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Militantes e radicais da quarta onda: o feminismo na era digital

Militants and Radicals of the Fourth Wave: Feminism in the Digital Age

Militantes y radicales de la cuarta ola: feminismo en la era digital

Resumo:

Neste artigo, exploro a experiência de se tornar feminista na era digital. Atualmente, sua construção é feita intensamente através das redes digitais. Isso é feito com base em dois estudos de caso: primeiro, coletivos estudantis feministas, onde mapeamos o uso da tecnologia e das representações sobre o feminismo, e, segundo, o feminismo radical no ciberespaço, onde nos aprofundamos na relação entre feminismo e tecnologia. Tecida entre as redes sociais e as ruas, se tornar feminista na era digital mobiliza vivências, reconhecimento e sistemas de conhecimento (teoria feminista), a partir de onde é gerada uma nova epistemologia feminista mais atual e atenta aos sujeitos e suas vivências.

Palavras-chave:
feministas; experiência; conhecimento feminista; ciberespaço

Abstract:

This work explores the experience of becoming a feminist in the digital age. This is done based on two case studies: first, feminist student collectives, where we map the use of technology and representations of feminism, and second, radical feminism in cyberspace, where we delve deeper into the relationship between feminism and technology. Woven between social networks and the streets, becoming a feminist in the digital age mobilizes experiences, recognition and knowledge systems (feminist theory), from where a new feminist epistemology is generated more current, attentive and articulated to the subjects.

Keywords:
feminists; experience; feminist knowledge; cyberspace

Resumen:

Este trabajo explora la experiencia de convertirse en feminista en la era digital. Si hay un aspecto que es capaz de definir esta experiencia es que se ha construido intensamente a través de las redes digitales. Esto se realiza en base a dos casos de estudio: primero, colectivos de estudiantes feministas, donde mapeamos el uso de la tecnología y representaciones sobre el feminismo, y segundo, el feminismo radical en el ciberespacio, donde profundizamos en la relación entre feminismo y tecnología. Tejida entre las redes sociales y las calles, convertirse en feminista en la era digital moviliza experiencias, sistemas de reconocimiento y conocimiento (teoría feminista), desde donde se genera una nueva epistemología feminista más actual, atenta y articulada a los sujetos y sus vivencias.

Palabras clave:
feministas; experiencia; conocimiento feminista; ciberespacio

Introdução

Como uma mulher se torna feminista? Esta questão retórica e ao mesmo tempo provocativa mobiliza o tropo do pensamento feminista ocidental. Afinal, tratam-se de categorias polissêmicas e instáveis, comportando várias interpretações e significados.1 1 Para isso, a teoria feminista tem se desdobrado em diferentes escolas. Assim, os mais afeitos ao pós-estruturalismo reivindicam mulher como uma categoria aberta a ressignificações. Para estes, a “evidência anatômica da diferença sexual” é fruto da linguagem, ou seja, sexo, assim como gênero, é construído socialmente. Nesta dança de significados flutuantes, menos que uma categoria ontológica, mulher é uma questão de identidade e performance, cujos significados são reiterados socialmente. Do outro lado, feministas radicais ou “materialistas” pensam a “mulher” como uma ontologia; uma situação que recai sobre elas devido aos significados sociais atribuídos a seus corpos, fator que condiciona grande parte da sua opressão, que condiciona diversas opressões que vão desde a reprodução à sexualização e à objetificação.

Mas a trajetória que vai de uma à outra é complexa e envolve, antes de tudo, a identificação e o reconhecimento de um Outro, cujas experiências e vivências, quando compartilhadas, ganham o status de experiência coletiva, podendo se tranformar em uma experiência política. Também envolve a identificação com sistemas de conhecimento (epistemologias) que dão sentido às suas experiências de gênero, classe, raça/etnia e sexualidade. Se tornar uma feminista, em alguns casos, pode significar a capacidade de ler suas próprias experiências à luz de uma epistemologia feminista. Trata-se, então, de uma experiência que pode ser tanto vivencial quanto epistemológica.

Neste artigo, exploro a experiência de se tornar feminista na era digital, um momento em que a nossa intrínseca relação com as máquinas não nos permite enxergar o mundo a partir de binarismos fáceis e estruturantes do pensamento científico como natural e artificial, físico e imaterial, humano e animal. Vivemos novos tempos, onde as tecnologias interferem e moldam nossas subjetividades e modos de vida, sobretudo os das mulheres. Para falar destas transformações, Donna Haraway (1995) escolhe a metáfora do ciborgue, “um mito político cheio de ironia que seja fiel ao feminismo, ao socialismo e ao materialismo” (p. 39). Trata-se de um organismo híbrido, sem fronteiras delimitadas entre a máquina e o orgânico, o natural e o artificial. Ele desafia todos e quaisquer limites entre o natural e o artificial, o físico e o imaterial, o real e o virtual. Com isso, nossos corpos e subjetividades são plásticos, montáveis e desmontáveis em um eterno processo de autoconstrução.

Se há um aspecto que seja capaz de definir a experiência feminista da quarta onda é que ela tem se construído intensamente através das redes digitais. Aqui, toma-se a experiência como uma categoria de análise. Ela alude a uma trajetória com suas histórias, ontologias, categorias e conceitos através dos quais os sujeitos se constituem. Tornar-se feminista é um ato entre a experiência e a linguagem, que aciona discursos e representações (Joan SCOTT, 1999SCOTT, Joan W. “Experiência”. In: LEITE DA SILVA, Alcione et al. (Orgs.). Falas de Gênero. Santa Catarina: Editora Mulheres, 1999.). Mais do que identidades, consideradas fluídas, instáveis e excludentes (HARAWAY, 1995HARAWAY, Donna. “Manifesto ciborgue”. In: HARAWAY, Donna; KUNZRU, Hari; SILVA, Tomaz Tadeu (Orgs.). Antropologia do Ciborgue: vertigens do pós-humano. São Paulo: Editora Autêntica, 1995.; Silvana MARIANO, 2005MARIANO, Silvana. “O sujeito do feminismo e o pós-estruturalismo”. Revista Estudos Feministas, v. 13, n. 3, 2005.), o conceito de experiência mostra o “tornar-se feminista” como parte de uma tomada de consciência de si enquanto produto e agente das relações de poder que o fabricam e o subjetivam.

Neste trabalho, primeiro é explorada a afinidade entre mulheres e redes, mostrando como, a partir de 2015, emergiu no Brasil uma nova consciência feminista. Depois, nos propomos a compreender a experiência de se tornar feminista na era digital de duas formas significativas. Primeiro, através de jovens feministas de coletivos estudantis, onde mapeamos o uso da tecnologia e as representações sobre o feminismo. Segundo, através do caso do feminismo radical, onde nos aprofundamos na relação entre feminismo e tecnologia. Atualmente, o feminismo radical é uma vertente de expressivo crescimento pelo ciberespaço; uma análise, em 2016, mostrou a existência, no Facebook, de uma centena de grupos de discussão feministas em língua portuguesa, onde 30% deles são alinhados a alguma vertente feminista e 18% alinhados ao Feminismo Radical (Fabiana MARTINEZ, 2019MARTINEZ, Fabiana. “Feminismos em movimento no Ciberespaço”. Cadernos Pagu [online], n. 56, p. 01-34, 2019. Disponível em http://www.scielo.br/pdf/cpa/n56/1809-4449-cpa-56-e195612.pdf.
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). Por meio de um mapeamento das redes que perfazem a comunidade RadFem no Facebook (como o feminismo radical tem sido chamado no ciberespaço) foram analisadas postagens em grupos de discussão, perfis de ativistas e páginas ligadas ao feminismo radical.2 2 Para este trabalho, foi analisado um total de oitenta posts no período de 2016 a 2017. Em pesquisa realizada em 26/02/2021, verificou-se que a rede social Facebook conta com cerca de quinze páginas brasileiras sobre feminismo radical, sendo as de maior alcance (que contam com mais de 30000 curtidas), a Feminismo com Classe (criada em 2017), a Feminismo Radical Didático (criada em 2015) e QG Feminista (criada em 2017, juntamente com seu respectivo grupo de discussão e a revista digital. Link: qgfeminista.org). Nesta pesquisa, portanto, alguns dos posts coletados são em grande parte tributários da página Feminismo Radical Didático, a única que já existia em 2016. Todas são administradas por mulheres que se consideram feministas. Neste mesmo período, a rede social também contava com 18 grupos em língua portuguesa dedicados ao Feminismo Radical, o que expressava um crescimento significativo da vertente no período - o maior número em detrimento a grupos de outras vertentes como o Feminismo Liberal, Feminismo Marxista/socialista, Feminismo Negro, Feminismo Interseccional, Feminismo LGBT/Queer.

