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Musicalidades das cabo-verdianas nas roças de São Tomé e Príncipe

Musicalities and ways of existence of Cape Verdean women in the São Tomé e Príncipe farmsteads

Resumo:

A migração cabo-verdiana para São Tomé e Príncipe, iniciada no século XX (de 1900 a 1970) num esquema de trabalho contratado para as então roças de café e de cacau, foi e permanece sendo construída no imaginário social cabo-verdiano como o retrato da "emigração forçada" e "má emigração". Com as artes de fazer tchabeta e as narrativas musicais dos coletivos Ouro Verde e Raiz di Tera, discuto o trabalho de criação desse território Cabo Verde em São Tomé pelas cabo-verdianas nas roças santomenses, como um lugar (entre outros) de onde falam e criam essas contranarrativas. Igualmente, como um locus donde falam e postulam narrativas de protesto inscritas num projeto de escrever as próprias histórias alusivas às condições das mulheres na sociedade santomense

Palavras-chave:
Migração cabo-verdiana; Batuko; Narrativas musicais; Modos de existências

Abstract:

The Cape Verdean migration to São Tomé e Príncipe, which started in the early 20th century (from 1900 to 1970) in a scheme of hired work to the coffee and cocoa farmsteads, was and is still being built in the Cape Verdean social imaginary as a portrait of "forced emigration" and "bad emigration". With the arts of making tchabeta and the musical narratives of the groups Ouro Verde and Raiz di Tera, I discuss hereby the work of creation of this Cape Verdean territory in São Tomé e Príncipe by the Cape Verdeans in the fields, as a place (among others) from where they speak and create these counter-narratives. Likewise, as a locus from where they speak and postulate narratives of protests inscribed in a project of writing their own stories related to the conditions of the women in the São Tomé and Príncipe society.

Keywords:
Cape Verdean Migration; Tchabeta; Musical Narratives; Ways of Existence

Menina onde está tua virgindade? Menina onde ficou tua virgindade? Menina te pedi e te negaste a me dar. Menina te quero muito e negaste a me querer. Agora já te enganaram, tomaram tua virgindade, não te quero mais. Trocaste tua virgindade pelo dinheiro, não te quero mais1 1 Excerto de uma música da autoria da Lúcia, originalmente em crioulo cabo-verdiano: "Minina undi bu nobu sta? Menina undi bu nobu ficá? Minina pim pediu bu nega dan. Minina un creu bu nega crem. Ael goci li ma fanadu dja inganau, ka mestebu más. Más bu troka nobu ku dinheru, un ka mestebu más". . Meninas novas pensem! Para pensarem no vosso futuro. Não peguem pé de pedra, pé de pedra não é futuro. Futuro de vocês é para estudarem, para serem mulheres de amanhã2 2 Excerto de uma música do grupo Raiz di Tera, originalmente em crioulo cabo-verdiano: "Mininas nobos pa nhos pensa. Pa nhos pensa na nhos futuru. Ka nhos pega pé di pedra, pé de pedra é ka futuru. Nhos futuru é pa nhos studa, pa nhos ser mudjeres de manhãn". .

Cheguei à casa da Odete com o Dani, para deixá-lo com ela3 3 Esta pesquisa foi realizada no âmbito do doutorado em Antropologia Social pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro/Museu Nacional, concluído em 2016, com apoio de bolsa Capes PEC-PG. O título da tese é: "Ilusões do Contrato? Migrações sul-sul, evocações do tráfico, contranarrativas e socialidades dos cabo-verdianos nas roças de São Tomé e Príncipe". . Como ela se encontrava ocupada para cuidar dele, íamos brincando. "Dani, hoje nem me ligas néh. Tás com tua namorada, hoje nada comigo" - exclama Bia, enquanto fazia carinhos nele. Nisso, a bisavó materna Odália que se encontrava por perto sentada num banco, exclamou: "Dani, cheio de namoradas. Olha ele rindo, gosta né, com muitas namoradas". Não levei muito a sério, pensava: é brincadeira com o garoto. Fui reparando nas brincadeiras que se repetiam quando ia para o quintal da Ingrácia. Descia pelo 'caminho grande' em direção ao 'quintal da Ingrácia' à procura da Lúcia, quando encontrei algumas crianças a brincar no 'jardim'. Entre elas estava o Pajó caçula da Marcelina de três anos e Dani, também caçula, da Ingrácia, de quatro anos. Ambos correram para mim, chamando pelo meu nome, sorriram e após tocarem na minha coxa, saíram correndo em direção ao 'jardim'. Sorri e segui andando. Encontrei Ingrácia no tanque a tomar banho com o peito desnudado e, nisso, Pajó, Daniel e Tiago (filho de Nina, cinco anos) e Daniel (dois anos, filho de Randiku, irmão de Ingrácia), cercaram-me, chamando pelo meu nome, cada um me tocava e corria diante da minha expressão de surpresa, envolvida na brincadeira deles, em seguida Lúcia comentou: "Vocês tão gostando de Carla, éh. Tão procurando namorada, éh".

De entre várias outras situações aparentando alguma jocosidade que tiveram lugar, uma se destacou. Fui visitar uma amiga anciã forro, a Sanada, num bairro arredor da Cidade. Enquanto ela me acompanhava à estrada onde eu iria parar uma moto-táxi para regressar, eu segurava o Carlos pela mão, o bisneto dela de dois anos. Nisso, cruzamos com uma vizinha, aparentando pouco mais de cinquenta anos. Ela parou para nos cumprimentar; em seguida, encetaram um diálogo em crioulo forro. Como não entendia, aguardei o desfecho do diálogo delas, que imaginei ser algo jocoso pela expressão risonha delas. Após a vizinha despedir-se, Sanada quis saber se entendera algo. Diante da minha negação: "Ela disse que cubro as namoradas de Carlos, que quando ela vem visitar o Carlos, a Sanada nunca acompanhava até a estrada. Disse pra ela resolver seu assunto com Carlos". A Sanada prosseguiu: "É brincadeira dela". Ciente que tinha mais coisas em jogo quando essas "brincadeiras" apareciam nas socialidades, mais que mera folia, reparei que até então não tinha ouvido nenhuma delas alegando também haver uma hipersexualidade feminina, como podíamos perceber da masculina, tal como uma certa permissividade a um desbravar dessa sexualidade, nas falas das mulheres. A resposta à situação inversa não demorou a chegar.

Fui acompanhar a Ângela à casa dela. Ela estava dando de comer ao Sávio, o sobrinho de seu marido, de dois anos, no quintal da sua casa, quando ele exclamou da janela: "Hei Sôr Sávio, quê que tu quer com minha mulher, hein! Confiança! Não quero sôr aqui com olho na minha mulher". Ângela manteve-se impávida e sorrindo levemente compenetrada em alimentar o Sávio. Mais tarde, comentei com a Ângela:

É bobo dele. Tá brincando só. Homem diz que não confia em homem nenhum perto da mulher deles, nem amigo. Uma vez estava em casa um amigo do meu homem. Como meu homem precisava ir até a rua, ter com um amigo, foi pro quarto e me chamou da sala: "fica aqui até eu voltar, não vai pra sala".

Em termos de modos de existências familiares, a sociedade de São Tomé carateriza-se pelo arquétipo de famílias ocidentais - as nucleares/conjugais, as reconstruídas, as monoparentais (exclusivamente chefiadas por mulheres) e as alargadas, sendo que muitas são atravessadas por relações poligâmicas masculinas. Essas relações poligâmicas independem do recorte educacional, geracional e do poder aquisitivo do coletivo feminino, e traduzem-se, normalmente, na manutenção de duas ou mais famílias, ou duas ou mais esposas, cada qual residindo na sua casa própria e em bairros diferentes. Ainda que, paulatinamente, a mulher tenha conquistado vários espaços públicos, cargos de chefia e assumido pastas de ministérios ao longo dos vários governos santomenses, traduzindo transformações nos modos de condição da mulher ao longo de gerações, os dados estatísticos do último Censo Populacional de São Tomé e Príncipe (INE, 2012) reiteram os tentáculos do machismo e do sistema androcêntrico daquela sociedade, nos modos das relações de género. Conforme aqueles dados (INE, 2012INESTP. Censo 2012, São Tomé e Príncipe.), o desemprego e o analfabetismo são ainda marcadamente femininos. Além disso, nos setores profissionais com menor exigência de instrução é maior a presença de mulheres, em detrimento de cargos administrativos, gestão de empresas, que são essencialmente masculinos e, de realçar, com maior intensidade no espaço rural.

