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Editorial

São tempos sombrios. Presenciamos uma votação favorável à diminuição da maioridade civil, de 18 para 16 anos, para adolescentes infratores, quando sabemos que no país as prisões estão abarrotadas pela população pobre e negra e que há uma verdadeira guerra, em que sucumbem jovens homens negros e pobres. Apesar de todas as reflexões publicizadas sobre a superlotação das prisões brasileiras, que provocam a morte de contingentes expressivos de homens presos; apesar do alerta para o perigo de colocar nas prisões adolescentes infratores, parte expressiva da sociedade brasileira manifesta-se favorável à diminuição da idade de responsabilidade civil para os/as jovens, em contraposição ao Estatuto da Criança e do Adolescente, vigente no país há mais de uma década. Pelo caráter religioso que tem marcado as iniciativas da chamada bancada evangélica do legislativo brasileiro, destacamos as reações de alguns pastores e comunidades evangélicas contra a redução da maioridade penal, publicadas em site de fácil visualização na Internet.

Já uma outra notícia importante, apontando para diferente direção, representa um avanço: os Estados Unidos, em todas as unidades da federação, entraram para o rol dos países que legalizaram o casamento civil de homossexuais. Enquanto no Brasil, as ofensivas advindas do Congresso Nacional tomam outras direções: a revisão da regularização do casamento civil para se contrapor à jurisprudência que tem assegurado direitos de união civil para outros casais além dos heterossexuais, buscando estender a todos os casais igualdade de conquistas e de proteções legais.

Na defesa de uma família "tradicional", pelos ideais religiosos, tem havido outra preocupante investida de alguns grupos em relação à laicidade do Estado brasileiro. Suas manifestações foram concentradas inicialmente em retirar do Plano Nacional de Educação a palavra gênero, caracterizada por esses grupos como a "insidiosa ideologia de gênero", que levaria, segundo eles, a transformar as crianças em homossexuais. A ofensiva tem obtido resultados com a retirada de referências ao gênero e à diversidade em planos de alguns estados e municípios do país.

Contra esse terrível retrocesso em relação a conquistas dos movimentos sociais por respeito à diversidade e contra quaisquer formas de discriminações, várias associações profissionais, organizações da sociedade civil e instituições acadêmicas têm-se insurgido com manifestos, abaixo-assinados, enfatizando a importância da educação voltada ao respeito dos direitos humanos para toda a população brasileira, sem discriminações racistas, sexistas, homofóbicas. Das inúmeras manifestações que têm sido divulgadas em defesa da manutenção do enfoque de gênero nos planos de educação, citamos palavras do site das Católicas pelo Direito de Decidir:

"Ninguém merece ser agredido por ser mulher ou LGBTI. As pessoas merecem respeito. E é este o grande propósito de se discutir a questão de gênero nas escolas. Para que todas as crianças sejam respeitadas e aprendam a respeitar, a partir da compreensão de que na diversidade reside a maior riqueza da espécie humana. Aprender que somos diversos em muitos aspectos e que essa diversidade não deve ser utilizada para classificar as pessoas, para atribuir valor diferente a cada um de acordo com seu gênero, sua cor, etnia, religião, orientação e identidade sexual dentre outras diversidades, é, em última instância, compreender e defender nossa característica fundamental enquanto humanidade.[...] diferentemente do que bradam 'religiosos' e 'políticos' fundamentalistas, ao defender o debate sobre a questão de gênero nas escolas, nós feministas não queremos a extinção das diferenças sexuais ou da família! Queremos, na verdade, que todas as pessoas, desde sua infância, tenham direito à uma vida digna, justa, saudável e sem violência! Queremos que crianças, adolescentes e jovens desenvolvam plenamente sua autonomia e capacidade de reflexão crítica e ação construtiva no mundo! Queremos que elas não sejam doutrinadas por ideologias preconceituosas e fundamentalistas que geram apenas o ódio, a discriminação e a violência! Além disso queremos que elas tenham o direito de decidirem autonomamente sobre quem são e sobre como conduzirão suas vidas. [...] Portanto, para nós, qualquer tentativa de excluir o debate sobre a questão de gênero nas escolas ou em qualquer outro espaço público é ato de promoção da desigualdade, preconceito e violência machista e homofóbica."

