudou, simultaneamente no plano pessoal e intelectual. Eu ensinava literatura francesa no liceu (um trabalho que durou vinte anos), eu já tinha escrito minha dissertação de mestrado sobre cinema, mas a ideia do ensino sobre o tema só veio mais tarde, progressivamente, a princípio no liceu, depois na universidade. A meu ver, mesmo esse atraso é evidentemente generizado, ele se deve, antes de mais nada, ao fato de que durante anos eu militei politicamente; minha carreira não foi então uma prioridade. Em seguida eu engravidei, quando já tinha começado a fazer a pesquisa. Mas eu não podia começar uma carreira universitária, pois isso significava aceitar ir a cidades distantes e, como eu tinha crianças pequenas, a escolha era difícil. Eu esperei então até 1995, mesmo já tendo terminado minha tese há alguns anos, para buscar a entrada na universidade. Foi nesse momento que eu percebi que as minhas orientações gender eram mal vistas, particularmente pelos júris dos comités de seleção dentro das universidades. Agora que eu já tinha uma carreira e uma tese, e estava preparando minha habilitação para orientar pesquisas e atuar como "professor",18 18 O termo professeur não tem até hoje correspondente feminino na língua francesa. eu era constantemente descartada em benefício de pessoas mais jovens, frequentemente homens, que evidentemente seguiam uma orientação mais coerente com o que a universidade francesa aceitava. Eu obtive meu primeiro posto na universidade em 1997, em Caen, e o consegui devido a uma "triangulação", pois dois professores disputavam a colocação de seus protegidos. Em seguida, durante todos os anos passados em Caen, eu senti a hostilidade dos meus colegas frente às minhas orientações de pesquisa.

Alberto da Silva (AS): Como aconteceu o encontro com Noël Burch?

GS: Eu encontrei Noël Burch quando publiquei a tese sobre Jean Grémillon.19 19 SELLIER, 2012 [1989]. Podemos dizer que minha tese já era feminista, sem que eu tivesse consciência disso, no modo como eu me interessava pelas representações das mulheres no cinema de Grémillon, por seu aspecto não convencional diante das normas da época. Noël Burch veio me procurar, pois ele havia lido meu livro e estava interessado por minhas orientações "proto-feministas". Ao mesmo tempo, ele queria trabalhar sobre o cinema francês, que conhecia mal. Estabelecemos nossa colaboração sob a forma de uma troca intelectual: ele me fez conhecer, de maneira sistemática, os textos anglo-americanos de orientação gender sobre o cinema e eu coloquei à sua disposição meu conhecimento do cinema francês, em particular dos anos trinta, quarenta e cinquenta. Nosso trabalho conjunto começou em 1989 e nosso primeiro livro foi publicado em 1996, como resultado de sete anos de pesquisas em comum, dessa vontade de explorar, a partir dos instrumentos teóricos dos gender studies, o cinema francês clássico, colocando questões sobre a dimensão histórica das normas sexuadas propostas pelo cinema. Desde o começo, nosso trabalho se singularizou em relação à pesquisa estadunidense por nossa vontade de historicizar a análise de gênero, não apenas do ponto de vista iconográfico, mas também da inscrição cultural. As representações das "relações de sexo", que propunha o cinema francês, eram extremamente diferentes daquelas que propunha no mesmo momento Hollywood, então era preciso compreender de onde vinham essas diferenças, a que elas correspondiam, o que queriam dizer, todas essas representações que davam destaque às sociedades patriarcais, mas com variantes extremamente importantes, que nós queríamos justamente colocar em evidência.

AV: Considerando os filmes como construções culturais, como podemos pensar sobre as "normas sexuadas" que agem em seu interior?

GS: Nosso trabalho constatou que, de um lado, o cinema de uma época e de uma sociedade produz normas sexuadas, propõe imagens de "boa feminilidade", de "boa masculinidade", que são encontradas de filme em filme, e que têm um caráter de norma, porque são recorrentes. Entretanto, essas normas não são o reflexo de uma sociedade, mas a expressão de um imaginário coletivo, que significava frequentemente uma reação às situações sociais, às contradições sociais. Há, por exemplo, dentro do cinema francês dos anos trinta, uma configuração dominante que nós observamos e denominamos o "casal incestuoso": um homem de idade madura que mantém uma relação de dominação com uma mulher muito jovem, uma relação ao mesmo tempo afetiva, social, etc. Nada nos autoriza a dizer que essa configuração corresponde a uma realidade social; pelo contrário, quando lemos as obras sobre a sociedade francesa daqueles anos, podemos constatar que essas representações são, sem dúvida, uma reação de medo diante do movimento de emancipação das mulheres e, em particular, das jovens mulheres. No entreguerras na França, as mulheres das classes médias tornaram-se massivamente trabalhadoras, buscando emprego no setor terciário, experimentando certa emancipação econômica. O casamento, e sobretudo a maternidade, em seguida, as obrigaram a abandonar essa trajetória. Mas esse começo de emancipação econômica, em uma nova escala que toca as camadas médias urbanas, suscita reações de medo por parte da classe dominante. Todas as histórias que o cinema conta nos anos trinta giram em torno da ideia de que as jovens mulheres devem compreender que sua saúde está na submissão aos homens de idade madura, capazes de protegê-las com seu estatuto social. Se elas não têm essa proteção dos patriarcas, correm perigos inomináveis dentro de suas relações, em particular com homens jovens, que são incapazes de oferecer a proteção social e econômica a qual elas aspiram; jovens homens que são mostrados frequentemente seduzindo as jovens mulheres e depois as abandonando. Ao contrário, os homens de idade madura não estão no terreno da sedução, mas da proteção. Podemos então interpretar todas essas histórias como um tipo de empreendimento ideológico que visa frear o movimento de emancipação das mulheres. Isso faz parte das contradições sociais e culturais. O cinema se inscreve dentro de um movimento dinâmico de confrontos de classe, de gênero, de geração, etc.

