Acessibilidade / Reportar erro

Ressignificar e resistir: a Marcha das Vadias e a apropriação da denominação opressora

Redefine and Resist: The Slut Walk and The Appropriation of the Oppressive Denomination

Resumo:

Este trabalho, embasado na sociolinguística crítica e na Teoria Dialógica do Discurso, analisa a ressignificação do adjetivo opressor proposta pelo movimento Marcha das Vadias. Assim, primeiramente, são discutidos dois temas polêmicos para a sociolinguística: o direito de nomear e a ressignificação voluntária. Após, verifica-se alguns aspectos da linguagem feminista, como a valorização do uso das formas femininas e o jargão enquanto ferramenta de exclusão. Por último, analisa-se a argumentação das organizadoras da Marcha sobre a apropriação consciente da adjetivação opressora (do termo “vadia”). Observa-se que tal adjetivo, quando utilizado pelas participantes da Marcha, é esvaziado de sentidos presentes em sua origem etimológica enquanto vocábulo brasileiro racista (para designar escravizados) e classista (para designar prostitutas), embora tente ressignificar o seu sentido machista, relativo à promiscuidade da mulher.

Palavras-chave:
Marcha das Vadias; nomeação; ressignificação; Sociolinguística

Abstract:

This work, based on Critical Sociolinguistics and on Dialogical Theory of Discourse, analyses the resignification of the oppressor adjective proposed by the Slut Walk movement. Thus, firstly, it is discussed two polemic themes to Sociolinguistics: the right to name and the voluntary resignification. Then, it is verified some aspects of the feminist language, as the valorisation of the use of feminists’ forms and the jargon whilst an exclusion tool. Finally, it is analysed the argumentation of the organizers of the Walk about the conscious appropriation of the oppressor adjective usage (of the term “slut”). It is observed that such adjective, when used by the participants of the Walk, is empty of its original etymologic meanings whilst a racist Brazilian vocabulary (to designate enslaved people) and classist (to designate prostitutes), although it tries to resignificate its macho meaning, related to the promiscuity of the woman.

Keywords:
Slut Walk; appointment; redefinition; Sociolinguistics

A opressão não é uma atitude, é um sistema de poder. Marilyn Frye

Colonizadores, exploradores e opressores têm, no direito de nomear, uma forma de dominar os colonizados, explorados e oprimidos, desvalorizando-os ou deles se apropriando. Existem muitos exemplos desta tendência nos estudos da sociolinguística. Louis-Jean Calvet (1974CALVET, Louis-Jean. Linguistique et colonialisme: petit traité de glottophagie. Paris: Payot, 1974.), em Linguistique et colonialisme, refere que os índios da América do Norte foram batizados pelo nome de seus conquistadores. Florence CARBONI e Mário MAESTRI (2002CARBONI, Florence; MAESTRI, Mário. A Linguagem Escravizada: Língua, história, poder e luta de classes. 3.ed. São Paulo: Expressão Popular, 2002.), em A Linguagem Escravizada: Língua, história, poder e luta de classes, mostram que os exploradores nomearam como “escravos” os trabalhadores escravizados negros, sendo esta uma forma de naturalizar a escravidão. Marina Yaguello (1978YAGUELLO, Marina. Les mots et les femmes: essai d’approche socio-linguistique de la condition féminine. Paris: Payot, 1978.), em Les mots et les femmes: essai d’approche socio-linguistique de la condition féminine, argumenta que uma das formas que os homens têm de demonstrar a sua posse sobre suas esposas é fazer com que adotem o sobrenome marital, ou chamá-las como “minha mulher”.

Existe, todavia, como forma de resistência dos oprimidos, a inclinação à apropriação dos termos opressores para tentar revalorizá-los. Assim, um dos instrumentos de luta dos dominados consiste na revalorização dos termos utilizados pelos dominadores, sendo os termos pejorativos revolvidos e “transformados em termos militantes positivos” (YAGUELLO, 1978YAGUELLO, Marina. Les mots et les femmes: essai d’approche socio-linguistique de la condition féminine. Paris: Payot, 1978., p. 45).

Na atualidade, vemos tal fenômeno sendo empregado no Brasil nas mais diversas áreas por campanhas publicitárias, movimentos sociais, bandas de música e, até mesmo, marcas de produtos. É o caso da campanha “Somos todos Macacos” (lançada em 2014 na internet por uma agência publicitária), do movimento “Marcha das Vadias” (iniciado em 2011, tendo como precedente a SlutWalk canadense1 1 Como a Marcha das Vadias foi escolhida para a análise no presente trabalho, na próxima seção será apresentada a história do movimento no Brasil, com o objetivo de uma melhor contextualização. ), da banda gaúcha “Putinhas Aborteiras” (grupo feminista que causou polêmica na internet em 2014), entre outros.

Todavia, devido ao caráter polêmico desta apropriação, uma das principais críticas ao movimento Marcha das Vadias centrou-se, justamente, em sua nomenclatura, em virtude da apropriação do adjetivo “vadia”. As organizadoras de diversos coletivos estaduais deste movimento social justificavam tal apropriação como sendo consciente, com a finalidade de ressignificar tal palavra. Baseavam a tentativa de ressignificação na luta pela liberdade sexual, enunciando que “se ser livre é ser vadia, então, somos todas vadias”.

Porém, segundo alguns grupos feministas não adeptos à Marcha (ou que dela participavam apenas para poderem incorporar suas demandas neste espaço de visibilidade), tal ressignificação realizada pelo movimento não se solidarizava com todas as mulheres, principalmente com aquelas que não são livres para escolher serem ou não tratadas como vadias, não possuindo autonomia sobre seus corpos e a sua sexualidade, como é o caso das mulheres prostituídas, das mulheres que sofrem violência sexual, das mulheres negras e indígenas e das mulheres não pertencentes à elite. Assim, verificamos outro conflito, interno ao movimento feminista, e percebemos que “os próprios conflitos de tendência dentro do movimento também se refletem no código” (YAGUELLO, 1978YAGUELLO, Marina. Les mots et les femmes: essai d’approche socio-linguistique de la condition féminine. Paris: Payot, 1978., p. 46).

