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Sanhas de poder

YADE, Rama. Carnets du pouvoir. 2006-2013. Paris: Editions du Moment, 2014. 456p

Mulher, negra, africana. Nascida no Senegal, crescida na França. Vive em Paris. Jovem. 20 para 30 anos. Percurso escolar de elite. Melhores colégios em Dakar e em Paris. Depois, Sciences Po. Mãe professora, pai diplomata. Engajamento político precoce. Simpatia pela direita. Filiação juvenil ao partido do presidente Jacques Chirac (1995-2007), a Union pour un mouviment populaire (UMP). Convocação para participar da campanha de Nicolas Sarkozy como sucessor de Jacques Chirac. Secretária Nacional da UMP em 2006. Referência jovem e afro-europeia do partido. Devotada aos assuntos de África e da diáspora. Ajuda Nicolas Sarkozy bater Ségolène Royal em 2007. Acede ao governo eleito no mesmo ano. Assume no Quai d'Orsay - ministério do exterior francês - como secretária de estado encarregada de direitos humanos. Exerce funções políticas e diplomáticas. Acaba objeto de polêmicas e críticas severas. Por sua idade - é a mais jovem no governo. Por sua origem - é afro-francesa. Por sua cor - é negra. Por seu gênero - é mulher.

Conquista amigos e inimigos. Alguns de importância. Cultiva argumentos fortes e posições firmes. Diz-se livre. Fiel ao partido. Mais ainda aos seus valores pessoais. Desfila talentos intelectuais. Domina a oratória. Tem o dom do discurso, e o faz em vários idiomas. Envolve o interlocutor. Seduz ouvintes, leitores e telespectadores. Usa a imprensa a seu proveito. Promove combates. Muitos muito dignos. Advoga pela promoção de valores ocidentais e universais. Nem sempre consegue ser bem-entendida. Sobrevive a solavancos, crises e ameaças do e no poder. Dois anos encarregada no Quai d'Orsai, vai chefiar o ministério dos esportes. O ano é 2009. O mês, junho. Ano e meio depois, em fins de 2010, seria nomeada embaixadora da França na Unesco. Aceitaria com gosto. Suas ambições nacionais e internacionais, nesse cargo, ganhariam fôlego. Mas sua fidelidade ao presidente Nicolas Sarkozy (2007-2012) não disfarçaria seu descontentamento com seu partido. Romperia com a UMP. Iria para o parti radical e depois para a Union des démocrates et indépendants (UDI).

Assistiria à derrota de Sarkozy para o socialista François Hollande em 2012. Seria destituída da Unesco no mesmo ano. Certa frustração contaminaria suas atitudes. Mas continuaria, em sua convicção, livre. Fazendo política. Como sempre fez. Seu nome, Rama Yade. Que apresenta sua própria trajetória nessa fabulosa autobiografia de suas funções públicas intituladas Carnets du pouvoir.

Autobiografias do exercício do poder correspondem a práticas que remontam aos mais remotos períodos clássicos gregos e romanos desde quando parte importante dos combates políticos se dá por escrito. Sua função designa a defesa de feitos, a negação de defeitos e o desejo de fazer o ainda não feito. Nos tempos mais recentes essa prática tem tido na França um dos canteiros mais proficientes.

Os Mémoire de guerre do general De GaulleDE GAULLE, Charles. Memoires de guerre - L'Appel, 1940-1942 (1954), L'Unité, 1942-1944 (1956), Le Salut, 1944-1946 (1959). Paris: Plon, 1954-1959. revigoraram a tendência do político-escritor e do escritor-político incentivada pelos iluministas de Voltaire a Diderot a Marat e afirmada pelo J'accuse de Émile Zola às voltas com o affaire Dreyfus. Toda a presidência francesa desde os tempos do general-presidente (1958-1969) tem por fundamento defender-se pela pena de seus mais variados responsáveis. Mas durante a presidência de Nicolas Sarkozy essa prática foi amplificada e merece destaque e reflexão.

