Open-access Práticas feministas na tradução de teoria

Feminist Practices in Theory Translation

Prácticas feministas en la traducción de la teoría

Resumo:

O grupo de pesquisa Textos Fundamentais em Tradução (Key Texts in Translation - KiT) traduz teoria da tradução e as atividades preveem práticas feministas, desde a escolha dos textos até o modo de lidar com eles intratextualmente. A proposta é demonstrar escolhas de textos representativos para os Estudos da Tradução Feminista e práticas intratextuais à luz de teorias feministas da tradução. Assim, o grupo inclui a tradução de textos teóricos produzidos por mulheres, pessoas não brancas do Sul Global e/ou discussões de tradução feminista. As práticas são observadas pelas estratégias de tradução feminista de Luise von Flotow: suplemento, prefácios e notas de rodapé, e “sequestro”, através de adequações de gênero, visibilidade e a “feminização” do texto em práticas mais intervencionistas que quebram convenções culturais da língua portuguesa e de gêneros textuais acadêmicos que costumam apagar as mulheres.

Palavras-chave:
tradução de teoria; tradução feminista; visibilidade; conteúdo; adequações de gênero

Abstract:

The Key Texts in Translation (KiT) research group translates translation theory and its activities include feminist practices, from the choice of texts to the way they are handled intratextually. The purpose is to demonstrate the choice of representative texts for Feminist Translation Studies and intratextual practices in light of feminist translation theories. The group includes translation of theoretical texts produced by women, people of colour and from the Global South and/or on feminist translation discussions. Intratextual practices can be observed through the feminist translation strategies listed by Luise von Flotow: supplements, prefaces and footnotes, and hijacking through gender adjustments, visibility of female translators and the “feminization” of texts in more interventionist practices that break Portuguese cultural and academic conventions that tend to erase women.

Keywords:
Theory translation; feminist translation; visibility; content; gender adequacies

Resumen:

El grupo de investigación Key Texts in Translation (KiT) traduce teoría de traducción y las actividades prevén prácticas feministas, desde la elección de los textos hasta la forma de abordarlos intratextualmente. La propuesta es demostrar opciones de textos representativos para los estudios de traducción feministas y las prácticas intratextuales a la luz de las teorías de traducción feministas. Así, el grupo incluye la traducción de textos teóricos producidos por mujeres, personas del Sur Global y/o discusiones sobre traducción feminista. Las prácticas se pueden observar por estrategias feministas de traducción de Luise von Flotow: suplemento, prefacios y notas a pie de página, y “secuestro” (hijacking), a través de ajustes de género, visibilidad y la “feminización” del texto en prácticas intervencionistas que rompem las convenciones culturales de la lengua portuguesa y de los géneros textuales académicos que tienden a borrar a las mujeres.

Palabras clave:
traducción de teoría; traducción feminista; visibilidad; contenidos; ajustes de género

Introdução

O grupo de pesquisa Textos Fundamentais em Tradução (Key Texts in Translation - KiT), do Instituto de Letras da Universidade Federal da Bahia, traduz teoria da tradução em uma abordagem pedagógica e colaborativa, com o intuito de tornar textos estrangeiros acessíveis através da língua portuguesa. O projeto atual, intitulado “Metatradução como método pedagógico para a formação de tradutores/as”, conta com uma professora e dez estudantes de graduação e pós-graduação em Letras. Durante três anos, traduzimos coletivamente e colaborativamente sete textos do inglês para o português brasileiro. Desses, seis foram artigos publicados em periódicos estrangeiros em acesso aberto e um foi o roteiro de uma palestra cedido para ser publicado como artigo.1

A proposta do projeto é formar tradutoras/es por meio de metarreflexão e colaboração. Ao seguirmos a filosofia de uma pedagogia crítica (Paulo Freire, 2021) onde professoras/es são estudantes e estudantes são professoras/es, entendemos que cada indivíduo é um universo de experiências e conhecimentos. Nesse pensamento, a colaboração é feita através da troca de saberes e é base fundamental em nossas atividades tradutórias. Isso a partir de um projeto que envolve situações reais (Marileide Esqueda; Cecília Franco Morais; Gabriel Albuquerque Ferreira, 2023) onde o grupo de aprendizes se engaja em questões éticas de responsabilidade, sabendo que os textos traduzidos serão publicados e, possivelmente, lidos, usados e criticados.

Dentre as nossas abordagens, também adotamos estratégias feministas de tradução. Nosso objetivo, nesse artigo, portanto, é apresentar especificamente essas estratégias. Elas vão desde a seleção dos textos a serem traduzidos até o modo de lidar com eles intratextualmente. Para isso, nos baseamos em teorias feministas sobre produção científica e linguagem inclusiva, bem como em teorias de tradução com vieses feministas e decoloniais.

Na seção seguinte, discutimos representatividade acadêmica em relação a gênero, raça e fatores geopolíticos, e o papel da tradução nesse universo para, então, adentrarmos em algumas questões que influenciaram a decisão da seleção de textos a serem traduzidos pelo grupo de pesquisa. Após essa discussão, abordamos questões intratextuais de estratégias feministas de tradução baseadas nas categorias de tradução feminista de Luise von Flotow (2021 [1991]), conforme a tradução de Ofir Bergemann de Aguiar e Lilian Virginia Porto - suplementação, notas e prefácios e “sequestro” (hijacking) - aplicadas à nossa prática. Para ilustrar melhor a discussão, apresentaremos uma série de exemplos comentados, extraídos do nosso corpus de trabalho. Por fim, encerraremos o artigo argumentando que práticas feministas de tradução são viáveis em textos científicos como mais uma tentativa de “desmasculinizar” a ciência.