AV: Como nós podemos pensar as interações entre narrativa fílmica e contexto de produção e de recepção?

GS: Quando nós começamos a trabalhar juntos, Noël Burch e eu, os estudos de cinema na França estavam quase exclusivamente orientados para a análise fílmica ou do que nós chamávamos na época "texto fílmico", o filme compreendido como uma entidade autônoma. O trabalho sobre o filme consistia em colocar em evidência a coerência, a articulação da narrativa sonora, visual, etc., em geral para mostrar que se chegava a uma obra de arte quando se conseguia articular todos os elementos significativos. Ora, trabalhando sobre o cinema dentro de uma perspectiva histórica e sociocultural, nós nos demos conta de que a abordagem do cinema unicamente pelos filmes, isolados de seu contexto, trazia o risco de nos fazer cometer muitos contrassensos e que, se nós queríamos verdadeiramente compreender do que falavam os filmes, era preciso entender dentro de qual contexto, de produção e de recepção, eles existiam. Não é possível compreender o cinema francês dos anos trinta se não o situarmos no contexto do "teatro de boulevard", que é uma produção tipicamente francesa, e além disso masculina. Os dramaturgos eram homens, os diretores também, e esse teatro, que existiu desde o começo do século, era um teatro burguês, com uma maneira muito livre de falar das relações de sexo, na esfera privada, mas não apenas dentro dela. Havia também um "teatro de boulevard" com uma dimensão social importante. O cinema francês foi, de alguma forma, o herdeiro desse teatro, era muito livre de tom e serviu-se de todas essas histórias de marido, mulher e amante, dando a elas versões suscetíveis de interessar ao público mais amplo do cinema. O que se encenava através dessas história era o confronto entre o desejo de dominação do patriarcado e o desejo de emancipação das mulheres, ao mesmo tempo amorosa e social. A maioria desses filmes tentava convencer as mulheres de que o adultério não era a solução, quando era uma mulher que o cometia; ao contrário, quando era o marido, isso não tinha importância. Tratava-se, ali também, de reconfigurar as histórias da sociedade real, de modo que as prerrogativas masculinas e patriarcais fossem preservadas. A maior parte desses filmes contava histórias de mulheres adúlteras, apesar de nós sabermos muito bem que, dentro da rede social da burguesia da época, o adultério era, antes de tudo, masculino. Todo homem que possuísse uma certa posição social deveria ter uma esposa legítima, a quem fazia filhos, e uma amante. Mas os filmes, na maioria do tempo, mostravam o inverso: nós vemos mulheres que arranjavam amantes, bem entendido que elas seriam punidas, de uma maneira ou de outra. Constatamos um tipo de inversão entre a realidade social e as histórias que contavam os filmes. Eu repito que, se queremos compreender as histórias que os filmes contam, devemos conhecer um pouco de seu contexto social. Além disso, é necessário considerarmos um segundo aspecto: esses filmes não podem ser estudados sem o conhecimento da recepção que tiveram. Em outros termos, é interessante sabermos quais foram os filmes que obtiveram sucesso, quais foram um fracasso, médio ou total, e tentarmos compreender os motivos. Para isso é necessário, evidentemente, lermos não apenas a recepção crítica, mas também as revistas populares.

AS: Essa ligação com o "teatro de boulevard" significa uma vontade, por parte do cinema, de ser uma arte ainda mais popular, de buscar um público popular?

GS: Na verdade, o cinema já era popular; ele era sobretudo popular. A partir dos anos 1930, particularmente por seus laços com o "teatro de boulevard", o cinema buscou atingir as camadas urbanas cultas, pois eram justamente elas que iam ao teatro. Reforçado pelo fato de que, frequentemente, os mesmos atores atuavam nos palcos e no cinema, este último tentava atrair as camadas cultas e convencê-las de que o cinema não era apenas uma diversão para as massas, mas que era, igualmente, uma arte que as elites podiam ver sem se desonrar. Podemos dizer que, durante a Segunda Guerra e o pós-guerra na França, a batalha da legitimidade cultural do cinema estava ganha. O movimento dos cineclubes, no período da Liberação, traduziu essa importância do cinema como instrumento de democratização cultural e como um laço entre as elites cultas e as camadas médias e populares.