Como frisara, as relações conjugais no modo de existência poligâmico não aparecem em absoluto só nas mulheres de menor instrução e/ou nas que exercem atividades de baixa renda ou nos espaços rurais. Um país onde as formas de ocupação das espacialidades, das artes de estar na cidade se espelham nos tipos de materiais de construção das casas (a esmagadora maioria de madeira e a minoria de alvenaria), o acesso ao banheiro e ao gás butano para a cozinha é em baixa representatividade, diferentemente da esmagadora maioria sem banheiro ou acesso à latrina e que usam lenha para a cozinha, a conceção de classe social é atravessada por esses usos e modos de ocupar os espaços e de criar existências. Esse amplo acesso aos bens e serviços socialmente valorizados e criados numa chave desenvolvimentista, os quais deveriam ser garantidos ou que criassem possibilidades pelas elites política e governamental enquanto direitos sociais, constitui elemento de diferenciação social. Diferenciação não numa lógica de estratificação social e homogénea, pois entendo que pensar segundo essa chave sociologizante impede que a diferenciação seja percebida nos "usos", "táticas", "estratégias de estar no espaço", as "artes de fazer e inventar o quotidiano e os espaços" (Michel DE CERTEAU, 2003DE CERTEAU, Michel. A invenção do quotidiano: Artes de fazer. Tomo I. 9.ed.. Petrópolis: Editora Vozes, 2003.). Pois, entendo que na estratificação, ao homogeneizar e agrupar os coletivos em estratos sociais, perde-se de vista as múltiplas dimensões que os atravessam e são agenciadas: caso do significado social do tipo de casa no espaço rural e no espaço social, caso dos múltiplos usos de estar e ocupar o espaço que foram se criando em ambos os espaços e rompe(ra)m com as categorizações estanques e unívocas de pensar os modos de existir na sociedade de São Tomé e Príncipe.

Retomo aqui para as jocosidades, articulando ao jogo e embate para os quais elas são acionadas, pois, entendo que as narrativas jocosas aludem a alguma dinâmica: um mecanismo latente de sátira social e de crítica a essa estrutura social que perpetua a hegemonia masculina? Acredito não serem as únicas, pois o recurso ao feitiço ou para manter o homem dela dentro de casa, para fazer com que o homem separe da primeira mulher, ameaça, episódios de agressão e/ou atentado à vida da 'mulher de fora' ou da 'mulher de dentro', é muito recorrente. A Puda punha o filho mais novo a lavar as suas calcinhas alegando que assim cortaria qualquer possibilidade de feitiço, já que "as mulheres santomenses gostam de usar feitiço para prender o homem". Inspirada na potência dessas jocosidades como um lugar de onde se fala e problematiza as práticas quotidianas, ciente do seu estatuto epistemológico e heurístico, proponho neste artigo, a possibilidade de estabelecer uma relação análoga com as narrativas musicais da tchabeta4 4 Tchabeta é terminlogia usada em São Tomé e Príncipe em referência à prática do batuko. Batuko ou como os cabo-verdianos no arquipélago santomense nomeiam: tchabeta, remete ao género músico-coreográfico vivenciado em Cabo Verde, partiularmente na ilha de Santiago. Tchabeta traduz uma mistura de sonoridades, em que a voz das cantadeiras é acompanhada dos instrumentos percursivos, o batuko. De referir que a vivência dessa prática aparece em São Tomé e Príncipe criada sob outras chaves, em que mais que somente uma mudança de nomenclatura, entendo que há um trabalho de criação de uma espécie de território existencial deste coletivo diaspórico, de um território Cabo Verde no arquipélago santantomense. Para mais aprofundamentos cf. Carla Indira Carvalho Semedo (2016). .

Outrossim, para as minhas interlocutoras, a feitura das narrativas acopla-se ao próprio quotidiano, o continuum das suas práticas e não uma existência separada. Não separando, assim, o quotidiano e o momento da criação das narrativas musicais:

Gente não falha ao cantar porque é do mesmo quintal. Se fosse espalhado... gente tá aqui no quintal e canta só, e é nosso ensaio e assim também pensamos nas letras. (Jo)

Aqui em casa, tou sozinha, fico a cantar só ou no tanque a cantar, tiro algumas letras... (Zizi)

Lúcia quando está em casa, gente tira música, ela me chama que tá com letra nova, gente junta para colocar bocado, bocado e ir fazendo a letra. (Ingrácia)

Normalmente, as narrativas musicais dos coletivos de tchabeta, quer em São Tomé, quer também a experiência etnográfica que tive com o coletivo de São Martinho Grande em Cabo Verde (Carla Indira Carvalho SEMEDO, 2009SEMEDO, Carla Indira Carvalho. "Mara sulada e dã ku torno": performance, gênero e corporeidades no grupo de Batukadeiras de São Martinho Grande (Ilha de Santiago, Cabo Verde). 2009. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas / Universidade do Rio Grande do Sul, Porto Alegre.) ou mesmo em comunidades cabo-verdianas em Portugal (Jorge Manuel de Mansilha Castro RIBEIRO, 2008______. "'Batuque é dança dos negros': uma análise das representações de raça, cultura e poder no discurso do batuque cabo-verdiano em Portugal". In: ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE ETNOMUSICOLOGIA (ABET), IV, Maceió. Anais. UFAL: 2008, p. 298-306.; 2012RIBEIRO, Jorge Manuel de Mansilha Castro. Inquietação, memória e afirmação no batuque: música e dança cabo-verdiana em Portugal. 2012. Tese (Doutorado em Música) - Departamento de Comunicação e Arte / Universidade de Aveiro, Aveiro.), as temáticas dessas narrativas variam entre as relações de género, a condição de mulher e o homem, questões da ordem do quotidiano concebidas como problemas sociais tidas como mote da desestruturação social e cultural das famílias, tendo como elemento comum a própria vivência quotidiana e dos outros sujeitos que fazem, ou não, parte de suas redes.

Nos coletivos Ouro Verde e Raiz di Tera, as narrativas ocupam-se de questões tidas por elas como relevantes e necessárias a serem narradas e serem passíveis falar sobre. Muitas dessas questões fazem parte das agendas político-governamentais, reiterando alguns discursos mediático e quotidiano que escutei várias vezes entre os moradores de Agostinho Neto, de que "São Tomé e Príncipe era um país calmo, bom de se viver, mas como atualmente as coisas estão piorando, sem paz e segurança". Normalmente, as narrativas musicais aludem ao fenómeno da gravidez na adolescência, ao aumento do fenómeno da toxicodependência (bebidas alcoólicas e estupefacientes) nos jovens, às relações familiares e poligamia, aos maus-tratos e abusos infantis tal como o fenómeno de "menino de rua". Outrossim, as narrativas rememoram e trazem para a visibilidade a experiência do trabalho contratado e da migração cabo-verdiana para São Tomé e Príncipe, como também os fluxos migratórios de familiares e/ou integrantes dos coletivos para Portugal, Cabo Verde e Angola.

Dentre os acoplamentos possíveis do teor das narrativas musicais, por serem coletivos de mulheres nas quais as relações de género e a condição de ser mulher e homem na sociedade santomense tenham aparecido muito nas rodas de conversa, escolhi entretecer esses trabalhos de narração com e das relações de género, do lugar e da condição dos modos de vida das mulheres naquela sociedade. Observo que as práticas musicais do tchabeta constituem atos de criação de espaços políticos a partir de onde elas falam, tensionam questões do seu quotidiano, aparentemente invisibilizadas pelo entorno social, das suas experiências mundanas atravessadas pelos modos de género e da existência feminina na sociedade de São Tomé.