A quarta onda feminista: ativismo nas redes

A emergência de uma nova consciência feminista ligada ao aparecimento e apropriação das mídias digitais é o principal traço da quarta onda feminista. Se hoje em dia o feminismo compõe o imaginário cultural de mulheres de todos os tipos, vivências e marcadores sociais. é devido à profunda relação entre mulheres e redes sociais.3 3 A eclosão das mulheres na internet nos últimos tempos pode ser explicada por pesquisas que demonstram que, embora haja uma diferença de gêneros em acesso à internet, elas continuam a crescer em número como usuárias. Em relação ao uso de mídias sociais, mulheres seriam mais propensas ao uso intensivo do que os homens. Fonte: http://www.pewresearch.org/fact-tank/2013/09/12/its-a-womans-social-media-world/. Acesso em 10/04/2017. Esta relação imprimiu uma nova dimensão às lutas feministas. Comumente chamado de ciberfeminismo, o ativismo de mulheres nas redes despontou na década de 90 através de um movimento estético, filosófico e político, orientado pela popularização das tecnologias digitais, questionando as desigualdades de gênero na ciência, na tecnologia, na arte e na cultura eletrônica. Instado por coletivos como VNS Matrix (surgido em 1991, na Austrália) e pelo Old Boys Network (surgido em 1997, na Alemanha), o ciberfeminismo dos anos 90 tinha uma clara inspiração no Manifesto Ciborgue de Haraway (1995) e se alinhava a tendências radicais, refletindo sobre a quebra de binarismos nas narrativas de ficção nas possibilidades de descorporificação, e sobre a hibridização entre organismo e máquina. Por outro lado, se alinharia também a tendências mais liberais, questionando as relações entre as mulheres e a informática e seu posicionamento no mercado de trabalho (Marina LEMOS, 2009LEMOS, Marina Grazire. Ciberfeminismo: novos discursos do feminino em redes eletrônicas. 2009. Mestrado (Comunicação e Semiótica) - Pontifícia Universidade Católica, São Paulo, SP, Brasil.).

Embora seja um conceito ainda em disputa na teoria feminista, após os anos 2000, o ciberfeminismo passaria a ter um viés mais social, atento à relação entre o feminismo e as tecnologias digitais, reunindo interesses teóricos e práticas plurais como o papel das mulheres na história da ciência e da informática, a inclusão digital e seu papel da socialização de gênero, o uso das redes sociais no movimento feminista etc. (Montserrat BOIX; Ana de MIGUEL, 2013BOIX, Montserrat; MIGUEL, Ana de. “Os gêneros da rede: os ciberfeminismos”. In: NATANSOHN, Graciela. Internet em código feminino. Teorias e práticas. Buenos Aires: La Crujía, 2013.). No Brasil, foi a partir dos anos 2000 que o feminismo passa por uma expansão e vai se capilarizando em redes mais locais e regionais, para além de grandes encontros (Julia ZANETTI, 2011ZANETTI, Julia. “Jovens feministas do Rio de Janeiro: trajetórias, pautas e relações intergeracionais”. Cadernos Pagu [online], Campinas, n. 36, jan./jun. 2011. Disponível em https://www.scielo.br/j/cpa/a/3dzLMRkJ6sxrh9RnzQL7mqc/?lang=pt&format=pdf.
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) e gradualmente ganha popularidade até chegar às redes sociais. Aqui o ciberfeminismo aparece ligado a produção e difusão de informações, ao ativismo das redes e à difusão de conhecimento, o que irá combinar perfeitamente com o contexto da expansão das mídias digitais (Debora ALBU, 2017ALBU, Debora. “Ciberfeminismo no Brasil: construindo identidades dentro dos limites da rede”. In: 13º MUNDO DE MULHERES E FAZENDO GÊNERO 11, Florianópolis, Anais ... 2017. Disponível em http://www.en.wwc2017.eventos.dype.com.br/resources/anais/1499481800_ARQUIVO_Modelo_Texto_completo_MM_FG_DEBORAALBU.pdf.
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).

É neste momento de expansão das redes digitais que o feminismo procura abarcar uma diversidade de sujeitos; suas demandas se desdobram em diversos “feminismos” e gênero vai se tornando a categoria-chave de análise e de compreensão da realidade (Sonia ALVAREZ, 2014ALVAREZ, Sonia E. “Para além da sociedade civil: reflexões sobre o campo feminista”. Cadernos Pagu [online], v. 43, p. 13-56, 2014. Disponível em http://www.scielo.br/pdf/cpa/n43/0104-8333-cpa-43-0013.pdf.
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; Marlise MATOS; Clarisse PARADIS, 2014MATOS, Marlise; PARADIS, Clarisse G. “Desafios à despatriarcalização do Estado brasileiro”. Cadernos Pagu [online], v. 43, p. 57-118, 2014. Disponível em https://www.scielo.br/j/cpa/a/ZThn9C6WZM8tpMhN3BWM4Qp/?format=pdf⟨=pt.
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). Circulando em um campo progressista, o feminismo foi sendo fragmentado em “vertentes” na mesma velocidade com que se expandiam as demandas identitárias. Tais vertentes correspondem a diferentes alinhamentos teóricos e perspectivas e oferecem significados e discursos que estruturam e erigem a categoria “mulher”. Muitas vezes, elas aparecem no ciberespaço como antinômicas e incomensuráveis, como é o caso dos feminismos liberal e radical. A necessidade de tais recortes ao se teorizar sobre esta diversidade de sujeitos (raça, classe, gênero, sexualidade) eleva a noção de interseccionalidade como um aspecto central do feminismo da quarta onda. O termo “Interseccional” foi conceitualizado na década de 90, com a obra da jurista afro-americana Kimberlé Crenshaw (2002CRENSHAW, Kimberlé. “Documento para o encontro de especialistas em aspectos da discriminação racial relativos ao gênero”. Revista Estudos Feministas, v. 10, n. 1, jan. 2002.), ao se referir ao estudo de como diferentes estruturas de poder interagem nas vidas das minorias, especialmente das mulheres negras. Embora seja um conceito idealizado para se referir a opressões que se intersectam, no ciberespaço ele tem sido apropriado como uma ferramenta heurística ou uma teoria. Devido a essa polissemia, o Feminismo Interseccional emerge no ciberespaço como englobante de outras categorias (negros, populações LGBT), e feminismos (Feminismo Negro e feminismos “Queer”, “Transfeminismo”). Na epistemologia feminista, estes “feminismos da diferença” não são novidade. Desde a década de 80 e 90 há toda uma produção contemplando mulheres negras e lésbicas, por exemplo. Contudo, esta segmentação estritamente marcada por “nichos identitários” se apresenta de forma potente, como a gramática do feminismo cibernético hoje em dia.

Ainda no Brasil, a partir de 2015, diversas campanhas feministas dão o tom ao ciberfeminismo tupiniquim, popularizando e renovando o feminismo. Mobilizada entre as redes sociais e as ruas, entre hashtags e passeatas, estas campanhas problematizaram o machismo, a violência contra mulheres, o assédio sexual, o estupro, a pedofilia, a segurança das mulheres em vias públicas, o racismo e as leis sobre o aborto e o feminicidio (Josemira REIS, 2017REIS, Josemira. “Feminismo por hashtags: as potencialidades e riscos tecidos pela rede”. In: 13º MUNDO DE MULHERES E FAZENDO GÊNERO 11, Florianópolis, Anais ... 2017. Disponível em http://www.en.wwc2017.eventos.dype.com.br/resources/anais/1503731675_ARQUIVO_josemirareis_fazendogenerov2.pdf.
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). Algumas delas catalisaram transformações radicais na política, gerando grandes mobilizações de mulheres.4 4 Entre 2015 e 2016, somente no Brasil, 19 campanhas estiveram entre as mais populares e de maior visibilidade. Foi o caso da #MulheresContraCunha e #PilulaFicaCunhaSai, que emergiram em 2016 em um cenário de acirrados conflitos entre o governo de Dilma Roussef e os setores de extrema direita no país, que então buscavam a retomada do poder através do conluio entre Câmara dos Deputados, Senado Federal e o Poder Judiciário. Pouco depois, em 2016, Dilma Roussef sofreu impeachment, que ficou conhecido como o Golpe de 2016. Grande parte dos movimentos iniciados nas redes é catalisada por processos emocionais que se tornam ação. Eles não começam com um plano ou estratégia política. E embora muitas vezes seu gatilho seja a raiva, as identificações que ocorrem neste processo conseguem transformar a raiva e a indignação em entusiasmo e esperança (Manuel CASTELLS, 2012CASTELLS, Manuel. Redes de indignação e esperança: movimentos sociais na era da internet. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 2012.). Este Zeitgeist foi capturado com certo entusiasmo pela mídia brasileira, que consagrou 2015 como o ano da “Primavera Feminista”: a cada nova hashtag, crescia o número de acessos em busca por mais informações.5 5 O nome “Primavera Feminista” é uma analogia com a “Primavera Árabe”, movimentos no Norte da África e Oriente Médio a partir de 2010 que problematizaram modelos econômicos neoliberais e regimes socioculturais repressores e autoritários. Eles se caracterizaram pelo uso maciço das mídias e redes digitais como instrumentos de conscientização e mobilização.