AV: Como você vê os estudos de gênero na França no que concerne ao campo do cinema?

GS: É preciso, de início, dizer algumas palavras sobre a cinefilia. Na França, os estudos fílmicos foram fundados pela cinefilia culta, tal como ela se afirmou por meio dos Cahiers du cinéma nos anos 1950 e 1960. Essa prática do cinema distingue o público culto do público popular ao se interessar unicamente pela mise en scène e negligenciar tudo o que faz o interesse de um público popular, mais amplo, pelo cinema, ou seja, que os filmes contam histórias. A cinefilia na França torna-se, assim, a construção de um discurso abstrato sobre o cinema, que permite deixar completamente de lado tudo aquilo do que os filmes falam, não se interessando para além da iluminação, da trilha sonora, da estética, etc. Dentro dessa perspectiva, o objeto ideal da cinefilia à francesa é o "cinema de autor", um cinema que se dirige unicamente a uma elite erudita e que reivindica o fato de ser de difícil acesso, de não contar histórias, de ser frequentemente hermético. Isso marca seu valor para a cinefilia. Dentro dessa perspectiva, os estudos de gênero são o inimigo principal, pois reivindicam justamente o interesse pelo que falam os filmes e pela maneira como eles falam. Os estudos de gênero usam as abordagens estéticas como um meio, não como um fim. Notemos que a cinefilia à francesa é uma prática masculina, mas que é invisível como tal. Os cinéfilos que escrevem são, até hoje, quase exclusivamente homens, mas homens que se pensam como universais, para os quais o feminino não existe, exceto como objeto sexual, como objeto de desejo dentro dos filmes, e da vida também. A prática cinéfila francesa é uma prática de exclusão das mulheres. O grupo que a construiu nos anos 1950 e 1960 era um grupo de rapazes, que ficavam entre rapazes de maneira sistemática. Nós percebemos um vestígio disso até hoje no fato de que os estudos de cinema, que foram construídos pela cinefilia, mesmo na universidade, supõem que sejam trabalhados unicamente os "grandes autores" e não os gêneros cinematográficos, o cinema popular. E na obra dos "grandes autores" estuda-se a forma. A ideia de que os filmes dos "grandes autores" possam ser portadores de normas sexuadas é um sacrilégio. O "grande autor" é uma figura de demiurgo, acima das leis e das normas, do qual se estudam as obras como quem rende culto a uma divindade. O fato de se querer analisar a representação das relações de sexo dentro de um filme tem evidentemente como consequência dessacralizar a figura do autor. É por isso que a cinefilia à francesa é totalmente hostil aos estudos de gênero. Essa hostilidade continua vivaz até os dias de hoje. Espera-se que a jovem geração não tenha o mesmo olhar, mas na medida em que essa questão não é pensada... Eu encontrei numerosos estudantes, em particular rapazes, mas não somente, que foram formados de acordo com as abordagens estéticas e que não imaginam que alguém possa se interessar de outra maneira pelo cinema. Eles renegam tudo o que remete às abordagens socioculturais, como algo sem interesse do ponto de vista da "arte". Sua ideia é que a arte é qualquer coisa que escapa às determinações sociais. Para eles, é impossível se interessar ao mesmo tempo pela arte cinematográfica e pelo gênero. Esse tipo de ponto de vista não existe nos Estados Unidos e na Inglaterra, onde as orientações socioculturais têm seu lugar. Foi na Inglaterra que os estudos culturais e os estudos de gênero nasceram, então existe uma tradição dentro das universidades anglófonas, mas não na França.

AV: Nos anos 1970, é possível distinguir a teoria e a crítica feminista do cinema na Grã-Bretanha (com Laura Mulvey e Claire Johnston, por exemplo), de um lado, e a prática fílmica na França, Bélgica (Agnès Varda, Chantal Akerman) e outros países europeus, de outro?

