Resumo:
Este texto pretende apresentar o fenômeno do feminismo romani (cigano) que, a partir do começo do século XXI, está se desenvolvendo em vários países europeus e das Américas com a intenção de empoderar as mulheres ciganas no seio das comunidades e da sociedade majoritária. Desenvolvendo uma perspectiva interseccional em termos de gênero, raça e classe, as autoras ciganas, ativistas e acadêmicas, se colocam em diálogo com as correntes feministas pós-coloniais, em particular, com o feminismo negro e chicano norte-americanos. Nesta ótica, o feminismo romani propõe uma redefinição das fronteiras do pós-colonial, enfatizando novos espaços de subalternidade e de luta, e atravessando territórios geográficos-simbólicos que costumamos pensar como centrais e hegemônicos.
Palavras-chave: feminismo romani; gênero; interseccionalidade; raça; pós-colonial
Abstract:
This text tries to introduce the recent phenomenon of Romani Feminism that, from the beginning of the XXIst century, is spreading in many European countries and in America aiming at empowering Romani women in their communities and in the majority society. Using an intersectional perspective articulating gender, race and class, gypsy feminists, activists and academics, discuss with the most important post-colonial feminist currents, and in particular, with American Black Feminism and Chicano Feminism. In this view, Romani Feminism invites us to redefine post-colonial borders, thus emphasizing new spaces of subalternity and of struggles, and crossing geographic and symbolic lands which we usually think as central and hegemonic.
Key words: Gender; Intersectionality; Post-colonial; Race; Romani Feminism
Introdução
No outono de 2012, a revista feminista norte-americana Signs Journal of Women in Culture and Society publicou um dossiê – “Comparative Perspective Symposium: Romani Feminisms” – editado pela acadêmica e militante cigana norte-americana Ethel Brooks. O dossiê apresenta o desenvolvimento de uma nova corrente interseccional do feminismo com caráter transnacional, e junta contribuições de mulheres ciganas e feministas que pautam direitos e discutem sobre estratégias de empoderamento, comunidades, estado, exclusão social etc. O feminismo cigano faz, assim, sua aparição oficial na cena teórico-política dos feminismos subalternos, impondo uma redefinição das fronteiras tradicionais do pós-colonial e das lutas contra a opressão e a discriminação, conjuntamente marcadas pelas relações sociais de raça, classe e gênero. Escreve, a este propósito, Ethel BROOKS (2012):
Os Roms ocuparam uma posição particular e uma posição específica de sujeito na Europa e no mundo, uma posição marcada por uma combinação racista de fantasmas e de desprezo, que permanece ainda hoje. Neste momento, as populações romanis estão sendo excluídas do sistema de saúde, da educação, e estão sendo expulsas de muitos estados-nação e sendo assassinadas [...]. Com o aumento da violência contra as populações romanis em toda Europa e em outros lugares, no século XXI, a necessidade do ativismo e da teoria, e a possibilidade de um feminismo cigano, assumem uma urgência que não pode ser negada (p. 9-10).
Na ótica do feminismo romani, as fronteiras geopolíticas do pós-colonial são retraçadas a partir de novos espaços de subalternidade e de luta, de segregação (expulsões e legitimação de apelidos preconceituosos) e de resistência que se desenham no coração da Europa, dominada pela implantação de políticas reacionárias e racistas, segundo documenta a militante cigana Alexandra OPREA (2012). Embora as populações ciganas não tenham sofrido um verdadeiro processo de colonização, como aconteceu na África ou na América Latina, as ativistas ciganas se referem às categorias do pensamento feminista pós-colonial, particularmente, na sua vertente anglófona. Neste sentido, poderíamos definir o pós-colonial como um lugar de tensão entre diferentes marcadores sociais que continuam a operar de forma imbricada e complexa, reconfigurando, transformando e reconsolidando vínculos de opressão.
Neste ensaio, apresentamos o recente desenvolvimento do ativismo das mulheres ciganas em vários países europeus e suas relações com os movimentos feministas transnacionais, particularmente influenciados pelas teorias feministas pós-coloniais. Embora o ativismo das mulheres ciganas seja um fenômeno ainda restrito, podemos considerar, conforme destaca Debra SCHULTZ (2005), este fenômeno como “um movimento histórico significativo – possivelmente o nascimento de um movimento – e de todo modo, uma forma de ativismo de mulheres do qual a teoria feminista e o ativismo feminista podem muito se beneficiar” (p. 245).
Cabe destacar como o ativismo das mulheres ciganas surge no contexto do desenvolvimento dos movimentos sociais ciganos que, durante a segunda metade do século XX, vão se organizar na Europa e na América Latina, com a finalidade de resgatar estas populações da condição de subalternização, marginalização e violência às quais estão submetidas em muitas partes do mundo.1 Em consequência deste fenômeno, novas visões e abordagens da integração das populações romanis estão se desenvolvendo, como testemunho do novo protagonismo e pró-atividade das organizações ciganas na realização de mudanças sociais, dentro e fora das próprias comunidades, assim como na luta contra o racismo e a ciganofobia, na maioria dos países. Nas palavras dos intelectuais e ativistas Nicolae Gheorghe, Andreas Biró e Martin Kovats (2013):
Pela primeira vez na história, os Roma têm a perspectiva de refletir e de tomar parte ativamente na transformação social. O papel dos intelectuais ciganos e formadores de opinião sugere novas abordagens, que focalizam na integração, mais do que na condição de vítimas.