Esse incremento de informações ensejou uma nova epistemologia feminista, onde a novidade era seu caráter acessível e articulado às vivências e às práticas cotidianas.6 6 Entre janeiro de 2014 e outubro de 2015, as buscas por “feminismo” e “empoderamento feminino” cresceram, respectivamente, 86,7% e 354,5%. Fonte: http://thinkolga.com/2015/12/18/uma-primavera-sem-fim/. Acesso em 29/09/2016. A teoria feminista não precisava mais ser privilégio de acadêmicos através de uma linguagem especializada e, para muitos, hermética e inacessível. O blog “Escreva Lola, Escreva” e a lista de emails do site “Blogueiras Feministas” podem ser considerados instrumentos pioneiros e iniciatórios do feminismo de muitas mulheres entre os anos 2000 e 2010.7 7 O blog “Escreva Lola, Escreva” se iniciou em 1998 e pertence à Lola Aronovich, professora da Universidade Federal do Ceará e crítica de cinema. Ela começou mesclando críticas de filmes com temas feministas e foi se tornando uma das blogueiras feministas mais conhecidas. Já a lista de emails do site Blogueiras Feministas era aberta a quem quisesse entrar e funcionava como um grupo de discussão feminista de onde se tiravam os temas de artigos. Neste período, além de blogs feministas de grande penetração, o conhecimento feminista também era difundido através de comunidades do Orkut, como a “Feminismo e Feministas”. Mais tarde, a interatividade de redes sociais como Facebook, Instagram e Twitter permitiu que o conhecimento dos blogs fosse compartilhado, comentado e reproduzido. Diversas páginas e grupos de discussão feministas que emergiram a partir de 2015 permanecem até hoje, a despeito da dinâmica rotativa e instável das redes sociais.

Hoje, os feminismos da quarta onda emergem sob um molde mais global (congregando teorias e epistemes estrangeiras) e são presididos por dois importantes processos. Primeiramente, uma aproximação com a política, produto de uma agenda que requer o acesso de mulheres em espaços de representação política e em orgãos de criação e gestão de políticas públicas (MATOS, 2010MATOS, Marlise. “Movimento e teoria feminista: é possível reconstruir a teoria feminista a partir do Sul global?”. Revista de Sociologia Política [online], v. 18, n. 36, p. 67-92, 2010. Disponível em https://periodicos.ufsc.br/index.php/ref/article/view/44356/31707.
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; MATOS; PARADIS, 2014). Em segundo lugar, uma aproximação com a sociedade por entre movimentos e organizações sociais, ocupando espaços heterogêneos. Neste processo, os coletivos estudantis aparecem como a expressão de uma nova forma de organização mais distante do Estado, fluída e pulverizada em consonância com sua estreita relação com a internet (Olívia PEREZ; Arlene RICOLDI, 2018PEREZ, Olívia; RICOLDI, Arlene. “A quarta onda do feminismo? Reflexões sobre movimentos feministas contemporâneos”. In: 42º ENCONTRO ANUAL DA ANPOCS, Caxambu, Anais ... 2018. Disponível em http://www.anpocs.com/index.php/encontros/papers/42-encontro-anual-da-anpocs/gt-31/gt08-27/11177-a-quarta-onda-do-feminismo-reflexoes-sobre-movimentos-feministas-contemporaneos?format=html&path=42-encontro-anual-da-anpocs/gt-31/gt08-27.
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).8 8 Na terceira onda, a forma de organização era mais formal, institucionalizada (através de ONGs), hierarquizada e muitas vezes financiada pelo Estado (idem). Os coletivos denotam a proximidade entre a academia e os movimentos sociais, entre militância e pensamento, teoria e ação e também têm sido responsáveis pela ampla difusão do feminismo em nossa cultura (MATOS; PARADIS, 2014).

Os coletivos estudantis: militância política e prática feminista

O VII Encontro Nacional de Mulheres Estudantes da União Nacional dos Estudantes, em março de 2016, na Universidade Federal Fluminense, ocorreu em um momento de grande efervescência política, refletindo a nova eclosão do feminismo no Brasil. O enorme crescimento de seu público de uma edição à outra traduzia este processo.9 9 Em 2016 cresceu 25 vezes mais do que sua primeira edição, em 2005, o que significou cerca de 4000 participantes. Essa magnitude certamente se liga à centralidade das mídias digitais como instrumento de mobilização social (PEREZ; RICOLDI, 2018).

Como se pode ver no gráfico 1, entre as entrevistadas no evento, 67% afirmaram terem se tornado feministas no período de 2010 a 2016; neste segmento, 27% haviam se tornado feministas nos últimos dois anos (de 2014 a 2016). Em termos etários, o maior percentual se concentrava na faixa entre 16 a 24 anos (70% das entrevistadas). Assim, a consciência feminista que iria culminar na “Primavera Feminista” advém de 2013, pouco tempo após as “Jornadas de Junho” que, junto às manifestações contra a Copa do Mundo de 2014 e às Olimpíadas de 2016, foram fundamentais na remodelação e na dinâmica do feminismo até hoje (ALVAREZ, 2014). A pergunta sobre quando “se tornou feminista” tinha como objetivo provocar uma reflexão nos sujeitos, a fim de que localizassem em suas trajetórias a experiência de “ter se dado conta” de que eram feministas. Muitas contaram que conheceram o feminismo após conhecer outros movimentos sociais em seus coletivos ou após participar da Marcha das Vadias; outras, na faculdade ou após o contato com as disciplinas de Sociologia e Filosofia no ensino médio. Na maioria dos casos, as vivências antecediam o conhecimento. Muitas relataram experiências de machismo entre amigos, família, igreja; outras apontavam os sexismos de “mulher não pode”, violências e preconceitos. Houve uma certa recorrência de respostas entre mulheres negras, que se diziam feministas “desde sempre”, pois as experiências de racismo e sexismo logo na infância deixam marcas e estimulam os sujeitos a procurarem formas de transformar suas realidades. Para muitas, “tornar-se feminista” significava a tomada de consciência sobre as suas próprias opressões.

Embora a identificação com uma determinada vertente feminista seja significativa, trata-se de apenas parte de um processo que envolve uma trajetória dos sujeitos pelo feminismo, as suas vivências e experiências. Muitas vezes, o aprofundamento pelas vertentes do feminismo requer acesso ao conhecimento, o que, por sua vez, requer tempo. Assim, as vivências pessoais se mostram muito poderosas, acima de qualquer conhecimento teórico mais aprofundado.

Gráfico 1
Período em que “se tornaram feministas” (%)

Neste caso, as experiências feministas são moldadas pelos coletivos de universidades. No VII EME, chamou atenção o fato de seu público se estruturar através destes coletivos, muitos deles erigidos como núcleos auto-organizados a partir de outros movimentos, como partidos políticos com seus respectivos “recortes de gênero” demarcando uma característica deste “feminismo jovem” (ALVAREZ, 2014).

Ao início da mesa, a vice-presidente da UNE, Bruna Rocha, uma mulher negra de cabelos coloridos, abriu sua fala mencionando a Primavera Feminista e deu início à sequência de apresentações e, logo depois, às falas, com cada participante falando cerca de 7 minutos [...]. Cada fala era entremeada por gritos de guerra dos inúmeros coletivos estudantis presentes (cerca de 21), que além de cantarem seus hinos, demarcavam suas posições político-partidárias. Cada coletivo é filiado a entidades partidárias ou organizações políticas, como a UJS (União da Juventude Socialista), PSol, PT, PSTU. Vigoravam gritos que expressavam dissenções e alianças em cada um destes grupos. Grande parte dos gritos era acompanhado de batuques, feitos pelas mesmas mulheres (excerto do Diário de Campo, 03/2016).

No pátio onde ocorria o EME, além do comércio independente, em cada barraquinha havia algum cartaz identificando o coletivo ou movimento social correspondente. Isso dava a dimensão da magnitude das redes feministas ali presentes (excerto do Diário de Campo, 03/2016).

Conforme apontado, a organização dos movimentos sociais, centrada em coletivos estudantis, é uma das tendências da quarta onda feminista. Apesar de vários de seus membros serem ligados a partidos e organizações, os coletivos buscam pautar suas lutas sem mediadores. Essa forma de atuar reflete o formato que a universidade vem tomando nos últimos anos, promovendo a diversidade através da amplificação do acesso a minorias.

A respeito das formas de obtenção de conhecimento sobre o feminismo, pode-se ver, no gráfico 2, a preponderância da internet: 23,3% das entrevistadas obtinham informações sobre o feminismo exclusivamente pela internet, enquanto 53% obtinham pela internet e outros meios, como coletivos ou universidades. De qualquer maneira, estes números mostram que a internet se consolida como um espaço facilitador na obtenção de conhecimento e informações.

Gráfico 2
Meios de aquisição de conhecimento (%)

Sobre a relação entre identidade feminista e vertente de pertencimento, os dados do gráfico 3 mostram que o maior percentual de entrevistadas se concentra na vertente do feminismo intersseccional. A predominância do feminismo interseccional entre as participantes do EME converge com o que foi observado no ciberespaço. Em outro espaço, a vertente do feminismo interseccional foi apontada como sendo a que possuía o maior número de participantes em grupos de discussão em língua portuguesa da rede social Facebook. Na época, eram cerca de 7000 e hoje conta com mais de 10.000 membros, sendo que os demais grupos alinhados a outras vertentes não ultrapassavam 2000 membros (MARTINEZ, 2019). De todo modo, a alta identificação com a interseccionalidade entre as participantes do EME pode estar ligada aos recortes de raça e orientação sexual presentes, visto que, através do critério de autoatribuição, 53,2% das entrevistadas se classificaram negras ou pardas e 63,3% se declararam lésbicas ou bissexuais.

Em relação aos 16,6% que se declararam feministas marxistas, este fenômeno pode estar ligado ao traço ideológico, uma pedagogia anticapitalista característica de coletivos e organizações de esquerda. Os 13,3% atribuídos a “outros” são menções a vertentes que foram contempladas no gráfico, mas que apareceram sob outras nomenclaturas. É o caso, por exemplo, do feminismo materialista, termo que frequentemente aparece vinculado ao feminismo radical.