GS: Minha impressão é que não houve verdadeiramente qualquer articulação. De um lado, houve uma reflexão teórica inicialmente na Grã-Bretanha, depois nos Estados Unidos, para repensar o cinema hollywoodiano como lugar de construção de normas sexuadas e de relações de sexo. De outro lado, houve na França um movimento social e cultural que se manifestou em particular pela apropriação do vídeo por um cinema feminista militante. Mas, retrospectivamente, o que me impressiona é que esse cinema feminista militante não teve verdadeiramente um prolongamento, nem na universidade nem mesmo no campo político. Ele fez parte de toda uma constelação militante de extrema esquerda dos anos 1970, mas, em parte porque esse movimento foi muito hostil a todas as formas de institucionalização, ele terminou por desaparecer sem irrigar a universidade, os sindicatos ou os partidos, cujo funcionamento continua a ser extremamente discriminatório para as mulheres. Eu diria então que essa é, antes de mais nada, a história de um movimento que não soube se transformar de modo a irrigar a sociedade. O resultado é que hoje, na França, essa prática feminista do cinema não é mais visível e que, além disso, não há um feminismo institucional. Por exemplo, todo o movimento em torno da paridade, que chegou à votação de uma lei inscrita dentro da Constituição, o princípio da paridade não mudou nada nas relações de força, principalmente políticas. A lei dizia que os partidos que não respeitassem a paridade seriam sancionados por uma multa. Os dois grandes partidos, de direita e de esquerda, o Partido Socialista e a UMP (Union pour un Mouvement Populaire), preferiram pagar as multas a observar a paridade. Hoje em dia não há muito mais paridade do que há vinte anos. Peguemos um exemplo: a França é um dos países da Europa onde há o maior número de instituições que se encarregam das crianças pequenas (creche, maternal, berçário, etc.). Tudo isso entrou para os costumes, apesar de a maioria das mulheres continuar a trabalhar depois de ter filhos, principalmente na camada média e médias superiores. Mas, ao mesmo tempo, a França continua sendo um dos países onde a divisão de tarefas entre homens e mulheres é a mais desigual. As enquetes mais recentes mostram que as mulheres assumem 80% das tarefas domésticas e que se referem à educação dos filhos, sendo esses os números mais baixos da Europa do Norte. Nós enfrentamos então o paradoxo de que na França a taxa de trabalho assalariado das mulheres é muito mais elevada do que na Grã-Bretanha, nos Estados Unidos ou na Alemanha, por exemplo, mas que, ao mesmo tempo, a taxa de consciência feminista é a mais baixa. A maior parte das mulheres diz: "não, eu não sou feminista", subentenda-se: "eu não sou louca, histérica, agressiva, não, não... eu quero a paz no meu casamento, então, não sou feminista". Na França, as mulheres consideram absolutamente normal continuar a trabalhar quando elas têm filhos, enquanto na Alemanha elas são apontadas com o dedo por não serem boas mães se continuam a trabalhar enquanto criam seus filhos. A particularidade francesa é que o "telhado de vidro" é mais alto, ou seja, que há um nível de responsabilidade ao qual as mulheres jamais acederão, para chegar até ele, é necessário estar disponível vinte e quatro horas por dia para o trabalho, ou quase isso. Os homens estão, ou decidem estar. Um homem que evoca a necessidade de cuidar dos filhos para recusar uma reunião ou responsabilidades profissionais é visto com maus olhos, considerado como um marginal, para não dizer pior. A situação é globalmente muito contrastada. Por exemplo, na universidade, 50% das mulheres são maîtres de conférence,20 20 Maîtres de conférence são professores/as universitários/as que orientam trabalhos, mas que ainda não atingiram o estatuto de professeurs, ou seja, professores titulares em função plena, que orientam trabalhos e dirigem grupos de pesquisa. mas somente 10% são professeurs. E isso não muda, porque não somente as mulheres não podem dedicar tanto tempo à pesquisa, por causa da casa e dos filhos, mas, para além disso, são geralmente as mulheres que, dentro da universidade, se ocupam das tarefas pedagógicas e administrativas, ao passo que os homens fazem pesquisa. Isso significa que essa divisão desigual de tarefas se reproduz de fato dentro da esfera profissional. A gestão do dia a dia da universidade (fora do âmbito das decisões) é assegurada pelas mulheres e, enquanto isso, os homens fazem a pesquisa ou exercem o poder. Então é lógico que as disparidades se aprofundam no decorrer da carreira. Eu me lembro, por exemplo, que na minha geração, entre as mulheres do mesmo nível sociocultural, eu era a única a deixar meus filhos na creche às quartas-feiras21 21 As quartas-feiras são dias facultativos nas creches e escolas maternais francesas, quando as crianças podem ficar em casa ou praticar outras atividades. para poder trabalhar. Em um meio de professoras, na época, eu era a única, e as outras me olhavam bizarramente, eu era a excêntrica. Vejam então que os bloqueios não se situam nos mesmos lugares dentro de outras sociedades, mas eles existem e têm efeitos extremamente fortes.

AV: "Relações sociais de sexo" ou "relações de gênero"- ? Quais são as implicações dessa escolha terminológica?

GS: Não é fácil fazer uma distinção entre relações de gênero e relações de sexo. A razão pela qual nós utilizamos a perífrase "relações sociais de sexo" é que a palavra "gênero", dentro dos estudos fílmicos, quer dizer gênero cinematográfico. Na França, quando dizemos "gênero", nós nos encontramos constantemente numa confusão entre gênero no sentido "gender" e gênero cinematográfico, ou seja, western, filme noir, etc. Nós criamos essa perífrase para evitar a confusão, de um lado, e de outro porque queríamos indicar dentro de qual perspectiva nós nos situamos. Não estamos dentro de uma perspectiva diferencialista ou essencialista, ao contrário de muitas teóricas norte-americanas ou britânicas, mas de uma perspectiva histórica e sociocultural. Essa é a razão pela qual nós escolhemos a perífrase "relações sociais de sexo", mais amplamente desenvolvida como "relações sociais de sexo e identidades de sexo". Podemos também exprimir a ideia pelo termo "normas sexuadas", mas o campo é maior do que isso, trata-se de uma análise das representações das relações sexuadas, das orientações sexuais, das relações sexuais, das identidades de sexo, enquanto inscritas dentro de uma cultura, dentro de uma sociedade e dentro da história.

