Resumo:
No artigo, discuto a emergência de ativismos feministas desencarceradores que têm deslocado, nos últimos 15 anos, a gramática do humanitarismo para a denúncia contundente do racismo do sistema punitivo e reivindicando sua abolição. A partir de levantamento documental, observação participante e entrevistas com as fundadoras de três coletivos - Amparar, Libertas e Por Nós - busco retratar o modo como as ativistas mobilizam uma rede de cuidados em torno das mulheres encarceradas, na cena das saídas temporárias, tensionando o paradigma punitivo moderno, ao evocarem, em seu lugar, práticas e epistemologias insurgentes orientadas pela justiça social, racial e reprodutiva.
Palavras-chave:
mulheres encarceradas; cuidado; ativismos; saídas temporárias; abolicionismo
Abstract:
The article discusses the emergence of feminist desencarced activisms that has, over the last 15 years, shifted the grammar of humanitarianism towards a forceful denunciation of the racism of the punitive system and demanding its abolition. Based on a survey of documents, participant observation and interviews with the founders of three collectives - Amparar, Libertas and Por Nós - the aim is to portray how activists mobilize a network of care around incarcerated women in the temporary release scene, putting the modern punitive paradigm into tension by evoking, instead, insurgent practices and epistemologies oriented towards social, racial and reproductive justice.
Keywords:
incarcerated women; care; activism; temporary leave; Abolitionism
Resumen:
El artículo analiza la emergencia de un activismo feminista descarcelador que, en los últimos 15 años, ha desplazado la gramática del humanitarismo hacia una denuncia contundente del racismo del sistema punitivo y la exigencia de su abolición. A partir de un estudio de documentos, observación participante y entrevistas con las fundadoras de tres colectivos - Amparar, Libertas y Por Nós - se pretende retratar cómo las activistas movilizan una red de cuidados en torno a las mujeres encarceladas en el escenario de la libertad temporal, poniendo en tensión el paradigma punitivo moderno al evocar, en su lugar, prácticas y epistemologías insurgentes orientadas a la justicia social, racial y reproductiva.
Palabras clave:
mujeres encarceladas; cuidados; activismo; baja temporal; abolicionismo
Introdução
Tendo como base minha apresentação na Mesa-Redonda 32 - “Direitos Humanos, feminismos antiproibicionistas e antipunitivistas: estratégias antifascistas”, no Encontro Fazendo Gênero de 2024, discuto, neste artigo, a emergência de novos ativismos desencarceradores que, nos últimos 15 anos, têm deslocado a gramática e o repertório de ação das entidades de direitos humanos prevalecentes desde a redemocratização.
A reflexão se estabelece em torno de coletivos, militantes e coalizões que emergem, primeiramente, da mobilização das mães cujos filhos foram assassinados pelo Estado ou se encontram sujeitos ao encarceramento sucessivo, da infância à vida adulta. Num segundo momento, as mulheres sobreviventes das prisões (termo que reivindicam no lugar de “egressas”) irrompem nessa arena, trazendo uma gama de problematizações acerca do encarceramento feminino que escapavam do repertório das familiares de pessoas em prisão. Em ambas as expressões, são as mulheres e as pessoas dissidentes de gênero que protagonizam uma espécie de giro nas pautas, denúncias e demandas contra o sistema penal, radicalizando o diagnóstico e as reivindicações sobre esse sistema.