Representatividade e escolhas

Não é novidade dizer que a produção acadêmica é (ou parece majoritariamente ser) masculina. É um quadro que vem certamente mudando desde o século XX, com grandes avanços da participação de mulheres na pesquisa, na docência e no corpo discente, com imensa representatividade, sobretudo, nas ciências humanas, mas também com o crescimento notável dentro das ciências exatas e biológicas, como argumentam, por exemplo, Lourdes Bandeira (2008) e Sandra Nodari (2021). O fato de a ciência “parecer” (ou ser) masculina aparece principalmente em dados sobre a predominância de homens brancos em citações e em bolsas de produtividade no Brasil, como exemplifica a crítica Geisa Müller de Campo Ribeiro (2019). Além disso, e de forma um pouco mais subjetiva, o que nos interessa aqui, particularmente, são os universalismos que, por muito tempo, ditaram como a ciência deve ser conduzida.

Bandeira (2008) discute as contribuições da crítica feminista à ciência. Hoje podemos pensar que não há mais um sujeito universal, tanto para o eu masculino como para a individualidade feminina, e esse é o ponto central da reconfiguração do mundo através das relações sociais, cognitivas, éticas e políticas entre seres sociais e suas representações de significado do mundo. Baseada em citações de Ludmilla Jordanova, a autora percebe que a incorporação do conceito relacional de gênero na sua historicidade, olhando especificamente para as relações de poder e hierarquia entre os sexos, foi fundamental para a consolidação de uma categoria analítica e de transformações das estruturas sociais. Assim, a crítica feminista rejeitou os elementos fundadores da ciência no campo da teoria social na tradição ocidental que naturalizava a inferioridade e a condição monolítica das mulheres na divisão sexual do trabalho.

Para a crítica feminista, qualquer forma de ciência que seja considerada ou proposta como universal deve ser duramente criticada, uma vez que todas as categorias pretensamente universais acabam por fixar parâmetros permanentes, inclusive de poder (Bandeira, 2008, p. 213).

Bandeira apoia-se na reflexão de Thomas Kuhn em relação à mudança de paradigma na teoria do conhecimento que, tradicionalmente, caracteriza-se pela aplicação de modelos existentes e reconhecidos pela comunidade científica (em outras palavras, homens que se associam a um mesmo paradigma). Não obstante, existem momentos na história em que é possível romper com paradigmas existentes através de diferentes modos de pensar e da incorporação de novos atores sociais e dimensões das relações de poder. O reconhecimento dos sujeitos sexuados, etnizados, racializados e situados na sua representação epistêmica configura outra construção da pesquisa e reflexão nas Ciências Sociais, emergindo, nesse sentido, novos paradigmas à produção de conhecimento e novos campos de saber (Bandeira, 2008). Por fim, a autora conclui que

[a] crítica feminista buscou eliminar a condição de subordinação das mulheres no tocante ao seu pertencimento ao campo das práticas científicas no que diz respeito às diversas formas de opressão, nem sempre explícitas, sobre a capacidade feminina, suas reflexões e pontos de vistas (Bandeira, 2008, p. 223).

A crítica sobre a participação das mulheres nas produções científicas é apoiada e afunilada por Geisa Müller de Campos Ribeiro (2019) quando incorpora nesse discurso a invisibilidade de mulheres negras para deslegitimar as formas de poder, dominação e violência. Em uma visão foucaultiana sobre o “exercício do biopoder” (Campos Ribeiro, 2019, p. 28), a autora entende que o fazer ciência está entrelaçado pelo saber, mas também pelo poder; entre a verdade, mas também entre a dominação. Isso é observável na própria linguagem androcêntrica e universal da racionalidade, objetividade e “neutralidade” científica para garantir a veracidade do conhecimento e instaurar padrões de normatividade, normalmente excludentes, pois a história mostra que “[...] quem possui privilégio social possui privilégio epistêmico” (Campos Ribeiro, 2019, p. 33).

Além disso, as relações de poder da produção científica podem ser vistas por diferentes ângulos como relações de gênero, raciais e, certamente, geopolíticas. Dentro do sistema capitalista que acompanha os “fluxos globais do dinheiro”, Claudia de Lima Costa (2010, p. 45) observa que o “fluxo das publicações acadêmicas” parte de diversos paradigmas interpretativos, sejam eles neoliberais, marxistas, pós-estruturalistas, feministas, decoloniais etc. A questão, segundo Costa, recai sobre o que intelectuais do hemisfério norte consomem em relação a intelectuais do hemisfério sul, já que a tendência parece estar em estudos que compartilham das suas próprias perspectivas analíticas e ideológicas.

Assim, temos um processo de inclusão e exclusão que é parte de outro procedimento mais amplo de controle do conhecimento - o qual também está articulado a debates acadêmicos hegemônicos influenciados/condicionados pelas circunstâncias políticas das instituições e dos países nos quais estão imersos. Precisamos aqui traçar as redes complexas que ligam centros de estudos no sul e no norte. Não há mais a possibilidade de encontrarmos periferias não contaminadas e produtoras de autenticidades alternativas. Torna-se necessário entendermos como diferentes marcos interpretativos estão enraizados em circunstâncias históricas, discursivas, institucionais e políticas mais amplas (Costa, 2010, p. 52).

A tradução, nesse aspecto, ocupa um espaço crucial para a disseminação da ciência dentro dos efeitos da globalização e da geopolítica do conhecimento. Assim, sabemos que ela pode atuar em diferentes frentes, tanto na manutenção de políticas hegemônicas quanto em atos de resistência e ruptura. É nesse espaço que podemos observar a “[...] estratégia de tradução cultural que acompanha a prática feminista de politização do lugar e de descolonização do saber” (Costa, 2010, p. 52), onde as teorias feministas invadem as fronteiras geopolíticas em “zonas de contato”.

Em projetos de tradução com perspectivas feministas, Costa (2004) nos relembra que a tradutora está ativamente envolvida tanto na seleção do material que pretende traduzir e divulgar quanto nas escolhas intratextuais propriamente ditas. Nessa visão política, Maria Tymoczko (2010) concorda que as escolhas de quais textos serão traduzidos e circularão em determinado meio social partem dos valores e instituições que a tradutora intenciona apoiar ou refutar em sua agenda política.