Pensando na dissimetria que surgiu entre a proposta de ressignificação feita pelo movimento Marcha das Vadias e a crítica realizada pelas feministas não adeptas a ele, vemos a importância de analisarmos o código linguístico utilizado pelo movimento, com o objetivo de observar como a apropriação do substantivo opressor para designar coletivamente as participantes desse movimento social refletiu-se nas ideologias defendidas por tal movimento. Vista a heterogeneidade de discursos feministas produzidos a favor e contra a Marcha das Vadias, o presente trabalho contribuirá para o estudo do código feminista em questão e para a análise da proficuidade das estratégias linguísticas e da linguagem adotadas pelo movimento Marcha das Vadias.

Assim, para iniciar a discussão, para fins de contextualização, primeiramente apresentaremos de forma sucinta a história do movimento no Brasil. Após, exporemos a teoria em que baseamos o presente trabalho, tratando, principalmente, da manifestação da ideologia na linguagem proposta pela Teoria Dialógica do Discurso, do direito de nomear segundo Calvet (1974CALVET, Louis-Jean. Linguistique et colonialisme: petit traité de glottophagie. Paris: Payot, 1974.) e do discurso feminista e antifeminista, de acordo com Marina Yaguello (1978YAGUELLO, Marina. Les mots et les femmes: essai d’approche socio-linguistique de la condition féminine. Paris: Payot, 1978.). Por último, questionaremos a escolha do termo “vadia” para nomear coletivamente as participantes da Marcha das Vadias em detrimento a tantos outros termos machistas que poderiam ter sido escolhidos e o reflexo da apropriação do termo sobre a ideologia do movimento.

A Marcha das Vadias no Brasil

A Marcha das Vadias brasileira2 2 O histórico aqui apresentado não se pretende exaustivo, sendo traçado através da vivência da autora sobre a Marcha das Vadias. teve sua origem na SlutWalk canadense, que ocorreu pela primeira vez na cidade de Toronto, em janeiro de 2011, após o discurso realizado pelo policial Michael Sanguinette na Universidade de Toronto. O policial afirmou que, para não serem vítimas de estupro, as mulheres não deveriam se vestir como “sluts” (termo que no Brasil foi traduzido como “vadias”). Tal afirmação levou cerca de três mil pessoas às ruas de Toronto, em uma marcha sem precedentes pela desculpabilização da mulher vítima de violência sexual.

Assim, a SlutWalk se disseminou por diversos países, sendo realizada nos Estados Unidos, Reino Unido, Austrália, Holanda, Suécia, Israel, Índia, México, Honduras, Argentina, Colômbia, Costa Rica, Peru, Equador, Uruguai, Nicarágua, Panamá, em Portugual e no Brasil. No idioma espanhol, o nome SlutWalk foi traduzido primeiramente como Marcha de las Puercas e, depois, popularizou-se como Marcha de las Putas. Diferindo da tradução para o Português Brasileiro, no Português de Portugal, o movimento é chamado de Marcha das Galdérias, tendo ocorrido, ainda, em 2018.

O Brasil, porém, parece ter sido o país pelo qual a SlutWalk mais se propagou. Após a primeira Marcha das Vadias, que ocorreu em 4 de junho de 2011, em São Paulo, a Marcha já foi realizada nas cidades de Recife, João Pessoa, Campina Grande, Salvador, Itabuna, Fortaleza, Teresina, Brasília, Cuiabá, São Paulo, São José do Rio Preto, Rio de Janeiro, Goiânia, Belo Horizonte, Vitória, Curitiba, Londrina, Ponta Grossa, Florianópolis, Criciúma, Porto Alegre, Pelotas e Santa Maria.

A Marcha das Vadias brasileira é organizada por diferentes coletivos, erradicados em cada cidade em que ocorre. Percebemos que os coletivos organizadores são adeptos a tendências feministas várias (pertencendo alguns a mais de uma tendência) e, por este motivo, adotam diferentes bandeiras e formas diversas de ação durante as marchas, unificando-se, porém, no discurso pela liberdade sexual e pelo empoderamento feminino e LGBT. Desde 2016, no entanto, os coletivos organizadores da Marcha brasileira vêm tomando a frente de outras manifestações, como, por exemplo, pela legalização do aborto, contra o feminicídio etc.

O direito de nomear e as relações de gênero, raça e classe

“Quando eu uso uma palavra”, disse Humpty Dumpty num tom bastante desdenhoso, “ela significa exatamente o que quero que signifique: nem mais nem menos”.“A questão é”, disse Alice, “se pode fazer as palavras significarem tantas coisas diferentes”.“A questão”, disse Humpty Dumpty, “é quem manda - só isto”. (Lewis Carroll, Através do Espelho e o que Alice encontrou por lá, 2009)

Como já dissemos, uma das formas em que se apresenta linguisticamente a tensão entre opressores e oprimidos é no direito de nomear. Calvet (1974CALVET, Louis-Jean. Linguistique et colonialisme: petit traité de glottophagie. Paris: Payot, 1974.), em Linguistique et colonialismo, refere que o direito de nomear (e, por conseguinte, de adjetivar) é um fenômeno inerente ao colonialismo, posto que o colonialismo (e o imperialismo) vem acompanhado de fenômenos secundários, entre os quais os linguísticos e as práticas linguageiras.