AV: Tendo em conta esse caráter de "importação" dos estudos de gênero na França, nós podemos dizer que há uma ruptura epistemológica? Como isso acontece?

GS: Isso não acontece. Por exemplo, nós não dispomos de nenhuma tradução. Todas as traduções das obras de referência foram feitas de maneira benevolente por mim, por Noël Burch, por Maxime Cervulle, por Nelly Quemener, etc. É um trabalho militante, porque as pessoas que têm um pouco de poder e um pouco de dinheiro no meio das edições de cinema, ao redor dos Cahiers du cinéma, ou seja, pessoas que encarnam essas abordagens estéticas e autorais, recusam-se a traduzir esses textos. O principal problema com o qual é confrontado o ensino dos estudos de gênero é o acesso aos textos. Hoje faz vinte anos que nós os traduzimos, mas quando a tradução é feita de maneira voluntária e quando devemos encontrar dinheiro para esse trabalho, tudo é mais lento. Como a tradução dos textos anglo-americanos se faz de modo militante, ela é feita forçadamente a conta-gotas. Globalmente, hoje em dia, um estudante pode perfeitamente fazer todo seu curso de cinema sem jamais escutar falar de gênero. Em literatura é a mesma coisa. Não existe, para além da história e da sociologia, um espaço onde os estudantes que querem ouvir falar de gênero possam fazê-lo. Na França, em todas as humanidades tradicionais, entre as quais se inscreve o cinema, pode-se muito bem fazer todos os estudos sem nunca ouvir falar das abordagens de gênero.

AS: As coisas não parecem estar mudando um pouco?

GS: Sim, claro, porque existem as novas gerações que buscam fazer alguma coisa, então o quadro se movimenta, mas não há qualquer apoio institucional. O primeiro posto direcionado a abordagens de gênero na universidade foi criado em 1982, graças a Yvette Roudy, a ministra dos direitos das mulheres no primeiro governo de esquerda;22 22 Do ex-presidente socialista François Mitterand. depois disso, foi preciso esperar vinte anos para que houvesse um segundo. A universidade francesa resiste o quanto ela pode à institucionalização dos estudos de gênero. Se o trabalho militante não pode se transformar em trabalho institucional, cada geração deve recomeçar do zero, redescobrir as teses, etc. Quando fazemos estudos de gênero, precisamos aprender a esperar pelos golpes, e ter uma determinação muito forte, uma convicção política e pessoal. Mesmo que isso traga muita satisfação intelectual, é uma escolha de vida pela qual se paga bastante caro. Os estudantes veem muito bem o que permite a eles estarem dentro da norma e o que os leva à margem.

AV: Para voltarmos ao seu trabalho, falamos agora sobre a Nouvelle Vague. Olhando para o cinema como parte do imaginário coletivo, quais são as implicações do "cinema de autor" dentro da sociedade francesa da época?