Tymoczko entende que a ideologia da tradução é determinada apenas parcialmente pelo conteúdo do texto, mesmo que seja extremamente político (Tymoczko, 2014, p. 182). Ela assegura que o valor ideológico do texto-fonte é complementado pelo fato de que a tradução é uma “metadeclaração” (metastatement), ou seja, uma declaração da tradutora sobre o que é o texto-fonte e como ele foi interpretado. Para a autora, a ideologia de uma tradução une o conteúdo e atos de fala do texto-fonte no contexto de origem com a representação e relevância do conteúdo e atos de fala do texto-alvo no contexto de chegada, bem como as ressonâncias e discrepâncias entre esses dois “enunciados”. Tymoczko assevera que, além da ideologia de uma tradução residir no conteúdo do texto-fonte e na sua relevância para o público receptor do texto-alvo, ela também está na voz e na postura da tradutora.

Ao considerar as questões postas nesta seção, dedicamo-nos, agora, a relatar algumas práticas feministas do grupo de pesquisa KiT em relação à tradução de textos científicos que circulam academicamente. No presente projeto, o grupo traduziu textos de teoria da tradução escolhidos para serem publicados em forma de artigo em um periódico brasileiro em acesso aberto. As práticas tradutórias abarcam questões decoloniais relacionadas a gênero, raça e fatores geopolíticos, com o intuito de promover a representatividade de grupos e abordagens investigativas diversas. O material de tradução incluiu textos escritos por mulheres, conteúdo de teoria feminista de tradução, pesquisas elaboradas por representantes do Sul Global e pesquisadoras/es não brancos. De qualquer modo, salientamos que não excluímos textos de teorias de tradução de pesquisadores homens brancos do hemisfério norte que, dentro do nosso julgamento, podem ser contribuições ricas em diversos campos interdisciplinares dos Estudos da Tradução no Brasil. Certamente, nossas escolhas não incluíram discursos universais, machistas, racistas e homofóbicos. Nossa proposta é certificar que, nessa seleção, estarão mulheres, pessoas não brancas e representantes do hemisfério sul, ainda que não exclusivamente.

Também precisamos esclarecer que nossas traduções partem de textos escritos originalmente em língua inglesa, uma língua historicamente hegemônica e imperialista e com frequência mencionada como a “língua internacional da ciência”, mostrando o preconceito com a habilidade de outras línguas representarem o discurso científico. Assim argumenta Luciano Lima (2016), ao observar um percurso da língua na perspectiva de opressão política, econômica e cultural no mundo nos últimos séculos. Por essa razão, mesmo não sendo a língua nativa, mas uma língua de imposição imperialista em sociedades poliglotas, cientistas no mundo publicam com frequência em inglês. Nesse sentido, é através do inglês, língua franca do discurso científico, que temos acesso a produções de diversas partes do mundo (como países asiáticos, africanos e da Europa continental).

Dos sete textos traduzidos para serem publicados como artigos científicos em português brasileiro, um texto sobre tradução feminista foi elencado. O texto é de Tejaswini Niranjana (2024)2 em que, resumidamente, a autora observa a tradução e o feminismo como campos entrelaçados em um olhar especial para o sujeito feminista na Índia. A proposta de trazer para o Brasil esse texto de uma pesquisadora indiana que critica relações de casta na Índia em um entendimento amplo sobre tradução em confronto com visões tradicionais do ocidente é abrir as perspectivas sobre como se pode pensar a tradução e relações sociais dentro de um país multicultural como o próprio Brasil, que, apesar de não ser segregado em castas, apresenta fortes segregações sociais tanto em termos de classes quanto de grupos étnicos ainda marginalizados na circulação do conhecimento formal/institucional (como indígenas e quilombolas, por exemplo). A tradução desse texto em particular contempla a nossa agenda de práticas feministas de uma forma completa: aproximar uma autora não branca do Sul Global com os Estudos da Tradução no Brasil e trazer uma reflexão feminista sobre tradução, nesse caso, a partir de uma visão indiana.

, também traduzimos Christiane Nord (2016; 2025), teórica alemã bastante popular nos Estudos da Tradução no Brasil pela teoria funcionalista. Apesar de sua teoria não levantar a bandeira do feminismo, o texto selecionado tem como corpus de análise a tradução para o alemão e para o inglês de trechos da obra Os filhos de Jocasta (“Les enfant de Jocaste”), da psicanalista francesa Christiane Olivier (1986), cuja tradução brasileira foi publicada em 1986, e que critica os estudos de Sigmund Freud em uma perspectiva feminista. Ainda assim, Nord discute questões técnico-culturais sobre incertezas na tradução em um viés funcionalista, e não particularmente relacionado ao feminismo. Assim, dentro da nossa agenda de práticas feministas, a seleção desse texto inclui mais uma voz feminina para ecoar nos Estudos da Tradução no Brasil.

Outro texto que merece destaque é um texto escrito por um homem e uma mulher de origem espanhola, Gabriel Dols e Caterina Calafat (2020), sobre emancipação e universalização na tradução. A autora e o autor trazem discussões de fora do campo dos Estudos da Tradução que examinam formas da tradução não universal em perspectivas feministas, filosóficas e sociológicas. Em nossas propostas de práticas feministas do grupo, além de contar com autoria de uma voz feminina junto a uma masculina, o texto inclui a contribuição de teorias decoloniais da sociologia e filosofia de intelectuais de diferentes países (incluindo um do hemisfério sul) para repensar a não universalização de teorias da tradução.