O destaque é dado ao modo como as ativistas, muitas delas sobreviventes da prisão, se articulam e mobilizam uma rede de cuidados em torno das mulheres encarceradas, denunciando e subvertendo a lógica própria da divisão sexual do trabalho que relega essas mulheres ao abandono nas prisões, e para além delas. Recorro à revisão bibliográfica e ao levantamento documental para tematizar o cenário de atuação de organizações de direitos humanos nas prisões, e sua mudança a partir dos anos 2010. Para caracterizar os novos ativismos emergentes, recorro a materiais produzidos por três desses coletivos, disponíveis nos canais porventura existentes e, sobretudo, aos registros referentes ao acompanhamento que realizo, há alguns anos, junto às mulheres que os integram. A partir de observação participante junto ao evento das “saidinhas” - a mobilização dos coletivos quando da “saída temporária” de mulheres da prisão -, tomo a atuação desses coletivos nessa cena como lugar-chave para interpretar a emergência de uma epistemologia feminista insurgente, antiprisional e abolicionista, ao tecerem redes de cuidado como antítese ao “complexo industrial carcerário”, de que nos fala Davis (2019). Completo a análise sobre a atuação dos três coletivos com trechos de entrevistas semiestruturadas, gravadas, que realizei com as mulheres que estão à frente de cada um deles, privilegiando, assim, o ponto de vista dessas atrizes sobre sua atuação.
Minha relação com esses coletivos, e sobretudo com suas lideranças, é marcada por conexões que se estabeleceram nos últimos quatro anos em projetos de extensão, e que transbordaram o espaço universitário e suas institucionalidades, para dizer respeito à participação em eventos, atos, reuniões e atividades desenvolvidas pelas entidades. Num movimento de transitividade, destaco ainda que duas mulheres desses coletivos ingressaram na pós-graduação na universidade que leciono, uma delas, aliás, com dissertação recém-defendida cujo tema é justamente a atuação do movimento social que ajudou a criar, a “Amparar” (Miriam Duarte Pereira, 2024). Seu trabalho, assim, será uma das mais importantes referências deste artigo.
Por fim, anoto aqui que minha vivência pessoal e profissional perpassa o objeto e as cenas que proponho recuperar neste artigo, ou seja, as transformações no campo dos ativismos anticárcere nas últimas décadas. Isso porque, se é verdade que hoje estou situada em um posto de observação que se opera através de engajamento ético e crítico ao lado e com esses novos coletivos, também é verdade que o início da minha carreira profissional e da minha trajetória ativista se deu junto às entidades e instituições de direitos humanos, entre as décadas de 1990 e de 2000. Entre vantagens e desafios epistêmicos, arrisco uma análise que se forjou na reflexividade crítica e no profundo respeito a esses coletivos e a suas sujeitas.
Descolonizar o gênero, abolir o sistema penal
A partir da redemocratização e embalados pelo momento de “abertura” que marcava o ocaso da ditadura empresarial-militar no país, emergem diferentes grupos1 na sociedade civil que se mobilizam para denunciar as prisões brasileiras como locais de violações de direitos humanos sistemáticas, reivindicando pautas de “humanização” e reforma do sistema carcerário. Esses grupos mobilizaram a agenda por direitos e a denúncia das precárias condições de encarceramento, como também a violência institucional, a partir de estratégias como a judicialização, o lobby parlamentar, a pesquisa aplicada e acadêmica, e também a assistência jurídica, psicológica e religiosa. A gramática mobilizada era a do Humanitarismo, ainda no legado das Regras Mínimas das Nações Unidas (1955), paradigma da ressocialização que marca a doutrina dos Direitos Humanos do pós-guerra no Ocidente (e Norte global) e seu constitucionalismo, paradigma esse que levará algumas décadas para ser pensado e aplicado no Brasil (Alessandra Teixeira, 2009).
Com relação ao encarceramento feminino, esses grupos tiveram papel importante na denúncia do que se chamava “invisibilidade”, dada sua menor expressão numérica no universo das pessoas encarceradas; denunciaram as diversas violações e violências, sobre direitos sexuais e reprodutivos, a inexistência de políticas para as mães e parturientes, a pobreza menstrual, a falta de assistência judiciária, a medicalização e patologização, o sexismo e a misoginia do sistema penal.2
Essas organizações não deixaram de existir, embora algumas tenham se mantido mais atuantes que outras ao longo dos últimos anos, mas é certo que, a partir da década de 2010 irrompe, nesse cenário, um outro ativismo, vindo sobretudo de mulheres e pessoas dissidentes de gênero, que transborda as margens da institucionalidade em que aquelas organizações se instalavam.