GS: Eu analiso o nascimento do "cinema de autor", por volta dos anos 1960 na França, como a importação para o cinema do conjunto de uma tradição cultural francesa, que vem de longe, e que constrói a distinção entre cultura de elite e cultura de massa (em geral, uma cultura de elite masculina e uma cultura de massa feminizada). Podemos dizer que, de uma certa maneira, o cinema de autor introduziu essa tradição, essa posição tradicional da cultura francesa, no campo do cinema. No momento de seu nascimento, o cinema de autor era um cinema no masculino. Agnès Varda foi um álibi. Entre os 150 novos cineastas que emergiram entre 1957 e 1962, Varda era a única mulher. Mas ela sempre defendeu uma prática pessoal do cinema, sempre se recusou a se associar a um movimento. Nos anos 1970, quando o movimento feminista era mais forte, ela realizou um filme feminista, L'une chante, l'autre pas (1976), mas este não é, sem dúvida, seu melhor filme e é raramente mencionado pelos cinéfilos. Fora essa quase exceção, ela sobretudo rodou filmes inclassificáveis e é difícil falar deles como um cinema feminista. Eu diria que trata-se de um "cinema de autora". A diferença entre o "cinema de autora" de Varda e o de Godard, por exemplo, reside no fato de que o dela faz falar um "nós", que inclui os outros, em um modo cultural tipicamente feminino. Agnès Varda é uma pessoa modesta, ela é muito sensível aos encontros, às ocasiões, às mudanças. Ainda assim, seu posicionamento é tipicamente francês,23 23 Agnès Varda nasceu na Bélgica, mas é considerada uma autora do cinema francês, pois seus filmes se passam e foram rodados na França, desde o primeiro, La Pointe Courte, de 1954. ela se reivindica como uma artista, que trabalha com os outros, e não sozinha no seu canto. Mas Varda é completamente marginal do ponto de vista econômico, tendo fundado sua casa de produção para ser independente. Ela se situa então verdadeiramente dentro de uma tradição à francesa, da qual se apropriou, no meu modo de ver, e à qual ela deu uma coloração efetivamente mais aberta aos outros, mais aberta do que quando são os homens artistas que dela se apropriam. O "cinema de autor", no masculino, é uma reafirmação da vontade de matriz demiúrgica; tanto como homens quanto como artistas, os "autores" afirmam seu direito a fazer obras pessoais, originais, que transgridam as regras, como um signo de seu domínio do mundo e dos outros. Dito de outra maneira, não se trata absolutamente de um movimento de compartilhamento, democrático, de abertura aos outros, mas de um movimento de afirmação de si. Foi por isso que eu o denominei um "cinema na primeira pessoa do masculino singular". Podemos dizer que esses grandes cineastas traduziram, do ponto de vista do cinema, o que já se passava um século antes na literatura, quando "a boa literatura" na França era aquela em que se dizia "eu", em que não havia um interesse pelo mundo, mas unicamente por si e por sua arte. Por razões econômicas (um filme custa caro), o cinema de autor não pode ser tão individualista, elitista, quanto a literatura, mas ele tenta. O paradoxo da sociedade francesa é que as mulheres, na sequência do movimento feminista dos anos 1970, conseguiram escorregar para dentro do cinema de autor, um cinema de baixo custo, que recebe ajuda pública. Depois de mais de vinte anos, hoje há uma média na França (trata-se aqui também de uma situação particularmente francesa): 20% dos filmes são realizados por mulheres. Não há equivalente em qualquer país do mundo, e isso é muito positivo, salvo que o modelo cultural do cinema privilegiado na França é justamente um cinema na primeira pessoa, que se desinteressa das questões sociais. Ele se apresenta como a expressão de um indivíduo. O cinema das mulheres está dividido em duas tendências: de um lado, as mulheres têm habitualmente vontade de falar de sua experiência, e sua experiência é também uma experiência de dominação de gênero; de outro lado, se elas querem ser aceitas pelo meio, é necessário que se colem dentro da concha do cinema de autor no masculino e à primeira pessoa, que é frequentemente um cinema narcísico e hermético. Nós temos dois tipos de cinema "feminino" hoje na França: um se orienta mais no sentido da comédia social, e fala muito frequentemente justamente das relações de dominação sexuada; outro é um "cinema de autor", no sentido tradicional do termo, onde não se fala da sociedade. Os exemplos desse último tipo de cinema podem ser Catherine Breillat ou Claire Denis, ou seja, é um cinema que se quer difícil, que é frequentemente entediante, que fala de sexualidade de uma maneira bastante crua, mas sem que isso seja jamais relacionado a questões sociais. Evidentemente, é esse cinema que aprecia a crítica, majoritariamente masculina, enquanto o cinema, digamos, mais social é em geral olhado com muita condescendência.

AS: Você poderia citar algumas realizadoras desse cinema com foco social?

GS: Para o cinema mais "grande público", nós poderíamos citar Coline Serreau, Josiane Balasko, Tonie Marshall, Diane Kurys, Danielle Thompson... São bastante numerosas as mulheres que fazem um cinema que diz "nós". Trata-se frequentemente de um cinema coral, que conta histórias coletivas, onde há cinco ou seis personagens que se cruzam. Um cinema, eu diria, do plural, que busca antes um consenso, com tudo o que isso comporta justamente, de atenuação das contradições, mas que é ao mesmo tempo um cinema que fala das condições concretas da vida das mulheres. Desse ponto de vista, ele diz coisas que o cinema de autor não diz. Podemos observar hoje uma nova geração, que não é necessariamente confrontada aos mesmos entraves culturais. O que me impressiona é que essas jovens realizadoras fazem com frequência um primeiro filme extremamente corajoso, radical (no sentido político do termo, não no estético). Por exemplo, o primeiro filme, Naissance des pieuvres (O nascimento dos polvos, 2007), de Céline Sciamma, eu diria que se trata de um tipo de manifesto, um grito de revolta contra a dominação de gênero, uma demonstração das dificuldades próprias às jovens dentro das relações de sexo no momento da adolescência. Esse tipo de filme é bem recebido, pois essa radicalidade encontra eco no público, mas em seguida, para fazer um segundo, um terceiro ou um quarto filme, essas diretoras têm tendência a interiorizar as normas de um cinema mais consensual. O primeiro filme de Céline Sciamma me parece claramente mais radical do que o segundo (Tomboy). Dentro dessa ordem de ideias, poderíamos citar também alguém como Sandrine Veysset, que realizou um primeiro filme bastante forte, Y aura-t-il de la neige à Noël? (Haverá neve no Natal?, 1996), e que depois nunca mais encontrou esse nível de radicalidade. Eu constatei essa atenuação, esse tipo de eufemização das contradições, no trabalho de muitas jovens realizadoras e me pergunto se não se trata do efeito de um sistema que faz com que, para conseguirem dinheiro para fazer um segundo filme (há bastante apoio para a realização de primeiros filmes), para serem aceitas dentro do meio, essas realizadoras concordam, sem necessariamente terem consciência, em colocar um freio sobre os aspectos mais radicais de seu cinema, do ponto de vista das relações sociais de sexo.