O primeiro artigo desse novo número da REF "Escolarizando homens negros", traz a tradução de um capítulo do livro de bell hooks We Real Cool: Black Men and Masculinity, produzida por Alan Augusto Ribeiro e Keisha-Khan Y. Perry. Um texto que vem ao encontro das preocupações com o momento político que vivemos, com tantas ameaças às conquistas em relação aos direitos humanos e a uma educação que respeite as diversidades. A autora discute o racismo e as desigualdades de classe na escolarização dos meninos negros nos Estados Unidos, em escolas públicas que agem contra eles, inferiorizando-os, desinvestindo em seu aprendizado, desacreditando e fazendo com que desacreditem em suas capacidades intelectuais, contribuindo para que desvalorizem a escolaridade. bell hooks cita escritos de homens negros com memórias negativas de suas experiências escolares, onde não podiam manifestar sua curiosidade intelectual e sua capacidade crítica sem serem considerados rebeldes ou futuros delinquentes. Além das dificuldades de homens negros pobres para se manterem em escolas, a autora refere-se também aos homens negros nas prisões americanas, onde compõem um contigente considerável, assim como nas taxas de analfabetismo em seu país.

O artigo seguinte, "Las potencialidades de la interseccionalidad; aportes y desafíos en el campo de los estudios migratorios" de María José Magliano, ressalta a importância dos debates sobre interseccionalidade para os estudos de gênero e, especialmente, sobre migrações internacionais, desde sua consolidação no campo das ciências sociais. Relacionando esta perspectiva teórica à questão do trabalho, a autora se detém na análise interseccional de trajetórias de mulheres peruanas migrantes, dedicadas ao trabalho doméstico na Argentina.

No artigo "Igualdade de gênero no exercício do poder", Maria Jordana Costa Sabino e Patrícia Verônica Pinheiro Sales Lima analisam a política de cotas para mulheres nas listas eleitorais dos partidos políticos brasileiros e seus índices de efetividade frente às eleições. Trata-se de uma questão muito séria se pensamos que o Brasil é, na América Latina, um dos países com menor representação política das mulheres no parlamento. Desta forma, as autoras procuram mostrar como se dá essa exclusão das mulheres, mesmo em uma política afirmativa que busca a sua inclusão, e sugerem a importância da construção de um capital político para as mulheres para que as políticas ganhem efetividade.

Em seu artigo sobre o aborto legal na Argentina, "Religión y salud. La influencia de las creencias religiosas en las decisiones sobre aborto no punible en hospitales públicos de Argentina", a autora María Gabriela Irrazabal narra um caso paradigmático sobre uma mulher com deficiencia que solicita um aborto por ter sofrido abuso sexual, e todas as desventuras que sofre por conta das questões religiosas que se atravessam, especialmente a partir de agentes religiosos presentes nos hospitais argentinos, e se contrapõem às práticas prescritas pela lei no caso do aborto legal. As reflexões da autora são extremamente pertinentes se pensarmos em um contexto mais amplo do que o argentino, incluindo os outros países da América Latina, especialmente, quando nos referimos ao Brasil e ao recrudescimento de discursos fundamentalistas e conservadores que assolam o cenário político atual, as mídias e, de maneira particular, aqueles ligados às religiões.

Monica Ovinski de Camargo Cortina propõe analisar em "Mulheres e tráfico de drogas: aprisionamento e criminologia feminista" as altas taxas do aprisionamento feminino no Brasil. O perfil das mulheres presas revela que, em sua maioria, são submetidas à prisão mulheres jovens, mães de mais de um/a filho/a, em situação de vulnerabilidade social. Sua pesquaisa constata igualmente que não há políticas públicas para prevenir o ingresso das mulheres no tráfico de drogas, bem como para oportunizar àquelas que estão na prisão alternativas de geração de trabalho e renda.

No artigo "Sobre educar médicas e médicos: marcas de gênero em um currículo de Medicina", sob a perspectiva de observações participantes e de uma linha de pesquisa baseada na análise do discurso de Michel Foucault, André Filipe dos Santos Leite e Thiago Ranniery Moreira de Oliveira apresentam como as estratégias discursivas suplementam e transformam o horizonte médico concebido como homogêneo e estável, assim como as normas de gênero marcam o funcionamento do discurso pedagógico da Medicina em um currículo de formação médica.

