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Ao encontro das queer faces

Meeting The Queer Faces

Resumos

Este artigo analisa os processos de construção poética do projeto "The Queer Face", concebido pela artista visual e pesquisadora Milena Costa. O texto propõe a elaboração de uma espécie de autoteoria, por meio de uma escrita reflexiva, que (re)pensa o eu e perpassa pelas diferentes etapas da criação artística. São apresentados alguns dos percursos e resultados plásticos da experiência artística, os quais contribuem para uma reflexão sobre as relações entre as poéticas visuais e seus diálogos com referenciais das teorias feministas e queer.

queer; construção poética; autoteoria; criação artística


This article analyzes the construction processes on the project The Queer Face, created by the visual artist and researcher Milena Costa. The paper proposes to develop a 'self theory' through a reflective writing, which (re) thinks the self and permeates through the different stages of the artistic creation in question. Some of the results arising from the artistic experience are presented, contributing to a reflection on the relationship between visual poetics and its dialogues with references from feminist and queer theories.

Queer; Poetic Construction; Self Theory; Artistic Creation


Os caminhos das ideias

The ideas I present are never completely mine. They are compiled from a chorus of voices, a story told through other stories, shaped into a speech/text through a tongue that has been twisted into an uneasy conformity.1

Falar do próprio caminho de construção poética visual não é uma tarefa simples, pois envolve o imbricamento das palavras escritas e das imagens que venho realizando enquanto artista. É uma espécie de autoteoria, um exercício reflexivo que busca certa objetividade científica enquanto explora a subjetividade. Ao apresentar Queer Latinidad, Juana María Rodríguez alerta: "Most of this text is not imaginative fiction, but it is a product of my critical imagination".2 2 A maior parte desse texto não é ficção imaginativa, mas sim produto da minha imaginação criativa (RODRÍGUEZ, 2003, p. 2, tradução nossa). Assim, o presente artigo transita nos espaços dos processos de criação e imaginação ao mesmo tempo que dialoga com textos de autores/as como Beatriz Preciado, a qual desafia os limites da escrita por meio da presença da sua experiência pessoal e do questionamento de si. As próximas páginas se estabelecem como um espaço de construção de relações possíveis entre as diversas experiências, referências e problemáticas que me constituem enquanto artista-pesquisadora3 3 Além de artista visual, sou doutoranda em Sociologia (UFPR) e desenvolvo a pesquisa intitulada "Discursos que circulam: os feminismos e o queer na produção de artistas latinx-americanxs". e as construções imagéticas resultantes desse estar no mundo.

O trabalho que norteia este texto é um work in progress chamado The Queer Face. Esse projeto surgiu em 2013, na cidade de Curitiba/PR, amparado por uma série de reflexões pessoais e estéticas que perpassam pelo constante diálogo com referenciais das teorias feministas e queer. É um trabalho aberto, que está acontecendo, ganhando diferentes contornos, relações e caminhos por meio dos processos de realização. É por isso que o considero in progress, sem data para finalização, suscetível a transformações a partir das experiências.

Os caminhos que me levaram à concepção do The Queer Face envolvem rupturas em relação à autoridade da tradição artística e à minha formação em artes visuais - processo semelhante ao que relatam tantos/as outros/as artistas que se identificam com referenciais feministas, como a pioneira Judy Chicago e as contemporâneas Kara Walker e Coco Fusco.4 4 Judy Chicago (1939) é uma artista norte-americana e uma das pioneiras do Feminist Art Movement, da década de 70. Kara Walker (1969) também é norte-americana e desenvolve trabalhos que envolvem debates entre raça/etnia, teoria feminista e escravidão da população negra. Cuco Fusco (1960) é de origem cubana e reside nos Estados Unidos; trabalha sobretudo com performance e debate questões de gênero e relações de poder. Reconhecer esses diálogos não significa necessariamente se afirmar como produtor/a de arte feminista e/ou queer, mas sim que as construções poéticas se relacionam com a cultura, a sociedade e as teorias. De maneira mais objetiva, seria admitir que gênero, assim como as dinâmicas da sexualidade e do desejo,5 5 Richard MISKOLCI, 2009, p. 151. são categorias fundamentais para a compreensão da organização sociocultural.