São ativismos que emergem com características bem diversas, principalmente de mulheres que são mães, familiares de pessoas aprisionadas e mortas pelo sistema penal, e também egressas da prisão ou, como preferem ser chamadas, sobreviventes. São coletivos, antes que organizações, que podem estar ou não formalizados em associações, cooperativas, e sua maneira de interpelar o Estado é radicalmente diversa dessa militância em direitos humanos descrita até aqui. O que se enuncia não é uma demanda ao Estado (ainda que haja denúncia sobre ele), nem ele tão pouco é um interlocutor (ao menos não no mesmo sentido que aquelas organizações empregavam), mas uma acusação assertiva, resultado de uma reflexão crítica que denuncia o modo mesmo de funcionamento desses regimes de poder e da economia da punição, desde a escravidão e a colonização.
É possível pensar num momento que assinala, se não a emergência em si desses grupos (que, como veremos adiante, têm gêneses próprias, todas a partir da década de 2000), mas o “encontro” entre eles e as organizações de direitos humanos, marcado por uma espécie de interpelação que passam a se dirigir a essa militância mais tradicional.
A formação, em 2013, da “Frente Nacional pelo Desencarceramento”, um fórum que reúne dezenas de organizações, associações e coletivos3 no país para implementação da “Agenda Nacional pelo Desencarceramento”, assinala um ponto de virada das mobilizações sobre as prisões no país (Vera Telles et al., 2020). A narrativa sobre sua formação,4 que remete a uma audiência pública coordenada pelo Movimento Independente Mães de Maio, é bastante emblemática desse deslocamento. Referido Movimento, constituído em 2006, após os “crimes de maio”, quando forças policiais de São Paulo assassinaram mais de 500 pessoas nas periferias das cidades do Estado, é expressão do protagonismo exercido pelas mães na luta pelo fim da violência policial. É certo que esses movimentos têm desempenhado papel destacado na articulação de demandas que incluem uma crítica mais integral e radical ao Estado penal, e é nessa perspectiva que os ativismos desencarceradores emergem, primeiro como expressão de uma demanda das mães e familiares de pessoas presas (na grande maioria homens), e num segundo momento advindos de sobreviventes do sistema e problematizando o papel estruturador do gênero no sistema carcerário.
Os novos ativismos deslocam, assim, a agenda do direito penal humanizador para a abolição do sistema penal e de todas as formas de controle e violência estatal. O abolicionismo que reivindicam se afasta da formulação europeia do “abolicionismo penal”, inspirada no humanitarismo pós-guerra e na criminologia crítica, pois estabelece uma conexão histórica direta entre as prisões e a herança da escravidão e da colonialidade. Para esses novos ativismos é a tradição radical negra que se evoca, não por acaso vocalizada por Angela Davis, que vem sendo a principal intelectual e ativista responsável por compreender o fenômeno contemporâneo do encarceramento ou do “complexo industrial carcerário”, como ela o nomeia, a partir da escravidão e de seus desdobramentos históricos nos EUA, e também em outros países que a vivenciaram de modo tão intenso, como o Brasil (Davis, 2019).
Outro aspecto que se destaca é a contundente denúncia da guerra às drogas como o principal motor do encarceramento e do genocídio que afetam, de modo desproporcional, a juventude negra e periférica. Aqui eles também estão em sintonia com as reflexões do abolicionismo penal nos EUA, e sua discussão sobre as reinvenções dos modelos segregacionistas das sociedades é atravessada pelo trauma da escravidão moderna (Michelle Alexander, 2017).
Abolicionismo e antiproibicionismo, juntos, ecoam para esses grupos como uma exigência estratégica, que os liga a outros movimentos antirracistas, anticolonialistas e decoloniais mundo afora, e sua demanda se formula a partir da tríade memória, justiça e reparação.