O artigo "Identidad profesional y factores de riesgo ocupacional de las profesoras", de Carolina Andrea Schick Carrillo, Alberto Galaz Ruiz e Daniela Urrutia García, analisa o contexto chileno, enfatizando o gênero como categoria de análise no entendimento das principais demandas realizadas pelas professoras e como essas demandas, tensões e fatores de risco influenciam ou condicionam seus desempenhos. Apontam a urgência de se iniciar uma análise em profundidade que contemple aspectos subjetivos e intersubjetivos das mulheres docentes e como a sua identidade deve ser vista na construção individual e coletiva.

Em "Las mujeres de derecha y las movilizaciones contra los gobiernos de Brasil y Chile Brasil (1960 y 1970)", a historiadora chilena Maria Stela Toro Céspedes analisa de maneira comparativa o papel das mulheres conservadoras nos contextos do Brasil, no ano de 1964, quando suas marchas, protestos e novenas ajudaram a legitimar o golpe de Estado que deu origem à ditadura que durou mais de vinte anos, e no contexto chileno. No Chile, os protestos dessas mulheres de camadas médias e altas, batendo panelas pela família, tradição e propriedade, contra o comunismo, também foram importantes para a justificativa do golpe de Estado que colocou o general Pinochet no poder, destituindo o democraticamente eleito Salvador Allende, em 11 de setembro de 1973. A análise realizada interessa não somente pelo seu conteúdo de narração histórica e de comparação, mas também pela reflexão que propõe sobre as leituras que se faz da participação política das mulheres que, apesar de nestes contextos estarem sempre referidas no coletivo e nos seus papéis tradicionais de mães, donas de casa, preocupadas com a família e a tradição, acabaram por ter uma atuação fundamental no cenário político latino-americano.

A entrevista com Tereza Trautman precede o dossiê sobre feminismos, gênero e ditaduras nos países da América do Sul na segunda metade do século passado, trazendo uma experiência específica de militância feminina/feminista durante o período da ditadura militar no Brasil. A cineasta relata para Ana Maria Veiga sua trajetória desde os anos de formação, seus interesses, o início de suas atividades na realização de filmes, a convivência com profissionais que a inspiraram, a questão de mulher fazendo filmes no Brasil nos anos 1970 e 1980, após o golpe militar de 1964. A narrativa de Tereza Trautman detém-se na dura experiência que viveu com a interdição de seu filme "Os homens que eu tive", acontecimento determinante em sua carreira, com reconhecimentos e premiações internacionais, mas limitada e restringida no país pela censura do regime de exceção. Carreira profissional afetada também, segundo ela, por sua condição de mulher, já que cineastas homens conseguiram a liberação de seus filmes pela censura militar, no mesmo período, desenvolvendo carreiras de maior visibilidade e reconhecimento público.

A seção temática "Gênero, feminismos e ditaduras no Cone Sul", organizada por Cristina Scheibe Wolff, Janine Gomes da Silva e Núcia Alexandra de Oliveira, traz artigos de vários países do extremo sul do continente americano, analisando aspectos e perspectivas de gênero sobre os acontecimentos dos anos 1960 a 1980. Nesse período em que se viveu sob ditaduras, organizaram-se movimentos de resistência, e, após as quedas dos regimes de exceção, de denúncia sobre as violações aos direitos humanos nesses países. De uma forma ou de outra, as mulheres estiveram sempre envolvidas nesses movimentos, como guerrilheiras ou como mães, militantes de várias organizações, artistas, expectadoras. Ao mesmo tempo, o mundo vivia a emergência de novos feminismos, que se configuraram aqui de maneiras específicas, justamente por terem que lidar com uma conjuntura de ditadura e extrema repressão. Os artigos da seção exploram vários aspectos: o cotidiano, as memórias, as prisões, as emoções, o cinema da época, os testemunhos, o feminismo, mobilizações e militâncias.

Finalizando, o número 3 deste volume da revista apresenta, como de costume, resenhas de livros publicados recentemente sobre estudos de gênero, estudos feministas e de sexualidade.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Set-Dec 2015
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