Nos últimos anos, as poéticas visuais6 6 Segundo Sandra Rey: "A pesquisa em poéticas visuais apóia-se no conjunto de estudos que abordam a obra do ponto de vista de sua instauração, no modo de existência da obra se fazendo. O objetivo da Poiética não se constitui pelo conjunto de efeitos da obra percebida, não é a obra acabada, nem a obra por fazer: é a obra se fazendo" (Sandra REY, 2002, p. 134). passaram a ser centrais no ensino e produção da arte contemporânea. Desde o início da década de 70, é possível observar o declínio dos paradigmas modernista e formalista, calcados na valorização das técnicas e na leitura linear das práticas artísticas "[...] placed on a chronological flow chart where movement follows movement connected by one-way arrows which indicate influence and reaction".7 7 "[...] colocados num fluxo de um quadro cronológico no qual movimento segue movimento, conectados por setas em um único sentido que indicam influência e reação" (Griselda POLLOCK, 2003, p. 121, tradução nossa). Outra característica de ambos os paradigmas está no esforço de a crítica artística a eles atrelada produzir olhares desincorporados que buscam uma suposta neutralidade e universalidade livres de marcadores sociais. Com isso, buscando o reconhecimento, muitos/as artistas produziram, e ainda produzem, para atender às exigências desse olhar.8 8 Charles HARRISON e Paul WOOD, 1998, p. 217. No lugar da neutralidade, a produção artística pós-década de 70 vem enfatizando as particularidades que envolvem os contextos de produção e a diluição das fronteiras entre as técnicas. Desde então, esse processo está se expandido, e os/as artistas são incentivados(as) a colocarem as suas obras em diálogo com referenciais interdisciplinares:

A realização da pesquisa não apenas coloca o artista como um produtor de objetos que lançam sua candidatura ao mundo dos valores artísticos, mas pressupõe que, ao produzi-los, o faz de tal modo que esses objetos são oriundos de um questionamento, delimitando um ponto de vista particular, propondo uma reflexão sobre aspectos da própria arte e da cultura.9

Dessa maneira, é entendido como natural que jovens artistas contemporâneos/as, ao trabalharem com temáticas específicas, abordem conceitos das teorias feministas e queer para aprofundarem suas pesquisas visuais ao mesmo tempo que mencionam como referências históricas os/as participantes do Feminist Art Movement10 10 Durante as décadas de 1970 e 1980, os mecanismos de seleção do mundo das artes foram amplamente criticados e revistos. A tensão entre a representação visual e o artista corporificado e sexualizado invadiu as academias de arte nos Estados Unidos e na Europa e refletiu nas práticas das principais instituições artísticas do mundo ocidental. Artistas como as estadunidenses Martha Rosler e Carolee Schneemann, impulsionadas pela expansão dos movimentos feministas, questionavam a pretensa neutralidade do mundo da arte, a exclusão das mulheres dos cânones da história da arte, assim como a reprodução dessa exclusão por intermédio do ensino da arte e das instituições artísticas. Esse movimento ganhou força e destaque sobretudo nos Estados Unidos e ficou conhecido anos mais tarde como Feminist Art Movement. e/ou artistas em diálogo com as teorias feministas e queer. Entretanto, o que se percebe é uma grande resistência em reconhecer a relevância dessas áreas do conhecimento, como se ele implicasse a limitação do alcance do/a artista em vez de expandi-lo.

Ao mesmo tempo que a arte contemporânea sugere a amplificação dos limites da prática artística por meio de conversas com outras áreas, legitima frequentemente certas reflexões em detrimento de outras, o que pode limitar as possiblidades de diálogo e simultaneamente ocorrer o risco de se realizar uma abordagem instrumentalizada da produção intelectual. Cuco Fusco, artista norte-americana, negra, de origem cubana e feminista, analisou brevemente essa questão durante uma entrevista: "My sense is that many artists see intellectualism as detrimental or even anathema to their imaginative or creative capacities [...]. To a degree, this is attributable to the myths about artistic creation taking place in a vacuum".11 11 Minha sensação é que muitos artistas percebem o intelectualismo como algo prejudicial ou até mesmo um anátema para as suas capacidades criativas ou imaginativas [...]. Até certo ponto, isso pode ser atribuído aos mitos que defendem que a criação artística acontece em um vácuo (Collete COPELAND, 2008, p. 4, tradução nossa).