Calvet apresenta exemplos históricos para demonstrar que colonizadores e invasores chamam da forma que querem as populações com as quais entram em contato, por considerarem-nas sempre inferiores a eles; os gregos chamaram de “bárbaros” os que falavam outra língua que não o grego; os eslavos chamaram os alemães de némits, que significava “mudo”, talvez devido ao fato de falarem outra língua; os índios da América do Norte foram batizados de modo fantasioso, como se não tivessem existido antes da chegada dos colonizadores; os povos antropofágicos foram chamados de canibais pelos espanhóis, uma deformação de caribe, palavra da língua dos Caraïbes das Antilhas, que significava algo como “corajoso” e que servia para designar esse povo. Desta forma, é possível dizer que o direito de nomear seria, para Calvet, o paralelo linguístico do direito de se apropriar.

Pensando nas relações de gênero, raça e classe, também verificamos a existência de tal direito, o qual é utilizado pelo gênero, pela etnia e pela classe dominante como uma forma de impor e perpetuar a sua dominação, disseminando suas ideologias, até mesmo aos seus oprimidos. Mikhail Bakhtin (2016BAKHTIN, Mikhail. Os gêneros do discurso. São Paulo: Editora 34, 2016.), principal autor da chamada Teoria Dialógica do Discurso, em Os Gêneros do Discurso, diz que

em cada época, em cada círculo social, em cada micromundo familiar, de amigos e conhecidos, de colegas, em que o homem cresce e vive, sempre existem enunciados investidos de autoridade que dão o tom, como obras de arte, ciência, jornalismo político, nas quais as pessoas se baseiam, as quais elas citam, imitam, seguem. Em cada época, e em todos os campos da vida e da atividade, existem determinadas tradições, expressas e conservadas em vestes verbalizadas: em obras, enunciados, sentenças, etc. Sempre existem essas ou aquelas ideias determinantes dos “senhores do pensamento” de uma época verbalmente expressas, algumas tarefas fundamentais, lemas, etc. (p. 54).

Ora, considerando que o “poder da palavra é o poder de mobilizar a autoridade acumulada pelo falante e concentrá-la num ato linguístico” (Pierre BOURDIEU, 1977, apud Maurizio GNERRE, 1987GNERRE, Maurizio. Linguagem, Escrita e Poder. São Paulo: Martins Fontes, 1987., p. 5), quem são estes ‘senhores do pensamento’, se “as ideias dominantes de uma época sempre foram as ideias da classe dominante” (Karl MARX; Friedrich ENGELS, 1996MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Manifesto do Partido Comunista. 6.ed. Petrópolis: Vozes, 1996., p. 85)? De quem são as ideologias, as tradições e os valores hegemônicos nos enunciados, senão os dos dominadores?

Pierre Bourdieu (2011BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. Tradução de Maria Helena Kühner. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2011.), em A Dominação Masculina, reflete sobre como é imposta e vivenciada a submissão feminina, e refere que a dominação masculina resulta de violência simbólica, suave, insensível e invisível a suas próprias vítimas, “que se exerce essencialmente pelas vias puramente simbólicas da comunicação e do conhecimento, ou, mais precisamente, do descobrimento, do reconhecimento ou, em última instância, do sentimento” (BOURDIEU, 2011BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. Tradução de Maria Helena Kühner. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2011., p. 7-8).

De acordo com Volochínov (ou Bakhtin) (2010) em Marxismo e Filosofia da Linguagem, toda palavra usada na interação real possui não apenas um tema (um sentido definido e único, que pertence a cada enunciação como um todo, dependente da situação histórica concreta) e uma significação (elementos da enunciação que são reiteráveis e idênticos cada vez que são repetidos), “mas também um acento de valor ou apreciativo” (BAKHTIN, 2010BAKHTIN, Mikhail. (V. N. Volochínov) Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico da linguagem. Prefácio de Roman Jakobson. Apresentação de Marina Yagello. Tradução de Michel Lahud e Yara Frateschi. 14.ed. São Paulo: Hucitec, 2010., p. 137). Para o autor, a língua é uma superestrutura que reflete e refrata a base de uma sociedade, ou seja, a língua é capaz de descrever a realidade, mas também é capaz de transformá-la. Assim, existe uma interinfluência entre a linguagem e os fenômenos sociais.

Além disso, a partir do entendimento de que 1) o enunciado, o estilo e a composição são determinados pelo elemento semântico-objetal e por seu elemento expressivo, isto é, pela relação valorativa do falante com o elemento semântico-objetal do enunciado; 2) a expressão do enunciado é, muitas vezes, determinada não apenas pelo seu conteúdo semântico-objetal, mas também pelos enunciados do outro sobre o mesmo tema, aos quais respondemos e com os quais polemizamos, e 3) a nossa ideia nasce e se forma no processo de interação e de luta com os pensamentos dos outros (BAKHTIN, 2016BAKHTIN, Mikhail. Os gêneros do discurso. São Paulo: Editora 34, 2016., p. 56-57), percebemos que, se a dominação masculina é exercida de forma simbólica, invisível, através das vias da comunicação e do conhecimento, uma das formas utilizadas para o seu estabelecimento e perpetuamento é justamente o entranhamento no elemento expressivo dos enunciados. Este elemento expressivo, também chamado de entoação avaliativa e de valor apreciativo, não é responsável apenas pela relativa estabilidade, mas também pela mudança na significação da palavra: “A mudança linguística é sempre uma reavaliação: o deslocamento de uma palavra determinada de um contexto apreciativo para outro” (BAKHTIN, 2010, p. 140-141).

Posto que o dialogismo é inerente ao texto, não sendo percebido apenas no discurso indireto, estando também o discurso direto de um autor repleto de palavras dos outros (BAKHTIN, 2010, p. 321), não se pode interpretar as relações dialógicas reduzindo-as à contradição, à luta e ao desacordo; “a concordância é uma das formas mais importantes das relações dialógicas” (BAKHTIN, 2010, p. 333). A concordância é inerente à dominação e à violência simbólica, pois, “salvo uma revolta subversiva que conduza à inversão das categorias de percepção e avaliação, o dominado tende a assumir a respeito de si mesmo o ponto de vista dominante” (BOURDIEU, 2011BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. Tradução de Maria Helena Kühner. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2011., p. 144).