Poucos presidentes franceses contemporâneos foram tão controversos quanto Nicolas Sarkozy. Venerado por sua energia, mas detestado por sua onipresença. Respeitado por sua determinação, mas condenado pelo decoro da tradição. Em seus tempos presidenciais, 2007-2012, ele era visto como um americano enrustido. Outsider. Inculto, impolido, excessivamente midiático. Em tudo Nicolas Sarkozy fora, para seus críticos, distante dos segredos internos do quase místico presidente François Mitterrand (1981-1995). E muito pouco seguidor dos gestos simples e verdadeiros de seu antecessor Jacques Chirac (1995-2007). No bojo dessa reprovação, sua oposição, encarnada nos partidos de esquerda e de extrema-direita, aproveitou essa conjuntura para ascender.

Marine Le Pen avançou no exorcismo de seu Front National, reduzindo a importância de seu pai-fundador Jean-Marie Le Pen e dando sotaques mais amenos às suas posições controvertidas. François Hollande, por sua vez, conseguiu vender a imagem de candidato da normalidade, aquele que eleito restabeleceria o decoro político à vida pública francesa. Do primeiro turno das eleições presidenciais de 2012, François Hollande, Nicolas Sarkozy e Marine Le Pen foram os principais colocados. Do turno seguinte, François Hollande bateria Nicolas Sarkozy por escrutínio cerrado. 51% a 48%.

Imensa decepção tomou conta da equipe e dos militantes do presidente derrotado. Nicolas Sarkozy ameaçava sair da vida política. Mas os primeiros momentos da presidência Hollande se mostraram muito conturbados. Múltiplos escândalos públicos e privados foram se apoderando de sua gestão. A curva ascendente de desespero social seguiu crescente. As crises que ele prometera reverter estavam longe de ser contidas. Nesse contexto foi que os compagnons de route de Nicolas Sarkozy entraram em ação. E assim, desde fins de 2012, quantidade importante de Mémoires de responsáveis políticos ligados à presidência Sarkozy passaram a defender por escrito seu legado1 1 Entre os principais, GUAINO, Henri. La nuit et le jour. Paris: Plon, 2012. BOROIN, François. Journal de crise. Paris: Éditions JCLattès, 2012. LE MAIRE, Bruno. Jours de pouvoir. Paris : Éditions Gallimard, 2013. ALLIOT-MARIE, Michèle. Au coeur de l'État. Paris: Éditions Plon, 2013. . Entre eles, Rama Yade.

Rama Yade foi convocada a participar da campanha de Nicolas Sarkozy em 2006 por razões concretas, estratégicas e pragmáticas. Mulher, negra e imigrante assimilada, sua função era justamente entronizar uma mensagem de diversidade, de pluralidade e de tolerância da parte do candidato. Com isso se propunha que a França de uma eventual presidência Sarkozy não seria racista, nem anti-muçulmana, tampouco machista. Essa mensagem deveria ser enviada especialmente aos países africanos e aos eleitores franceses de origem africana residentes na França. Além do lobby frente aos afro-franceses pela metrópole e pelos departamentos ultramarinos, Rama Yade seria a responsável pelas turnês do presidenciável nos países africanos entre 2006 e 2007.

Eleito Nicolas Sarkozy presidente da França em maio de 2007, Rama Yade aguardaria até junho para ser nomeada ao Quai d'Orsay, para a secretaria de direitos humanos. Ela tinha 29 anos. Aos poucos foi se transformando na principal vedete do governo. Mas não impunemente. Parte importante de seu Carnets du pouvoir vai endereçada diretamente aos mais variados conflitos internos e externos que seu cargo lhe causou. Muitas das tensões foram com seus superiores diplomáticos.