Com relação às denúncias e às demandas relacionadas ao gênero, sua formulação vem diretamente interseccionada à raça e à classe: eles recusam o universalismo da gramática feminista liberal ou não atenta aos marcadores sociais que configuram modos diversos de opressão, e a situacionalidade é o que se reclama ao definir as demandas das sujeitas. Uma reflexão mais detida sobre como esses ativismos concebem as demandas e os direitos das mulheres e das pessoas dissidentes de gênero na prisão pode aproximá-los da noção de “decolonialidade de gênero”, nos termos que María Lugones (2019) propõe. Essa autora nos provoca a pensar a potencialidade de uma forma de resistência coletiva que só pode existir mesmo advinda do “lócus fraturado”, uma condição que foi definida, pelo projeto da modernidade colonial, como de não humanidade, ou seja, pela (des)humanização dos corpos colonizados e racializados. A vantagem dessa desontologização é que, ao não se constituírem como pessoas dotadas de “agência”, atributo dos sujeitos modernos (legitimados como humanos), não estão sujeitos aos tipos de assujeitamento moderno, como a generificação e tudo o que ela implica. É nessa senda aberta pela desumanização colonial que, em contrapartida, nos permite recusar o sentido de agência moderna e seu duplo inconfessável, a sujeição (Michel Foucault, 2008), que esses ativismos podem reinventar formas de resistir e reivindicar condições outras de vida e de existência.
Abolicionismo feminista e resistências interseccionais
Davis (2018), na obra Estarão as prisões obsoletas? (2018), dedica um capítulo a discutir a centralidade do gênero para a maquinaria carcerária desde o seu nascimento. Com o sugestivo título “Como o gênero estrutura o sistema prisional”, Davis contesta as representações correntes de que tanto o encarceramento de mulheres seria marginal ao sistema punitivo, quanto a prisão, do mesmo modo, seria para os projetos feministas. Isso porque o programa encarcerador, sobretudo em sociedades atravessadas pelo racismo e sexismo interseccionalmente, é uma expressão e também uma consolidação da estrutura de gênero nessas sociedades. Ao expandir a noção de punição para além do sistema penal estatal, Davis (2018) nos convida a refletir sobre as tantas formas de punir que perpassam a vida das mulheres, como a violência de gênero praticada de modo difuso contra as mulheres e pessoas LGBTQIAP+ ao longo da história (práticas de castigos físicos, violações sexuais e violência psicológica “corretivas”), as estratégias de patologização e psiquiatrização do corpo e da mente das mulheres que serviram e ainda servem de experimentação e modelo para técnicas de controle, internação e segregação em instituições de internação e custódia, como os manicômios, hospitais psiquiátricos, colônias correcionais, centros de internamento de jovens e crianças e as prisões.
De fato, compreender o impacto social do encarceramento de mulheres exige olhar para além da aparente residualidade que os dados anunciam (cerca de 5% do total de presos). A compreensão da centralidade do gênero na dinâmica do aprisionamento exige um esforço em estender a análise para os contextos que circundam a vida das mulheres encarceradas, e que revelam como a criminalização e a prisão representam mais um sintoma da abissal desigualdade de gênero (interseccionado à raça), e como a aprofundam. Ao mesmo tempo, a tese de que essa residualidade obstaculiza um tratamento institucional que atenda às “especificidades das mulheres encarceradas”, embora tenha sido importante para formular denúncias de violações que embasaram as demandas e conquistas de importantes direitos para essas mulheres - por exemplo, a regulamentação da visita íntima, algumas ações de maior atenção à saúde sexual --(Brasil, 2008a), é problemática por algumas razões. A principal é o essencialismo presente nessa concepção que pressupõe a existência de uma especificidade “feminina” que aloca, quer na biologia, quer na cultura, a irredutibilidade da diferença sexual (Judith Butler, 2003). Como consequência, essa forma de essencialismo acaba por invisibilizar as dinâmicas sócio-históricas que constroem as diferenças de gênero, o que contribui para reforçar as desigualdades entre homens e mulheres (na prisão e para além dela), ao invés de enfrentá-las.