Também vale considerar a tradução do camaronês Joseph Che Suh (2002) sobre tradução de teatro subsaariano. É um texto escrito por um homem negro, entrando, assim, em nossa agenda de visibilizar a produção científica de pessoas não brancas do Sul Global. Além disso, pensando na multiplicidade de abordagens teóricas, o texto é sobre a tradução de teatro africano, tópico ainda pouco discutido nos Estudos da Tradução no Brasil. Semelhantemente, elegemos o sul-africano Kobus Marais, outro teórico do Sul Global, para trazer um novo conceito de tradução dentro do campo de tradução e semiótica na tentativa de ampliar os paradigmas dos Estudos da Tradução no Brasil, que tradicionalmente seguem as vertentes europeias do conceito de tradução intersemiótica do formalista russo Roman Jakobson (2008) com uma visão de tradução intersemiótica que talvez não dê mais conta das múltiplas formas de tradução e reflexões sobre tradução das últimas décadas.

Finalmente, gostaríamos de mencionar que, em um projeto anterior, o grupo traduziu o livro do britânico Andrew Chesterman (2022) (Memes da Tradução, em português); uma obra que vê as teorias de tradução ocidentais baseadas na noção de memes. Essa obra traz, dentro de várias abordagens, teorias emancipatórias da tradução, como, por exemplo, a teoria de tradução das feministas canadenses. Não é uma obra que levanta a bandeira feminista especificamente, mas traz a tradução feminista como uma abordagem política bem-sucedida nos Estudos da Tradução, corroborando as abordagens teóricas de vários estudos já realizados sobre feminismo e tradução no Brasil, conforme o estudo levantado por Naylane Araújo Matos (2022).

Práticas intratextuais

Como observa Susan Bassnett (2020), as décadas de 1960 e 1980 caracterizam um movimento significativo nos Estudos Feministas dentro da crítica literária, com ênfase na problematização das relações de gênero e linguagem. Paralelamente, os Estudos da Tradução questionavam as noções tradicionais de equivalência e fidelidade. Esses dois campos influenciaram-se mutuamente, na medida em que buscavam superar as dicotomias convencionais que subjugam o status das mulheres e da tradução em relação aos homens e ao texto original, respectivamente. Nesse contexto, Barbara Godard (1990) argumenta que a tradução feminista emergiu com o objetivo de reescrever e recriar textos de modo a ampliar e fortalecer as vozes femininas.

Apesar dos avanços alcançados ao longo dos anos por diversas teóricas e tradutoras feministas no campo da literatura, é inegável que a representação das mulheres em publicações acadêmicas, científicas e jornalísticas ainda tem um longo caminho pela frente. Essa situação não se deve apenas à sub-representação numérica das mulheres em comparação aos homens nesses campos, mas também ao apagamento linguístico sofrido pelas mulheres que conseguem ocupar esses espaços. Uma questão relevante levantada por Nodari (2021), especialmente no contexto brasileiro, é o fato de que a língua portuguesa privilegia o gênero gramatical masculino sobre o feminino em plurais e pronomes, utilizando o masculino para se referir a indivíduos de forma “neutra” e, consequentemente, encobrindo a presença feminina na linguagem e no discurso.

Diante dessa realidade, reconhecemos a crescente mobilização das mulheres que buscam “aumentar a percepção da presença de autoras na escrita acadêmica de maneira a continuar a luta por igualdade, que é uma das bases do movimento feminista” (Nodari, 2021). Conforme argumenta Adriana Baggio (2020 apud Nodari, 2021),

[...] como a língua escrita é a linguagem primordial da produção acadêmica, mostrar a presença do feminino por meio da língua é uma forma de aumentar o reconhecimento das mulheres cientistas e de estreitar a relação entre a ciência e o feminino.

Cientes disso e com o objetivo de contribuir para a visibilidade linguística das mulheres, nós, do grupo de pesquisa KiT, atuando como tradutoras e tradutor feministas, adotamos práticas intratextuais de tradução feminista, com especial ênfase nas três estratégias delineadas por Flotow (2021 [1991]) no ensaio “Tradução feminista: contextos, práticas e teorias”, na tradução de Ofir Bergemann de Aguiar e Lilian Virginia Porto: suplemento, prefácios e notas de rodapé, e sequestro. Nesse estudo, Flotow contextualiza a prática da tradução feminista dentro do movimento literário experimental de escritoras quebequenses e explora o surgimento da tradução feminista no contexto sociocultural da província canadense, definindo, assim, as três abordagens de tradução feministas.

As estratégias propostas por Flotow, primeiramente pensadas para o contexto da tradução literária, foram adaptadas aqui para o contexto da tradução de ciência e especificamente para o nosso corpus de tradução de teorias da tradução. Nos próximos parágrafos, explicaremos brevemente cada estratégia, seguida de exemplos comentados da nossa prática tradutória.

Suplemento

A estratégia de suplemento na tradução feminista, conforme descrita por Flotow (2021 [1991]), envolve uma intervenção ativa no texto original para destacar e corrigir questões de gênero, etimologia e outras formas de discriminação linguística. Essa abordagem reconhece que a linguagem patriarcal está enraizada em muitos idiomas, incluindo a língua portuguesa, e, portanto, requer uma adaptação cuidadosa para suplementar o texto original com novos elementos ou interpretações. O objetivo é proporcionar mais visibilidade para as mulheres e evitar o uso do masculino “neutro”. Esse conceito está alinhado com a prática descrita por Suzanne de Lotbinière-Harwood no prefácio de sua tradução de Letters from An Other, de Lise Gauvin (1989):

Eu não sou ela. Ela escreveu no masculino genérico. Minha prática de tradução é uma atividade política que visa fazer a língua falar pelas mulheres. Então, minha assinatura em uma tradução significa: esta tradução usou cada possibilidade de estratégia de tradução feminista para tornar o feminino visível na língua... a tradução é um ato de invenção linguística que geralmente enriquece o texto original ao invés de traí-lo (apudBassnett, 2020, p. 465-466, tradução de Matos).