No quintal de Sónia: desabafos

Pouco mais das dezasseis horas, eu, Zizi e Sónia aguardávamos sentadas à porta de casa da Sónia, a chegada das outras para o ensaio da atuação no Lar de idosos, na Cidade, alusivas às festividades natalícias:

Sónia - Ontem fiquei até muito tarde no tanque, a noite senti frio e, hoje acordei com um pouco de gripe. Tenho bué [expressão na gíria do português angolano e santomense para muita/o] de roupa pra passar. Muito, eh. Até toalha de banho. Zizi - Eu agora não passo nada, só roupa pra meus filhos levarem pra escola. Saí da forca. Agora ele está na casa dele e eu na minha. Não preciso passar, antes passava só. S - Eu tenho que passar tudo... Z - Éh, quem tem marido dentro de casa, tem muito trabalho... homem santomense é abusado mesmo. Não gosta de tomar banho com água fria. Mulher aquece água, leva sabão e toalha para ele. Se faltar alguma coisa, ele zanga e chama por ela, o que ela estiver fazendo, tem que parar e vai responder. Mulher faz, pois com homem dentro casa, tem que fazer se não perde homem. Jovem, velho, tudo igual.

Já no término do ensaio, aproximaram-se três rapazes bebericando cerveja e acomodaram-se por perto. O assunto da não-reeleição do então presidente da Câmara de Lobata aflorou várias sensibilidades, muitos lamentando e enaltecendo as realizações dele, outros criticando e vangloriando a sua não reeleição. O ambiente tenso atiça ainda mais quando um dos rapazes, que chegara com os outros dois, residente na localidade de Conde, vila localizada nos arredores de Agostinho Neto, justiça o possível fraco entendimento dos presentes (os moradores de Agostinho Neto) em avaliar a atuação política do presidente deposto, ao exclamar: "também gente de roça só sabe comer buzio [de mato]". Vozes e exclamações de repúdio ecoaram pelo quintal, mas a de Zizi foi mais incisiva:

Rapaz, todos chefes e diretores come buzio. Gente vai procurar no mato e vender pra eles. É nós que ajuda vocês comer buzio. Sôr tenho já minha casa, meu lugar de dormir, ele tem sua mulher. Sou terceira mulher, mas importante tenho minha casa feita já, com meus filhos. Gente tem teto não está na rua não, éh. Verdade! Viver na forca por causa de homem nenhum, mais! Tenho meu campo, vendo minha coisa na cidade.

A fala da Zizi denunciava o lugar pejorativo ao qual os moradores da roça foram alocados, quer por estarem 'perdidos no mato', quer pela atitude pejorativa ao consumo do 'búzio de mato', concebida pelos moradores da cidade como uma fonte de proteína desprezível consumida na roça, particularmente pelo facto do 'búzio de mato' alimentar-se de tudo o que encontra pelo mato: assim, quanto mais distante do meio humano, maior a garantia de que a carne do 'búzio' não estará contaminada com parasitas5 5 Em vários momentos em campo, assisti a programas televisivos nos quais os profissionais dos serviços de saúde nacionais sensibilizavam a população para os cuidados a se ter no preparo dos alimentos, entre os quais o "búzio do mato", a necessidade de um tempo prolongado na fervedura pelo risco a parasitas intestinais. Igualmente outros serviços dos media, nomeadamente o jornal digital santomense Telanon.info, a partir de nota assevera que em 2011, 65% das crianças santomenses (a nível nacional) estariam infetadas com um parasita intestinal. Disponível em: http://www.telanon.info/sociedade/2011/10/19/8769/65-das-criancas-sao-tomenses-estarao-infectadas-com-toxoplasma-gondii/. Acesso em 31/05/2016. . Num movimento de contranarrativa, Zizi sinaliza em como a venda do 'búzio de mato' materializa a chave do protagonismo da mulher da roça. Mesmo sendo despossuída do capital escolar, cria possibilidades de existir, não num movimento reativo, mas com e desafiando as desventuras do sistema androcêntrico das relações entre homens e mulheres na sociedade santomense.

Em ilustração e reverberando esse agenciamento, as narrativas 'Oioi Bia não pensa na tua vida' (Oioi Bi ka bu pensa na bu vida6 6 Tanto as narrativas musicais como as falas das minhas interlocutoras aparecem faladas ou em crioulo cabo-verdiano, ou em português santomense. Quando faladas em crioulo cabo-verdiano, as falas ou narrativas musicais aparecem no corpo do texto traduzidas em português e a respetiva versão em crioulo cabo-verdiano, em nota de rodapé. ) e 'Meu marido foi para Lisboa buscar vida' (Nha maridu bai lisboa busca vida) visam realocar esse lugar, falam e aludem aos agenciamentos das mulheres, criando tentativas de reescrita das próprias histórias, como Zizi pontua sobre o tipo de relações e as dinâmicas que potencializaram o mote de criação de ambas as narrativas:

Quando o marido da Bia foi para Portugal, deixou-a com duas filhas. Ela ficava a pensar. Porque quando homem foi, ficou uns tempos a não ligar para ela, não mandava mais nada para as filhas, ela ficou só com as meninas, sem nada para lhes dar, não trabalhava também. Como ela tinha campo dela, a trabalhar no campo dela, gente aqui não fica sentada não, trabalhamos nosso campo, semeamos milho, feijão essas coisas, depois vendemos. Então falamos para ela: Bia, não pense essas coisas não, não pense na tua vida porque nem se um pão de cada dia Deus te dará para dares às tuas filhas. Ela pode trabalhar campo dela, ela planta milho, ela pode colocar feijão, tudo isso pode dar. Porque milho dá todas essas coisas lá, portanto para não pensar na vida dela. Um dia ela coloca cachupa no fogo, um dia xerém, um dia papa. Mas, um pão Deus dará para ela comer com suas filhas. Isso é mensagem de coragem que fizemos para ela, para ela sentir coragem, para não cair. Porque muita mulher quando seu homem larga dela fica tipo abandonada, a sentir-se largada e ela joga cabeça na pedra. Ela vai ali, vai acolá, vida dela fica abandonada, então pra não pensar nisso, ela vai trabalhar seu campo e um pão de cada dia Deus vai dar para ela comer. Ela ganhou coragem, trabalhou campo dela, até um dia Deus arranjou-lhe marido e hoje vivem sossegados. (Zizi)7 7 Originalmente em crioulo cabo-verdiano: "Kandu sé maridu bai pa PT dexál ku 2 mininus femia. El fica ta pensa. Pamodi kandu homi bai, é fica uns tempus ka ta liga pa el, ka ta xomal, ka ta mandal nada pa mininus, el fica cu kes 2 mininus, sem nada pa dá, ka ta trabadja tb. Anton el tinha sé campo, ta trabadja campu, é como nós també nu ka ta xintã nau, nu ta trabadja nos campu, ta semea midju, fidjon, kes cusas lá, nu ta vendi. Unton nu fla Bia ka bu pensa es kusa li, ka bu pensa vida pamodi nem sé un pon di kada dia Nhór Dés ta dabu pa bu dá bus minis. El ta ta trabadja sé campo, el ta semea midju, el ta poe fidjon, td keli ta dá. Porque midju dá ta td kes cusas lá, portanto pé ka pensa sé vida. un dia el ta poe catchupa, un dia xerém, un dia papa... má un pon Nhor Dés ta dál pé cumé el ku sés minis. Keli é um mensagi di corage ki nu fazel, pé xinti corage, pé ka cai. Porque xeu mudjer ora ki homi larga ta fica tipo de abandonada, ta xinti mé sta largadu el ta dá kabeça na pedra. El ta bai di li, di lá, sé vida ta fica abandonada, unton unvés de pensa keli, el ta trabadja sé campu e un pon di kada dia Deus ta dal pe´cumi. É po corage é trabadja sé campo, ti un dia ki Deus dal sé maridu, ki lés ta vive sossegadu".