Desta forma,

o direito de nomear é uma prerrogativa do grupo dominante sobre o grupo dominado. Assim, os homens possuem milhares de palavras para designar as mulheres, sendo a imensa maioria delas pejorativas. O inverso não ocorre. A dissimetria, ao mesmo tempo quantitativa e qualitativa é flagrante (YAGUELLO, 1978YAGUELLO, Marina. Les mots et les femmes: essai d’approche socio-linguistique de la condition féminine. Paris: Payot, 1978., p. 150).

Em uma sociedade patriarcal, verifica-se a inferiorização do gênero feminino já nas palavras “homem” e “mulher”.3 3 Este exemplo é utilizado por Simone de Beauvoir, Florence Carboni e por Marina Yaguello nas obras destas autoras aqui referenciadas. Simone de Beauvoir (1970BEAUVOIR, Simone de. O Segundo Sexo: Fatos e mitos. Tradução de Sérgio Milliet. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1970.), em O Segundo Sexo, diz que

o homem representa a um tempo o positivo e o neutro, a ponto de dizermos “os homens” para designar os seres humanos, tendo-se assimilado ao sentido singular do vocábulo vir o sentido geral da palavra homo. A mulher aparece como o negativo, de modo que toda determinação lhe é imputada como limitação, sem reciprocidade (p. 9).

É possível perceber que, à palavra homem, os sentidos atribuídos são de valores mais neutros em comparação à palavra mulher: o macho humano e os seres humanos em geral são denominados assim. À palavra mulher são atribuídos os sentidos de fêmea humana e de esposa do homem. Verificamos, neste segundo sentido, de forma direta, a relação de posse do gênero masculino sobre o feminino sendo denominada, uma vez que essa sempre vem acompanhada de um pronome possessivo ou de um adjunto adnominal que indique posse: a minha mulher, a sua mulher, a mulher de fulano.

Sobre a concordância com os valores patriarcais presentes nos enunciados produzidos por mulheres, Simone de Beauvoir (1970BEAUVOIR, Simone de. O Segundo Sexo: Fatos e mitos. Tradução de Sérgio Milliet. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1970.) analisa o fato de proletários e negros dizerem “nós”, apresentando-se como sujeitos e transformando em “outros” os “burgueses e os brancos”, enquanto que

as mulheres - salvo em certos congressos que permanecem manifestações abstratas - não dizem “nós”. Os homens dizem “as mulheres” e elas usam essas palavras para se designarem a si mesmas: mas não se põem autenticamente como Sujeito. Os proletários fizeram a revolução na Rússia, os negros no Haiti, os indo-chineses bateram-se na Indo-China: a ação das mulheres nunca passou de uma agitação simbólica; só ganharam o que os homens concordaram em lhes conceder; elas nada tomaram; elas receberam (p. 11).

Através da análise de Beauvoir, podemos inferir que, se os dominadores têm no direito de nomear o correspondente linguístico ao direito de se apropriar, a revolução dos dominados passa pela consciência linguística e pela autodenominação. A consciência linguística, no entanto, perpassa os elementos da língua. É preciso que se tenha consciência da dominação, dos valores presentes na sociedade. É preciso que se tenha consciência de que o preconceito linguístico não ocorre apenas no nível linguístico. É preciso que seja reivindicada a igualdade, que sejam reivindicados direitos e espaços negados. Apenas assim a mudança do valor apreciativo de uma palavra pode gerar a sua ressignificação.

A linguagem feminista no Brasil: da inversão de conotações e valorização do feminino à busca por neutralidade de gênero

Se uma mulher e seu cachorro estão atravessando a rua e um motorista embriagado atinge essa senhora e seu cão, o que vamos encontrar no noticiário é o seguinte: “Mulher e cachorro são atropelados por motorista bêbado”. Não é impressionante? Basta um cachorro para fazer sumir a especificidade feminina de uma mulher e jogá-la dentro da forma supostamente “neutra” do masculino. (Marcos Bagno)

Como já dito por Marina Yaguello (1978YAGUELLO, Marina. Les mots et les femmes: essai d’approche socio-linguistique de la condition féminine. Paris: Payot, 1978.), “o código feminista é o instrumento de uma retórica e de uma teorização” (p. 71), possuindo algumas especificidades, embora algumas dessas especificidades dependam do feminismo tido como pano de fundo do discurso em questão. Assim, de maneira simplista, vemos o feminismo socialista e o feminismo radical trazendo empréstimos do código marxista para a sua argumentação, bem como o feminismo liberal trazendo empréstimos do código neoliberal para fundamentar suas teorias. Um exemplo disso é o uso dos termos “revolução” e “lugar da fala” pelas feministas radicais, empréstimos do código marxista revolvidos pela ideologia feminista radical e o sentido individualista da palavra “liberdade” defendido pelo feminismo liberal.

Uma especificidade que pertence à linguagem feminista em geral é a inversão de sentidos e a valorização do feminino (YAGUELLO, 1978YAGUELLO, Marina. Les mots et les femmes: essai d’approche socio-linguistique de la condition féminine. Paris: Payot, 1978., p. 74), embora se veja a tendência da busca por neutralidade de gênero pelo feminismo liberal e pelo transfeminismo e, muitas vezes, pelo feminismo socialista, como será visto a seguir. Assim, buscando exemplos brasileiros, vemos a valorização do feminino, por exemplo, no título “presidenta”, escolhido por Dilma Roussef, primeira mulher a exercer o cargo no Brasil, para se autonomear, escolha essa que rendeu inúmeras discussões, pelo fato de a variante sufixal -nta ter baixa produtividade na Língua Portuguesa, chegando alguns lexicógrafos a afirmar que a palavra seria um neologismo desnecessário (apesar de já ser, antes de sua escolha por Dilma Roussef, inclusive, dicionarizada!), sendo as palavras terminas em -nte invariáveis. Vemos, também, serem utilizadas pelas feministas (principalmente pelas radicais) as denominações “grupa” e “coletiva” e a saudação “beijas”, a escolha de uma forma feminina em detrimento da forma masculina dicionarizada.