Ou seja, para muitos líderes ciganos, é preciso abandonar a atitude vitimista, compartilhar responsabilidades e afirmar a própria agência nos processos de integração e de confrontação/negociação com a sociedade majoritária.
A constituição do feminismo cigano seria, porém, impensável sem a luta que, há diversas décadas, as mulheres ciganas travam “para ganhar dignidade frente à opressão multifacetada” (OPREA, 2004, p. 29) e para reivindicar o próprio empoderamento, contestando os processos de racialização e de exclusão dos direitos básicos.
O ativismo das mulheres ciganas teve um papel significativo desde a última década do século XX, como testemunha outra militante, Nicoleta BITU (2013), em sua tese de doutorado, “Romani women and Feminism”, recentemente defendida. Nos últimos vinte anos, criaram-se redes significativas de associações de mulheres ciganas, tais como a “Roma Women Initiative” (RWI), “International Roma Women’s Network” (IRWN), “Roma Women’s Federation” e “Federation of Roma, Kale and Manouch Women”. Nem todas as mulheres ativas nestes movimentos se declaram abertamente feministas. Apesar desta consideração e embora os esforços das ativistas ciganas permaneçam, em muitos casos, anônimos, suas ações foram de grande importância em mobilizar e reforçar as comunidades, assim como em influenciar políticas voltadas para populações ciganas, incluindo recortes de gênero.2 Neste texto, apresentamos o trabalho de algumas delas, que escolheram se identificar enquanto feministas, reivindicando a existência do Feminismo Romani.
Pretendemos, aqui:
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- Apresentar o desenvolvimento do ativismo das mulheres ciganas, enquanto construção de uma nova perspectiva feminista, ainda pouco conhecida, mas que já está fazendo seu curso, em nível internacional;
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- Evidenciar a construção das categorias teóricas elaboradas pelas ativistas ciganas a partir das reflexões já precedentemente realizadas pelas feministas, oriundas de grupos subalternos e discriminados. Neste sentido, para o feminismo cigano, é impossível pensar as questões de gênero como separadas de outros marcadores sociais da diferença e de laços de poder, em particular, os de raça/etnia (Eric FASSIN, 2014)3 e de classe;
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- Questionar a relação do feminismo cigano com os movimentos sociais ciganos, geralmente liderados por homens, e, muitas vezes, preocupados com a emergência das reivindicações das mulheres enquanto fator que poderia criar divisões internas e distrair da primeira e fundamental luta contra a exclusão étnica e o anticiganismo.
A partir de uma perspectiva interseccional, este movimento feminista contesta o primado da branquitude, ainda presente nas chamadas correntes do feminismo hegemônico e eurocentrado (Elisa EMINOVA, 2006; OPREA, 2004; 2012; BITU, Enikö MAGYARI-VINCZE, 2012). Na esteira do feminismo negro, chicano e, em geral, das correntes prático-teóricas do feminismo pós-colonial, o feminismo cigano contribui para a compreensão crítica dos processos sociais de racialização, pelos quais @s cigan@s, e, particularmente, as mulheres, se tornam, independentemente da cor da própria pele, a figura de uma alteridade radical, supostamente não assimilável com a cultura dos países ocidentais. Ou seja, o critério de branquitude não coincide, neste caso, com uma questão de cor de pele. Os processos de racialização passam, dessa forma, por outras marcas de identificação, como lembra Oprea (2012) ao constatar que, “mesmo se uma mulher cigana é de pele clara e passa [por branca], ela veste com probabilidade uma saia comprida e um diklo (cobre-cabeça)” (p. 16), que a tornam reconhecível e vulnerável no contexto racista e sexista da sociedade majoritária.
Do ponto de vista metodológico, este texto apresenta uma revisão de bibliografia das maiores contribuições de mulheres ciganas, acadêmicas e ativistas, que reconhecem seu vínculo com a experiência feminista. As referências bibliográficas, predominantemente em língua inglesa – a língua que as feministas ciganas adotaram, enquanto representantes de um movimento transnacional – foram recolhidas através de uma pesquisa na internet e com a ajuda de algumas das autoras, que nos encaminharam seus textos.4 O trabalho de levantamento bibliográfico se tornou fundamental para a elaboração deste artigo, na intenção de fornecer um estudo introdutório ao feminismo cigano e à sua produção intelectual e militante no contexto brasileiro.
Feminismo cigano: uma dupla crítica
Pode o subalterno falar? Pergunta-se Gayatri Spivak (2012), no texto que se tornou manifesto do feminismo pós-colonial. A questão suscitada pela feminista indiana parece-nos particularmente apropriada para ler o processo de formação de um ativismo feminista das mulheres ciganas, ou seja, sua entrada no espaço do contrato dialógico que permite às “vozes baixas” (Karina BIDASECA, 2011) e subalternizadas serem ouvidas e entendidas. Deste modo, nos termos de Spivak (2012), podemos nos perguntar: “pode a subalterna romani falar? Pode a subjetividade romani, enfim, criar uma realidade por si mesma e pode falar em seu próprio nome?” (Nidhi TREHAN; Angela KOZCE, 2009, p. 11). Esta nova consciência da necessidade de romper o silêncio no qual o povo cigano – e, particularmente, as mulheres – foi relegado aparece na fala de uma militante espanhola, Beatriz Carrillo de los Reyes: “Se a história do povo cigano foi sempre muda, a mulher cigana foi uma figura invisível que não teve nunca o direito de expressar-se... Mas, agora é a hora de tomar a palavra” (Caterina REA, 2014). Entrar no espaço do diálogo representa a primeira e fundamental ação de empoderamento, que implica o fato de escolher as próprias identificações, rejeitando as etiquetas que a cultura dominante impõe.