Por outro lado, várias hipóteses podem explicar o grande percentual de jovens que não declararam pertencimento a nenhuma vertente (36,6%). Em primeiro lugar, considerando a adesão relativamente recente ao feminismo entre as entrevistadas (26,6% haviam se tornado feministas no periodo entre 2014 e 2016), uma possível falta de conhecimento e de aprofundamento sobre as vertentes feministas. Chama atenção a nulidade de adesões ao feminismo radical, fenômeno inversamente proporcional ao seu já citado crescimento no ciberespaço. Por se tratar de uma vertente repleta de controvérsias (sobretudo devido aos embates com os movimentos aliados a vertentes transativistas), é possível que boa parte destas não declarantes seja alinhada ao feminismo radical. Por fim, podemos considerar que, devido ao fato de grande parte das entrevistadas integrarem coletivos feministas, a necessidade de adesão a vertentes feministas pode não ser tão preemente.

Gráfico 3
Pertencimento a vertentes do feminismo (%)

Finalmente, as questões finais versavam sobre 1. a prática feminista nos coletivos; 2. o ciberespaço como espaço feminista e; 3. a teoria feminista produzida pela universidade.

Haveria diferenças entre estes modos de “ser feminista”?

O feminismo dos coletivos estudantis e das ruas aparece envolto em conotações positivas. É considerado um “feminismo verdadeiro”, autêntico, onde as “pessoas dão a cara a tapa”, mobilizando espaços públicos e tranformando as coisas pela ação direta. É o feminismo onde relações pessoais são criadas através da empatia e das afinidades em um verdadeiro sentido de coletividade e onde as mulheres são acolhidas, aprendem e trocam experiências. É o lugar das lutas, ou, como uma entrevistada sintetizou, é “onde o feminismo se concretiza”. Por outro lado, outras apontaram a lentidão com que a militância avança, bem como as dificuldades em se atingir mais mulheres, especialmente as periféricas.

O ciberespaço foi amplamente considerado em suas potencialidades para o exercício da militância feminista através da educação e da aprendizagem por meio da facilidade em se obter informações e da ampla difusão de material feminista. Contudo, foi apontado como supostamente restrito e elitizado, já que muitas mulheres ainda não possuem acesso à internet, Também foi apontado como o lugar da não ação, um espaço de “muita troca ideológica, mas pouca ação concreta”. A imagem que melhor esboça esta representação veio de uma entrevistada, quando fala do “ativismo de sofá feito por feministas que só militam pelas redes” e, por isso, não exerceriam um “feminismo de verdade”.

É interessante o aparente divórcio entre as representações de um “feminismo verdadeiro” destinado à prática e o feminismo do ciberespaço, destinado às informações e à “troca ideológica”, como uma entrevistada mencionou. A associação entre um mundo on e outro off line corresponde, respectivamente, a uma esfera real, material e coletiva dos corpos e enfrentamentos, e à esfera virtual, imaterial e individual, das ideias e do pensamento. Assim, o “feminismo de verdade” se associa à ideia de ação, à prática política que educa e que se consubstancia nas ruas e coletivos. Alguns aspectos do período em que os dados foram coletados podem explicar algumas tais representações. Em primeiro lugar, o fato de que o impacto da internet nos sujeitos era significativamente menor devido às condições de acesso, o que o tornava elitizado e restrito.10 10 Este impacto se relaciona diretamente ao acesso à internet no Brasil. De 2014 a 2018, houve um crescimento de 25% no número de domicílios do país que possuíam acesso à internet. Dados do PNAD do IBGE mostram que, enquanto, em 2014, 54% dos domicílios do país tinham acesso à internet, em 2018 este percentual subiu para 79%. Fontes: https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-sala-de-imprensa/2013-agencia-de-noticias/releases/9564-pnad-tic-em-2014-pela-primeira-vez-celulares-superaram-microcomputadores-no-acesso-domiciliar-a-internet. Acesso em 26/02/2021. E Também https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-sala-de-imprensa/2013-agencia-de-noticias/releases/27515-pnad-continua-tic-2018-internet-chega-a-79-1-dos-domicilios-do-pais. Acesso em 26/02/2021. Isso nos leva a refletir em que medida as subjetividades já estavam “incorporadas” às tecnologias digitais. Como já dissemos, a emergência de uma ampla e irrestrita “consciência feminista” muito recente data justamente do período da pesquisa. Alguns dos eventos (manifestações e campanhas virtuais) que dariam os contornos desta experiência ainda estavam porvir. Naquele período, embora algumas movimentações significativas entre as redes sociais e as ruas já tivessem ocorrido, há dificuldades dos sujeitos dos acontecimentos em nos perceberem como importantes marcadores de seu tempo. Da mesma maneira, é muito recente esta nova gramática dos feminismos que iria se ancorar no ciberespaço, ensejando uma nova epistemologia mais acessível e popular.

Observa-se um posicionamento diferente entre as feministas mais experientes, acima de 35 anos. Elas estavam em minoria no evento e grande parte delas atuava profissionalmente em ONGs ou em áreas ligadas a educação e políticas sociais. Suas percepções apontam para uma relação de complementariedade e continuidade entre as três formas de se exercer o feminismo. Para elas, o feminismo no ciberespaço possibilita que a militância ancore grande parte de sua prática nele, possibilitando a expansão da teoria feminista através de artigos, redes sociais e blogs. Outra entrevistada aponta a questão geracional que daria origem a “dois feminismos” interligados: um mais jovem e ancorado mais no ciberespaço e outro mais veterano e acadêmico.

Quanto à teoria feminista, grande parte das jovens enxergava-na com desconfiança, descrevendo-a como elitista, restrita, hermética, fechada nos muros da academia, de linguagem pouco acessível. Assim, muitas apontaram para a dificuldade que a academia teria em fazer recorte de classe e dialogar com os movimentos sociais e com a periferia. Mas, de modo geral, reconhecem a importância das teorias feministas em fornecer conceitos e métodos de análise que podem ser usados pela militância.

Epistemologias Radicais

Embora o Feminismo Radical não seja novidade, a categoria RadFem emerge como um efeito da dinâmica das redes e da apropriação de conceitos e teorias da segunda onda feminista. Como veremos no próximo tópico, as trajetórias de feministas radicais no ciberespaço dependem muito do grau de envolvimento que estas mantêm com o aporte epistemológico da segunda onda. Grande parte do renome e influência em seu universo provém do fato de tornar acessível o conhecimento através de blogs, perfis, páginas e grupos de discussão, bem como a tradução e reprodução de livros, artigos e reportagens estrangeiros. Nomes como Simone de Beauvoir, Kate Millet, Sheila Jeffreys, Janice Raymond e Germaine Greer têm chegado às novas gerações através deste processo. Sua invasão e crescimento nas redes é muito recente e data de 2015 em diante. Inclusive, alguns dos seus principais veículos de informação e conhecimento, como os blogs “QG Feminista” e “Feminismo com classe”, são de 2016 em diante.

A comunidade RadFem condensa reciprocidades, afinidades, alianças e laços pessoais. Como sabemos, comunidade é um conceito largamente explorado pela tradição antropológica e, mais contemporaneamente, nos estudos do ciberespaço. Aqui, optamos por conceituar as redes que se formam através da interação entre perfis de ativistas, páginas, blogs e grupos de discussão ligados ao feminismo radical como uma comunidade de conhecimento. Ela se baseia em afinidades e interesses mútuos que se respaldam na ideia de um “nós” constituído a partir de um repertório que não é só explicativo e epistemológico, mas também prescritivo. Isso significa que, além das teorias, citações e narrativas, também se aciona um repertório moral que prescreve valores, normas e modos de ação. É a partir deste repertório que as experiências são ressignificadas, se aglutinando em um sentido de identidade feminista radical. Ela é uma mistura de possíveis opções cujos significados e concretude estão sempre sendo negociados no contexto de limitações externas em mutação (KOMITO, 1998, p. 105 apud Robert KOZINETS, 2014KOZINETS, Robert. “Culturas e comunidades online”. In: KOZINETS, Robert et al. Netnografia: Realizando pesquisa etnográfica online. Porto Alegre: Penso, 2014.).

Esta redescoberta do feminismo da segunda onda por estas jovens gerações se deve a dois motivos. Primeiro, o descontentamento com conceitos e epistemes vigentes na academia, que tem levado à procura por novas fontes de identificação. Como será tratado, algumas categorias de análise que emergiram após a década de 70, como gênero, identidade e micropoderes, têm sido visivelmente rejeitadas pelo RadFem.