Para compreender o impacto dos processos (seletivos) de criminalização e prisionalização de mulheres, é necessária uma análise detida sobre seu perfil sociodemográfico antes, durante e após o encarceramento. Essa análise precisa ser feita levando em conta como os marcadores sociais da diferença (gênero, raça, classe/renda e escolaridade) ornam a centralidade de fenômenos como a monoparentalidade materna e a chefia de família na vida dessas mulheres, e sua relação inextricável com a divisão sexual do trabalho e a invisibilidade do trabalho de cuidado, elementos que marcam o ciclo de vulnerabilidade e pobreza que a prisão acentua. 63,5% das mulheres em prisão são negras, 50% têm até 29 anos, 50% sequer completaram o ensino fundamental e 66% não completaram o ensino médio; 74% são mães, embora 62% se declarem solteiras e apenas 32% afirmem estar em união estável ou casadas, revelando a condição de monoparentalidade materna que vivenciam (Brasil, 2008b). A média da renda mensal (familiar per capita) dessas mulheres não ultrapassa R$ 40,00, menos da metade daquela recebida por mulheres que já estão em situação de extrema pobreza (Brasil, 2022).
A prevalência do tráfico de drogas como maior motivo da prisão de mulheres (41% dos casos)5 (Brasil, 2023) está relacionada ao lugar que essa atividade criminal pode desempenhar como alternativa à renda para mulheres chefes de família, diante de um restrito mercado de trabalho que a elas se apresenta, sobretudo às mães com filhos menores e sem acesso a serviços públicos de educação e assistência social (Monica Cortina, 2015; Denise Carvalho; Maria Gorete Marques Jesus, 2012). Também em relação aos crimes patrimoniais - com destaque ao furto, crime sem violência e segunda maior incidência no sistema prisional feminino -, o provimento às famílias aparece como elemento de grande motivação para a atividade delitiva, sobretudo no caso do furto de alimentos e itens de higiene (Fernanda Matsuda, 2016).
Antes da prisão, em regra, essas mulheres encarregavam-se do cuidado dos filhos, dos familiares idosos e doentes e de pessoas da comunidade. Uma vez encarceradas, a rede de cuidado da qual elas eram peça-chave tende ou a se desfazer, levando seus filhos ao abrigamento pela imposição da destituição da maternidade - mais uma dimensão da injustiça reprodutiva a que mulheres são submetidas - ou à assunção das tarefas de cuidado por suas mães que, pela idade avançada, estão também a necessitar de cuidado, e encontram maiores dificuldades em exercer funções remuneradas no mercado de trabalho (ITTC, 2019; IDDD, 2019).
O cuidado, conceito que vem ganhando centralidade no campo de estudos de gênero nos últimos anos, especialmente na perspectiva do feminismo materialista, tem sido uma ferramenta teórica fundamental para a compreensão de como se moldam as desigualdades de gênero e raça em sociedades capitalistas. Apesar da polissemia que o acompanha, seu entendimento a partir de uma concepção estendida do conceito de “reprodução social” apresenta notáveis ganhos analíticos. Ao conceber o cuidado como uma “relação social sexuada” (Helena Hirata, 2022), decorrente da divisão sexual do trabalho, é possível compreender como se construiu, historicamente, no emergir do capitalismo, a artificialidade de sua separação da esfera produtiva e a sua consequente desqualificação, a partir da exploração do trabalho de reprodução social (Lisa Vogel, 2022).
O cuidado é também um elemento central para compreensão dos efeitos e impactos sociais radicalmente diversos que o encarceramento promove, segundo o gênero. No caso dos homens encarcerados (que representam 95% das prisões no país), tanto os dados oficiais como a vasta bibliografia produzida demonstram que, com sua prisão, não há o desmantelamento dos laços familiares, muito menos a transferência de atividades de cuidado em suas famílias, na medida em que essas não eram desempenhadas por tais sujeitos.