A ativista cigana e feminista da República da Macedônia Enisa Eminova (2006) reitera este pensamento, rejeitando que outros – mesmo a voz oficial e hegemônica do feminismo ocidental e branco – definam sua identidade e as causas políticas que supostamente guiariam sua ação. Enquanto ativista cigana e feminista, ela afirma suas batalhas e reivindicações contra quem, supostamente guiado de boas intenções, pretenderia falar em seu nome.
A solução é defender a própria auto-definição, a auto-identificação – e resistir às etiquetas que são impostas, que são só um outro aspecto da opressão. Assim, tomando isso como um exemplo de racismo, quando um@ membr@ da cultura dominante me impõe uma identidade, uma identidade humilhante, a questão é: como podemos resistir à etiqueta e ainda mais importante: o que podem fazer @s outr@s para me apoiar, fazendo a diferença na minha capacidade de resistir e de produzir mudanças? (EMINOVA, 2006, p. 36).
Estas reflexões de Enisa Eminova sobre a constituição de um sujeito plural e dinâmico do feminismo partem da experiência de uma troca de e-mails com uma feminista branca e norte-americana, cujo discurso Eminova percebeu como totalizante e negador da sua própria singularidade. Escreve a militante romani:
Uma mulher americana estava me apresentando, por e-mail, para uma outra mulher canadense para conversarmos sobre estudos de gênero no Canadá. Ela me apresentou usando estas palavras: “Enisa é uma jovem romani, quase feminista”. Abri o dicionário para olhar as definições de quase e o dicionário falava: algo que parece ser alguma coisa, mas realmente não é assim, é parcialmente, é em parte... Eu não perguntei para ela o que ela entendia com isso, pois não queria escutar possíveis explicações vindas de uma perspectiva ocidental, branca, privilegiada, que explicasse para mim se eu era uma verdadeira feminista ou uma quase feminista, no meu contexto. Se eu for me apresentar e falar sobre meu trabalho [...], eu diria provavelmente que sou uma ativista feminista que enfrenta preconceitos culturais enraizados na própria comunidade, que trabalha para desenvolver novas redes de lideranças na própria comunidade, ou uma ativista que enfrenta a visão branca, ocidental, segundo a qual a mudança só provém das universidades ocidentais e brancas (EMINOVA, 2006, p. 35).
Em continuidade com o pensamento e a prática das feministas não brancas, Eminova nos convida, assim, a questionar o sujeito supostamente único e homogêneo da militância (feminista), para reivindicar um sujeito plural e capaz de respeitar a autonomia de cada um, sua capacidade de agir, de falar no seu próprio nome e, assim, de produzir mudanças. “Onde estamos nós, como mulheres de cor, representadas, consideradas, ouvidas, na chamada sociedade ocidental? Por que esta invisibilidade que nos oprime, que nos circunda, de forma que @s outr@s sentem a necessidade de falar em nosso lugar?” (EMINOVA, 2006, p. 37). O depoimento de Enisa Eminova nos conduz novamente às análises de Spivak (2012), pelas quais a condição de subaltern@ implica o fato da própria fala ser sempre intermediada ou representada por uma voz alheia que pretende interpretar seus interesses, suas necessidades e reivindicações, acabando, assim, por colocar novamente @ subaltern@ na sua posição de subalternidade silenciosa.
Semelhantes críticas a uma postura hegemônica branca e burguesa do feminismo tradicional tinham sido levantadas, também, pelas feministas negras a partir dos anos 1970/1980 e por outras mulheres não brancas ou de grupos minoritários, que não se sentiam suficientemente representadas e reconhecidas dentro do feminismo majoritário. Este tinha feito do gênero o principal e exclusivo marcador social da dominação, considerando a experiência do sexismo como o mínimo denominador comum que todas as mulheres vivenciariam, de forma universal e idêntica, independentemente de outros fatores de exclusão ou de opressão. Esta visão universal e redutora do gênero e da opressão sexista aparece, segundo bell hooks (2005), como o maior obstáculo para a criação de uma efetiva solidariedade (Sisterhood) entre todas as mulheres, originariamente divididas em função de um diferente acesso aos privilégios de classe e de raça. Nesta direção vão, também, as considerações de Michele WALLACE (2008) e, sobretudo, de Angela DAVIS (2013) que, no seu texto “Mulher, raça e classe”, contesta a falha do feminismo branco em considerar a complexidade da situação histórica das mulheres negras. Estas autoras se tornam referências para as intelectuais e ativistas ciganas. Nicoleta Bitu, por exemplo, retoma muitas vezes as críticas de bell hooks no seu texto Ain’t I a woman. Black woman and feminism, contestando a permanente exclusão das mulheres não brancas dos critérios de feminidade. Escreve bell hooks (2015):
As mulheres negras contemporâneas não podem se unir à luta pelos direitos das mulheres, porque nós não vemos a feminidade (womanhood) como um aspecto importante de nossa identidade. A socialização racista e sexista nos condicionou a desvalorizar nossa feminidade e a considerar a raça como o único aspecto relevante de identificação (p. 1).
Hoje, em muitos contextos europeus, as ativistas ciganas relatam dificuldades em se posicionar em relação ao feminismo oficial que
ignora a existência das mulheres Romani e de outras mulheres minoritárias, ao afirmar a doutrina universal do empoderamento de gênero. Os dois termos “Rom” e “mulher” foram efetivamente construídos como mutuamente exclusivos (OPREA, 2004, p. 33).