Oioi Bia não pensa na tua vida [Oioi Bi ka bu pensa na bu vida]

Não pensa nos teus meninos, um pão de cada dia Deus há de te dar para comer [Ka bu pensa na bus mininus, un pon di kada dia nhor Dés ta dau po cumi] Trabalhas teu campo, sêmeas teu milho [Bu ta trabadja bu kampu, bu ta simia bu midju] Milho dá cachupa, milho dá xérem, milho dá rolón, um pão de cada dia Deus há de dar para comer [Midju ta dá catchupa, midjo ta dá xérem, midju ta dá rolón, un pon di kada dia Nhór Dés ta dau po cumi] Trabalhas teu campo, sêmeas teu milho [Bu ta trabadja bu kampu, bu ta simia bu midju] Milho dá camoca, milho dá papa, milho dá tenterem, um pão de cada dia Deus há de dar para comer [Midju ta dá camoca, midju ta dá papa, midju ta dá tenterem, un pon di kada dia Nhór Dés ta dau po cumi]

Igualmente, a narrativa 'Meu marido foi para Lisboa buscar vida' (Nha maridu bai lisboa busca vida), criação da Bia, aciona a potência da palavra, das artes de fala nas narrativas musicais. E, por conseguinte, um agenciamento elocutório que permite visibilidade às experiências da condição de mulher na sociedade santomense face à migração do companheiro e pai dos filhos e à manifestação da não assunção da paternidade, explica Zizi:

É da Bia mesmo. Marido dela foi para Lisboa, era para ele ir e mandar buscar ela. Ele foi, esqueceu-se dela, não mandou mais buscá-la, ela ficou só, ela falou para o marido que está sentada a esperá-lo, até que certa altura não deu mais para esperar. Ela tinha que arranjar marido dela. Ela aguentou mesmo bom tempo. Ela ficava a comentar com gente: fulano desde que foi começou a mandar dinheiro, entrar em contacto, desde que fulano deixou de contato, parece que ele já esqueceu de mim. Por enquanto ainda vou estar esperar, se ele não mandar nada mais, mandar falar-me alguma coisa, já vou arranjar meu marido. (Zizi)

Meu marido foi para Lisboa buscar vida [Nha maridu bai lisboa busca vida] Ó meu marido estou sentada a te esperar [Ó Nha maridu un sta xintadu ta sperau] Meu marido caminho de mar não é perto, ó meu marido saudade do longe não é coisa boa [Nha maridu caminhu de mar ka pertu, ó nha maridu sodade longi ka sabi] Ó meu marido estou sentada a te esperar [Ó nha maridu un sta xintadu ta sperau] Me deixaste com três filhas fêmeas [Bu deixan ku três fijdu femia] Ó meu marido, ó meu marido estou sentada a te esperar [Ó nha maridu, Ó nha maridu, Ó nha maridu un sta xintadu ta sperau] Primeira filha pediam para noiva [Primeru fijdu dja pedidu pa noiva]

Assim, como Zizi exorta "nós [as mulheres da comunidade] não fica sentada não, nós trabalha nosso campo, semeamos milho, feijão essas coisas, depois vendemos". Na varanda da casa da mãe, num espaço delimitado por barras de madeira, Mana criou um salão, proporcionando às moradoras da comunidade serviços de manicure, pedicure, cabelo (lavagem, chapinha, penteados). O espelho pendurado e a mesa quadrada perfazem uma penteadeira frente à qual as clientes se sentam. Em cima da mesa, encontram dispostos acessórios de cabelo, um secador de mão e de pé. Num canto, o recipiente de lavagem, acoplado a um tubo que vai desaguar num balde a ser esvaziado no tanque quando cheio. Antes de engravidar e nascer o Dani, Mana trabalhava mais, mas por conta dos encargos com o bebé, tem diminuído e, paulatinamente, tem retomado aos trabalhos. Várias vezes, logo de manhã, chamam-na em casa para atender alguém ou é chamada pelo cliente que chega ao salão, por ser a única em Agostinho ainda, bastante solicitada. Quando ela chega, a mãe já arruma algumas peças do salão, todas guardadas na casa da mãe e retiradas para criar o espaço salão toda a vez que ela tenha clientes. Visto à comunidade não ser cobrada uma taxa pelos serviços da energia elétrica e água, o que a Mana aufere dos serviços, ajuda na contribuição para a despesa familiar e na manutenção do salão. Outrossim, o protagonismo dessas mulheres é marcado desde a Nany que faz sacolés para revenda domiciliar, a Mena que trabalha no seu campo como a Zizi, a Sónia que revende tabaco, Bebé tem salão de manicure e pedicure.

Coexistente a esse protagonismo, do homem espera-se ainda que seja o provedor da mulher e da família, como podemos notar no caso do Djonsa. A vida conjugal dele com a mulher, acometido por vários ciclos de violência doméstica recíproca, era teor de várias fofocas, entre as quais a Zizi - irmã dele - angustiada com um iminente final trágico, reservando a orfandade aos filhos. O motivo da briga seria o facto do Djonsa ter hipotecado a van - hiace (fonte de geração da renda familiar) para ir viajar quando da gravação em Portugal do CD do coletivo musical "Os Descendentes". Meses após o retorno, Djonsa via-se impossibilitado de recuperar o veículo e de reestabelecer o seu lugar nas relações conjugais e de género: o provedor do sustento familiar. Vários acusavam sua mulher de perseguição, incompreensão aos imponderáveis da vida e receavam que Djonsa pusesse fim à sua vida, já que ele deixara essa possibilidade em suspensão; outros comentavam a contínua expressão cabisbaixa, o olhar distante e taciturno do Djonsa. Enfim, o casal reata, 'por enquanto'. Entretanto, quando por acidente Djonsa bebeu lixívia acreditando ser água e precisou de atendimento hospitalar, as fofocas reacenderam: "como bule [garrafa] com lixívia [água sanitária] fica junto com bule de água!? Como ele bebe e não viu que não era água, ché!?".

No que concerne às atividades económicas geradoras de renda deste coletivo feminino, muitas vivem do comércio informal. A Zizi, a Marcelina, a Mena e as outras mulheres da comunidade vendem milho e hortaliças na cidade extraídos do 'campo' por elas na "informalidade", sem a licença formal de venda, com milhos e/ou hortaliças distribuídos num saco nos passeios (espaços de trânsito dos pedestres). O comércio ambulante caracterizado no sistema económico santomense (e não só) como atividade "informal", incomodava o problema da legalidade e da fiscalização da polícia, particularmente as que circulavam fora do recinto do Mercado e ficavam nos passeios, na rua, circulando em busca de fregueses.

Quando vamos vender milho, feijão, qualquer coisa que estivermos a vender, se for fora do mercado, polícia corre contigo. Corre atrás de gente, bate na gente, joga nossas vendas no chão, outros levam para esquadra. Em São Tomé, trabalho não tem, é difícil, principalmente para nós coitados é difícil, então temos que sair para vender, para vermos se encontramos um pão para criar nossos filhos. Ganha 50 contos [dois euros], aqui 50 contos não é nada, nem chega bem para fazer almoço como deve ser. Por isso, que dizemos ao polícia de São Tomé para deixar-nos vender porque trabalho não há, marido fixo é difícil, mulher em São Tomé para ter um marido só dela é difícil mesmo. Polícia maltrata gente, agora está parado, calmo pois época de campanha, coisa de eleição, mas depois de janeiro, é tensão, eles colocaram carro polícia atrás da gente, quebra balde, joga mercadoria toda no chão. Para ir vender dentro mercado, mas dentro não dá para, não cabe mais gente, é pequeno. Mesmo quem vende lá dentro sai para na rua para ver se consegue ganhar algo, porque quem está na rua ganha, quem está dentro fica sem nada. (Zizi)

À revelia do policiamento e dos atos repressivos, várias são as "artes de resistências" e "táticas" criadas por elas na circulação e vendas ambulantes, a fim de prover o sustento da família e a manutenção das condições de sobrevivência da prole. Na sociedade santomense onde o desemprego, analfabetismo e condição das chefes de famílias monoparentais são maioritariamente no coletivo feminino e, tanto a perfilhação quanto a assunção da paternidade - fenómenos "condenados" pela jurisdição santomense - ainda atravessa e configura as relações e os modos conjugais e familiares. Outrossim, a narrativa musical 'Polícia' denuncia as condições de precariedade das famílias evocando a pobreza do país, marcadamente feminina, e a disparidade dos direitos e a condição de homem e mulher na sociedade santomense. E propõe conceder visibilidade aos problemas da condição da mulher santomense, os quais se intensificam ou são instrumentalizados pela lógica dos modos de existência androcêntricos: o desemprego feminino, a não assunção da paternidade - problema das integrantes dos coletivos de tchabeta de Agostinho Neto, realça Zizi.