Em segundo lugar, observa-se que a porta de entrada de muitas destas feministas para o RadFem tem sido atribuída a uma suposta agressividade dos grupos transaliados. Segundo Luis Felipe Miguel (2016MIGUEL, Luis Felipe. “Uma crítica lésbico-feminista ao discurso transgênero”. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 24, n. 1, 2016. Disponível em https://www.scielo.br/j/ref/a/4VNk5rvtR7KKpzJMWXBhQ5b/?lang=pt.
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), a simpatia que geralmente cerca as reivindicações dos transgêneros faz com que exista pouca crítica a seus pressupostos e sua prática. Assim, todos aqueles que apresentam críticas em relação ao transativismo são alvo de campanhas difamatórias e sofrem represálias; como poucos se dispõem a arcar com esse ônus, boa parte da reflexão crítica sobre o tema estaria confinada a blogs assinados por pseudônimos e, agora, nas redes sociais (Idem). Dentro disso, o rótulo de transfóbico tem sido aplicado a qualquer um que questione os fundamentos ou as práticas da corrente transativista. Por isso, o movimento transativista tem sido acusado pelo RadFem de não possuir limites, na medida em que quaisquer significados relacionados aos corpos e processos femininos recaem no campo acusatório da transfobia.11 11 No momento em que escrevo estas linhas, acompanho uma polêmica que se iniciou no Twitter tendo como centro a cantora Rita Lee. Ela foi acusada de ser transfóbica por ter feito um tweet onde chamava o 8 de março, Dia Internacional das Mulheres, de “xereca’s day”, uma alusão clara a mulheres biológicas. Atualmente, as RadFem acusam os movimentos transativistas de promoverem uma nova caça às bruxas pelas redes. Por suas posições, têm sido acusadas de propagar discursos de ódio às minorias e de se aliarem aos setores conservadores da sociedade. Voltaremos a este ponto, mas, por ora, basta afirmar que grande parte destas querelas tem se dado pelas disputas em torno da categoria mulher.

No RadFem, a ideia de um “nós” é sustentada por uma relação positiva de similitude que se alimenta pela centralidade da categoria mulher.

O que é ser mulher? Certamente não é calçar “nossos” sapatos. Essa é uma pergunta desnecessária se feita às mulheres, já que afirmar que mulheres são pessoas adultas do sexo feminino não é algo extraordinário. Mulheres são reconhecidas pelo sexo feminino, observadas como sendo do sexo feminino e mundialmente tratadas de acordo com isso. Mulheres não feministas provavelmente vão responder usando aspectos culturais que obviamente vão variar, assim como o grau de romantização. Beleza, feminilidade, sensualidade, sensibilidade, delicadeza, maternidade e intuição são certamente coisas que serão citadas por essas mulheres, pelo menos aqui nesse canto na América do Sul. [...] Agora, se estudando observamos uma subordinação que ocorre universalmente (de modo que vai ser mais ou menos violento), se observamos que ela ocorre exclusivamente com um dos sexos, então temos uma conclusão objetiva. Se a subordinação é imposta às pessoas do sexo feminino com base em suas possibilidades reprodutivas, então temos uma resposta clara.12 12 Página Chez Toble (já extinta), postada por Chez Toble, 19/08/2017.

Os pressupostos que orientam o pensamento do RadFem são: 1. mulheres formam uma classe social e política baseada no sexo anatômico; 2. mulheres são oprimidas por homens e esta é uma opressão primária, pautada pelo poder e não pela diferença sexual; 3. o feminismo radical é um feminismo criado por mulheres para mulheres e trata-se de um feminismo revolucionário (porque não é só reformista), em que a igualdade não é suficiente (Robin ROWLAND; Renate KLEIN, 1996ROWLAND, Robin; KLEIN, Renate. “Radical feminism: History, politics, action”. In: BELL, Diane; KLEIN, Renate. Radically Speaking: Feminism Reclaimed. North Geelong: Spinifex Press, 1996.).

No RadFem, o corpo feminino é o ponto de partida material a partir do qual os fatos são criados. O corpo é onde se impõem a dominação e a opressão; nesta premissa, maternidade e reprodução são sinônimos que designam a condição feminina. O RadFem se alinha aos debates a respeito da universalidade da subordinação da mulher, consequência de uma associação entre o feminino com a esfera da reprodução e da perpetuação da espécie (Shulamith FIRESTONE, 1976FIRESTONE, Shulamith. A dialética do sexo. São Paulo: Editora Labor do Brasil, 1976.; Michelle ROSALDO; Louise LAMPHERE, 1979ROSALDO, Michelle; LAMPHERE, Louise. A mulher, a cultura e a sociedade. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 1979.). Dentro disso, os papéis na reprodução da espécie são fatores fundamentais de onde derivam as características que tornam possível a dominação que os homens exercem sobre as mulheres. O papel das mulheres no processo reprodutivo as torna prisioneiras da biologia, forçando-as a depender dos homens. Nesta perspectiva, o feminismo radical considera que, para liberar as mulheres, é necessário derrotar o patriarcado. E isso só seria possível se as mulheres adquirissem o controle sobre a reprodução e sobre seus corpos: direito ao aborto e métodos seguros de não procriação. A meta do movimento feminista deveria ser não apenas a eliminação do privilégio do homem, mas a eliminação da própria distinção sexual (FIRESTONE, 1976). Nestas linhas de pensamento, o movimento RadFem insiste em uma suposta identidade ontológica compartilhada entre as mulheres (a experiência da “mulheridade”) que advém da condição sexual.13 13 No feminismo radical, mulheridade é um conceito usado para definir os atributos femininos através da diferença sexual (presença de características sexuais primárias e secundárias) e define a experiência ontológica das mulheres enquanto classe sexual. Para saber mais, veja https://medium.com/qg-feminista/introdu%C3%A7%C3%A3o-ao-radical-mulheridade-ff5d91faa900. Acesso em 10/03/2021.

O RadFem rejeita os conceitos de gênero e identidade da forma como atualmente têm sido tratados pela academia, através de uma noção mais alinhada às correntes pós-estruturalistas onde o poder se retém nos marcos de dispositivos discursivos (como a heterossexualidade compulsória), e a linguagem possui papel fundamental nas significações de sexo e gênero. Isso, por sua vez, indica sua volatilidade e possibilidades de desconstrução (Judith BUTLER, 2003BUTLER, Judith. Problemas de gênero. Feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 2003.). Assim, gênero deve ser tratado como aspecto da identidade, através de uma conexão ilusória com a biologia, portanto, instável e passível de subversão em um sistema onde mulheres e homens rejeitam o sistema binário, identificam-se como “foras-da-lei do gênero” e demandam reconhecimento por uma série de identidades de gênero, um sistema de gêneros infinito.

Para as RadFem, mulher é uma categoria ontológica e não identitária, o que explica sua recusa em serem definidas através da categoria “mulher cis” que, ao contrário de trans, se refere ao alinhamento entre o gênero atribuído no nascimento, os corpos e a identidade pessoal. Para elas, gênero não é algo que se é, mas uma imposição patriarcal na medida em que é usado para a atribuição de características de homens e mulheres através de estereótipos. As construções sociais de feminilidade aparecem como naturais ou inatas, dificultando a mobilização de mulheres. Assim, mulheres são impelidas desde cedo a acreditarem em poderosas construções naturalizadas em nossa cultura; que são destinadas à maternidade e à heterossexualidade; que o trabalho doméstico e de cuidado é essencialmente feminino; e que seu valor enquanto mulher é definido pela atração que exerce na população masculina. Portanto, uma política feminista radical prevê o desmantelamento do poder masculino e, sim, de todo o sistema de gênero (Debbie CAMERON; Joan SCANLON, 2010CAMERON, Debbie; SCANLON, Joan. “Talking about gender”. Trouble & Strife, 2010. Disponível em http://www.troubleandstrife.org/new-articles/talking-about-gender/.
http://www.troubleandstrife.org/new-arti...
).

Dentro disso, qualquer noção de identidade se torna problemática, pois se baseia em um sentimento ou desejo de pertencimento e não na realidade material onde mulheres são oprimidas através das imposições de gênero. Para elas, este conceito vem carregado de inatismo, atribuindo a essa ou àquela posição social o caráter de imutabilidade, e não de posição social atribuída por estruturas de poder. Assim, a identidade de gênero (em que se pressupõe a existência de mulheres cis e trans), ao invés de questionar a existência do gênero em si, afirma o direito de pessoas se reivindicarem como pertencentes ao outro gênero. Para elas, esta concepção advoga que gênero seria um espectro onde as construções sociais do masculino e feminino são alongadas para abrigar novas identidades. Assim, ao invés de questionar a existência das categorias, criam-se novas.14 14 Como se tratam de questões muito recentes, boa parte da crítica a estes temas tem sido feita através de blogs, como o QG Feminista. Para saber mais, veja: https://medium.com/qg-feminista/por-que-identidade-de-g%C3%AAnero-%C3%A9-um-conceito-antifeminista-606a1891870b. Acesso em 10/03/2021.

No RadFem, são os debates sobre socialização feminina que promovem a identificação e o reconhecimento da relação de semelhança entre “mulheres”. Embora esta questão engendre inúmeras temáticas, como a insatisfação corporal e os estereótipos de gênero, atualmente ela tem se desdobrado para a temática das identidades de gênero e da transgeneridade, onde se observam críticas ferrenhas. Esta discussão tem ganhado novos contornos a partir dos debates contemporâneos sobre transtornos de gênero e a existência de crianças trans. Em 2017, essa discussão emerge com força no ciberespaço a partir de casos célebres, como uma das filhas da atriz norte-americana Angelina Jolie, cujas notícias reforçam o fato de “andar como um menino”. E também durante a veiculação da novela global “A Força do Querer”, que trazia uma personagem que se descobria homem trans ao longo da trama, após diversas rejeições a seu corpo e à ideia de adequar-se aos estereótipos femininos. Mesmo namorando um rapaz e tendo diversos embates com a família, Ivana decide passar pela terapia hormonal (sem acompanhamento médico) e, mais tarde, fazer a cirurgia de mastectomia (retirada dos seios), se tornando um homem trans. Em uma postagem em um perfil pessoal, a autora ilustra, através de Ivana, o pensamento RadFem sobre o caráter potencialmente violento da socialização feminina. Ela argumenta que Ivana desde cedo foi “empurrada para a feminilidade” pela mãe, que ao invés de respeitar a individualidade e resistência da filha à feminilidade, sempre a pressionava mais, criticando seu “jeito desleixado” de se vestir e se arrumar. Além da mãe, outras pessoas de seu meio também a empurravam de volta à feminilidade, como sua prima e sua psicóloga, que ao invés de ajudá-la através da ideia de que a feminilidade é potencialmente violenta, acreditavam que os problemas iriam se resolver quando Ivana encontrasse a sua “própria feminilidade”. Para o RadFem, o desconforto de Ivana com seu próprio corpo não fora causado por um “cérebro no corpo errado”, discurso comum em narrativas de pessoas trans, mas pelos estereótipos que lhes foram empurrados desde cedo. Assim, haveria mulheres que se adéquam e outras que resistem a eles.