Alexandra Oprea constata como, por falta de uma análise crítica do racismo sofrido pelas mulheres romanis, o discurso feminista acaba invisibilizando-as, reforçando prioritariamente os direitos de mulheres brancas e privilegiadas. Para as feministas brancas, “enfrentar o racismo implicaria, ao contrário, se reconhecer, ao mesmo tempo, como oprimidas e opressoras – significaria enfrentar os preconceitos anti-ciganos que existem entre elas” (OPREA, 2004, p. 35).
Cabe, aqui, lembrar como o reconhecimento do feminismo cigano e, em geral, de um ativismo das mulheres ciganas, encontra resistência mesmo nas próprias comunidades e nos movimentos sociais roms, centrados na defesa dos direitos ciganos e na luta contra o racismo. Para estes movimentos, a criação de um ativismo das mulheres e a inserção do fator de gênero como elemento fundamental de promoção de políticas públicas constituiria um elemento suspeito ao comprometer a unidade da comunidade no enfrentamento ao racismo e à discriminação étnica. Conforme destaca Alexandra Oprea (2004), a retórica da unidade e a oposição a qualquer motivo de divisão representam uma forma de preservação das estruturas sociais ciganas, centradas na dimensão hierárquica e patriarcal.
Para as mulheres de cor, o racismo se torna um elemento que dificulta o enfretamento do sexismo nas próprias comunidades. A ideologia da unidade contra a opressão da sociedade majoritária serve para evitar que muitas mulheres falem sobre assuntos internos das comunidades [...]. Neste contexto, homossexuais e mulheres representam um desvio em relação à norma – a norma sendo a de ser heterossexual, homem e rom (p. 33-34).
Alexandra Oprea (2004) e Angela Kozce (2008; 2009) relatam, em diferentes textos, a reticência de numerosas lideranças ciganas masculinas em falar, abertamente, sobre outras questões que afetam as mulheres ciganas, além das esterilizações forçadas, que ainda acontecem em muitos países da Europa do Leste e que são consideradas mais como uma violação dos direitos do povo Rom, do que como uma violação específica às mulheres. Desta forma, pretende-se ocultar a realidade das violências domésticas, dos casamentos forçados, das diferenças educacionais que atingem as mulheres dentro das próprias comunidades ciganas.
Mesmo neste caso, uma analogia com as lutas das feministas negras e chicanas pode ser estabelecida, quando, desde os anos da criação dos movimentos pelos direitos civis, estas reclamavam contra a ideologia da unidade das comunidades negras e latinas, que ocultava as hierarquias de gênero e o funcionamento patriarcal. Podemos lembrar as reflexões de Angela Davis (2013) sobre o patriarcado negro, do qual ela traça, ao mesmo tempo, a genealogia colonial, ou as críticas de Kimberlé CRENSHAW (2005) às posições antifeministas de Sharazade Ali (apud CRENSHAW, 2005), intérprete de uma visão patriarcal, disposta a sacrificar as mulheres ao altar da suposta tradição e unidade das comunidades negras.
Nas comunidades não-brancas – considera Kimberlé Crenshaw num texto fundamental sobre a categoria de interseccionalidade –, os esforços de obstaculizar a politização da violência conjugal derivam, em muitos casos, da vontade de conservar a coletividade enquanto coesa. Esta perspectiva pode se enunciar de formas diferentes. Segundo alguns, o feminismo não teria lugar nas comunidades de cor, a questão de gênero seria um fator de divisão interna e o fato de abordá-la nas comunidades não-brancas equivaleria a introduzir as preocupações das mulheres brancas, num contexto onde elas seriam não somente fora de lugar, mas também nefastas. Os mais extremistas entre os que pretendem defender as comunidades contra esta agressão feminista afirmam que a violência de gênero não existe no grupo, e que é a tentativa de politizar a subordinação de gênero que constitui um problema para a comunidade (p. 64).
Com certeza, o enfrentamento do patriarcado e de uma sociedade baseada em um rígido binarismo diferencial de gênero e em estruturas fortemente hierárquicas constitui um dos maiores desafios das ativistas ciganas. Com o termo patriarcado, definimos um sistema social baseado na opressão das mulheres, enquanto grupo supostamente separado e subordinado aos homens. Em um texto sobre as lutas das mulheres romanis, Isabela MIHALACHE (2004) destaca o fato de elas serem ainda pouco representadas no espaço político e de serem marginalizadas nos próprios movimentos ciganos. Ela acrescenta que o
esforço das mulheres ativistas ciganas para introduzir um discurso sobre gênero foi considerado como um desafio ao patriarcado, por muitos homens ativistas ciganos. Como resultado disso, as mulheres romanis sentiram sempre mais a necessidade de desafiar a ordem patriarcal e lutar por seus direitos e suas liberdades.
Esta postura, porém, está bem longe de ser majoritária nas comunidades e muitas ciganas ainda escolhem o silêncio sobre aspectos da própria vida familiar que elas consideram não confortáveis. Nas palavras de Alexandra Oprea (2010), o esforço do feminismo cigano, hoje, consiste em “criticar as estruturas patriarcais internas, tentando evitar, ao mesmo tempo, reforçar os estereótipos negativos sobre a comunidade”. Ou seja, evitando que as reivindicações de gênero se tornem um instrumento de alterização e de estigmatização de um grupo subalterno e racializado.