Uma possível aplicação dessa estratégia seria utilizar o gênero gramatical feminino como forma genérica, em oposição ao masculino, que é convencionalmente empregado. Nosso grupo, contudo, optou por aplicar o suplemento na forma de adequação de gênero, buscando uma linguagem mais inclusiva e evitando o uso do masculino genérico, em consonância com pesquisas paralelas que localizam mulheres dentro dos Estudos da Tradução.

No que diz respeito à nossa prática, o suplemento ocorre de duas formas sutilmente distintas entre si. A primeira forma é a adição de desinências de gênero femininas após as palavras escritas genericamente no masculino, como ilustrado no exemplo a seguir:

Texto-fonte: The interpretation of the brief enables the translator to decide what the target text should look like and what kind of macro-strategy is needed to produce a text which conforms to the target-text profile (Nord, 2016, p. 31, grifos nossos).

Texto-alvo: A interpretação do encargo permite ao/à tradutor/a decidir como o texto-alvo deve ser e o tipo de macroestratégia necessária para produzir um texto em conformidade com o perfil do texto-alvo (Nord, 2024, no prelo, grifos nossos).

Essa é a forma de suplemento que utilizamos na maioria de nossas traduções, devido, principalmente, à praticidade de sua aplicação. Reconhecemos, porém, que essa prática pode ser criticada por aparentemente hierarquizar o gênero masculino sobre o feminino, uma vez que o feminino é colocado após o masculino. Salientamos que tal interpretação não é de forma alguma nossa intenção. Em verdade, um dos principais motivos de escolher colocar o gênero masculino antes do feminino deve-se justamente à morfologia da língua portuguesa, em que, muitas vezes, para realizar a representação do feminino na forma singular, basta acrescentar uma letra (a letra “a”) e isso facilita a escrita de substantivos e adjetivos no singular (por exemplo, tradutor-tradutora, professor-professora etc.).

Todavia, para mitigar essa potencial hierarquização de gênero, ao traduzir especificamente o texto feminista “Feminismo e tradução na Índia”, de Tejaswini Niranjana, decidimos modificar nossa estratégia, o que nos leva à segunda forma de suplemento utilizada por nosso grupo, exemplificada a seguir:

Texto-fonte: After long and repetitive discussions about ‘faithfulness’ and ‘betrayal’, some scholars in inter-disciplinary humanities have begun to think about translation in rather different ways3 (grifos nossos).

Texto-alvo: Após longas e repetitivas discussões sobre “fidelidade” e “traição”, há teóricas/os das ciências humanas interdisciplinares que começaram a pensar de formas diferentes sobre a tradução (grifos nossos).

Nesse caso, colocamos o feminino em primeiro plano, em vez de acrescentar a adequação de gênero após a palavra no masculino. Esse método, contudo, por vezes exige mudanças sintáticas em relação ao texto-fonte, já que certas palavras em língua portuguesa, devido à sua estrutura, impedem o acréscimo natural da desinência masculina ao final das palavras no feminino, obrigando-nos, por exemplo, a pluralizar um termo que se encontrava originalmente no singular.

De qualquer modo, sabemos que nossas adequações de gênero na linguagem, seja com o feminino seguido do masculino ou vice-versa, ainda não conseguem dar conta de categorias que não se enquadram nesse binarismo. Nodari (2021) traz essa discussão ao relembrar que o binarismo já provoca a problemática para atualização do idioma e questiona como lidar com as categorias que excluem pessoas que não se identificam dentro desse binarismo.

Prefácios e notas de rodapé

O uso de prefácios e notas de rodapé permite que as tradutoras feministas expressem sua voz e perspectiva sobre o texto que estão traduzindo. Trata-se do que Godard (1990) descreveu como “mulheres tecendo texto” (womanhandling the text), em que a tradutora deixa de ser uma figura passiva para assumir uma posição mais proeminente na criação de significado. Pensamos esse aspecto não somente enquanto uma estratégia que visibiliza as mulheres, prefácios e notas de rodapé deixados pelas/os tradutoras/es, que visibilizam a categoria que tradicionalmente é ofuscada pelo brilho das/os autoras/es do texto, como coloca Bassnett (2020, p. 467) pela tradução de Matos:

[s]e nós aceitamos que o/a tradutor/a não é, e nunca poderia ser, um filtro transparente pelo qual um texto passa, mas sim uma fonte muito potente de energia criativa transicional (e esta é a premissa fundamental das/os teóricas/os dos Estudos da Tradução), pensar em termos de gênero, portanto, eleva a consciência das complexidades textuais nos papéis de quem escreve e de quem lê.

Essa prática, tanto de prefácios como notas de rodapé (ou notas de fim, a depender das normas do periódico) é frequente nas traduções feitas pelo grupo KiT, salientando a presença ativa das tradutoras e do tradutor no processo de escolhas, mesmo em textos originalmente escritos por homens. Além disso, os prefácios e as notas de rodapé ajudam a ampliar o entendimento das/os leitoras/es sobre questões linguísticas e culturais específicas, tornando a tradução feminista um “instrumento educacional” (Flotow, 2021 [1991]).

Notas de tradução

Em relação às notas de tradução, elas podem ser de naturezas variadas, como notas explicativas de um contexto supostamente estranho à audiência do texto-alvo, notas que justificam uma decisão tradutória ou notas de citação de texto em língua estrangeira (hábito comum nos Estudos da Tradução, para deixar o texto-fonte passível de conferência).

Os exemplos são encontrados em todos os textos que traduzimos. No texto de Niranjana, por exemplo, temos várias notas explicando contextos relacionados à cultura indiana que a autora possivelmente pressupôs serem familiares para as/os suas/seus leitoras/es. Esses contextos estão diretamente relacionados ao discurso da autora em relação à sociedade indiana sobre questões de gênero. Para ilustrar, colocamos um parágrafo que exigiu diversas interferências contextuais em três notas de tradução:

Texto-fonte: The women’s movement has engaged in various ways in the last twenty years with the questions arising out of the conjuncture, whether it was in dealing with issues such as the Miss World Beauty Contest 1994 or the legal debate around the Uniform Civil Code in the mid-1990s or the 1998 controversy around the film Fire (grifos nossos).