Lúcia, Ingrácia e Nina...

No quintal da Ingrácia, enquanto aguardava a Marcelina terminar de cortar as folhas para a confecção do almoço, para iniciarmos a gravação das músicas8 8 Quando perguntava aos dois grupos sobre o repertório musical, ambos alegavam esquecimento de muitas letras de músicas, muito por não recorrerem ao registro escrito. Quando da chefia da Zezinha - grupo Oro Verde - ela tinha um caderno no qual se encontravam todas as músicas desde a fundação do grupo em 2007. Mas, com a viagem da Zezinha, o caderno teria se perdido e, com ele, todas as memórias da músicas. Já no fim do campo, propus aos grupos, que cantassem as letras lembradas e deixaria com elas o registro em áudio. Auxiliado pelas novas tecnologias, algo muito presente também lá, as músicas ficaram no computador do homem da Ingrácia e no celular digital delas. do coletivo, Ingrácia e Lúcia limpavam a casa. Queixavam-se de estar cansadas do trabalho, pois estiveram a limpar as praias9 9 Com o aproximar do primeiro de janeiro, a autoridade distrital de Lobata organizou uma campanha de limpeza nas praias - algumas das praias mais procuradas da ilha são orgulho dos moradores do distrito, devido à sua paisagem deslumbrante - quando da comemoração do Ano Novo. Tradição em todo o arquipélago lavar o ano velho no primeiro dia do ano que se inicia e nos dias seguintes, as praias enchem-se de pessoas e convívios com piquenique. Com muita comilança, dança e bebedeira, brindam o ano novo, a meio de vários banhos nas deliciosas, tranquilas e cristalinas águas mornas. do distrito nos dois dias anteriores. Elas, a Nina e outros moradores são funcionárias/os da câmara, responsáveis de tirar o capim no parque, arredores e varrer também o espaço. Iniciam logo cedo, por volta das seis da manhã e o mais tardar nove horas estão de volta, para continuarem no dia seguinte. "Salário pouco mas ajuda a dar um jeito" (500 mil dobras que seria o salário mínimo do país caso houvesse, equivalente a 20 euros).

Após terminarem de varrer a casa, Lúcia sorrindo confidenciou-nos: "Faz tempo meu rendeiro não me veio ver". Não percebi a expressão 'rendeiro', perguntei do que se tratava.

Lúcia - Eu, a Ingrácia e muitas outras mulheres de Agostinho Neto, temos rendeiros. Nosso homem tem outra mulher, tem outra família. Vem para cá quando precisa pagar renda - rindo conclui: Nos ajuda com garotos [Lúcia tem dois filhos: Otílio de cinco anos, a Rosinha de dois anos], pais deles não ajudam. Meu rendeiro é homem velho. Ingrácia - A gente brinca, diz que é rendeiro. Gente fala assim, forro fala molaste - mulher de dentro de casa e mulher de fora - vivencha ou samua. Muita mulher aqui em Agostinho Neto é assim, mas não gostam que gente fale, fingem. Meus quatro filhos é cada um com um pai [a Ana Rita de onze anos, a Daniela oito anos, o Cico de seis anos e o Daniel de quatro anos], com meu rendeiro não tenho. Ele me ajuda a criar eles, não importa que é filhos de outro homem. Mas sabe, família de forro, fala pro homem pedir seu filho à mulher, pra ficar criar filho de outro homem para nada. Nada, só! L - São Tomé é difícil encontrar mulher dentro de casa com homem sem outra família. Quase todo homem tem mulher dentro de casa e tem outra mulher fora também. Homem que tem razão. Mulher faz o quê, tem que aguentar só! L - Homem ajuda com garoto, ajuda com comida em casa, gente vai leve leve... meu homem em oito dias que não dá notícia. I - Desde daquele dia? L - Sim, homem ignorou. Presidente ligou para mim, Veloso, meu homem, viu que era presidente, atendeu. Presidente ouviu voz dele, Veloso falou que me ia chamar, desligou na cara de Veloso. Homem ignorou e foi embora. Era para ir até 13h, homem foi 9h. I - Mas ignorou com razão, como presidente desliga pro Veloso. Ele vai pensar que Lúcia tem algo com presidente, como ele não fala nada, Veloso pensa que queria falar só com Lúcia, que quando Lúcia está sozinha, ele liga. L - Faz oito dias que não liga, nem aparece. Pelo menos, poderia perguntar logo naquela hora, mas nada falou, foi embora só. Às vezes Presidente liga e pede para falar com Ingrácia. Eu, ela e a Nina, a gente vai quebrar cacau na roça dele e ele paga pra nós. Eu estou com Veloso 1 ano e meio, minha filha kodé [caçula] já tem dois anos, ele ajuda com as crianças. Presidente me conquistou antes dele, se eu quisesse estaria com Presidente antes dele. I - Homem faz cada bobo. Gente tem que aguentar, aguentar só. L - Fica feio trocar só de homem, cada hora um rosto de homem não dá. Gente vai aguentando, mas às vezes desaforo muito, quando muito bobo só, a gente aguenta mesmo!? Eu homem me liga qualquer hora, eu falo pra não ligar, não é meu homem mesmo. Pai da Rosinha me ligava à noite, falei pra não ligar mais. Já arranjei meu homem só pra me ajudar com garoto, pai da Rosinha me largou com ela só, ela nem ano tinha, 6 meses, para eu sustentar sozinha. Agora que arranjei meu homem, fica ligando para quê! Falei para não ligar mais sôr. Depois que me largou, fica ligando só, bobo só, para atrapalhar com meu homem? Não ligou mais.

Categorias como 'mulher de dentro', 'mulher de fora', 'molaste' e 'samua' − essas duas últimas no crioulo forro − qualificam as cartografias conjugais, em certa medida uma superioridade da 'mulher de dentro' em relação à 'mulher de fora', ou, como Lúcia classificou falando da outra mulher de seu homem: "ela veio de trás, tirou rapaz de minha mão, ela ainda que gozava por cima". Para muitas, a maternidade permitia por um certo momento garantir o homem perto delas, mas só por instantes, pois a paternidade é acionada pelos homens mais como um valor de posse e de ostentação de manter a mulher ao desmando dele, do que a assunção da prole. E em cada homem que chega para uma nova relação, renasce a possibilidade de um futuro melhor e de melhoria de vida: a variação de rostos e de ascendência de que fala a Lúcia povoa os modos de existências da condição de mulheres nas roças e na cidade - muitas amarradas a um ciclo de pobreza no qual os filhos são acoplados, mas outras com uma vida remediada, tendo um trabalho e um salário como é o caso da Marta ou da Maria. Soube ser assente nas relações conjugais de que normalmente, quando um forro vive maritalmente com uma mulher numa modalidade de família reconstruída, o mais breve possível aquela deve dar-lhe o 'filho dele'. Não só por uma escolha do casal, mas também da pressão dos familiares do homem, pois "ficar a sustentar filho de outro homem sem ter teu filho é burrice". De realçar, entretanto, que não é uma peculiaridade só dos homens forros, nem a não assunção da paternidade e da perfilhação, tampouco o desemprego e o analfabetismo não é peculiaridade das mulheres forros, já que são pessoas a manter relações exogâmicas e em nenhum momento falam do homem não santomense como mais ou menos poligâmico que os outros. Um pouco por toda a Agostinho Neto, como também na cidade, muitas famílias são reconstruídas, vários filhos provenientes de relações diversas, tendo sempre a mulher o denominador comum, como narra Nina, irmã de Ingrácia:

Pai de Nuna é branco, me largou com ela, como o pai do Tiago. Tenho quatro filhos, a mais velha de 18 anos graças a Deus o pai mandou buscar, menos problema na cabeça. Tenho a Ticiana [adolescente de treze/catorze anos], o pai dela é descendente, está em Cabo Verde há mais de 10 anos, mas ajuda com a filha, manda dinheiro. Quando só tinha elas, pai de Thiago [cinco anos] conquistou, gente tava bom mesmo, pediu filho, homem é mau. Depois de Thiago nascer foi embora, me deixou sozinha. A Nuna foi pior, primeira vez com pai dela, peguei barriga e nunca mais vi ele. Muito sofrimento para criar esses garotos. Minha mãe antes de morrer me dizia, "Toma juiz minha filha não faz filhos mais com nenhum tipo de homem, homem é tudo mau, vem, usa, faz filhos e larga mulher". Quintal fica cada criança um rosto, tudo pai diferente. Assim também não dá. Eu homem nenhum agora vai vir pra me pedir filhos! Depois mulher passa necessidade, sem o que dar pro filho!