As palavras de Alexandra Oprea nos remetem à dificuldade de falar de patriarcado e da opressão intracomunitária (imposição de casamento para jovens mulheres, testes de virgindade, exaltação da virilidade, rejeição da homossexualidade como perda da identidade cigana etc.), no caso de grupos minoritários e marginalizados. Em um artigo de 2005, Oprea tinha já apontado para tal dificuldade, analisando o caso do casamento arranjado de uma jovem romani de doze anos, Ana Maria Cioaba. O caso foi largamente exposto na mídia, em vários países do Leste europeu e nos Estados Unidos, de forma a apresentar a população romani como “um grupo homogêneo [...] ignorando as identidades interseccionais e as múltiplas discriminações dentro das comunidades romanis” (OPREA, 2005, p. 134). A autora retoma as críticas de Spivak e outras feministas pós-coloniais à atitude salvacionista do Ocidente, que pretende salvar as mulheres não brancas de homens não brancos, como se o sexismo e a opressão patriarcal fossem prerrogativas unicamente de culturas outras e exotizadas. “Este fenômeno não é só dos Roms, mas se explica no contexto de outras populações do Terceiro Mundo” (OPREA, 2005, p. 136), em relação às quais só determinados problemas são enfatizados e midiatizados, a fim de reforçar a sua suposta alteridade e seu exotismo em relação à cultura ocidental.
O foco na opressão exótica das mulheres romanis e na visão essencialista da cultura romani como primitiva, opressora, oposta à sociedade romena supostamente progressista ignora a existência do sexismo nesta última cultura, idealizando-a. Se constrói, assim, um discurso dicotômico que serve para glorificar a Romênia como estado que apoia os ideais feministas, ignorando a existência de um patriarcado romeno (OPREA, 2005, p. 136).5
Nesta direção vão também as análises do antropólogo espanhol David BERNÁ (2011), ao apresentar o patriarcado cigano como atravessado pelas condições de marginalidade, subalternidade e exclusão social vivenciadas pelas comunidades ciganas. Neste sentido, a reivindicação da virilidade transforma-se na afirmação da própria identidade, estigmatizada e desconsiderada pela sociedade não cigana. Escreve Berná (2011):
O contato com a sociedade majoritária continua concebendo-se, hoje, como perigoso para a estrutura patriarcal cigana. Ante este suposto perigo, se produz uma sobreproteção dos membros do grupo, em função de uma clara hierarquização por gênero e idade [...]. Nessa ideologia de gênero, a masculinidade se converte em uma espécie de mito de origem, de que supostamente depende a sobrevivência do grupo e que representa a figura do macho cigano. As duas palavras que nomeiam esta figura são definidas através da negação das alteridades consubstanciais a mesma (p. 5).
Ou seja, a feminina e a não cigana. Berná (2011) destaca que a construção da masculinidade cigana, com sua ostentação viril, se faz não somente através da negação do feminino “como construto onde estaria situada também a homossexualidade” (p. 5), mas, igualmente, do não cigano (payo ou gadjó), pelo qual o homem cigano se sente constantemente ameaçado. Assim, apesar desta ostentação de superioridade, a identidade masculina cigana é descrita por Berná (2011) como uma identidade “tênue e frágil” (p. 5), uma identidade em constante precariedade, pois constantemente exposta à discriminação, à marginalização, ou à contaminação pela sociedade majoritária. Escreve assim o antropólogo espanhol:
[A] ausência de virilidade tornaria gadjó ou payo (apayaría) o homem cigano ou, que é o mesmo, lhe faria correr o risco de se tornar um indivíduo inútil para um grupo étnico e minoritário articulado na base da defesa metafórica do inimigo externo e da procriação como forma de sobrevivência econômica e socioemocional. O que, no início, podíamos considerar como um conflito de gênero se transforma em um conflito étnico (BERNÁ, 2011, p. 5).
Neste contexto, não podemos deixar de pensar, também, que a maneira pela qual a identidade cigana se constrói, segundo uma lógica naturalizada e essencializada, é inseparável da maneira em que tal identidade é construída pela sociedade majoritária, que tende a rejeitar – orientalizar, segundo a expressão de Edward SAID (2007) – os ciganos enquanto alteridade e exterioridade radical.
A partir dessas reflexões, precisamos constatar mais uma vez que, no caso das comunidades e grupos racializados e socialmente marginalizados, a noção do patriarcado e de opressão interna deve ser considerada, ao mesmo tempo, como uma categoria crítica de análise das desigualdades de gênero, e como uma categoria descritiva a partir da qual é possível ler a gênese imbricada dos laços de poder. Neste caso, a crítica necessária da opressão de gênero intracomunitária não pode ser separada da leitura, também crítica, das dinâmicas racistas e exotizantes da sociedade majoritária.
Como no caso da maioria dos outros feminismos subalternos, o feminismo cigano se constitui, então, a partir de uma dupla crítica: 1) à sociedade majoritária, que o feminismo tradicional encarna, e 2) às próprias comunidades. Em ambos os casos, sociedade majoritária e comunidade constituem lugares de silenciamento e invisibilização do ativismo das mulheres ciganas, exigindo delas a impossível escolha entre pertencimento étnico e de gênero. Angela Kozce (2008) destaca, a tal propósito, o caráter intrinsecamente dialógico do feminismo cigano, enquanto expressão da impossibilidade de escolher entre a identidade étnica e de gênero. Ethel Brooks, por sua vez, define o feminismo cigano (Romani Feminism) a partir do esforço de manter conjuntas e entrelaçadas estas identidades. Este fenômeno revela
uma maneira de marcar a nossa existência, como Romanis e como feministas; é um testemunho da nossa presença; prova da nossa existência, e um protesto contra nosso sempre precário lugar no mundo (BROOKS, 2012, p. 1).