No caso específico do Brasil, além das questões mencionadas, é necessário destacar as dificuldades que as produções teóricas sobre arte em diálogo com as teorias feministas e queer ainda encontram para adentrar nas faculdades de arte: desconhecimento teórico, baixa produção acadêmica na área, falta de traduções de publicações, poucos/as professores/as compartilhando dessas questões, entre outras. Por esses motivos, encontrei dificuldades em me relacionar com pares e reconhecer a minha produção artística como integrante desse contexto pouco visibilizado.

Durante os anos em que estudei na Escola de Música e Belas Artes do Paraná (2000 a 2003), os parâmetros modernistas e formalistas ainda eram bastante presentes no ambiente acadêmico, e as referências pós-modernas em arte - crítica da política da representação, mito da originalidade e as grandes narrativas históricas - eram escassas, compartilhadas de maneira restrita por uma minoria de professores/as. A história da arte com a qual tive contato praticamente desconhecia a existência de artistas mulheres, artistas não europeus, experiências latino-americanas, bem como a representação de identidades e sexualidades não hegemônicas.

Naquela época, minha produção explorava a imagem das mulheres na mídia e o corpo como objeto de desejo, mas a falta de referências e abertura no espaço de aprendizagem limitou as possibilidades de continuidade, assim como o amadurecimento dessa série de trabalhos. Conforme bem apontaram Paul Wood e Charles Harrison, "paradigmas dominantes marginalizam outros meios de fazer as coisas".12 12 HARRISON e WOOD, 1998, p. 236.

O término dos estudos formais deu início a uma busca por possíveis pares, textos, relatos, vídeos, entrevistas sobre e com artistas que pudessem compartilhar abordagens poéticas que incorporassem ideias menos eurocêntricas, binárias e formalistas. Paralelamente realizei diversos projetos de viagem ao redor do mundo (escalonados com trabalho e estudos), por meio dos quais tive a oportunidade de conhecer e fotografar mais de 25 países. Nesses caminhos, foram visitadas regiões da América Latina, Sul da Europa e Norte da África. Estava interessada em refletir sobre a/s identidade/s latina/s e os movimentos sociais que vêm questionando e propondo alternativas aos modos de vida das economias de mercado, às políticas de homogeneização e à identidade nacional.

O deslocamento foi uma das maneiras que encontrei de provocar novos encontros, uma busca em desestabilizar meu olhar, desenvolver pontos de vista múltiplos, criar novas referências e me (re)posicionar no mundo: "[...] o nômade constrói a imagem do mundo à medida que o percorre, enquanto o sedentário se coloca no centro e a partir daí olha o universo à sua volta, em círculos concêntricos e hierarquizados".13 13 Mauro BRUSCHI e Claudia MAGNI, 2010, p. 178.

Durante esses percursos nômades, nos quais incluo não apenas os deslocamentos físicos, mas também a troca de textos, leituras em diferentes línguas e o retorno para a academia na condição de doutoranda em Sociologia, encontrei diversos/as artistas, curadores/as e produtores/as de gerações e nacionalidades múltiplas explorando discursos duais: "para uma história além da arte e para uma história da arte".14 14 HARRISON e WOOD, 1998, p. 251. Dessa maneira, percebi a possibilidade de forjar laços de afinidade, comunidade e identidade para além de territorialidades fixas.

Os escritos de Richard Meyer, Catherine Lord, J. Jack Halberstam, Judith Butler, Beatriz Preciado, Griselda Pollock, Cornelia Butler, Guerrilha Girls,15 15 Meyer e Lord realizam, em Art & Queer Culture (2013), uma pesquisa arqueológica e com isso apresentam a existência de uma cultura queer para além das cronologias lineares. Halberstam propõe análises que, além de partirem de uma perspectiva queer, refutam as diferenças entre alta cultura e cultura popular. Judith Butler apresenta uma reflexão sobre os processos generificados e a performance de gênero. Pollock e C. Butler proporcionam perspectivas históricas e crítica da arte em diálogo com as teorias feministas e com isso descentralizam o sujeito, o conceito de artista e de espectador. As Guerrilha Girls propõem uma militância artística que pode ser percebida como uma obra em si mesma, denunciam as relações desiguais no mundo da arte e, com essas ações, estremecem os cânones estabelecidos. entre outros/as, contribuíram para o reconhecimento de produções visuais que contestam os cânones artísticos oficiais, a seletividade das instituições artísticas e as grandes narrativas da história da arte. Nesse terreno, pude reconhecer a minha produção, encontrar conceitos, refletir sobre valores estéticos e, acima de tudo, pensar a política das representações.