Um dos momentos mais complicados teve lugar quando da visita de estado do coronel Gaddafi à França em fins de 2007. Essa visita fora resultado de três movimentos. A visita do candidato Sarkozy à Líbia em 2006, o projeto francês de unir os países do Mediterrâneo e a libertação de enfermeiras búlgaras.

Quando candidato, Nicolas Sarkozy visitara o norte da África e fora a Trípoli. Seu objetivo era restabelecer relações com a Líbia. Desde os tempos do presidente Valéry Giscard d'Estaing (1974-1981), a interação franco-libiana vem tendo mais baixos que altos. O coronel Gaddafi era tido como persona non grata e era alvo de sabotagens internacionais recorrentes. Muitas delas operadas pela França. Mitterrand e Chirac seguiram a mesma toada. Sarkozy propunha rever essa condição. Especialmente em função de seu projeto de União pelo Mediterrâneo. O candidato francês estava convencido da importância do Mediterrâneo na contenção dos imigrantes. E, para tanto, sabia ser imperativa a cooperação da Líbia de Gaddafi. Uma vez eleito, incluiu a Líbia em sua primeira visita oficial à África. Foi ver Gaddafi. Certa ratificação da imagem internacional do ditador dependeria de seus gestos. O dossiê das enfermeiras búlgaras foi o melhor encontrado.

Desde 1999 o regime do coronel mantinha cinco enfermeiras búlgaras e um médico palestino presos sob acusação de terem inoculado o vírus HIV em crianças líbias. As provas eram controversas. Mas os maus-tratos aos encarcerados eram evidentes. O apoio do presidente francês ao coronel líbio estaria condicionado à libertação desses presos. O mandatário africano liberaria as enfermeiras em meados de 2007, mas imporia como contrapartida ser recebido oficialmente no Élysée com todas as honras devidas aos chefes de estado. Esse foi o pacto. A data da recepção seria fixada para 10 de dezembro de 2007. Exatamente quando aconteceria a Journée internationale de droit de l'homme promovida por Rama Yade que reagiu.

Conquanto tenha liberado as enfermeiras, o regime líbio não deixara de ser uma ditadura tampouco de afrontar os direitos humanos. Rama Yade considerava, nesses termos, indigno receber o coronel em visita oficial na França, especialmente durante a realização da jornada pelos direitos humanos. Ciente da diatribe, o coronel, já em espaço aéreo francês, hesitava em aterrissar. O presidente francês fora informado. Sua reação foi convocar imediatamente a causadora desse mal-estar. Rama Yade quase fora defenestrada do governo nesse episódio. Nicolas Sarkozy lhe impôs se retratar. Somente após esse mea culpa o coronel se faria receber.

O balanço da visita daria razão a Rama Yade. Gaddafi impusera ao estado francês montar uma tenda nas cercanias da avenida Champs-Élysée - ele se recusava pernoitar em hotéis em todo país que lhe recebia. Exigiu o prolongamento de sua permanência. Quis ser recebido nos mais suntuosos espaços franceses. Do Louvre ao Palais de Versailles. Paris ficara ao seu encargo nesses dias de dezembro de 2007. Os protestos contrários à sua presença foram crescentes. A memória desses dias desastrosos para a presidência de Sarkozy seria em parte redimida somente na investida francesa contra o coronel na primavera de 2011.

Outro momento crítico descrito com relevo nos Carnets du pouvoir ocorrera na recepção de Bashar Al-Assad no dia da festa nacional francesa, em 14 de julho de 2008. As razões eram as mesmas. Receber ou não receber. No cálculo presidencial das ambições da União pelo Mediterrâneo, sim. Nas condicionantes da encarregada de direitos humanos, não. Mas Al-Assad acabou sendo recebido.