Feminismo cigano e pós-colonial
Contribuindo para a circulação de discursos, práticas teóricas e militantes, o feminismo romani nos parece representar um exemplo daquilo que Inderpal GREWAL e Caren KAPLAN (2015) identificam como um “transnacionalismo a partir do baixo” (p. 82) enquanto alternativa ao feminismo hegemônico e às “principais articulações dos termos global e internacional, fornecidas pelas feministas ocidentais, euro-americanas dos anos setenta” (p. 82). Neste sentido, Angela Kozce e Nidhi Trehan (2009) apresentam o caráter, ao mesmo tempo, local e transnacional do ativismo das mulheres ciganas e as formas de interseccionalidade que o caracterizam. Define-se, assim, um espaço cultural e sócio-político que chamamos pós-colonial, um espaço prático-teórico de luta pela visibilidade e pelo empoderamento de grupos historicamente considerados como subalternos. Nas palavras de Angela Kozce e Nidhi Trehan (2009), as políticas ciganas e, particularmente, as contribuições das feministas, exigem uma redefinição das noções de colonialismo e de um contexto pós(neo)-colonial:
A aplicação do termo colonialismo pode ser entendida em um sentido alargado, não somente como uma conquista específica ou um evento no passado, mas como um exercício contínuo de poder econômico, militar, político por parte de estados ou grupos mais fortes sobre outros mais débeis. Neste sentido, a colônia é interna ao estado, compreendendo as classes subalternas e aqueles sujeitos percebidos como infra-humanos. E mais ainda, se consideramos o colonialismo como uma maneira de manter relações de poder econômico e político (do mesmo modo que Edward Said fala de Orientalismo como desenvolvendo uma variedade de estratégias cujo fator comum é a consequente posição e superioridade do Ocidente em relação ao Oriente), então não existem dúvidas sobre a existência de uma atitude neocolonial em relação ao ativismo romani, no cenário político europeu hoje (p. 11).
Na mesma direção, Ethel Brooks define “pós-colonialidade cigana” (Romani Post-coloniality) como um lugar de cruzamento entre experiências imbricadas e formas simultâneas de discriminação vivenciadas pelas mulheres ciganas, mas, também, como um espaço de resistência contra estas múltiplas dominações. Ou seja, segundo Ethel Brooks, a noção de “pós-colonialidade cigana” indica 1) a presença de relações de poder que se manifestam segundo diferentes eixos interseccionados, oprimindo as populações ciganas e, em particular, as mulheres, e 2) a ação de luta, o ativismo, em virtude do qual estas se tornam sujeitos políticos capazes de questionar e de se opor a esta trama de opressões.
O desenvolvimento de correntes do feminismo pós-colonial desde os anos 1970 – feminismo negro, feminismo indiano, feminismo chicano, feminismo muçulmano e latino – conduz à reflexão sobre como as dinâmicas de gênero, raça/etnia e classe encontram-se profundamente relacionadas e interagem na produção histórica de relações de poder e de dominação/marginalização de determinados grupos sociais. Entre os grupos mencionados, as mulheres são particularmente atingidas por essas formas articuladas e complexas de dominação e de subalternização. Trata-se, então, de entender as dinâmicas de funcionamento dos laços de poder, ou seja, o caráter racializado das relações de gênero e a dimensão gendrada das hierarquias sociais e dos estereótipos raciais. As categorias de gênero, raça e classe devem ser trabalhadas conjuntamente, pois elas coatuam e contribuem, conjuntamente, para a produção das relações de dominação vivenciadas por determinados grupos sociais. Em outras palavras, os feminismos pós-coloniais argumentam que a dominação de gênero e a opressão patriarcal das mulheres são inseparáveis de outras formas de dominação, baseadas na racialização, na nacionalidade e na classe. Neste caso, a exposição à experiência de colonização, racismo, xenofobia e subordinação social contribui para reforçar a opressão das mulheres e para determinar os estereótipos fixos e marcados dos papéis sociais femininos e masculinos. Da mesma maneira, “o racismo é vivenciado de forma mais aguda quando você é mulher ou gay ou as duas coisas juntas” (OPREA, 2004, p. 4).
Como já argumentamos, o feminismo cigano retoma a postura crítica reivindicada por outras feministas não brancas em relação ao feminismo euroamericano, que encarna o ponto de vista de mulheres brancas, de classe média e urbanas. Neste contexto, Nicoleta Bitu e Enikö Magyary-Vincze (2012) destacam as contribuições das feministas afro-americanas (em particular, mencionam Kimberlé Crenshaw e bell hooks) que permitiram assinalar a presença de preconceitos racistas no seio dos movimentos feministas europeus e norte-americanos.
Retomando estas contribuições, Ethel Brooks (2012) destaca que a prática do feminismo romani implica uma posição parecida à dupla consciência analisada pelo teórico do pan-africanismo, William E. DuBois, perpetuada e reelaborada na experiência das feministas afro-americanas, mas, também, remete à consciência mestiça e à experiência fronteiriça mencionadas pelas feministas latinas e chicanas. Para a feminista chicana Gloria ANZALDÚA (2005), a fronteira é um permanente lugar de passagem e de trânsito, onde as identidades culturais, linguísticas, sexuais, e, mesmo, as abordagens epistemológicas, revelam-se, originariamente, impuras e imbricadas. Mas fronteira é sempre, ao mesmo tempo, um espaço particularmente denso de relações de poder, o espaço de seu constante entrelaçamento e, como tal, ela se torna uma forma de falar da interseccionalidade. Retomando estas reflexões, Nicoleta Bitu e Enikö Magyari-Vincze (2012) afirmam que “o feminismo romani é uma maneira de assumir as desvantagens e os benefícios de habitar o interstício (in-between), de procurar laços não hierárquicos: é um processo de solidariedade permanentemente recriado ao redor dos direitos humanos universais” (p. 46). A experiência de uma identidade plural, rica e complexa é, também, a experiência de formas diferentes, mas imbricadas de dominação, a partir da qual se abrem práticas conjuntas de luta e de militância.