Os processos de construção do The Queer Face

O projeto The Queer Face surgiu a partir de reflexões sobre as sexualidades, identidades de gênero, retratos, imagem e fotografia. O objetivo principal é retratar pessoas que desafiem as "normalizações e determinações de subjetivações"16 16 Beatriz PRECIADO, 2011, p. 12. e possuam uma atitude crítica em relação às tensões entre os movimentos de territorialização e desterritorialização17 17 Gilles DELEUZE e Félix GUATTARI, 2004. de suas identidades e corpos. Escolhi utilizar o termo queer por entender, no mesmo sentido em que o emprega J. Jack Halberstam, que ele possibilita a acomodação de diferentes práticas e crítica à heterossexualidade compulsória. Por esse caminho, poderia abarcar diferentes práticas de resistência e transgressão18 18 J. Jack HALBERSTAM, 1998. dos sujeitos retratados.

Figura 1
Hapoza Dan

Desde o início do desenvolvimento desse projeto, uma das minhas maiores preocupações foi a de não delimitar a participação das pessoas, ou seja, percebi que, caso escolhesse diretamente os/as participantes, estaria definindo quem é queer ou não e com isso tiraria do sujeito uma das possibilidades que acredito ser das mais importantes: a de se autodefinir. Poderia dizer que essa também foi uma atitude político-artística no sentido que relata Beatriz Preciado e Javier Sáez ao comentarem o trabalho de Judith Butler: "para Butler tomar la palabra y autodefinirse como queer supone instalarse en las fallas del sistema heterocentrado, es invertir la fuerza performativa con la que el lenguaje sanciona la diferencia".19 19 Para Butler, tomar a palavra e se autodefinir como queer pressupõe se instalar nas falhas do sistema heterocêntrico, é inverter a força performativa com a qual a linguagem ratifica a diferença (Beatriz PRECIADO e Javier SÁEZ, 1997, p. 13, tradução nossa).

Com o intuito de preservar esse elemento de subversão, procurei criar mecanismos para que o projeto fosse encontrado espontaneamente por possíveis interessados/as. Criei um Tumblr e uma fan page no Facebook,20 20 O Tumblr é uma espécie de rede social que reúne diversos microblogs (diários de rede) que permitem atualizações rápidas e descomplicadas. Uma fan page consiste em uma página na rede social Facebook destinada a empreendimentos culturais, empresas, celebridades, etc.; funciona como uma espécie de perfil profissional e não pessoal. utilizei o microblog e a rede social como meios de comunicação com as/os participantes. Nesses espaços, descrevi o The Queer Face e compartilhei texto de apresentação, o qual dizia:

O projeto consiste na realização de retratos de pessoas que desafiam as relações cisgêneras heteronormativas em nossa sociedade seja por suas orientações sexuais, identidade e/ou expressão de gênero fora do binômio oficial masculino/feminino, bem como a resistência em se ajustarem a padrões estéticos e estilos de vida tradicionais. Sendo assim, Queer Face percebe o conceito de queer para além das fronteiras das sexualidades ao reconhecer a regularização dos corpos em outras esferas da vida social.21

Mesmo com a alta velocidade que as informações se propagam na rede, para iniciar o projeto, foi necessário realizar alguns convites para participantes em potencial. Nesses casos, o texto de apresentação foi enviado para averiguar a identificação da pessoa com a proposta. Na maioria dos casos, a resposta foi positiva, mas algumas pessoas que eu havia identificado como queer afirmaram não o ser e consequentemente não quiseram ser retratadas.

No momento de agendamento das sessões fotográficas, foi requisitado também um texto escrito pelos/as participantes. As instruções enviadas eram bem abertas, apenas dizendo que deveria ser escrito algo sobre a identidade pessoal e/ou os motivos por se considerarem queer. O número de linhas, o tipo de suporte e o formato do texto (poesia, música, carta, entre outros) eram definidos pelo/a participante.