No contexto da libertação de Íngrid Betancourt na Colômbia em meados 2008, Nicolas Sarkozy e as lideranças da UMP iniciaram convencer Rama Yade a apresentar candidatura às eleições europeias. Queriam enviá-la de Paris a Bruxelas. A encarregada de direitos humanos hesita. Vêm os preparativos para os Jogos Olímpicos de Pequim. Dalai Lama solicita audiência com o presidente francês. Os mandatários chineses acompanham o diálogo. A relação sino-francesa dispunha de muitos avanços nos últimos tempos. Tendia a melhorar. Nicolas Sarkozy declina da solicitação do mestre espiritual. Reporta Rama Yade e Carla Bruni-Sarkozy para encontrar Dalai Lama. Viriam os contenciosos entre Rússia e Ossétia. O presidente francês fora em pessoa mediar o processo. Rama Yade ficaria a parte. Começaria a perder progressivamente espaço no governo. Tudo para fazê-la sucumbir às eleições europeias. Ela não sede. Diz não para o presidente e não ao seu partido. Setores da imprensa passariam a questionar a utilidade de uma secretaria de direitos humanos. O Élysée e a UMP intensificam ainda mais esforços para convencê-la às eleições europeias. Ela continua refutando. Permanece no cargo e no Quai d'Orsay. Mas fraca. Continuaria assim até meados de 2009, quando seria indicada para o ministério do esporte. Do esporte iria para a Unesco. Da Unesco para outro partido. Tudo relatado quase dia a dia em seus Carnets du pouvoir.

Esses e outros momentos contidos no relato de Rama Yade correspondem ao testemunho histórico vivo de uma história imediata do poder. Alguns momentos de importância como a gestão francesa da crise financeira de 2008, por exemplo, passam quase sem nenhuma menção. O que parece compreensível. As funções de Rama Yade estavam ligadas apenas indiretamente a esse tema. Mas a gestão da crise tangeu a maior parte dos movimentos da presidência Sarkozy e poderia ter sido mais frontalmente abordada. Como também a relação com os "emergentes", em especial, com o Brasil. Sobre o Brasil ela fala apenas en passant, na página 384, ao propor estratégia mais arrojada da França vis-à-vis da Guiana Francesa, "base avancée du Brésil", para melhor aproveitamento da Copa do Mundo em 2014 e das Olimpíadas em 2016. Nenhuma dessas e outras ausências diminuem a força e a energia de Carnets du pouvoir que exala acima de tudo uma convicção muito antiga e muito acertada: a política e o poder são um país de gigantes onde os fracos não têm vez.

Referências

  • ALLIOT-MARIE, Michèle. Au coeur de l'État. Paris: Éditions Plon, 2013.
  • BOROIN, François. Journal de crise. Paris: Éditions JCLattès, 2012.
  • DE GAULLE, Charles. Memoires de guerre - L'Appel, 1940-1942 (1954), L'Unité, 1942-1944 (1956), Le Salut, 1944-1946 (1959). Paris: Plon, 1954-1959.
  • GUAINO, Henri. La nuit et le jour. Paris: Plon, 2012.
  • LE MAIRE, Bruno. Jours de pouvoir. Paris: Éditions Gallimard, 2013.
  • YADE, Rama. Carnets du pouvoir. 2006-2013. Paris: Editions du Moment, 2014.
  • 1
    Entre os principais, GUAINO, HenriGUAINO, Henri. La nuit et le jour. Paris: Plon, 2012. . La nuit et le jour. Paris: Plon, 2012. BOROIN, FrançoisBOROIN, François. Journal de crise. Paris: Éditions JCLattès, 2012.. Journal de crise. Paris: Éditions JCLattès, 2012. LE MAIRE, BrunoLE MAIRE, Bruno. Jours de pouvoir. Paris: Éditions Gallimard, 2013. . Jours de pouvoir. Paris : Éditions Gallimard, 2013. ALLIOT-MARIE, MichèleALLIOT-MARIE, Michèle. Au coeur de l'État. Paris: Éditions Plon, 2013.. Au coeur de l'État. Paris: Éditions Plon, 2013.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    May-Aug 2016
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