No livro Carta de uma orientadora: o primeiro projeto de pesquisa, a pesquisadora feminista Debora Diniz (2012DINIZ, Debora. Carta de uma orientadora: o primeiro projeto de pesquisa. Brasília: Letras Livres, 2012.) defende que

por uma coerência textual à minha existência, escrevo no feminino. A referência ‘orientandas’ e ‘orientadoras’, ‘professoras’ e ‘autoras’ não significa que esta carta [livro] não tenha destinatários homens ou que os autores não sejam referências confiáveis na pesquisa. Ao contrário, exatamente porque o lugar dos homens está tão bem assegurado na pesquisa acadêmica é que arrisquei a transgressão de escrever esta carta no feminino universal [...] (p. 37).

Assim, na atualidade, é recorrente que em estudos acadêmicos escritos por feministas sejam valorizadas as formas femininas, em detrimento das formas masculinas e ditas como neutras.

Os conflitos entre grupo dominante e grupo dominado manifestam-se por tensões no uso da língua. Dessa maneira, “os diversos grupos em conflito na sociedade puxam a língua para si, assim como se puxa o cobertor para si” (YAGUELLO, 1978YAGUELLO, Marina. Les mots et les femmes: essai d’approche socio-linguistique de la condition féminine. Paris: Payot, 1978., p. 70), fato que justifica a atribuição de diferentes valores a uma mesma palavra, já que as palavras são neutras, não são de ninguém, mas podem abastecer “os juízos de valor mais diversos e diametralmente opostos dos falantes” (BAKHTIN, 2016BAKHTIN, Mikhail. Os gêneros do discurso. São Paulo: Editora 34, 2016., p. 48). Um exemplo da tentativa da inversão de sentido de termo machista no Brasil é verificado na Marcha das Vadias, no uso do substantivo machista “vadia”, para designar as participantes do movimento.

Como já citamos, outro recurso que vem sendo adotado pelas feministas liberais, transfeministas e, até mesmo, pelo feminismo socialista, é a busca por uma linguagem neutra, através da utilização do “X” e do “@” no lugar das vogais desinenciais de gênero (-a, -o, e, até mesmo, -e). Tal fenômeno vem sendo chamado de Português com Inclusão de Gênero (PCIG). Assim, diz-se: “amigXs” e “amig@s”, “todXs” e “tod@s”, “professorXs” e “professor@s”, “alunXs” e “alun@s”, e assim por diante.

Pensando nos fatos linguísticos conflitantes com esta troca, percebemos, em primeiro lugar, que a proposta de mudança apresenta uma alternativa para a escrita, e não para a leitura. Sabemos também que, formalmente, não se considera que exista desinência de gênero masculino em Língua Portuguesa, apenas de feminino, visto que “o masculino e singular se caracterizam pela ausência das marcas de feminino e plural” (Joaquim Mattoso CÂMARA JR., 2009CÂMARA JÚNIOR, Joaquim Mattoso. Estrutura da língua portuguesa. 42.ed. Petrópolis: Vozes, 2009., p. 84), fato que, pela gramática formal, não justificaria esta mudança na desinência. Afora tudo isso, “o fato é que todo ser humano concreto sempre se situa de um modo singular” e a busca pela neutralidade é uma forma de se combater essa singularidade, negando-a. Porém, “a negação não representa para os interessados uma libertação e sim uma fuga inautêntica” (BEAUVOIR, 1970BEAUVOIR, Simone de. O Segundo Sexo: Fatos e mitos. Tradução de Sérgio Milliet. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1970., p. 8).

O PCIG é uma proposta da Teoria Queer que afirma que gênero, orientação e identidade sexual são elementos socialmente construídos. Esta teoria tem suas bases no feminismo radical (que afirma que o gênero é socialmente construído), mas está muito mais ligada aos movimentos LGBTs do que ao feminismo propriamente dito, tendo homens como principais teóricos, embora, atualmente, seja possível perceber um movimento das mulheres transexuais, buscando o protagonismo deste.

A Teoria Queer, assim como o feminismo liberal, baseia-se na ideia neoliberal de que o indivíduo é mais importante do que o coletivo. Na Teoria Queer, o gênero é visto como uma característica pessoal e individual, e politicamente neutra. Diz-se “identidade de gênero”. Mas, se os sujeitos são políticos, como pode que uma característica pessoal, que tanto oprime, seja politicamente neutra? Por qual motivo, como questiona Gayatri Chakravorty SPIVAK (2010SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Pode o subalterno falar? Tradução de Sandra Regina Goulart Almeida, Marcos Pereira Feitosa, André Pereira Feitosa. Belo Horizonte: EDUFMG, 2010.) em Pode o subalterno falar?, “a corrente principal do feminismo ocidental tanto continua quanto desloca a batalha sobre o direito ao individualismo entre homens e mulheres em situação de ascensão social”? (p. 89)

Questionamos, então, o uso desta proposta pelo movimento feminista, já que “nenhum setor oprimido da sociedade [...] pode confiar a outras forças a direção e o desenvolvimento de sua luta pela liberdade - ainda que essas forças se comportem como aliadas” (Evelyn REED, 2008REED, Evelyn. Sexo Contra Sexo ou Classe Contra Classe. São Paulo: Instituto José Luís e Rosa Sundermann, 2008., p. 21). Nós, mulheres, que, como dito na seção anterior, pouco nos denominamos/afirmamos/identificamos como grupo, não podemos permitir continuar sendo invisibilizadas por códigos linguísticos nos quais nunca temos vez.

Também é importante destacarmos que, muitas vezes, o jargão feminista acaba sendo uma ferramenta de exclusão no próprio movimento. Dependendo de quem o fala e de quem o entende, acabamos percebendo quem adere ao movimento.