Contudo, em nenhum momento essa variação de linhagem é aceita passivamente, não só por uma moralidade dos ditos "bons costumes" a condenar a troca constante de parceiros e de companheiros masculinos, sob pena de serem depreciadas de 'bandidas', mas resistindo que outra mulher tome 'meu homem'. E pelo fato das vivências e das relações na roça serem povoadas e construídas na comunhão com não-humanos, outro cosmos, estes possuem qualidades de forças passíveis de reescrever a história dos sujeitos à revelia deles. Desse modo, as corporeidades dos sujeitos substancializam essas forças, diferenciando quem tem corpo mais forte e quem aguenta no embate, diante de um feitiço que uma mulher fez para a sua rival, a fim de tirá-la do seu caminho e amansar também o homem a fim de mantê-lo preso na relação, como nos mostra a experiência da Lúcia.

O pai do primeiro filho da Lúcia arranjou outra mulher e vivia com ela, mas nisso a Lúcia teria engravido dele. Várias tensões decorriam quando as duas mulheres se cruzavam no 'caminho', a primeira mulher - a 'rival', ao lado das amigas agredia-a jogando saliva no chão (quando ela fala na narrativa musical 'Maria foi à ribeira', a parte de jogar lata da água é uma metáfora para traduzir essa violência). Já farta da agressão da 'rival', Lúcia chamou-a para conversar e intimou-a a, caso se encontrasse com ela no caminho um dia sem as amigas, "nós há de ter nós dois, porque nem como você está com suas amigas tenho medo de você". Depois fez aviso ao homem dela, o pai de Otílio: "fala a tua mulher que se ela não quer sentir peso de minha mão, pra não meter comigo".

Lúcia cria, assim, a narrativa musical 'Maria foi à ribeira' (Maria bai rubera), mensagem enviada por ela à sua 'rival', como ela explica: "Encontrou com meu homem, veio de trás, quer tomar meu homem e ainda que tem mania de zombar de mim, de abusar, éh! Vê-me na rua, joga saliva, então fui tirar música". A criação dessa narrativa permite captar a potência da palavra que emana o poder, pois, segundo Lúcia, "fiz música papiada, a música pra quem sabe panhar, vê que é piada. Grupo antigo [Ouro Verde] tinha uma mulher de nome de Maria, fiz letra com nome dela, pra despistar". Assim, também o poder que emana não está, por vezes, em se fazer compreensível ao receptor, visto que a moça por ser forro "não entende crioulo bem, acha que é música só, mas música é pra ela" e, no que a palavra permite fazer e criar, não importando a compreensão. Em certa medida, o que elas nos mostram é o facto de que não está em jogo a recriação das regras de conversação nas quais o código partilhado é central para que a comunicação se atualize, pois o que menos importa é poderem ser entendidas, interessa mais a elas poderem falar, poderem materializar nas palavras e criar um poder no e com os atos de criações narrativas.

Maria foi à ribeira [Maria bai rubera]

Maria foi à ribeira encontrar comigo [Maria bai rubera kontrá ku mi] Derrubaste minha lata de água, não devias ter me tratado deste jeito, Maria [Bu rabidan nha lata d´água, bu ka trataba mi di kel manera li, Maria] Maria, ó Maria, tás com falta de conselho [Maria, ó Maria, bu teni falta di consedju].

Acompanhando as suas narrativas musicais, observo os vários momentos reverberando eu seu quotidiano, o lugar da prática e das artes de fazer tchabeta e como se acoplam. Percebo os momentos de criação das narrativas jocosas, alusivas aos modos de existência das corporeidades femininas e masculinas como um trabalho analógico ao efeito do riso provocado pelos mitos entre os indígenas Chulupi exposto por Pierre Clastres (2003CLASTRES, Pierre. A Sociedade Contra o Estado: pesquisas de antropologia política. São Paulo: COSAC & NAIFY, 2003., p. 162):

Vê-se aparecer aqui uma função por assim dizer catártica do mito: ele libera em sua narrativa uma paixão dos índios, a obsessão secreta de rir daquilo que se teme. Ele desvaloriza no plano da linguagem aquilo que não seria possível na realidade e, revelando no riso um equivalente da morte, ensina-nos que, entre os índios, o ridículo mata.

Como Clastres (2003CLASTRES, Pierre. A Sociedade Contra o Estado: pesquisas de antropologia política. São Paulo: COSAC & NAIFY, 2003.) sinaliza, torna-se necessário "não subestimar" os efeitos e os usos das criações jocosas, pois em simultâneo estão a "falar de coisas graves e fazer rir aqueles que escutam" (CLASTRES, 2003CLASTRES, Pierre. A Sociedade Contra o Estado: pesquisas de antropologia política. São Paulo: COSAC & NAIFY, 2003., p. 128). Outrossim, as criações jocosas produtoras da palavra emanam um poder e uma potência da resistência, situação ilustrada na pesquisa de Suzane Alencar (2015ALENCAR, Suzane. Resistência e Pirraça na Malhada. Cosmopolíticas Quilombolas no Alto Sertão de Caetité. 2015. Tese (Doutorado em Antropologia Social) - Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Universidade Federal do Rio de Janeiro/Museu Nacional, Rio de Janeiro .) com e nas comunidades negras rurais das serras de Caetité, em que, entre outras artes de resistência face aos projetos ecológicos de exploração de urânio aprisionando as vidas deles, a arte da pirraça e a arte de zombaria se constituem enquanto possibilidades de "agenciamento" da palavra e de inventar outras formas de existências.

Entretanto, a despeito das criações musicais, o quotidiano da Lúcia é atravessado por outras ontologias de poder e de forças as quais tensionaram a sua existência corporal, uma vez que o desejo de unir e de fazer vida marital com o pai de Otílio viria a ser interrompido diante da constatação de que alguém, 'a rival', teria feito feitiço contra a Lúcia.

Mas, depois separei de pai de Otílio, vi que minha vida tava a correr risco, ele é primeiro homem arranjei que me desonrou, pai do meu filho, depois que veio arranjar ela. Ela começou a fazer feitiço, veio ainda de trás, tirou rapaz de minha mão, ela ainda que gozava por cima, não gosto de confusão. Coisa de Deus mesmo, quem fez feitiço pra ela, ajudou ela a fazer coisa pra mim, ela a tirar meu homem, chamou-me no caminho e falou tudo o que ela fez, homem chamou e me falou tudo. Como quem tem Deus, tem Deus, eu tou vivo com minha vida, ele que fez pra pequena, ele morreu. Homem já morreu. Então eu não tou aqui com minha vida ainda?! Eu mesma eu tentei ficar com esse pai de meu filho, eu gostava muito dele, é bom rapaz trabalhador, eu também. Mulher não tem preguiça vai trabalhar. Fui tentar viver com ele, eu vi que tava com minha vida a correr risco, eu fui pra cama de noite, barriga enche e dá-me vontade sair na rua pra correr e gritar só, cabeça enche. Falei não! Solução é largar dele pra não perder minha vida. Mas até hoje, rapaz ficou com ânsia em eu, ele tá junto com a moça ainda. Ele não dá meu garoto nada, nada só, coisa que pequena [a rival] fez pra ele não dar assistência ao garoto, pra ele não dar-mo nada".