A ideia de incorporar esse texto ao projeto teve a intenção de abrir um canal de expressão para além da identidade visual e com isso possibilitar novas relações no momento de exposição e recepção das obras. Uma das principais questões que busquei foi a possibilidade de falha entre a expectativa do espectador ao se deparar com o outro da fotografia, sua busca em definir tanto o outro como o texto escrito pela própria pessoa representada. Dessa maneira, a impressão sobre a imagem não pode ser fixada, pois o texto escrito abre novamente a reflexão sobre a imagem, criando um processo reflexivo capaz de manter a obra aberta.

A partir das definições mencionadas, foi realizada a primeira etapa do The Queer Face, com a participação de sete pessoas. Sem financiamento e estrutura, a solução encontrada foi montar um estúdio provisório no quarto de visitas do apartamento em que vivo e, consequentemente, receber muitas pessoas até então desconhecidas na minha residência. Os resultados da primeira etapa de trabalho foram bastante positivos, e a privacidade do ambiente residencial proporcionou boas conversas, que contribuíram para o amadurecimento da proposta.

Algumas fotografias do processo de criação (as quais não correspondem à edição final) foram postadas nas redes sociais, e sua circulação/compartilhamento pelos/as próprios/as participantes contribuiu para a difusão do projeto. Dessa maneira, passei a receber uma grande quantidade de mensagens de pessoas de diversas partes do país interessadas em participar. Por conta da repercussão positiva, ainda enfrentando as restrições causadas pela improvisação, optei por realizar uma segunda etapa do The Queer Face um mês após a realização das primeiras imagens.

Durante a segunda etapa, um/a dos/as participantes me perguntou se poderia publicar um artigo sobre o projeto na revista digital em que trabalhava, chamada Revista Lado A. Fiquei muito grata ao convite, e o texto gerou uma grande repercussão nacional. A página do projeto ganhou uma série de seguidores, e pessoas de todo o país passaram a conversar comigo e a demonstrar apoio. Por conta desse crescimento, a terceira etapa do The Queer Face teria que ser em um local público, com mais estrutura, capaz de receber um maior número de pessoas.

Em conversa com a ativista e colega de universidade Letícia Lanz (Figura 2) sobre as possibilidades de desdobramento do projeto, foi sugerida por ela a utilização da sede do Grupo Transgente.22 22 O Grupo Transgente é coordenado por Letícia Lanz. Em sua página de Facebook (facebook.com/groups/transgente), Letícia define o movimento como: "[...] um grupo para Gente em Transformação. Gente fora das medidas, dos processos, dos sistemas". Letícia contribuiu exponencialmente com dicas para a reformulação do texto de apresentação, divulgação, além de ter participado de uma sessão de fotos.

Figura 2
Letícia Lanz

O retrato como reconhecimento

If I am a certain gender, will I still be regarded as part of the human? Will the "human" expand to include me in its reach? If I desire in certain ways, will I be able to live? Will there be a place for my life, and will it be recognizable to the others upon whom I depend for social existence?

23 23 Se eu for de um gênero específico, ainda serei percebidx como parte da humanidade? O conceito de 'humano' será expandido para me incluir no seu alcance? Se eu desejar de algumas maneiras, estarei aptx para viver? Haverá um lugar para a minha vida, e será ela reconhecida pelxs outrxs, dxs quais eu dependo para existir socialmente? (Judith BUTLER, 2004, p. 2-3, tradução nossa).

Uma das questões norteadoras do The Queer Face que gostaria de destacar se refere ao retrato fotográfico enquanto gênero artístico. O retrato é uma imagem da face de um sujeito, criada por um/a artista e/ou fotógrafo/a, a qual lhe confere a possibilidade de ser mais que corpo físico. Por isso, a representação da face confere existência histórico-social ao/à retratado/a, pois permite que ele/ela exista mesmo após a sua morte.

O retrato, ao longo da tradição artística, é um estilo que confere reconhecimento e existência social a certos indivíduos. Um breve flerte com a sua história revela que poucos/as tinham contato com uma imagem de si mesmos, a qual tinha altos custos e era produzida por artistas habilidosos. Portanto, os retratos pictóricos eram destinados a integrantes da monarquia, da corte e, em outros períodos, aos comerciantes e à burguesia. Essa condição começou a ser modificada apenas a partir do final do século XIX, com o advento da fotografia, técnica que inicialmente respeitou as convenções e composições da pintura para então explorar suas particularidades e ampliar o acesso às imagens pessoais.