AS: E você poderia citar algum realizador, um homem, que tenha feito um filme com outro tipo de olhar sobre as relações de gênero?

GS: Eu gostaria de apresentar um filme, mais do que uma pessoa, pois, estando o cinema sujeito a múltiplas regras e entraves econômicos, culturais, etc., a meu ver, é muito difícil falar de autor de cinema. Para começar, as obras são coletivas; além disso, a mesma pessoa que conseguiu fazer um filme feminista uma vez não logrará necessariamente uma segunda, pois as condições podem não estar reunidas, no plano pessoal, econômico ou cultural. Há quem consiga, mas isso é raro. Eu diria que Jean Grémillon em muitos de seus filmes foi um cineasta feminista; ele mostrava a dominação de gênero e colocava-se em empatia com os dominados, no caso as mulheres. Uma das razões pelas quais ele construiu essas narrativas naquele momento (eu soube disso depois, não sabia no momento da elaboração da minha tese) é o fato de que ele era bissexual. Ele viveu sua bissexualidade como algo extremamente doloroso, pois ela era totalmente inaceitável na sua época (ele nasceu em 1902 e morreu em 1959). Acho que essa ambivalência sexual o ajudou a se identificar com as mulheres, pois ele podia comparar os sofrimentos que vivia devido a sua orientação sexual com aqueles vividos pelas mulheres. O que me impressiona com relação a essa questão da bissexualidade, da homossexualidade ou, digamos, de uma orientação sexual "não conforme" é que, na época em que a homossexualidade masculina era violentamente estigmatizada, ela levava um certo número de homens, no coração do cinema francês, a um olhar de empatia sobre as mulheres, e não somente um olhar fetichista ou de dominação. Certos filmes de Carné, de L'Herbier e de Grémillon testemunharam essa sensibilidade aos sofrimentos das mulheres sob o patriarcado. E justamente algo que nos chocou, a mim e a Noël Burch, ao estudarmos a história do cinema francês, foi que depois que a homossexualidade masculina, dentro dos meios culturais na França, foi não somente aceita, mas valorizada, dando lugar a um tipo de rede, os cineastas que se reivindicam hoje como homossexuais não estão mais em uma posição dominada. Essa nova situação se manifesta por uma misoginia absolutamente aterrorizadora, bem pior do que por parte dos cineastas heterossexuais, no sentido em que seu desprezo pelas mulheres é tão evidente, que elas não fazem parte de seu mundo; eles são absolutamente insensíveis ao que vivem as mulheres. Eu situaria em particular dentro desse registro Patrick Chéreau e François Ozon, que são, a meu ver, bons exemplos atuais do que uma homossexualidade masculina assumida permite expressar no cinema, como nova forma de misoginia. Desse ponto de vista, não há infelizmente nenhum automatismo para que os homens homossexuais se mostrem solidários com as mulheres. A meu ver, no campo cultural francês, os cineastas heterossexuais não estão absolutamente dispostos a ter um olhar crítico sobre as normas masculinas. Mesmo os filmes de mulheres atestam uma enorme indulgência em relação ao comportamento masculino. Essa indulgência se traduz pela utilização massificada da ideia de uma crise da masculinidade. "Oh, os homens não sabem mais quem eles são, coitados!" Resumindo, toda reflexão termina por ter como consequência que o machismo passa, como uma carta no correio. Na França, machismo é confundido com libertinagem (vejam o caso Dominique Strauss-Kahn24 24 Ex-presidente do Fundo Monetário Internacional (FMI) e um dos possíveis candidatos do Partido Socialista à Presidência da República na França nas eleições de 2012, teve que recuar quando acusado de assédio sexual. As eleições foram vencidas por seu colega de partido, François Holande. ). E essa confusão tipicamente francesa faz com que todo olhar crítico sobre o comportamento machista, em particular nas relações de sedução, seja descartado, mesmo pelas mulheres. É por isso que esses homens de comportamento machista podem tranquilamente dizer às mulheres que não aceitam seu comportamento que elas são mal amadas.25 25 A expressão francesa "mal baisées", além da tradução literal "mal beijadas", tem também conotação sexual, ou seja, essas mulheres seriam sexualmente "mal amadas". Com o passar do tempo, isso não mudou. A França é um país particularmente complacente face às normas sexuadas dominantes, sob pretexto do direito à sedução, do direito à libertinagem, etc. Nada incita os homens que fazem filmes hoje a terem um olhar crítico sobre o comportamento masculino.