Similar à Lúcia, várias outras narrativas de mulheres vítimas de feitiço, ou cujo homem foi amarrado ou atentaram contra a existência da outra mulher eram muito recorrentes, quer na roça, quer na cidade. Como uma arma da mulher, acionada para reforçar os laços terrenos por meio de forças de outro cosmos e num embate de feitiço e contra-feitiço, no qual sempre afeções e riscos de morte participam desse embate. Daí, muitas abandonam o projeto de prosseguir no feitiço sob pena de um desenlace trágico ou de insistir na realização do projeto de vida marital com o sujeito da disputa. Rita estava preocupada com a filha migrada em Portugal, cujo namorado santomense se envolvera com uma moça da Guiné Bissau e ela teria engravidado: "Falei pra ela largar desse rapaz, não insistir, mulheres de Guiné Bissau10 10 Eufémia Rocha (2014) na instigante tese sobre feitiço ou korda em Cabo Verde problematiza o lugar que os imigrantes africanos da Costa Africana são outorgados como possuindo um saber e uma ciência do feitiço, particularmente os da Guiné Bissau. Ciência e saber demandados, não só em exclusivo para esse fim e só por esse grupo social: mulheres visando a restituição ou a manutenção do homem delas. usam feitiço para matar a rival dela. Mas, também homem de São Tomé quando não quer uma mulher, não quer mesmo, não há feitiço, pois família cuida dele."

Não sendo nem tampouco uma habilidade das mulheres guineenses, visto que, após várias visitas a curandeiros, esses teriam afirmado que alguém fizera feitiço forte à mãe da Rita para o homem dela 'largá-la', sendo que o feitiço a fazia passar por ciclos de bebedeira protelando e se negligenciando da manutenção da casa, do próprio corpo (sem se alimentar ou fazer comida, fazer higiene corporal) enquanto permanecia semanas a beber na rua. A mãe já septuagenária (con)vive com esses ciclos de bebedeira há mais de quinze anos, tendo já os filhos conformados: "começou a fase dela". Pela primeira vez, saiu do país e fora visitar filhos no exterior e enquanto permaneceu lá não teve nenhuma fase de bebedeira. Volvida a São Tomé, duas semanas depois ela já se viu enredada pela bebedeira e a filha comenta: "Bem que falam que feitiço não salta mar, passou todo tempo fora bem, chega em São Tomé começa a beber".

Assim...

Observo nesse jogo quotidiano onde a palavra potencializa as mulheres, espaços de agenciamento, de, por meio do riso, falar ou questionar modos de ser e de existir da mulher na sociedade santomense, quiçá não como resistência na sua qualidade ontológica substancial, mas momentos e espaços de criação. Afinal, elas são sujeitos e objetos dessas criações. O que elas estão falando é a manifestação das práticas quotidianas, das negociações e da criação de "táticas" e de "estratégias" de se reinventar(em) nesse lugar de oprimida que a sociedade santomense insiste em reservar-lhes, tendo os companheiros ainda no lugar dos "opressores", do e com o qual procuram repensar os seus modos de existências femininos. Entretanto, as vidas que emanam e são criadas quotidianamente no modo de existência androcêntrico na sociedade santomense permitem que concebamos as narrativas musicais delas enquanto um território onde se sentem felizes, desabafam e buscam forças para prosseguir à revelia das intempéries e dos imponderáveis existenciais.

Como postulam Gilles Deleuze e Félix Guattari (2008DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs. Capitalismo e esquizofrenia. São Paulo: Editora 34, 2008., p. 95), "as criações são como linhas abstratas mutantes que se livraram da incumbência de representar um mundo, precisamente porque elas agenciam um novo tipo de realidade [...]", os atos de criação musicais, as narrativas musicais de tchabeta permitem às minhas interlocutoras criar movimentos trans-históricos, não porque restituem outras relações às suas condições de mulher na sociedade santomense, mas um movimento a despeito delas, pois: "[...] a história só pode recuperar ou recolocar nos sistemas pontuais" (DELEUZE; GUATTARI, 2008DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs. Capitalismo e esquizofrenia. São Paulo: Editora 34, 2008., p. 95).

Igualmente, as musicalidades são instrumentalizadas de formas múltiplas nos quotidianos das minhas interlocutoras. Reiterando, a literatura sobre a diáspora cabo-verdiana inscreve-a num trabalho de recriação ou de reinvenção de comunidades imaginadas das socialidades do país de origem, pois há nessa diáspora um trabalho de reverter a noção da diáspora (Paul GILROY, 2008GILROY, Paul. O Atlantico Negro: modernidade e dupla consciência. Rio de Janeiro: Editora 34, 2008.), na chave judaica que reitera esse lugar da "terra prometida" e da "terra do desterro" e o retorno iminente à "terra prometida". As práticas dos 'descendentes', ou como elas enfatizam reiteradamente: "dos que nasceram em Cabo Verde", mostram-nos como as variações da nomenclatura do batuko para tchabeta e as das práticas percussivas 'pam-pam', 'rapicada'11 11 'Pam-pam' e 'rapicada' são terminologias nativas acionadas pela diáspora cabo-verdiana em São Tomé e Príncipe em referência aos movimentos corporais dos braços batendo no instrumento percurssivo, o batuko. De frisar que cada movimento e técnica corporal possui sua singularidade: 'pam-pam' seria um ritmo menos intenso e menos rápido que 'rapicada', pois esta, na acepção do crioulo cabo-verdiano, traduz algo que acelera, algo intenso, ainda que a intensidade perpasse os dois. e tchabeta manifestam esse trabalho de invenção do território Cabo Verde no arquipélago santomense.

Desse modo, as musicalidades constituem, entre outros, artifícios acionados e acoplados dentro de um trabalho de invenção de modos ontológicos de pensar o lugar dos 'descendentes' cabo-verdianos em São Tomé, quer na relação com os forros santomenses, quer na relação com os cabo-verdianos não santomenses, enfatizando em como não estão 'perdidos no mato' como tem sido postulado, tampouco Cabo Verde é 'sempre' um lugar melhor que São Tomé e Príncipe. Pois, como frisara, há a todo o instante movimentos dialéticos em que as minhas interlocutoras se deslocam do território São Tomé e Príncipe que é 'bom' e onde se vive 'remediado' como também é o 'inferno', igualmente Cabo Verde parece ser um 'país bom', mas "não de viver, só pra passear".