Texto-alvo: Nos últimos vinte anos, o movimento de mulheres se engajou de várias maneiras em relação às questões decorrentes dessa conjuntura, seja ao abordar assuntos como o concurso de beleza Miss Mundo 1994*, ou o debate jurídico em torno do Código Civil Uniforme** em meados dos anos 1990, ou mesmo a controvérsia envolvendo o filme Fogo e Desejo*** em 1998.

*N.T.: a vencedora do 44º Concurso Miss Mundo foi a Aishwarya Rai, da Índia, o que causou diversas discussões acerca da ocidentalização das mulheres indianas na Índia.

**N.T.: dos anos 1970 até meados dos anos 1990, grupos de mulheres estavam trabalhando para acabar com leis que discriminavam por gênero, tendo como objetivo leis uniformes do direito familiar.

***N.T.: Fogo e Desejo - em inglês Fire (1996) - filme escrito e dirigido por Deepa Mehta e lançado em 1998 na Índia. A comunidade tradicional e patriarcal protestou contra a sua exibição em diferentes regiões do país, pois protagoniza um casal lésbico e aborda questões referentes à liberdade de expressão e tradições hindu, como o casamento arranjado (Niranjana, 2024, no prelo, grifos nossos).

A contextualização do que está implícito na cultura-fonte e possivelmente desconhecido na cultura-alvo é, além de uma estratégia feminista de autovisibilização e coparticipação da tradutora, também uma preocupação com as/os suas/seus leitoras/as e com a recepção do texto que faz parte da sua responsabilidade. Nesse sentido, as tradutoras se colocam diretamente em diálogo com as/os leitoras/es do texto traduzido.

O próximo exemplo mostra uma nota justificando uma escolha tradutória no texto de Marais (2020). Nesse texto, em particular, entendemos que algumas de nossas decisões tradutórias precisavam, às vezes, ser justificadas para melhor ilustrar seus exemplos sobre semiótica e tradução, pois eles vinham justamente da língua inglesa. O exemplo abaixo mostra a necessidade de uma adaptação de um item lexical para que o discurso do autor permanecesse lógico no texto traduzido:

Texto-fonte: As an example, consider the word ‘mouse’ that is used for a rodent and for a piece of computer hardware. The meaning is translated because of a change in the object and thus in the relationship between representamen and object (Marais, 2020, p. 49, grifo nosso).

Texto-alvo: Como exemplo, consideremos a palavra “manga”, que é usada para uma fruta e para uma parte de uma peça de roupa. O significado é traduzido por causa de uma mudança no objeto e, portanto, na relação entre representamen e objeto*.

*N.T.: Exemplo adaptado para o português brasileiro: As an example, consider the word ‘mouse’ that is used for a rodent and for a piece of computer hardware. The meaning is translated because of a change in the object and thus in the relationship between representamen and object (Marais, 2020; Marais, 2025apudClark, 1981, grifo nosso).

Ainda que não houvesse a nota de tradução, sabemos que nossas/os leitoras/es provavelmente entenderiam a argumentação do autor com o exemplo adaptado sem qualquer problema aparente. Mas essa é a diferença em uma tradução feminista: nos fizemos visíveis aqui e partilhamos o problema de tradução que enfrentamos para mostrar que não somos parte de um “filtro transparente”; somos seres críticos que detêm o poder do discurso de quem e daquilo que traduzimos. Nesse sentido, mostramos o nosso cuidado em comunicar as/os nossas/os leitoras/es as nossas ações de interferência e o exemplo original do autor sul-africano para que nossas/os leitoras/es acompanhem as interferências tradutórias no texto em uma proposta dialógica que explicita o processo de reflexão da tradução de um discurso teórico.

Para encerrar os exemplos das muitas notas de tradução que usamos em cada texto traduzido, trazemos um trecho do texto de Che Suh (2002) sobre a tradução do teatro subsaariano. Aqui, colocamos dois tipos de nota de tradução, uma explicativa e outra de citação:

Texto-fonte: Also included in the category of mixed dramas is what literary critics have referred to as “literary drama” which, according to them, has “its heart right here in Africa and its head deep in the wings of European and American theatre ” (Che Suh, 2002, p. 371, grifos nossos).

Texto-alvo: Essa categoria também inclui o que a crítica literária denomina como “teatro sincrético”*, o qual “possui o coração fincado aqui na África e a cabeça imersa nos bastidores do teatro europeu e estadunidense” (Clark, 1981, p. 66, tradução nossa)**.

*N.T.: “Teatro sincrético: uma reinterpretação criativa de material cultural heterogêneo resultando em novas configurações [...]” (Carmen Paternostro Schaffner, 2011, p. 36).

**N.T.: “[...] its heart right here in Africa and its head deep in the wings of European and American theatre” (Che Suh, 2025).

A primeira nota do exemplo acima é do tipo explicativa, ou seja, explica a ideia do que é o teatro sincrético que, pelas nossas pesquisas, não é muito popular no Brasil. Para isso, precisamos buscar esse conceito em Schaffner (2011). Aqui fica visível a coautoria da tradutora em um texto quando se faz uma tradução feminista. Nesse caso, o texto traduzido, por interferência das tradutoras, será publicado com uma referência feminina brasileira, que não consta no texto em inglês publicado em 2002.

Na segunda nota, mostramos uma prática comum de notas de tradução, que são aquelas advindas de uma citação traduzida, indicada como traduzida (conforme sugere a ABNT) e com o texto-fonte em nota. Pequenas atitudes como essa não são só éticas e clarificadoras, mas também visibilizam o trabalho intelectual da tradução de discursos científicos para outra língua.