  • ADELMAN, Miriam; CORRÊA, Amélia S.; RUGGI, Lennita O. (Orgs.). Mulheres, homens, olhares e cenas Curitiba: UFPR, 2011.
  • BURCH, Noël. Práxis do cinema São Paulo: Perspectiva, 2001.
  • BURCH, Noël; SELLIER, Geneviève. La drôle de guerre des sexes du cinéma français: 1930-1956 Paris: Nathan Université, 1996.
  • BURCH, Noël; SELLIER, Geneviève. Le cinéma au prisme des rapports de sexe Paris: Librarie Philosophique J. Vrin, 2009.
  • SELLIER, Geneviève. La Nouvelle Vague: Un cinéma au masculin singulier Paris: CNRS Éditions, 2005.
  • VEIGA, Ana Maria. Cineastas brasileiras em tempos de ditadura: cruzamentos, fugas, especificidades Florianópolis, 2013. 397p. Tese (Doutorado em História) - Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis.
  • VINCENDEAU, Ginette. Star and Stardom in French Cinema London: Continuum, 2000.
  • WOMEN AND FILM. New York, v. 1, n. 5-6, p. 20-34, 1974. Acervo Cinemathèque Française.
  • Estudos de gênero e o cinema francês: entrevista com Geneviève Sellier

    Ana Maria VeigaI; Alberto da SilvaII
  • 1
    Miriam Adelman, Amélia S. Corrêa e Lennita O. Ruggi organizaram o livro
    Mulheres, Homens, Olhares e Cenas, que trata de questões sobre gênero e cinema. José Gatti, Sônia Maluf, Ana Carolina Trovão e Ramayana Lyra também estão entre os autores e autoras que trabalham com o tema. Além da bibliografia, os GTs sobre gênero e cinema são cada vez mais numerosos em encontros como o da Socine e o Seminário Internacional Fazendo Gênero, que acontece periodicamente na Universidade Federal de Santa Catarina.
  • 2
    Tradução de Ana Maria Veiga.
  • 3
    Esta entrevista, realizada em Paris em maio de 2012, é parte da pesquisa para a tese de doutorado intitulada
    Cineastas brasileiras em tempos de ditadura: cruzamentos, fugas, especificidades, defendida por Ana Maria Veiga em 2013 no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Santa Catarina.
  • 4
    Como exemplo podemos citar o clássico
    Práxis do Cinema. São Paulo: Perspectiva, 2001.
  • 5
    A revista estadunidense
    Women and Film já trazia em 1974 (v.1, n. 5-6, p. 20-34) uma entrevista com Burch e a discussão de suas teorias, citando-o como pioneiro dos estudos feministas do cinema em seu país. Acervo da Cinémathèque Française, Bibliothèque du Film, consultado por Ana Maria Veiga em julho de 2012.
  • 6
    SELLIER, 2005.
  • 7
    SELLIER, 2005, p. 5.
  • 8
    SELLIER, 2005, p. 114.
  • 9
    SELLIER, 2005, p. 115.
  • 10
    SELLIER, 2005, p. 173.
  • 11
    BURCH e SELLIER, 1996.
  • 12
    Um dos livros mais conhecidos de Ginette Vincendeau é
    Star and Stardom in French Cinema (London: Continuum, 2000).
  • 13
    BURCH e SELLIER, 1996, p. 100.
  • 14
    BURCH e SELLIER,1996, p. 107.
  • 15
    BURCH e SELLIER,1996, p. 277.
  • 16
    BURCH e SELLIER, 2009.
  • 17
    BURCH e SELLIER, 2009, p. 9-10.
  • 18
    O termo
    professeur não tem até hoje correspondente feminino na língua francesa.
  • 19
    SELLIER, 2012 [1989].
  • 21
    As quartas-feiras são dias facultativos nas creches e escolas maternais francesas, quando as crianças podem ficar em casa ou praticar outras atividades.
  • 20
    Maîtres de conférence são professores/as universitários/as que orientam trabalhos, mas que ainda não atingiram o estatuto de
    professeurs, ou seja, professores titulares em função plena, que orientam trabalhos e dirigem grupos de pesquisa.
  • 22
    Do ex-presidente socialista François Mitterand.
  • 23
    Agnès Varda nasceu na Bélgica, mas é considerada uma autora do cinema francês, pois seus filmes se passam e foram rodados na França, desde o primeiro,
    La Pointe Courte, de 1954.
  • 24
    Ex-presidente do Fundo Monetário Internacional (FMI) e um dos possíveis candidatos do Partido Socialista à Presidência da República na França nas eleições de 2012, teve que recuar quando acusado de assédio sexual. As eleições foram vencidas por seu colega de partido, François Holande.
  • 25
    A expressão francesa "mal baisées", além da tradução literal "mal beijadas", tem também conotação sexual, ou seja, essas mulheres seriam sexualmente "mal amadas".
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      19 Maio 2014
    • Data do Fascículo
      Abr 2014
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