Há muitos, muitos motivos para que a gente se sinta “elefantes de saiote” ao olhar no espelho, odeie os seios e até nossa vagina. O “não se sentir plenamente confortável em seu corpo” conhecemos bem! Fazer de Ivana um homem trans é reforçar para o público a ideia de que o desconforto da personagem é um problema individual e sem explicação... Quando na verdade é uma questão coletiva e, como vimos, tem uma explicação simples: misoginia. A misoginia é que faz com que empurremos pessoas com vagina dentro da maldita caixinha rosa. E quando elas não encaixam direito (porque ninguém encaixa totalmente) a gente diz que elas “não parecem mulheres”, “parecem um moleque”, gostam de “coisas de menino”. Fazer de Ivana um homem trans é reforçar a ideia de que mulheres só podem ser de um jeito, ideia que o feminismo luta há séculos para destruir.15 15 E.R., perfil pessoal, 13/05/2017.

Como foi dito, a comunidade moral do RadFem é alimentada pela ideia de um “nós” que se estabelece no centramento da categoria mulher, que mobiliza afetos e relações, seja em sua positividade ou negatividade. Na positividade, há um reconhecimento através da semelhança, integrando uma comunidade moral que, ao mesmo tempo em que compreende mulher como uma categoria social e principalmente como um status ontológico (“nós, as mulheres”), também antevê formas de subversão da opressão, sendo a própria escrita, troca e reflexão desta condição uma delas. É fácil haver um reconhecimento em questões ligadas à feminilidade. E mais ainda uma identificação com a crítica que o RadFem tem feito a ela.

A feminilidade é performance, um artifício que, através dos atos, gestos e atuações, expressa uma essência ou identidade autênticas. Estes componentes são fabricações manufaturadas e sustentadas por signos corpóreos e outros meios discursivos ao longo da vida e em meio aos processos de socialização (BUTLER, 2003). A feminilidade é imposta pelo patriarcado, mas ela em si não faz de ninguém “homens” ou “mulheres”; é preciso algo mais para a mulheridade e isso só é possível através de uma história de vida como mulher.

Assim, em uma sociedade ideal, estes estereótipos de gênero deveriam ser rompidos desde a infância. Masculinidade e feminilidade deveriam ser repensados, possibilitando que meninas e meninos se desenvolvessem livres de sexismo. Esse debate conduz a questão da transgeneridade na infância. Comportamentos, roupas, brinquedos ou amigos não sinalizam parametros de anormalidade, como a própria ciência médica nos faz crer. Segundo Sheila Jeffreys (2014JEFFREYS, Sheila. Gender Hurts: a feminist analysis of the politics of transgenderism. Londres; Nova York: Routledge Taylor & Francis Group, 2014.), a própria comunidade médica carrega em si um discurso sexista e homofóbico para “diagnosticar” (e patologizar) comportamentos infantis que irão rotular como transgeneridade. Meninos que gostam de brincar de bonecas (ou meninas que não gostam) são apresentados como vítimas de um transtorno de gênero. Eventualmente, passarão por avaliação, sendo submetidos à “correção” de seu sexo biológico.16 16 Embora a terapia hormonal, através de bloqueadores da puberdade, seja uma realidade dos critérios de diagnóstico de disforia de gênero, deve fazer parte de um criterioso protocolo proposto pela Sociedade Brasileira de Pediatria, que inclui o acompanhamento de uma equipe multiprofissional durante o período de no mínimo dois anos. Contudo, o documento propõe critérios de diagnósticos componentes sociais, como “a preferência por se vestir com roupas do sexo oposto, ou, a preferência por brinquedos, jogos e atividades do sexo oposto ao gênero designado”. Além disso, o documento sugere que quando a questão surge na idade pré-escolar, 90% dessas crianças voltarão a ficar satisfeitas com seu sexo biológico (Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP), Disforia de Gênero: Guia Prático de Atualização, n. 04, junho de 2017). Tal violência só é possível sob a égide de uma ideologia que vê os estereótipos de gênero como naturais e absolutos. Por isso, os transtornos de gênero na infância têm sido muito criticados pelo movimento RadFem. Parte destes argumentos afirma que estereótipos de gênero são impostos e quaisquer desvios dos mesmos provocariam sensações de inadequação. Em uma postagem feita em um perfil pessoal, uma ativista RadFem cita dois casos que têm despertado a opinião pública para a questão da transsexualidade na infância: o primeiro diz respeito à Shiloh, filha de Angelina Jolie, e o segundo referente a uma notícia em que uma menina foi expulsa de uma partida de futebol feminino por acreditarem se tratar de um menino. Pergunta a autora: “Como lidar com crianças assim?”.

A primeira possibilidade é adotarmos um ponto de vista feminista. Para o feminismo, não há nada de errado com elas. São garotas saudáveis, com corpos e cérebros perfeitos, que se recusam a se comportar como membras da classe subalterna à qual pertencem. Roupas, cortes de cabelo, comportamentos, brinquedos, profissões... para nós, nada disso é “de menino” ou “de menina”. [...] Assim, sob o ponto de vista feminista, o que precisamos fazer é, simplesmente, respeitar e amar estas meninas como são. Explicar-lhes que elas não precisam ser meninos para fazerem nada na vida. Pode ser necessário um acompanhamento psicológico para que aprendam a lidar com a sociedade misógina e para que compreendam que um eventual ódio ao corpo não brotou naturalmente de suas mentes, mas sim foi alimentado por essa mesma sociedade. Se pudéssemos resumir a primeira alternativa em uma só frase de fácil compreensão, seria: MENINAS TAMBÉM SÃO ASSIM [...].17 17 Perfil Pessoal de E.R., 23/07/2017.

Então, como o RadFem se centra em “mulheres biológicas”, as querelas com os movimentos transativistas têm sido um traço marcante de sua dinâmica. Estas querelas não são prerrogativa do movimento feminista brasileiro e sempre despertaram debates acalorados entre feministas. Em Gender Hurts, Jeffreys investiga quais são as consequências do surgimento do transgênero enquanto categoria política e acadêmica, os efeitos deste fenômeno para as comunidades gay e lésbica e se o fenômeno da transgeneridade é, afinal, transgressor ou conservador. No contexto nacional, Alvarez et al. (2003ALVAREZ, Sonia et al. “Encontrando os feminismos Latino-Americanos e Caribenhos”. Revista Estudos Feministas [online], v. 11, n. 2, 2003. Disponível em http://www.scielo.br/pdf/ref/v11n2/19138.pdf.
http://www.scielo.br/pdf/ref/v11n2/19138...
) relatam que, na década de 90, nos encontros feministas, a questão sobre pessoas trans não era somente sobre como incluir “outras” no feminismo, mas como lidar com esses “novos” sujeitos e, principalmente, saber em que medida estas pessoas “eram mulheres”.

Este comportamento tem sido descrito através do acrônimo TERF (trans exclusionary radical femnist), que também funciona como uma categoria de acusação. Segundo as RadFem, há uma diferença ontológica entre mulheres trans e mulheres biológicas. Como foi dito, para elas, mulher não é longe de ser uma questão identitária de linguagem, é uma ontologia na medida em que recai sobre as histórias e experiências de socialização. Como possuem vivências muito diferentes, as suas pautas são de outra ordem e devem ser reivindicadas entre seus iguais.

Nós sabemos que somos mulheres que nasceram com cromossomos e anatomia feminina, e que sendo ou não socializadas para sermos a chamada “mulher normal”, o patriacado tem nos tratado e vai nos tratar como mulheres. Transsexuais não têm tido esta mesma história. Nenhum homem pode ter essa história de vida de ter nascido e ter sido situado nessa cultura como uma mulher. Ele pode sim ter tido em sua história a vontade de ser uma mulher ou de agir como uma mulher, mas essa experiência de gênero é a de um transsexual, não a de uma mulher. Cirurgias podem dar os órgãos femininos internos e externos artificiais, mas não podem lhe conceder a história de ter nascido uma mulher nesta sociedade (Janice RAYMOND, 1994RAYMOND, Janice. The Transsexual Empire: the making of She-Male. New York: Theachers College Press, 1994., tradução nossa).