Muitas mulheres dizem que não basta tomar consciência da opressão; ainda é preciso ter palavras para dizê-lo (YAGUELLO, 1978YAGUELLO, Marina. Les mots et les femmes: essai d’approche socio-linguistique de la condition féminine. Paris: Payot, 1978., p. 76). Assim, há uma diferença entre expressar o “meu sentimento pessoal a respeito de uma situação que permanece individual” e expressar o mesmo “em termos de divisão de papéis, de ideologia sexista, de sociedade androcentrista feita pelos homens, para os homens”, pois se passa do particular ao coletivo, de um sentimento pessoal a uma ideologia constituída.

Porém, embora alguns termos feministas tenham sido “digeridos” pela língua comum (Marina Yaguello cita as palavras “machista” e “sexista” como exemplos), no que se refere à linguagem feminista, ainda há “o perigo do pedantismo, do elitismo, do hermetismo. Quando não se faz parte dos iniciados, o discurso feminista pode ser tão crítico quanto qualquer outro discurso machista” (YAGUELLO, 1978YAGUELLO, Marina. Les mots et les femmes: essai d’approche socio-linguistique de la condition féminine. Paris: Payot, 1978.). Deste modo,

o jargão feminista não deve tornar-se o monopólio de uma elite e, portanto, o instrumento de um novo poder. O terrorismo verbal dentro do feminismo não é incomum. Há aquelas que sabem falar e as que não sabem. E, curiosamente, a diferença é muitas vezes uma questão de classe social (YAGUELLO, 1978YAGUELLO, Marina. Les mots et les femmes: essai d’approche socio-linguistique de la condition féminine. Paris: Payot, 1978., p. 77).

Se a própria compreensão já é dialógica (YAGUELLO, 1978YAGUELLO, Marina. Les mots et les femmes: essai d’approche socio-linguistique de la condition féminine. Paris: Payot, 1978., p. 77), e se “toda visão de mundo, toda corrente, todo ponto de vista, toda opinião sempre têm uma expressão verbalizada” (YAGUELLO, 1978, p. 77), para contestar ou aderir a um determinado ponto de vista é necessário compreender o código utilizado pelo grupo que o produz/reproduz. Assim, acreditamos que é necessário conhecer o(s) código(s) feminista(s), para poder, através dele(s), combater a dominação masculina (ou, mesmo, para criticar o feminismo ou alguma teoria feminista específica).

Somos todas vadias? Análise da tentativa de ressignificação do adjetivo opressor pelo Movimento Marcha das Vadias

Recuperar as origens da palavra “vadia” enquanto adjetivo pejorativo, referente às mulheres que possuem liberdade sexual, não é tarefa fácil. Sabemos, porém, que, no Português de Portugal (PP), a palavra vadia não possui a mesma significação que possui no Português Brasileiro (PB). Buscaremos, no entanto, traçar brevemente a etimologia da palavra. Não encontramos, no Vocabulário portuguez e latino (1712-1728) de Raphael Bluteau (1721BLUTEAU, Raphael. Vocabulario Portuguez e latino. v. 08, letras T-Z. Lisboa: Officina de Pascoal da Sylva, Impressor de Sua Magestade, 1721. Disponível em Disponível em https://digital.bbm.usp.br/handle/bbm/5441 . Acesso em 12/12/2016.
https://digital.bbm.usp.br/handle/bbm/54...
), dito o primeiro dicionário da língua portuguesa, o vocábulo “vadia”, com o sentido apontado. Há, no entanto, o verbete “vadio”:

he o que chega a hum lugar e deixa passar vinte dias sem tomar amo, ou aquelle que não vive com amo, nem tem officio, nem outro mister, nem ganha sua vida, nem anda negociando algum negocio seu, nem alheyo, ou o que tomou amo e o deixou, e não continuou a servir. Vagabundo (p. 345).

No Novo Diccionário da Língua Portuguesa, de Candido de Figueiredo (1913FIGUEIREDO, Candido de. Novo diccionário da língua portuguesa. Lisboa: Liv. Clássica Ed., 1913. ), o mesmo ocorre: “vadio, sm. e adj. O que não tem ocupação ou que não faz nada. O que vagueia; vagabundo; tunante. Próprio de gente ociosa” (p. 2058). De acordo com o autor, vadio viria do árabe baladí, que significa fútil, frívolo. Aurélio Buarque de Holanda Ferreira (1986FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Dicionário da Língua Portuguesa. 2.ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.), em seu Novo Dicionário da Língua Portuguesa, aponta, no entanto, que a palavra viria do latim vagativu, que significa “vagabundo”. Aurélio, porém, já apresenta o verbete “vadia”: “[Fem. de vadio] S. F. Bras., Gír. V. piranha” (p. 1748). Para Aurélio, “vadia” seria então sinônimo de “piranha”, que, por sua vez, seria “Bras. Gír. Mulher que, sem ser necessariamente meretriz, leva vida licenciosa; piranhuda, pistoleira, bocetinha” (FERREIRA, 1986FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Dicionário da Língua Portuguesa. 2.ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986., p. 1336).

As palavras vadio e vadia podem ter vindo também do latim vatis, que significava profeta ou profetisa, sibila, poeta ou poetisa, ou do latim vado, caminhar.4 4 Os significados aqui apontados foram retirados de VALLE, Gabriel. Dicionário latim-português. São Paulo: Thompson, 2004. p. 862-864. Todavia, o que levou a palavra “vadia” a estabilizar seu sentido machista no PB nos interessa mais do que a sua origem em outras línguas.