Mesmo possibilitando a popularização das imagens, o retrato fotográfico continuou a seguir regras de composição da pintura e das artes tradicionais, aquilo que Annateresa Fabris chama de "modalidades de representação (formato, pose, atributos, entre outros)".24 24 Annateresa FABRIS, 2004, p. 16. Esse é o caso do cartão de visitas, o qual consistia em um retrato impresso contendo informações de contato do/a retratado/a. Fabris afirma que essa modalidade criou uma fórmula tipológica da burguesia ascendente na qual a composição da imagem procurava evidenciar a origem social dos sujeitos por meio das vestimentas, postura corporal e objetos de cena. Diversos outros exemplos nos quais posso relacionar o retrato à criação de tipos sociais poderiam ser mencionados, onde representação social e artística se relacionam; entretanto, por conta da restrição de espaço, avanço e, com isso, destaco a hipótese central de Fabris em Identidades virtuais: uma leitura do retrato (2004):

A identidade do retrato fotográfico é uma identidade construída de acordo com normas sociais precisas. Nela se assenta a configuração de um eu precário e ficcional - mesmo em seus usos mais normalizados -, que permite estabelecer um continuum entre o século XIX e o século XX, entre uma modernidade confiante na ideologia do progresso e uma modernidade problematizada pela construção pós-moderna.26

Tenho interesse especial nos retratos produzidos a partir da década de 60 do século XX, no contexto das problematizações pós-modernas, os quais colocaram em xeque as concepções de belo expandindo a gama das pessoas "dignas" de serem fotografadas, bem como o reconhecimento de realidades múltiplas no interior de uma mesma cultura e sociedade. Nesse sentido, artistas como Diane Arbus, Larry Clark e Nan Goldin27 27 Os/as artistas citados trabalham com a fotografia como suporte e rompem paradigmas ao problematizarem a representação das sexualidades e identidades. contribuíram para a construção do meu olhar. Ao mesmo tempo, Andy Warhol, o qual afirmava, em seus trabalhos, que todos são celebridades, oferece uma abordagem que utiliza a glamourização dos retratados para incluir pessoas de diferentes origens socioculturais em um rol de seletos, frequentado apenas por estrelas. Por esses caminhos que circula The Queer Face, entre sujeitos e narrativas de si pouco visibilizadas e a ação de celebra-las em suas diversidades.

Questiono as possibilidades de uma face natural, compreendida como real, portanto verdadeira. Procuro explorar como as pessoas manipulam e apresentam as suas faces, ficções para um mundo que insiste em classificá-las. Por quais mecanismos essas faces resistem em serem assimiladas; quais são os indícios de que são complacentes com um modelo determinado? O que seria uma face queer?

Expor publicamente faces de pessoas que se posicionam enquanto queers coloca em contato diferentes identidades. É uma busca de criar um espaço de comunicação no qual o reconhecimento de si no outro ou a rejeição do outro em si provocam reações e possibilidades de deslocamento. Conforme as palavras de Judith Butler: "Let's face it. We're undone by each other. And if we're not, we're missing something" 28 28 Vamos encarar. Nós somos desfeitos uns pelos outros. E, se assim não formos, estamos perdendo alguma coisa (BUTLER, 2004, p. 23, tradução nossa). .

Considerações Finais

Conforme mencionado, o The Queer Face é um projeto aberto, e novas etapas serão realizadas. Parcerias estão sendo construídas, para que sessões fotográficas ocorram em outras cidades brasileiras. Os processos de construção desse projeto demonstram que a produção artístico-fotográfica faz parte do mundo e não pode ser percebida estritamente por meio de conceitos estéticos e formais. Não quero dizer que estas sejam dimensões secundárias, mas sim que elas implicam também decisões políticas, pois "[...] a fotografia pode ser tanto um álibi quanto uma visão engajada na desconstrução dos mecanismos de poder".29 29 Annateresa FABRIS, 2010, p. 271. Em The Queer Face, a fotografia surge justamente como processo de desconstrução/revelação de mecanismos de poder que agem sob os corpos na forma das convenções de gênero e sexualidades normativas.