Prefácios

Em relação aos prefácios de tradução, nossas traduções também contam com alguns. Dos artigos científicos do último projeto, fizemos um prefácio na tradução do texto de Jorge Díaz-Cintas (2004) sobre a história da pesquisa em tradução audiovisual (TAV) na Europa, sobretudo na Espanha, país com notável desempenho em pesquisa nessa modalidade. No caso da TAV, os vinte anos que se passaram após a publicação do artigo em inglês mostram que uma parte do discurso já está datada (desde os materiais usados, como VHS e DVD, até alguns discursos sobre as lacunas na pesquisa em TAV que, em parte, foram supridas por novas pesquisas na área). Nesse sentido, escrevemos um pequeno prefácio que chamamos de “Prefácio das tradutoras”, justificando a escolha do texto pela importância para a história da TAV, ainda que incompleta, em consideração ao fato de que estamos na terceira década do século XXI. No prefácio, também apresentamos algumas alterações que fizemos (como tempos verbais, do presente para o passado, e substituição ou eliminação de links que deixaram de existir). Além disso, colocamos em linhas gerais alguns assuntos que se popularizaram na pesquisa da TAV nas últimas décadas e que, até 2004, não existiam ou ainda apareciam de forma muito tímida na academia, como a TAVA (tradução audiovisual acessível), o fansubbing e as plataformas streaming.

Ainda em relação aos prefácios, no projeto anterior do grupo de pesquisa, que foi exclusivamente a tradução do livro de Chesterman (2022), publicado em língua portuguesa como Memes da Tradução, uma obra que revisa teorias ocidentais de tradução ao longo da história, suas crenças, estratégias, perspectivas pedagógicas e éticas, pudemos dedicar algumas páginas em um prefácio que chamamos de “Nota das tradutoras”. Nesse texto, explicamos algumas questões tradutórias específicas da obra e damos destaque às práticas feministas de suplementação a partir do seguinte comentário:

A dúvida era se escrevíamos no “masculino neutro” ou faríamos adequações de gênero. No texto em inglês, isso parece às vezes não ser uma discussão tão relevante, porque nem sempre é preciso especificar o gênero (ex.: the translator) e Chesterman inclui, por vezes, os pronomes (ex.: “he or she”). Para nós, esse assunto pareceu mais delicado, até porque somos seis tradutoras mulheres e o “masculino neutro” nos incomodava um pouco. Por isso, decidimos fazer adequações em todos os casos utilizando uma barra (ex.: o/a tradutor/a), com exceção de casos que se referiam somente ao sexo masculino. Ainda assim, colocamos a forma masculina em primeiro lugar e, de antemão, pedimos desculpas a todes que não se identificam dentro desse binarismo (Monique Pfau; Fernanda Costa; Marília Portela; Marília Santana; Nathalia Amaya Borges; Simone Salles, 2022, p. 10).

Ao final da nota, também nos posicionamos politicamente sobre a tarefa de traduzir e sobre as obras traduzidas de referências estrangeiras usadas pelo autor do texto no livro em inglês:

Nesse sentido, buscamos também a visibilidade do/a tradutor/a, tanto daqueles/as utilizados/as para a nossa tradução quanto a nossa. Essa nota das tradutoras aqui é um exemplo, além de algumas outras que colocamos em rodapé ao longo da obra. O texto em inglês não apresenta notas, mas tudo que supusemos ser importante, como as citações do texto-fonte, uma explicação de um conceito, uma justificativa para uma ação tradutória, colocamos lá, nos fazendo visíveis, porque sabemos que o texto em português não é um espelho do texto em inglês. O texto é de Chesterman, mas também é nosso. Tradutores/as não são seres invisíveis por trás de textos, somos coautores/as, leitores/as críticos/as, escritores/as e pesquisadores/as. Nossa tarefa envolve manipulação, paráfrase, interferência - de maneira responsável e ética, com todo o respeito pela obra e pelo/a autor/a do texto-fonte (Pfau; Costa; Portela; Santana; Borges; Salles, 2022, p. 12).

Certamente, uma nota ou prefácio por si só já são elementos que fazem a tradutora ser percebida como uma agente ativa e crítica de produção textual. Porém, se esses escritos ainda forem acrescentados a discursos que a colocam como uma agente fundamental no processo de circulação do conhecimento, elas contribuirão ainda mais para a reflexão do papel da tradução na sociedade, sobre o poder de manipulação e de escolhas da tradutora.

Sequestro

Por fim, o conceito de “sequestro” pode ser entendido como uma estratégia mais radical, que envolve uma interferência significativa no texto original. Nessa abordagem, a tradutora feminista assume o controle total sobre a interpretação e apresentação do texto, passando a escrever “por si mesma” (Flotow, 2021 [1991]). Normalmente, o sequestro é utilizado para corrigir ou feminizar aspectos percebidos como patriarcais ou exclusivamente masculinos.

Em nosso projeto, não utilizamos essa estratégia conforme elucida Flotow em seu texto. Ainda assim, destacamos a prática mencionada a seguir como sequestro para diferenciarmos das outras estratégias de suplemento mencionadas anteriormente, pois destaca a presença feminina com mais força. A ação ocorreu no artigo Cultural translation, universality and emancipation, de Dols e Calafat (2020). Nesse artigo, Dols e Calafat exploram a interseção entre as teorias tradutórias de uma autora mulher (Judith Butler) e três autores homens. Ao considerarmos que as convenções culturais da língua portuguesa e dos gêneros textuais acadêmicos frequentemente obscurecem a presença das mulheres, identificamos a necessidade de uma intervenção mais incisiva para explicitar a contribuição feminina no discurso.

Texto-fonte: The first salient feature of the approach proposed by our authors is the stress on the purpose of any given translation (Dols; Calafat, 2020, p. 100, grifos nossos).

Texto-alvo: A primeira característica proeminente da abordagem proposta pelos autores e pela autora é o destaque dado ao propósito de qualquer tradução específica (Dols; Calafat, 2025, grifos nossos).