Destacamos, neste contexto, o valor da categoria teórico-prática da interseccionalidade, que mostra o cruzamento/imbricação de diferentes formas de dominação – “opressões multifacetadas e simultâneas” (COMBAHEE RIVER COLLECTIVE, 2013) - em termos de gênero, classe e raça/etnia, sexualidade, sofridas pelas mulheres não brancas. Elaborada, inicialmente, pelas feministas negras e chicanas norte-americanas, a categoria de interseccionalidade foi, recentemente, apropriada pelas ativistas e acadêmicas feministas de origem cigana, para destacar que “as formas de discriminação interagem uma com a outra” (KOZCE; Maria Popa RELUCA, 2009, p. 17) e para afirmar a consequente necessidade de uma luta plural contra o racismo, a opressão de classe e contra o machismo tanto interno, como externo às suas comunidades. Para Angela Kozce (2008), a interseccionalidade é uma categoria dialógica e dinâmica que permite entender a complexidade dos mecanismos de discriminação, evitando as simplificações de uma visão fixa e separatista.
As teorias feministas interseccionais evidenciam o perigo desta abordagem estática e mostram que as subordinações étnico/raciais, de gênero, de classe não se excluem mas se reforçam mutuamente. As abordagens cumulativa e divisional da interseccionalidade foram já particularmente criticadas pelas teóricas e ativistas que trabalham no contexto de outros movimentos de mulheres não-brancas (KOZCE, 2008, p. 183).
Articulando o recorte étnico-racial ao recorte de gênero, o enfrentamento ao machismo e ao sexismo permanece, assim, inseparável da luta contra o racismo, da ciganofobia e da exclusão social que atingem a totalidade dos povos ciganos. No entanto, nos termos da interseccionalidade, é preciso enfatizar que o tipo de racismo e de ciganofobia experimentado pelas mulheres romanis não é sempre idêntico ao experimentado pelos homens, pois está profundamente articulado com estereótipos e formas de opressão em função do gênero (KOZCE, RELUCA, 2009; MAGYARI-VINCZE, 2006; OPREA, 2004 e 2012; MIHALACHE, 2004; BITU e MAGYARI-VINCZE, 2012). Angela Kozce (2008, p. 183) menciona, a este propósito, o texto de Kimberlé Crenshaw (1991), “Mapping the Margins: Intersectionality, Identity Politics, and Violence Against Women of Color”, em que a jurista norte-americana constata que o
racismo como é vivenciado pelas pessoas de cor de um sexo específico (o masculino) determina os parâmetros das estratégias antirracistas, do mesmo modo que o sexismo vivenciado por mulheres pertencentes a uma raça particular (a branca), forma, em grande parte, a base dos movimentos de mulheres.
Além de apagar o posicionamento específico de mulheres não brancas, esta leitura não consegue “analisar todas as dimensões do racismo e do sexismo” (CRENSHAW, 2005).
No texto publicado na revista Signs, Alexandra Oprea (2012) prolonga estas reflexões sobre o caráter gendrado e sexualizado do racismo vivenciado pelas mulheres ciganas que parece até excluí-las da categoria própria de mulher.
Uma quantidade de estereótipos é sim compartilhada com os homens ciganos: homens e mulheres cigan@s são representados como preguiços@s, briguent@s, vulgares, suj@s e criminos@s. Ambos os dois podem ser considerados como detentores de uma sexualidade vulgar. Apesar de serem ambos hipersexualizados, as mulheres romanis enfrentam a vulnerabilidade a mais do estupro, que é justificada através destes estereótipos, que envolvem o apetite sexual da tiganka (cigana). O termo tiganka é caracterizado não somente pelo ódio racial, mas também pela misoginia, pois o estereótipo que o termo tiganka veicula não é somente o da inferioridade racial, mas também o da disponibilidade sexual [...]. Vale a pena explorar, então, como o termo tiganka e outros estereótipos parecidos jogam um papel importante nas vidas das mulheres romanis. Antes de tudo, tiganka não é uma mulher e não se aborda ela com um tratamento cavalheiresco e respeitoso. Ela é representada como uma inquietante mendiga, como uma vulgar varredora de ruas. Ela é agressiva, insistente e suja. Mesmo na idade avançada, ela conserva suas qualidades masculinas. Esses são os estereótipos que permitem sua submissão; os estereótipos que justificam o tratamento brutal que atualmente lhe é reservado (p. 15-16).
Angela Davis e bell hooks já tinham mostrado como a exclusão das mulheres não brancas da categoria de feminidade não confere os privilégios da masculinidade, mas as torna, particularmente, vulneráveis às violências machistas e a qualquer forma de abuso sexual.