Como artista, desenvolver um projeto como esse me possibilita conhecimentos e criações variadas, tanto do ponto de vista plástico e estético quanto subjetivo no sentido reflexivo de transformação pessoal proporcionada pelo contato com o outro. Esse é um processo intenso, pois as pessoas que participam dos ensaios fotográficos também realizam uma série de considerações pessoais antes de se posicionarem de frente para mim e a câmera. É um momento em que as performatividades de gênero e os processos generificados30 30 Judith BUTLER, 2008. são de alguma maneira racionalizados, estudados e revelados: a escolha em se posicionar para a câmera, as instruções dadas pela artista, o corpo que se organiza para essa situação.

Em uma sociedade dominada pela cultura da imagem, The Queer Face propõe pensar as performatividades a partir da reflexividade, eludindo possibilidades de quebras com as regras normativas dos gêneros. Assumir o corpo performático, os quadros de representação das identidades construídos em relação e/ou contra as normas de gênero, é afirmar uma epistemologia feminista/queer e encarar a produção artística desde uma posição questionadora das grandes narrativas da história da arte; é propor uma outra história, um circuito que trabalhe com uma lógica engajada que reconhece, nos mecanismos de construção estética, não apenas ações formais, mas escolhas políticas. Nesse reconhecimento, reside uma possibilidade de ação que decide quem/o que deve ou não ser representado e, portanto, existir enquanto imagem. Cabe ao/à artista essa decisão, e a minha é a de trabalhar no sentido de confirmar as autonomeações e, com isso, potencializar uma experiência artística reflexiva e transformadora ao ponto de não existir apenas o objeto do meu olhar, mas sobretudo a relação proporcionada por esses encontros.