Conforme ilustrado no exemplo acima, optamos por não utilizar a estratégia do que aqui chamamos de suplemento, mas sim tornar ainda mais explícita a presença feminina ao destacar que uma das teorias analisadas por Dols e Calafat foi elaborada por uma mulher. Como afirma Nodari (2021, p. 4), “[u]ma das formas de reconhecer uma autora é porque ela se apresenta como mulher”. Assim, se tivéssemos colocado “os autores” na nossa tradução, estaríamos inviabilizando a presença feminina nesse grupo. Dito isso, nossa escolha visa ressaltar a importância das contribuições das mulheres no campo teórico e combater a tendência de invisibilização, disfarçadas de neutralidade, nas práticas acadêmicas.

Considerações finais

Esse artigo se baseou nas traduções do grupo de pesquisa KiT para argumentar que a inclusão de práticas feministas de tradução deve ser incluída na agenda de tradução de textos científicos além dos literários, como já vem sendo argumentado dentro do campo da tradução feminista há algumas décadas. Tais práticas fazem parte de uma agenda ainda maior, que agrega produções científicas de pesquisadoras e pesquisadores não brancos e do Sul Global, trazendo questões geopolíticas e étnicas para a discussão. Nesse sentido, concordamos com Costa (2010, p. 50), que entende que

[v]er o gênero como elemento estruturador (e não subordinado) da colonialidade do poder, ou seja, como categoria colonial, também nos permite historicizar o patriarcado, salientando as maneiras pelas quais a heteronormatividade, o capitalismo e a classificação racial se encontram sempre já imbricados.

Estratégias feministas de tradução vão desde a seleção de textos até escolhas intratextuais que visibilizam as mulheres como agentes ativas de um discurso científico. Nesse sentido, apresentamos algumas de nossas escolhas dos textos do nosso corpus em uma prática inclusiva, que selecionou, entre outras questões, textos de teoria de tradução feminista, textos escritos por mulheres, por autoras e autores não brancas/os e/ou do Sul Global. A respeito das práticas intratextuais, nos baseamos nas categorias de Flotow (2021 [1991]) de suplementação, notas e prefácios e sequestro, mostrando exemplos que contemplam todas as categorias.

As estratégias relatadas aqui, como aquelas relacionadas à adequação de gênero e especialmente ao destaque de uma voz feminina no meio de outras masculinas, podem deixar o discurso científico menos convencional do que de hábito. Entendemo-lo, porém, como necessário dentro do espaço científico, que ainda é majoritariamente ocupado por homens e discursos masculinos (Campos Ribeiro, 2019) disfarçados de neutros e universais. Da mesma forma, entendemos que notas e prefácios vão além de uma estratégia feminista, mas são estratégias políticas e emancipatórias de visibilidade ao trabalho intelectual de tradução que, historicamente, é conceituado como inferior a produções “originais”4, historicamente compreendido com um trabalho “técnico” e, só mais recentemente, em alguns setores, como um trabalho autoral. Ainda há o que desconstruir em relação à visibilidade da tradutora ou do tradutor quando percebemos que existe resistência à sua presença ativa no texto, uma presença que conversa com a sua própria tradução.

A terminologia de perda e ganho, a ideia de que a tradução é de alguma forma uma atividade secundária, inferior ao ato da escrita, que a tradução está hierarquicamente mais baixa que o “privilegiado” original é rejeitada em favor da noção que enxerga a tradução e a escrita como interconectadas, onde uma assegura a sobrevivência da outra (Bassnett, 2020, p. 460, tradução de Matos).

Por fim, as ações tradutórias aqui apresentadas comprovam que a tradução feminista é aplicável ao discurso científico. No nosso caso, trazemos teorias de tradução de vozes femininas, de pessoas não brancas e do Sul Global para o Brasil através da tradução. Nosso compromisso é exaltar as referências representadas por mulheres, além de visibilizar o trabalho intelectual das tradutoras. Assim, levantamos a bandeira de “importar” discursos de qualquer área do conhecimento que sejam escritos por mulheres, pessoas não brancas e/ou representantes do Sul Global, para que tenhamos uma oferta mais diversa e mais democrática para estudar, aprender, pesquisar e agregar às nossas produções nacionais.

Referências

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  • TYMOCZKO, Maria. Enlarging Translation, Empowering Translators Londres; Nova York: Routledge, 2010.
  • 1
    Os artigos foram publicados no número temático “Traduzir teoria de tradução”, de 2024, da Revista Belas Infiéis. Disponível em https://periodicos.unb.br/index.php/belasinfieis/index. Acesso em 22/08/2024.
  • 2
    O texto em inglês não está publicado (é o roteiro de uma palestra).
  • 3
    O texto-fonte é um roteiro de apresentação de palestra não publicada, gentilmente cedido pela autora para ser traduzido e publicado como artigo.
  • 4
    Seguindo propostas desconstrutivistas da tradução como a de Rosemary Arrojo (2003), a ideia de texto original é ilusória, já que todo texto surge de outros textos. O texto científico, ainda mais claramente, é intertextual, pois é construído a partir de um mosaico de referências claramente apresentadas no próprio texto (ARROJO, Rosemary. Oficina de Tradução: a teoria na prática. São Paulo: Ática, 2003).
  • Como citar esse artigo de acordo com as normas da revista:
    PFAU, Monique; SOUZA, Ana Clara Cerqueira Santos de. “Práticas feministas na tradução de teoria”. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 33, n. 3, e106774, 2025.
  • Financiamento:
    Não se aplica
  • Consentimento de uso de imagem:
    Não se aplica
  • Aprovação de comitê de ética em pesquisa:
    Não se aplica

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Ago 2025
  • Data do Fascículo
    2025

Histórico

  • Recebido
    30 Abr 2025
  • Aceito
    08 Maio 2025
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