Para concluir, a noção de interseccionalidade permite, justamente, pensar a interação mútua entre formas de dominação e como, neste cruzamento, são produzidas formas específicas de dominação/discriminação irredutíveis à simples adição dos fatores. Retomando Kimberlé Crenshaw (2000; 2002), Angela Kozce e Reluca Popa (2009) comparam a interseccionalidade com uma encruzilhada de caminhos e um intenso espaço de trânsito:
Os caminhos representam os eixos de poder/subordinação (como patriarcado, hierarquias étnico/raciais, classe) que estruturam as posições relativas de homens e mulheres, raças/etnias e classes na sociedade. Segundo sua [de Kimberlé Crenshaw] descrição, as mulheres marginalizadas situam-se nas encruzilhadas, onde dois ou mais eixos se interseccionam. Trata-se de sujeitos expostos a um intenso fluxo de trânsito em muitas direções e com um alto risco de acidente (p. 18).
Conclusão
Até aqui, apresentamos o surgimento de um feminismo cigano como movimento social e de pensamento profundamente inspirado na experiência de outros movimentos feministas de mulheres subalternas e oriundas de contextos coloniais. A partir das experiências e das reflexões de várias mulheres romanis, intelectuais e militantes, argumentamos que este feminismo impõe uma redefinição das fronteiras do pós-colonial, incluindo contextos e territórios geográficos, políticos e simbólicos que não costumávamos considerar, anteriormente, como associados a esta realidade. É o caso da Europa Central e do Leste, atravessadas por políticas neoliberais, racistas e anticiganas, mas onde também se desperta a consciência e a luta de muitas ativistas e intelectuais de origem cigana que colocam sua produção no marco do feminismo romani. Neste sentido, o pós-colonial evoca a dupla dimensão de uma trama feita de “sítios de dominação e de sítios potenciais de resistência” (KOZCE, 2008, p. 187).
Na análise destas autoras ciganas, a dupla genealogia de raça e gênero e a inseparabilidade das diferentes e conjuntas formas de opressão constituem um elemento central para situar a condição das mulheres ciganas. A noção de interseccionalidade encontra-se valorizada em toda sua força prático-teórica, rejeitando qualquer versão simplista que a reduziria ao modelo aditivo, que pensa as diferentes discriminações como camadas superpostas e incomunicáveis.
Neste sentido, a referência à noção de gênero se torna um elemento fundamental no processo de autoidentificação das mulheres ciganas, a partir das experiências de discriminação por elas sofridas.6 Esta complexidade da experiência da dominação torna suspeita e inaceitável a presunção da incompatibilidade entre postura feminista e identidade romani; incompatibilidade à qual as militantes ciganas são, muitas vezes, reenviadas, tanto pelas feministas brancas como pelos militantes ciganos, que as acusam de trair a própria cultura e as próprias comunidades. Porém, como amplamente documentamos, os preconceitos e estereótipos racistas e ciganofóbicos aos quais estas mulheres são submetidas são sempre coproduzidos por marcas de gênero e por conotações fortemente sexualizadas (cigana sensual e sedutora ou sexualmente submissa, cigana mãe e ladra de crianças, cigana misteriosa e identificada como uma bruxa...). Neste sentido, entendemos que “o racismo anti-cigano toca as mulheres mais do que aos homens e que este racismo é, na maioria dos casos, representado através de imagens de mulheres e crianças ciganas” (KOZCE; RELUCA, 2009).
Devido a esta carga extremamente pesada de preconceitos que afetam, particularmente, as mulheres ciganas, destacamos, mais uma vez, para concluir, a importância de se iniciar trabalhos que resultem na visibilização e na valorização da palavra deste grupo historicamente subalterno e discriminado.
Referências
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1
Durante o século XX, muitas organizações Romani se desenvolveram na Europa, em nível nacional e internacional. Entre estas associações, lembramos a International Romani Union, criada em 1978, e o European Roma and Travellers Forum. A tese de Marcos Toyanski Guimarães SILVA documenta o desenvolvimento destes movimentos sociais e associações na Europa e na América Latina, sem, porém, incluir a importância das ações e reflexões realizadas pelas mulheres ciganas.
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2
Lembramos que já foram realizados dois Congressos Mundiais de Mulheres Ciganas em Helsinki (setembro de 2013) e em Granada (outubro de 2011) e várias Conferências Internacionais na Romênia (2006), na Suécia (2007) e na Grécia (2010). Estes eventos testemunham a vontade, por parte das mulheres ciganas, de serem escutadas e de participarem, de forma ativa, das decisões políticas nas próprias comunidades, assim como no seio da sociedade majoritária.
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3
Conforme seu uso na teoria feminista pós-colonial, o termo raça/etnia não indica, aqui, um conjunto de caracteres pré-dados, nem uma identidade de ordem física, fenotípica, ou espiritual, mas a posição que um grupo social ocupa na trama das relações de poder socialmente estabelecidas. A situação dos Roms na maioria das nações europeias ilustra bem o processo de produção política e social da raça, enquanto marcador social da diferença, uma diferença que, sem ser baseada em caracteres fenotípicos, é, porém, concebida como uma alteridade radical e não integrável. Mencionamos, a este propósito, o trabalho do sociólogo francês Eric FASSIN sobre a situação das populações Roms na França e na comunidade europeia. Fassin aponta para a criação de uma “política da raça”, enquanto produção da desumanização destas populações, colocadas, assim, às margens das sociedades europeias. Nas palavras de Fassin (2014), “estas populações fazem, hoje, o objeto de uma verdadeira racialização” (p. 32), ou seja, de um processo de total alterização. “A produção da alteridade supõe, assim, traçar um limite entre eles e nós...” (FASSIN, 2014, p. 58) que constrói este grupo como essencialmente não assimilável à cultura das nações europeias.
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
Jan-Apr 2017
Histórico
-
Recebido
06 Jul 2015 -
Revisado
09 Abr 2016 -
Aceito
25 Maio 2016