Acreditamos, no entanto, que as palavras “vadio” e “vadia” possuem uma etimologia não apenas machista, mas também racista e classista. Antes da abolição da escravatura, era considerado vadio o escravizado que não aceitava o trabalho forçado e o trabalhador livre que não possuía ofício. Em obras de vários autores consagrados da literatura brasileira, vemos a palavra sendo empregada com este sentido, nomeando aqueles que não trabalhavam, apesar de necessitarem. Nestas obras, a palavra “vadia” denominava mulheres que não gostavam muito de trabalhar, sentido que dificilmente é dado à palavra na forma feminina nos dias atuais. Em Verso e Reverso, José de Alencar (1864ALENCAR, José de. Verso e Reverso. Comédia em dois atos. Rio de Janeiro: B. L. Garnier Editor, 1864.) apresenta o seguinte diálogo entre a personagem Júlia e seu pai:

JÚLIA - Não sei, papai, por que ainda dá dinheiro a esta velha. É uma vadia!

TEIXEIRA - Uma pobre mulher! Para que Deus deu aos abastados senão para esperdiçar com os que não têm? (p. 78).

Sobre o ato de vadiar, em Memorial de Aires, Joaquim Maria Machado de Assis (2003ASSIS, Joaquim Maria Machado de. Memorial de Aires. São Paulo: Martin Claret, 2003 [1888]. [1888]) afirmava que “Vadiação é bom costume” (p. 65). Apesar disso, a vadiagem era considerada, até 2012, poucos anos atrás, uma contravenção penal, de acordo com o artigo 59 do Decreto-lei nº 3.688, de 3 de outubro de 1941, que puniria com pena de prisão de quinze dias a três meses aquele ou aquela que se entregasse “habitualmente à ociosidade, sendo válido para o trabalho, sem ter renda que lhe assegure meios bastantes de subsistência, ou prover à própria subsistência mediante ocupação ilícita” (BRASIL, 1941BRASIL. Decreto-Lei nº 3.688, de 3 de outubro de 1941. Lei das Contravenções Penais. Disponível em Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Decreto-Lei/Del3688.htm . Acesso em 3/12/2016.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Dec...
). Praticar vadiagem era, assim, contravenção não passível de fiança, mas apenas para aqueles que não possuíam meios de prover a própria subsistência.

Sobre a ressignificação proposta pela Marcha das Vadias, cabe destacar a argumentação das organizadoras nos inúmeros países em que ela ocorre. A SlutWalk foi desencadeada por uma reação ao discurso de um homem que culpabilizava as mulheres vítimas de estupro por este ter ocorrido, dizendo que, se não se vestissem como vadias, não seriam estupradas, discurso este que é bastante recorrente em nossa sociedade, não apenas no Canadá, país em que o fato ocorreu, mas também nos demais países que aderiram ao movimento, incluindo o Brasil. A ressignificação passa pela revalorização da palavra, tomando esta o valor de designar a mulher livre: “se ser livre é ser vadia, somos todas vadias”.

Precisamos, contudo, analisar tal revalorização. Como já dissemos, os valores estabilizados na sociedade são estabilizados na linguagem, existindo uma interinfluência entre estes valores, podendo a mudança dos modos de pensar de uma sociedade transformar o tom apreciativo de uma palavra da língua, e, talvez em menor escala, o oposto pode também ocorrer. Deste modo, a proposta de ressignificação feita pelo movimento Marcha das Vadias não ocorre apenas no nível linguístico. Procura-se, através dos manifestos do movimento, a conscientização do machismo existente na sociedade, procura-se igualdade de direitos e uma autonomia feminina. No entanto, devemos pensar que o termo “vadia” é um vocábulo revolvido de valores racistas e classistas e não apenas machistas, como já apontamos, e que a revalorização empreendida pelo movimento acaba por não problematizar os citados valores, os quais contribuem para manutenção da dominação masculina.

Cabe, porém, apontar que tal igualdade deve também passar por uma avaliação de classe, caso contrário, a tentativa de revalorização realizada pelas organizadoras da Marcha enquanto ferramenta do empoderamento feminino não será consistente, pois não serão todas as mulheres contempladas com esta igualdade. Além disso, se deixar de ser considerado o fato de muitas mulheres (pobres, negras, índias, prostituídas) não possuírem autonomia sobre os seus corpos e não poderem se enunciar como sexualmente livres, o empoderamento das mulheres, expressão tão cara às feministas de hoje, não significará “outra coisa que dar poder a determinadas mulheres escolhidas a dedo para que continuem oprimindo os infelizes oprimidos que não tiveram a mesma sorte” (Carmen CARRASCO; Mercedes PETIT, 2012CARRASCO, Carmen; PETIT, Mercedes. Mulheres Trabalhadoras e Marxismo. São Paulo: Sundermann, 2012., p. 12). É importante também que sejam consideradas as tentativas de revalorização das palavras machistas empreendidas pelas mulheres subalternizadas enquanto estratégias feministas.

Além disso, acreditamos que o movimento esteja indo no sentido correto ao buscar pautas mais pontuais, porém, mais abrangentes, tais como a luta pela descriminalização do aborto, importantes para a libertação das mulheres de todas as classes sociais, sobretudo, das mulheres da classe trabalhadora. As mudanças estruturais em nossa sociedade resultantes de nossa resistência, possivelmente, possibilitarão uma linguagem que não nos qualifique de forma pejorativa. Até lá, no entanto, que sigamos ressignificando a nomeação opressora, e lutando pela nossa valorização na sociedade.

Considerações finais

Através da análise da argumentação sobre a ressignificação do termo “vadia” pelo movimento Marcha das Vadias, observamos que, na mudança do valor apreciativo realizada pela Marcha, ocorre a atribuição de valor positivo ao termo “vadia”, antes tido como negativo pela ideologia machista. O termo continua com seu significado original (de mulher sexualmente livre), porém, tal significado é revalorizado, de forma que o seu significado quanto à liberdade sexual feminina passa a ser visto como algo positivo.

Apontamos, porém, que tal adjetivo, quando utilizado pelas participantes da Marcha, é esvaziado de sentidos presentes em sua origem etimológica enquanto vocábulo brasileiro racista (para designar escravizados que se negavam a trabalhos forçados) e classista (para designar prostitutas e trabalhadores sem ofício e renda), embora tente ressignificar o seu sentido machista, relativo à promiscuidade da mulher.