Referências

  • ALENCAR, Suzane. Resistência e Pirraça na Malhada. Cosmopolíticas Quilombolas no Alto Sertão de Caetité. 2015. Tese (Doutorado em Antropologia Social) - Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Universidade Federal do Rio de Janeiro/Museu Nacional, Rio de Janeiro .
  • CLASTRES, Pierre. A Sociedade Contra o Estado: pesquisas de antropologia política. São Paulo: COSAC & NAIFY, 2003.
  • DE CERTEAU, Michel. A invenção do quotidiano: Artes de fazer. Tomo I. 9.ed.. Petrópolis: Editora Vozes, 2003.
  • DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs. Capitalismo e esquizofrenia. São Paulo: Editora 34, 2008.
  • GILROY, Paul. O Atlantico Negro: modernidade e dupla consciência. Rio de Janeiro: Editora 34, 2008.
  • INESTP. Censo 2012, São Tomé e Príncipe.
  • INE. Censo 2010, Cabo Verde.
  • RIBEIRO, Jorge Manuel de Mansilha Castro. Inquietação, memória e afirmação no batuque: música e dança cabo-verdiana em Portugal. 2012. Tese (Doutorado em Música) - Departamento de Comunicação e Arte / Universidade de Aveiro, Aveiro.
  • ______. "'Batuque é dança dos negros': uma análise das representações de raça, cultura e poder no discurso do batuque cabo-verdiano em Portugal". In: ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE ETNOMUSICOLOGIA (ABET), IV, Maceió. Anais. UFAL: 2008, p. 298-306.
  • ROCHA, Eufémia Vicente. Feitiçaria e Mobilidade na África Ocidental: uma etnografia da circulação de kórda, méstris e korderus. 2014. Tese (Doutorado em Ciências Sociais) - Universidade de Cabo Verde, Praia.
  • SEMEDO, Carla Indira Carvalho. "Mara sulada e dã ku torno": performance, gênero e corporeidades no grupo de Batukadeiras de São Martinho Grande (Ilha de Santiago, Cabo Verde). 2009. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas / Universidade do Rio Grande do Sul, Porto Alegre.
  • ______. Ilusões do Contrato? Migrações sul-sul, evocações do tráfico, contranarrativas e socialidades dos cabo-verdianos nas roças de São Tomé e Príncipe. 2016. Tese (Doutorado em Antropologia Social) - Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Universidade Federal do Rio de Janeiro/Museu Nacional, Rio de Janeiro.
  • 1
    Excerto de uma música da autoria da Lúcia, originalmente em crioulo cabo-verdiano: "Minina undi bu nobu sta? Menina undi bu nobu ficá? Minina pim pediu bu nega dan. Minina un creu bu nega crem. Ael goci li ma fanadu dja inganau, ka mestebu más. Más bu troka nobu ku dinheru, un ka mestebu más".
  • 2
    Excerto de uma música do grupo Raiz di Tera, originalmente em crioulo cabo-verdiano: "Mininas nobos pa nhos pensa. Pa nhos pensa na nhos futuru. Ka nhos pega pé di pedra, pé de pedra é ka futuru. Nhos futuru é pa nhos studa, pa nhos ser mudjeres de manhãn".
  • 3
    Esta pesquisa foi realizada no âmbito do doutorado em Antropologia Social pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro/Museu Nacional, concluído em 2016, com apoio de bolsa Capes PEC-PG. O título da tese é: "Ilusões do Contrato? Migrações sul-sul, evocações do tráfico, contranarrativas e socialidades dos cabo-verdianos nas roças de São Tomé e Príncipe".
  • 4
    Tchabeta é terminlogia usada em São Tomé e Príncipe em referência à prática do batuko. Batuko ou como os cabo-verdianos no arquipélago santomense nomeiam: tchabeta, remete ao género músico-coreográfico vivenciado em Cabo Verde, partiularmente na ilha de Santiago. Tchabeta traduz uma mistura de sonoridades, em que a voz das cantadeiras é acompanhada dos instrumentos percursivos, o batuko. De referir que a vivência dessa prática aparece em São Tomé e Príncipe criada sob outras chaves, em que mais que somente uma mudança de nomenclatura, entendo que há um trabalho de criação de uma espécie de território existencial deste coletivo diaspórico, de um território Cabo Verde no arquipélago santantomense. Para mais aprofundamentos cf. Carla Indira Carvalho Semedo (2016______. Ilusões do Contrato? Migrações sul-sul, evocações do tráfico, contranarrativas e socialidades dos cabo-verdianos nas roças de São Tomé e Príncipe. 2016. Tese (Doutorado em Antropologia Social) - Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Universidade Federal do Rio de Janeiro/Museu Nacional, Rio de Janeiro.).
  • 5
    Em vários momentos em campo, assisti a programas televisivos nos quais os profissionais dos serviços de saúde nacionais sensibilizavam a população para os cuidados a se ter no preparo dos alimentos, entre os quais o "búzio do mato", a necessidade de um tempo prolongado na fervedura pelo risco a parasitas intestinais. Igualmente outros serviços dos media, nomeadamente o jornal digital santomense Telanon.info, a partir de nota assevera que em 2011, 65% das crianças santomenses (a nível nacional) estariam infetadas com um parasita intestinal. Disponível em: http://www.telanon.info/sociedade/2011/10/19/8769/65-das-criancas-sao-tomenses-estarao-infectadas-com-toxoplasma-gondii/. Acesso em 31/05/2016.
  • 6
    Tanto as narrativas musicais como as falas das minhas interlocutoras aparecem faladas ou em crioulo cabo-verdiano, ou em português santomense. Quando faladas em crioulo cabo-verdiano, as falas ou narrativas musicais aparecem no corpo do texto traduzidas em português e a respetiva versão em crioulo cabo-verdiano, em nota de rodapé.
  • 7
    Originalmente em crioulo cabo-verdiano: "Kandu sé maridu bai pa PT dexál ku 2 mininus femia. El fica ta pensa. Pamodi kandu homi bai, é fica uns tempus ka ta liga pa el, ka ta xomal, ka ta mandal nada pa mininus, el fica cu kes 2 mininus, sem nada pa dá, ka ta trabadja tb. Anton el tinha sé campo, ta trabadja campu, é como nós també nu ka ta xintã nau, nu ta trabadja nos campu, ta semea midju, fidjon, kes cusas lá, nu ta vendi. Unton nu fla Bia ka bu pensa es kusa li, ka bu pensa vida pamodi nem sé un pon di kada dia Nhór Dés ta dabu pa bu dá bus minis. El ta ta trabadja sé campo, el ta semea midju, el ta poe fidjon, td keli ta dá. Porque midju dá ta td kes cusas lá, portanto pé ka pensa sé vida. un dia el ta poe catchupa, un dia xerém, un dia papa... má un pon Nhor Dés ta dál pé cumé el ku sés minis. Keli é um mensagi di corage ki nu fazel, pé xinti corage, pé ka cai. Porque xeu mudjer ora ki homi larga ta fica tipo de abandonada, ta xinti mé sta largadu el ta dá kabeça na pedra. El ta bai di li, di lá, sé vida ta fica abandonada, unton unvés de pensa keli, el ta trabadja sé campu e un pon di kada dia Deus ta dal pe´cumi. É po corage é trabadja sé campo, ti un dia ki Deus dal sé maridu, ki lés ta vive sossegadu".
  • 8
    Quando perguntava aos dois grupos sobre o repertório musical, ambos alegavam esquecimento de muitas letras de músicas, muito por não recorrerem ao registro escrito. Quando da chefia da Zezinha - grupo Oro Verde - ela tinha um caderno no qual se encontravam todas as músicas desde a fundação do grupo em 2007. Mas, com a viagem da Zezinha, o caderno teria se perdido e, com ele, todas as memórias da músicas. Já no fim do campo, propus aos grupos, que cantassem as letras lembradas e deixaria com elas o registro em áudio. Auxiliado pelas novas tecnologias, algo muito presente também lá, as músicas ficaram no computador do homem da Ingrácia e no celular digital delas.
  • 9
    Com o aproximar do primeiro de janeiro, a autoridade distrital de Lobata organizou uma campanha de limpeza nas praias - algumas das praias mais procuradas da ilha são orgulho dos moradores do distrito, devido à sua paisagem deslumbrante - quando da comemoração do Ano Novo. Tradição em todo o arquipélago lavar o ano velho no primeiro dia do ano que se inicia e nos dias seguintes, as praias enchem-se de pessoas e convívios com piquenique. Com muita comilança, dança e bebedeira, brindam o ano novo, a meio de vários banhos nas deliciosas, tranquilas e cristalinas águas mornas.
  • 10
    Eufémia Rocha (2014ROCHA, Eufémia Vicente. Feitiçaria e Mobilidade na África Ocidental: uma etnografia da circulação de kórda, méstris e korderus. 2014. Tese (Doutorado em Ciências Sociais) - Universidade de Cabo Verde, Praia.) na instigante tese sobre feitiço ou korda em Cabo Verde problematiza o lugar que os imigrantes africanos da Costa Africana são outorgados como possuindo um saber e uma ciência do feitiço, particularmente os da Guiné Bissau. Ciência e saber demandados, não só em exclusivo para esse fim e só por esse grupo social: mulheres visando a restituição ou a manutenção do homem delas.
  • 11
    'Pam-pam' e 'rapicada' são terminologias nativas acionadas pela diáspora cabo-verdiana em São Tomé e Príncipe em referência aos movimentos corporais dos braços batendo no instrumento percurssivo, o batuko. De frisar que cada movimento e técnica corporal possui sua singularidade: 'pam-pam' seria um ritmo menos intenso e menos rápido que 'rapicada', pois esta, na acepção do crioulo cabo-verdiano, traduz algo que acelera, algo intenso, ainda que a intensidade perpasse os dois.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Sep-Dec 2016

Histórico

  • Recebido
    02 Maio 2016
  • Aceito
    18 Maio 2016
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