O “nós” também é produzido pela alteridade, nos antípodas da comunidade RadFem. Essa alteridade é negativa porque representa de diversas formas uma ameaça e um risco à sociedade. A premissa de uma ameaça epistemológica às “mulheres” na inclusão de mulheres trans no feminismo provocaria uma ruptura na categoria mulher. Isso implodiria seu status ontológico construído em meio às imposições de gênero pelo sexo e às opressões do patriarcado, para se tornar tão somente uma categoria identitária individual, construída através das volições, inclinações e desejos. É na produção de um Outro que pode ser acusado sem risco de confronto (pois o debate ocorre em um “espaço seguro”) que é possível estabelecer um regime de verdade. E neste regime de verdade é imprescindível que o status ontológico da categoria mulher e a experiência da mulheridade sejam sempre reforçados e atualizados.

Trajetórias RadFem e produção de conhecimento

Tornar-se uma feminista radical pressupõe uma trajetória vivencial e epistemológica. Quando iniciamos esta pesquisa, o feminismo radical no ciberespaço sofria uma detração: era sistematicamente atacado de modo que RadFem se tornava uma categoria de acusação. Seu crescimento indicava uma possível migração de outros feminismos para o feminismo radical. De fato, em pesquisa preliminar em um grupo de discussão sobre feminismo radical, quando perguntadas sobre os motivos de se aliarem ao feminismo radical, as feministas sugeriram estarem em busca de modelos explicativos gerais e estruturantes da condição feminina em nossa sociedade. Assim, termos como opressão e patriarcado permeavam suas narrativas. Na mesma medida, procuravam se afastar dos modelos explicativos mais individualizantes, caracterísiticos do liberalismo que prima pela autonomia individual e liberdade de escolha. Tecendo uma crítica ao feminismo liberal, Flávia Biroli (2014) afirma que a ênfase na autonomia e a escolha dos indivíduos como valor maior da experiência podem ocultar as redes de constrangimentos sociais e estruturas de opressões através das quais estas escolhas se definem. A valorização da maternidade em nossa cultura é um exemplo: “um de seus aspectos é a restrição a determinadas atividades e formas de vida que foram consideradas conflitivas com a divisão sexual do trabalho, assim como o controle da sexualidade e da capacidade reprodutiva das mulheres” (BIROLI, 2014BIROLI, Flávia. “Autonomia, dominação e opressão”. In: BIROLI, Flávia; MIGUEL, Luis Felipe. Feminismo e política. São Paulo: Boitempo Editorial, 2014., p. 115). Ele trabalha para integrar os indivíduos de forma individualista, se concentrando na capacidade de manter a igualdade (sem mudar as estruturas) através de suas próprias ações e escolhas. A ênfase na capacidade de escolha segundo lemas populares como “empoderamento feminino” ou “meu corpo minhas regras” tende a ocultar as estruturas sociais que oprimem e objetificam as mulheres.

Então, as “etapas de conhecimento” pelas quais as RadFem transitam geralmente têm como ponto de partida o que identificam como sendo o feminismo liberal, identificado como o feminismo mainstream largamente veiculado pelos mass media em programas de TV, falas de celebridades e campanhas virtuais. Esta trajetória se iniciaria com uma primeira tomada de consciência, onde o contato com as teorias feministas tende a ser elementar e massificado. Posteriormente, a curiosidade passaria pelo contato com o feminismo e algumas de suas vertentes e, por fim, culminaria com uma segunda tomada de consciência, em que o feminismo radical atua como modelo de explicação da realidade, abarcando determinadas categorias, conceitos e experiências, bem como a experiência das mulheres que provocariam a relação de identificação tão fundamental na experiência de se tornar uma feminista.

É preciso reforçar ainda que RadFem e LibFem são categorias êmicas que acionam posicionamentos, discursos e valores específicos. Na gramática do feminismo do ciberespaço, LibFem e RadFem estão posicionadas, antes de tudo, como categorias que denotam universos morais opostos. Nesta gramática, o que se classifica como sendo feminismo liberal pode aglutinar conceitos e posicionamentos de outras vertentes.18 18 Assim, como RadFem, LibFem também é uma categoria de acusação. Qualquer tipo de individualismo metodológico a ser expresso através de conceitos como liberdade de escolha, indivíduos, performances ou identidades corre o risco de ser acusado de LibFem.

Neste processo, têm grande relevância alguns perfis que atuam como formadores de opinião. Embora possam ter uma participação limitada ou até mesmo nula em páginas ou grupos de discussão feministas, possuem influência na rede e são considerados famosos em seu métier. Em muitos casos, o renome pode preceder o Facebook e se ligar ao ativismo em outros ambientes virtuais, como as já mencionadas listas de discussão, blogs e caixas de comentários de blogs famosos.19 19 É o caso de Lucy Tobleronne, personagem que, durante a primeira década de 2000, se tornou conhecida como representante do Feminismo Radical, passando, mais recentemente, e já posicionada como influenciadora, a usar seu nome verdadeiro no Facebook. Ela figura entre as informantes desta pesquisa, embora tenha solicitado para não ser identificada. Via de regra, isso significa que estes atores possuem certo volume de seguidores, posts replicados em conexões feministas como perfis pessoais, páginas de comunidades e de grupos de discussão. Algumas possuem blogs voltados à produção de material feminista, artigos de sua própria autoria, de outras autoras ou a tradução de obras estrangeiras. De certo modo, estes perfis ocupam o topo da pirâmide do conhecimento na medida em que suas trajetórias são construídas sobre um renome conquistado por meio de postagens que têm como mote a tradução da teoria feminista para uma linguagem mais acessível. Esta mediação pedagógica é feita frequentemente através de exemplos e fatos cotidianos. Nos grupos de discussão do Facebook há inúmeros posts tematizando desde o cotidiano: de novelas a acontecimentos policiais, passando por reportagens e casos; tudo pode ser matéria no processo de atualização da epistemologia feminista. Assim, estas trajetórias encontram-se diretamente ligadas à produção do conhecimento feminista. De acordo com isso, pode-se dizer que a “boa feminista radical” é aquela que tem influência e renome neste universo por ser capaz de instrumentalizar a teoria feminista para o público comum, de forma didática e fazendo a mediação entre teoria e cotidiano.

Considerações Finais

Neste artigo, analisamos a experiência de se tornar feminista na era digital. Primeiro, este fenômeno foi esboçado entre os coletivos estudantis, onde constatamos que, para as jovens estudantes, o feminismo é intrínseco à ação e à prática feministas. Para estas, o feminismo de verdade é o do enfrentamento, dos espaços públicos. É nas ruas que as lutas acontecem e através da ação coletiva que as tranformações ocorrem. Esta dimensão vivencial, concreta e corpórea do feminismo parece tornar secundária a busca pela teoria. O desdém pela academia e pelo ciberespaço se consubstancia no fato de ambos serem considerados “ideológicos” por supostamente não proporcionarem ação e nem transformação.

Contudo, as redes digitais e as dinâmicas sociais atreladas a elas se desenvolveram rapidamente em poucos anos. Hoje, o uso ostensivo das tecnologias digitais tem sido mais que nunca um catalisador nos processos de conhecimento, tomada de consciência e troca de experiências. Então, vários acontecimentos que foram cruciais para a revolução digital do Brasil ainda estavam porvir no momento da pesquisa. Novas pesquisas tematizando as representações sobre o feminismo entre jovens feministas talvez possam fornecer um outro panorama à questão.

Por outro lado, esta dimensão vivencial pode ser relativizada, uma vez que, no ciberespaço, ela é de outra ordem. Tornar-se uma feminista hoje é um processo híbrido, que ocorre por entre as redes sociais e o cotidiano dos sujeitos. Como vimos no caso do feminismo radical, ser uma feminista hoje é um processo que ocorre intrinsecamente nas redes sociais. Nelas, as vivências são atualizadas e se imiscui a teoria na forma de relatos. Assim, ao serem compartilhadas, adquirem um caráter coletivo, podendo se tornar elas mesmas objetos de análise e reflexões. O mesmo acontece com a teoria feminista. Ela é sempre atualizada e ganha novos contornos através de eventos e artefatos contemporâneos: vivências pessoais, novelas, livros, filmes, séries, notícias. Tudo pode ser incorporado à epistemologia feminista para fazer uma mediação pedagógica. E é por meio desta espécie de pastiche epistemológico, que novas categorias vão sendo criadas (RadFem, TERF, LibFem) e atualizadas ao sabor dos bites. Resta saber o que os sujeitos que se definem através destas categorias pensam e dizem sobre “ser feminista”. Mas isso, certamente, é tema para um outro artigo.

Ao que tudo indica, as fronteiras entre vivências e teorias são completamente borradas; uma se imiscui na outra. Por isso, cada vez mais somos constituídos através das redes e imagens que nos perpassam quando navegamos (Iara BELELI, 2015BELELI, Iara. “O imperativo das imagens: construção de afinidades nas mídias digitais”. Cadernos Pagu, Campinas, n. 44, jan./jun. 2015). Hoje em dia, “tecer redes” tem sido parte de nossas vivências. Neste sentido, o “addedaço” é um fenômeno interessante que mostra como as redes têm sido tecidas e amplificadas.20 20 Trata-se de quando pessoas com afinidades e interesses em comum se adicionam em massa nas redes sociais. A palavra addedaço é um neologismo que vem do inglês add, de adicionar. Na maioria dos casos, quando ocorre algum destes eventos, são disponibilizados filtros para a identificação da causa/afinidade/interesse. Foi desta forma que consegui informantes para minha atual pesquisa sobre feministas radicais. Todas usavam, na ocasião, um filtro rosa e roxo escrito Radical. Também aponta para um novo tipo de vivência através da qual são estabelecidos laços e comunidades. A questão, destinada a outtro espaço, seria compreender em que medida estas vivências são capazes de mobilizar a identificação e o reconhecimento, premissas fundamentais para a construção de um sujeito político.