É importante, porém, que, além de enunciarmos que “se ser livre é ser vadia, então somos todas vadias”, tenhamos consciência de que nem todas possuímos autonomia sobre nossos corpos, para que este enunciado não seja também opressor a outras mulheres, como o é o substantivo vadia, e que lutemos não apenas por pautas individuais, tais como a liberdade sexual, como também por pautas coletivas. Caso contrário, ao invés de ressignificar o termo “vadia” e resistir ao machismo que nos é imposto, estaremos nomeando (e, portanto, oprimindo) outras mulheres que não possuem a mesma sorte que possuímos.5 5 A tradução do resumo deste artigo para o inglês foi feita por Camila Souza e Camila Barili, a quem muito agradeço.

Referências

  • ALENCAR, José de. Verso e Reverso Comédia em dois atos. Rio de Janeiro: B. L. Garnier Editor, 1864.
  • ASSIS, Joaquim Maria Machado de. Memorial de Aires São Paulo: Martin Claret, 2003 [1888].
  • BAKHTIN, Mikhail. (V. N. Volochínov) Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico da linguagem Prefácio de Roman Jakobson. Apresentação de Marina Yagello. Tradução de Michel Lahud e Yara Frateschi. 14.ed. São Paulo: Hucitec, 2010.
  • BAKHTIN, Mikhail. Os gêneros do discurso São Paulo: Editora 34, 2016.
  • BEAUVOIR, Simone de. O Segundo Sexo: Fatos e mitos Tradução de Sérgio Milliet. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1970.
  • BLUTEAU, Raphael. Vocabulario Portuguez e latino v. 08, letras T-Z. Lisboa: Officina de Pascoal da Sylva, Impressor de Sua Magestade, 1721. Disponível em Disponível em https://digital.bbm.usp.br/handle/bbm/5441 Acesso em 12/12/2016.
    » https://digital.bbm.usp.br/handle/bbm/5441
  • BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina Tradução de Maria Helena Kühner. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2011.
  • BRASIL. Decreto-Lei nº 3.688, de 3 de outubro de 1941. Lei das Contravenções Penais. Disponível em Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Decreto-Lei/Del3688.htm Acesso em 3/12/2016.
    » http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Decreto-Lei/Del3688.htm
  • CALVET, Louis-Jean. Linguistique et colonialisme: petit traité de glottophagie Paris: Payot, 1974.
  • CÂMARA JÚNIOR, Joaquim Mattoso. Estrutura da língua portuguesa 42.ed. Petrópolis: Vozes, 2009.
  • CARBONI, Florence; MAESTRI, Mário. A Linguagem Escravizada: Língua, história, poder e luta de classes 3.ed. São Paulo: Expressão Popular, 2002.
  • CARRASCO, Carmen; PETIT, Mercedes. Mulheres Trabalhadoras e Marxismo São Paulo: Sundermann, 2012.
  • DINIZ, Debora. Carta de uma orientadora: o primeiro projeto de pesquisa Brasília: Letras Livres, 2012.
  • FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Dicionário da Língua Portuguesa 2.ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.
  • FIGUEIREDO, Candido de. Novo diccionário da língua portuguesa Lisboa: Liv. Clássica Ed., 1913.
  • GNERRE, Maurizio. Linguagem, Escrita e Poder São Paulo: Martins Fontes, 1987.
  • LOPES, Adriana Carvalho. Funk-se quem quiser: no batidão negro da cidade carioca Rio de Janeiro: FAPERJ, 2011.
  • MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Manifesto do Partido Comunista 6.ed. Petrópolis: Vozes, 1996.
  • REED, Evelyn. Sexo Contra Sexo ou Classe Contra Classe São Paulo: Instituto José Luís e Rosa Sundermann, 2008.
  • SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Pode o subalterno falar? Tradução de Sandra Regina Goulart Almeida, Marcos Pereira Feitosa, André Pereira Feitosa. Belo Horizonte: EDUFMG, 2010.
  • YAGUELLO, Marina. Les mots et les femmes: essai d’approche socio-linguistique de la condition féminine Paris: Payot, 1978.
  • 1
    Como a Marcha das Vadias foi escolhida para a análise no presente trabalho, na próxima seção será apresentada a história do movimento no Brasil, com o objetivo de uma melhor contextualização.
  • 2
    O histórico aqui apresentado não se pretende exaustivo, sendo traçado através da vivência da autora sobre a Marcha das Vadias.
  • 3
    Este exemplo é utilizado por Simone de Beauvoir, Florence Carboni e por Marina Yaguello nas obras destas autoras aqui referenciadas.
  • 4
    Os significados aqui apontados foram retirados de VALLE, Gabriel. Dicionário latim-português. São Paulo: Thompson, 2004. p. 862-864.
  • 5
    A tradução do resumo deste artigo para o inglês foi feita por Camila Souza e Camila Barili, a quem muito agradeço.
  • 7
    Como citar este artigo com as normas da Revista: BOENAVIDES, Débora Luciene Porto. “Ressignificar e resistir: a Marcha das Vadias e a apropriação da denominação opressora”. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 27, n. 2, e48405, 2019.
  • Financiamento: Bolsa CNPq
  • 10
    Consentimento do uso de imagem: Não se aplica
  • 11
    Aprovação de comitê de ética em pesquisa: Não se aplica

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Jun 2019
  • Data do Fascículo
    2019

Histórico

  • Recebido
    27 Dez 2016
  • Revisado
    09 Set 2018
  • Aceito
    20 Set 2018
Centro de Filosofia e Ciências Humanas e Centro de Comunicação e Expressão da Universidade Federal de Santa Catarina Campus Universitário - Trindade, 88040-970 Florianópolis SC - Brasil, Tel. (55 48) 3331-8211, Fax: (55 48) 3331-9751 - Florianópolis - SC - Brazil
E-mail: ref@cfh.ufsc.br