  • BRUSCHI, Mauro; MAGNI, Claudia. "Em busca do nomadismo da imagem no trânsito entre Antropologia e Arte". In: SAMAIN, Etienne. O fotográfico. São Paulo: SESC, 2010. p. 177-189.
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  • RODRÍGUEZ, Juana María. Queer latinidade: identity practices, discursive spaces. Nova Iorque: New York University Press, 2003
  • 1
    As ideias que apresento não são completamente minhas. Elas são um conjunto de coro de vozes, uma história contada mediante outras histórias, moldada em um discurso/texto por meio de uma língua que foi retorcida em uma conformidade inquieta (Juana María RODRÍGUEZ, 2003, p. 1, tradução nossa).
  • 2
    A maior parte desse texto não é ficção imaginativa, mas sim produto da minha imaginação criativa (RODRÍGUEZ, 2003, p. 2, tradução nossa).
  • 3
    Além de artista visual, sou doutoranda em Sociologia (UFPR) e desenvolvo a pesquisa intitulada "Discursos que circulam: os feminismos e o queer na produção de artistas latinx-americanxs".
  • 4
    Judy Chicago (1939) é uma artista norte-americana e uma das pioneiras do Feminist Art Movement, da década de 70. Kara Walker (1969) também é norte-americana e desenvolve trabalhos que envolvem debates entre raça/etnia, teoria feminista e escravidão da população negra. Cuco Fusco (1960) é de origem cubana e reside nos Estados Unidos; trabalha sobretudo com performance e debate questões de gênero e relações de poder.
  • 5
    Richard MISKOLCI, 2009, p. 151.
  • 6
    Segundo Sandra Rey: "A pesquisa em poéticas visuais apóia-se no conjunto de estudos que abordam a obra do ponto de vista de sua instauração, no modo de existência da obra se fazendo. O objetivo da Poiética não se constitui pelo conjunto de efeitos da obra percebida, não é a obra acabada, nem a obra por fazer: é a obra se fazendo" (Sandra REY, 2002, p. 134).
  • 7
    "[...] colocados num fluxo de um quadro cronológico no qual movimento segue movimento, conectados por setas em um único sentido que indicam influência e reação" (Griselda POLLOCK, 2003, p. 121, tradução nossa).
  • 8
    Charles HARRISON e Paul WOOD, 1998, p. 217.
  • 9
    REY, 2002, p. 127.
  • 10
    Durante as décadas de 1970 e 1980, os mecanismos de seleção do mundo das artes foram amplamente criticados e revistos. A tensão entre a representação visual e o artista corporificado e sexualizado invadiu as academias de arte nos Estados Unidos e na Europa e refletiu nas práticas das principais instituições artísticas do mundo ocidental. Artistas como as estadunidenses Martha Rosler e Carolee Schneemann, impulsionadas pela expansão dos movimentos feministas, questionavam a pretensa neutralidade do mundo da arte, a exclusão das mulheres dos cânones da história da arte, assim como a reprodução dessa exclusão por intermédio do ensino da arte e das instituições artísticas. Esse movimento ganhou força e destaque sobretudo nos Estados Unidos e ficou conhecido anos mais tarde como Feminist Art Movement.
  • 11
    Minha sensação é que muitos artistas percebem o intelectualismo como algo prejudicial ou até mesmo um anátema para as suas capacidades criativas ou imaginativas [...]. Até certo ponto, isso pode ser atribuído aos mitos que defendem que a criação artística acontece em um vácuo (Collete COPELAND, 2008, p. 4, tradução nossa).
  • 12
    HARRISON e WOOD, 1998, p. 236.
  • 13
    Mauro BRUSCHI e Claudia MAGNI, 2010, p. 178.
  • 14
    HARRISON e WOOD, 1998, p. 251.
  • 15
    Meyer e Lord realizam, em Art & Queer Culture (2013), uma pesquisa arqueológica e com isso apresentam a existência de uma cultura queer para além das cronologias lineares. Halberstam propõe análises que, além de partirem de uma perspectiva queer, refutam as diferenças entre alta cultura e cultura popular. Judith Butler apresenta uma reflexão sobre os processos generificados e a performance de gênero. Pollock e C. Butler proporcionam perspectivas históricas e crítica da arte em diálogo com as teorias feministas e com isso descentralizam o sujeito, o conceito de artista e de espectador. As Guerrilha Girls propõem uma militância artística que pode ser percebida como uma obra em si mesma, denunciam as relações desiguais no mundo da arte e, com essas ações, estremecem os cânones estabelecidos.
  • 16
    Beatriz PRECIADO, 2011, p. 12.
  • 17
    Gilles DELEUZE e Félix GUATTARI, 2004.
  • 18
    J. Jack HALBERSTAM, 1998.
  • 19
    Para Butler, tomar a palavra e se autodefinir como queer pressupõe se instalar nas falhas do sistema heterocêntrico, é inverter a força performativa com a qual a linguagem ratifica a diferença (Beatriz PRECIADO e Javier SÁEZ, 1997, p. 13, tradução nossa).
  • 20
    O Tumblr é uma espécie de rede social que reúne diversos microblogs (diários de rede) que permitem atualizações rápidas e descomplicadas. Uma fan page consiste em uma página na rede social Facebook destinada a empreendimentos culturais, empresas, celebridades, etc.; funciona como uma espécie de perfil profissional e não pessoal.
  • 21
    O texto completo pode ser encontrado em thequeerface.tumblr.com.
  • 22
    O Grupo Transgente é coordenado por Letícia Lanz. Em sua página de Facebook (facebook.com/groups/transgente), Letícia define o movimento como: "[...] um grupo para Gente em Transformação. Gente fora das medidas, dos processos, dos sistemas".
  • 23
    Se eu for de um gênero específico, ainda serei percebidx como parte da humanidade? O conceito de 'humano' será expandido para me incluir no seu alcance? Se eu desejar de algumas maneiras, estarei aptx para viver? Haverá um lugar para a minha vida, e será ela reconhecida pelxs outrxs, dxs quais eu dependo para existir socialmente? (Judith BUTLER, 2004, p. 2-3, tradução nossa).
  • 24
    Annateresa FABRIS, 2004, p. 16.
  • 25
    FABRIS, 2004.
  • 26
    FABRIS, 2004, p. 55.
  • 27
    Os/as artistas citados trabalham com a fotografia como suporte e rompem paradigmas ao problematizarem a representação das sexualidades e identidades.
  • 28
    Vamos encarar. Nós somos desfeitos uns pelos outros. E, se assim não formos, estamos perdendo alguma coisa (BUTLER, 2004, p. 23, tradução nossa).
  • 29
    Annateresa FABRIS, 2010, p. 271.
  • 30
    Judith BUTLER, 2008.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Apr 2015

Histórico

  • Recebido
    Out 2014
  • Aceito
    Nov 2014
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