Referências

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  • 1
    Para isso, a teoria feminista tem se desdobrado em diferentes escolas. Assim, os mais afeitos ao pós-estruturalismo reivindicam mulher como uma categoria aberta a ressignificações. Para estes, a “evidência anatômica da diferença sexual” é fruto da linguagem, ou seja, sexo, assim como gênero, é construído socialmente. Nesta dança de significados flutuantes, menos que uma categoria ontológica, mulher é uma questão de identidade e performance, cujos significados são reiterados socialmente. Do outro lado, feministas radicais ou “materialistas” pensam a “mulher” como uma ontologia; uma situação que recai sobre elas devido aos significados sociais atribuídos a seus corpos, fator que condiciona grande parte da sua opressão, que condiciona diversas opressões que vão desde a reprodução à sexualização e à objetificação.
  • 2
    Para este trabalho, foi analisado um total de oitenta posts no período de 2016 a 2017. Em pesquisa realizada em 26/02/2021, verificou-se que a rede social Facebook conta com cerca de quinze páginas brasileiras sobre feminismo radical, sendo as de maior alcance (que contam com mais de 30000 curtidas), a Feminismo com Classe (criada em 2017), a Feminismo Radical Didático (criada em 2015) e QG Feminista (criada em 2017, juntamente com seu respectivo grupo de discussão e a revista digital. Link: qgfeminista.org). Nesta pesquisa, portanto, alguns dos posts coletados são em grande parte tributários da página Feminismo Radical Didático, a única que já existia em 2016. Todas são administradas por mulheres que se consideram feministas. Neste mesmo período, a rede social também contava com 18 grupos em língua portuguesa dedicados ao Feminismo Radical, o que expressava um crescimento significativo da vertente no período - o maior número em detrimento a grupos de outras vertentes como o Feminismo Liberal, Feminismo Marxista/socialista, Feminismo Negro, Feminismo Interseccional, Feminismo LGBT/Queer.
  • 3
    A eclosão das mulheres na internet nos últimos tempos pode ser explicada por pesquisas que demonstram que, embora haja uma diferença de gêneros em acesso à internet, elas continuam a crescer em número como usuárias. Em relação ao uso de mídias sociais, mulheres seriam mais propensas ao uso intensivo do que os homens. Fonte: http://www.pewresearch.org/fact-tank/2013/09/12/its-a-womans-social-media-world/. Acesso em 10/04/2017.
  • 4
    Entre 2015 e 2016, somente no Brasil, 19 campanhas estiveram entre as mais populares e de maior visibilidade. Foi o caso da #MulheresContraCunha e #PilulaFicaCunhaSai, que emergiram em 2016 em um cenário de acirrados conflitos entre o governo de Dilma Roussef e os setores de extrema direita no país, que então buscavam a retomada do poder através do conluio entre Câmara dos Deputados, Senado Federal e o Poder Judiciário. Pouco depois, em 2016, Dilma Roussef sofreu impeachment, que ficou conhecido como o Golpe de 2016.
  • 5
    O nome “Primavera Feminista” é uma analogia com a “Primavera Árabe”, movimentos no Norte da África e Oriente Médio a partir de 2010 que problematizaram modelos econômicos neoliberais e regimes socioculturais repressores e autoritários. Eles se caracterizaram pelo uso maciço das mídias e redes digitais como instrumentos de conscientização e mobilização.
  • 6
    Entre janeiro de 2014 e outubro de 2015, as buscas por “feminismo” e “empoderamento feminino” cresceram, respectivamente, 86,7% e 354,5%. Fonte: http://thinkolga.com/2015/12/18/uma-primavera-sem-fim/. Acesso em 29/09/2016.
  • 7
    O blog “Escreva Lola, Escreva” se iniciou em 1998 e pertence à Lola Aronovich, professora da Universidade Federal do Ceará e crítica de cinema. Ela começou mesclando críticas de filmes com temas feministas e foi se tornando uma das blogueiras feministas mais conhecidas. Já a lista de emails do site Blogueiras Feministas era aberta a quem quisesse entrar e funcionava como um grupo de discussão feminista de onde se tiravam os temas de artigos.
  • 8
    Na terceira onda, a forma de organização era mais formal, institucionalizada (através de ONGs), hierarquizada e muitas vezes financiada pelo Estado (idem).
  • 9
    Em 2016 cresceu 25 vezes mais do que sua primeira edição, em 2005, o que significou cerca de 4000 participantes.
  • 10
    Este impacto se relaciona diretamente ao acesso à internet no Brasil. De 2014 a 2018, houve um crescimento de 25% no número de domicílios do país que possuíam acesso à internet. Dados do PNAD do IBGE mostram que, enquanto, em 2014, 54% dos domicílios do país tinham acesso à internet, em 2018 este percentual subiu para 79%. Fontes: https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-sala-de-imprensa/2013-agencia-de-noticias/releases/9564-pnad-tic-em-2014-pela-primeira-vez-celulares-superaram-microcomputadores-no-acesso-domiciliar-a-internet. Acesso em 26/02/2021. E Também https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-sala-de-imprensa/2013-agencia-de-noticias/releases/27515-pnad-continua-tic-2018-internet-chega-a-79-1-dos-domicilios-do-pais. Acesso em 26/02/2021.
  • 11
    No momento em que escrevo estas linhas, acompanho uma polêmica que se iniciou no Twitter tendo como centro a cantora Rita Lee. Ela foi acusada de ser transfóbica por ter feito um tweet onde chamava o 8 de março, Dia Internacional das Mulheres, de “xereca’s day”, uma alusão clara a mulheres biológicas.
  • 12
    Página Chez Toble (já extinta), postada por Chez Toble, 19/08/2017.
  • 13
    No feminismo radical, mulheridade é um conceito usado para definir os atributos femininos através da diferença sexual (presença de características sexuais primárias e secundárias) e define a experiência ontológica das mulheres enquanto classe sexual. Para saber mais, veja https://medium.com/qg-feminista/introdu%C3%A7%C3%A3o-ao-radical-mulheridade-ff5d91faa900. Acesso em 10/03/2021.
  • 14
    Como se tratam de questões muito recentes, boa parte da crítica a estes temas tem sido feita através de blogs, como o QG Feminista. Para saber mais, veja: https://medium.com/qg-feminista/por-que-identidade-de-g%C3%AAnero-%C3%A9-um-conceito-antifeminista-606a1891870b. Acesso em 10/03/2021.
  • 15
    E.R., perfil pessoal, 13/05/2017.
  • 16
    Embora a terapia hormonal, através de bloqueadores da puberdade, seja uma realidade dos critérios de diagnóstico de disforia de gênero, deve fazer parte de um criterioso protocolo proposto pela Sociedade Brasileira de Pediatria, que inclui o acompanhamento de uma equipe multiprofissional durante o período de no mínimo dois anos. Contudo, o documento propõe critérios de diagnósticos componentes sociais, como “a preferência por se vestir com roupas do sexo oposto, ou, a preferência por brinquedos, jogos e atividades do sexo oposto ao gênero designado”. Além disso, o documento sugere que quando a questão surge na idade pré-escolar, 90% dessas crianças voltarão a ficar satisfeitas com seu sexo biológico (Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP), Disforia de Gênero: Guia Prático de Atualização, n. 04, junho de 2017).
  • 17
    Perfil Pessoal de E.R., 23/07/2017.
  • 18
    Assim, como RadFem, LibFem também é uma categoria de acusação. Qualquer tipo de individualismo metodológico a ser expresso através de conceitos como liberdade de escolha, indivíduos, performances ou identidades corre o risco de ser acusado de LibFem.
  • 19
    É o caso de Lucy Tobleronne, personagem que, durante a primeira década de 2000, se tornou conhecida como representante do Feminismo Radical, passando, mais recentemente, e já posicionada como influenciadora, a usar seu nome verdadeiro no Facebook. Ela figura entre as informantes desta pesquisa, embora tenha solicitado para não ser identificada.
  • 20
    Trata-se de quando pessoas com afinidades e interesses em comum se adicionam em massa nas redes sociais. A palavra addedaço é um neologismo que vem do inglês add, de adicionar. Na maioria dos casos, quando ocorre algum destes eventos, são disponibilizados filtros para a identificação da causa/afinidade/interesse. Foi desta forma que consegui informantes para minha atual pesquisa sobre feministas radicais. Todas usavam, na ocasião, um filtro rosa e roxo escrito Radical.
  • 21
    Como citar esse artigo de acordo com as normas da revista: MARTINEZ, Fabiana Jordão. “Militantes e radicais da quarta onda: o feminismo na era digital”. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 29, n. 3, e70177, 2021.
  • Financiamento: CNPq através do edital 25/2015
  • 23
    Consentimento de uso de imagem: Não se aplica
  • 24
    Aprovação de comitê de ética em pesquisa: Não se aplica

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Nov 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    21 Nov 2019
  • Revisado
    13 Jun 2021
  • Aceito
    14 Jun 2021
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