Ao mesmo tempo, uma densa rede de cuidados (ou de cuidadoras) se organiza a partir das famílias desses presos, formada sobretudo por mulheres (mães, esposas, irmãs, filhas), tanto para o abastecimento de itens essenciais para esses homens (conhecido como jumbo), como para viabilizar a realização semanal das “visitas” familiares e íntimas (Natalia Lago, 2019; Rafael Godoi, 2015). Quando um homem é preso, portanto, uma rede de mulheres se solidifica ao redor dele, que mobiliza recursos, negociações e afetos, sem perder de vista a manutenção das famílias que, embora também sofram impactos pelo encarceramento masculino, não se desintegram.
A prisão das mulheres assinala um cenário radicalmente oposto e desolador. Como já apontado, são elas as cuidadoras, e como são em maioria mães e estão solteiras, não há um companheiro (ou companheira) que assumirá as tarefas de cuidado com os filhos, e muito menos outros familiares se mobilizarão para delas cuidar na prisão. Em diferença às prisões masculinas, as visitas familiares e íntimas nas prisões femininas são raras e atingem um ínfimo percentual de mulheres. Os dados, coletados em diferentes pesquisas, mostram que em média apenas 5% das presas recebem vistas com alguma regularidade (Natália Padovani, 2011; Fernanda Bassani, 2013); no caso dos presídios masculinos, esse percentual gira em torno de 80%.
É justamente a partir da percepção desse abandono e desse desamparo, que um movimento iniciado em 2016 na cidade de São Paulo, por ativistas e grupos de mulheres “sobreviventes” da prisão, começa a se articular para prover às mulheres presas acolhimento, escuta, recursos e atendimento sociojurídico, a partir de ações estratégicas no momento das saídas temporárias,6 as chamadas “saidinhas”. É desse movimento em torno do cuidado das mulheres, homens trans e pessoas não binárias em situação de prisão, que tratarei a partir de agora.
Redes de cuidado como práticas insurgentes
Com relação aos coletivos que atuam tecendo redes de cuidado às mulheres e dissidentes de gênero que saem temporariamente das prisões femininas, em São Paulo, ganha destaque primeiro o próprio protagonismo das mulheres ex-presidiárias. Elas se apropriam da experiência mortificadora da prisão para recompor uma trajetória de luta, resistências e denúncia desses espaços, sendo esse percurso demarcado pela reivindicação de uma nova identidade, a de “sobrevivente”, como um lugar de enunciação política, em oposição à categoria normativa “egressa”.
Outro elemento de destaque é a cena em que essas sobreviventes procuram atuar: não nas visitas, que requerem um laço familiar ou conjugal, mas nas “saidinhas”, no lado de “fora” das grades, ocupando as ruas e calçadas, portanto, no espaço público. As saidinhas são um momento/espaço estratégico para essa atuação. Isso porque, uma vez mais, em diferença ao que ocorre com os homens presos, a situação de desalento e abandono das mulheres presas no momento das saídas temporárias (assim como das visitas) é marcante: muitas não têm recursos para visitar sua família (ou o que restou dela), ou mesmo sequer têm para onde retornar; outras tantas (a maioria), com filhos, não querem visitá-los sem levar dinheiro, comida e presentes; outras perderam os laços e temem a rejeição.
Como a mobilização em torno da saída temporária de mulheres começou? A concepção sobre essa atuação estratégica partiu da ativista “Tempestade”, uma mulher sobrevivente da prisão, cujos protagonismo e liderança nas mobilizações por direitos às mulheres encarceradas remontam à sua própria experiência prisional, que foi repertoriada por Matsuda (2016). Como Tempestade tem relatado em diferentes oportunidades, sua ideia era fornecer assistência jurídica às mulheres que deixavam a Penitenciária do Butantã, daí sua parceria estratégica, num primeiro momento, com a Defensoria Pública. As conexões de Tempestade com diversos movimentos pertencentes à “Rede de Proteção contra o Genocídio”7 expandiram a iniciativa, que ganhou diversos apoios e passou a ser realizada nas saídas temporárias em mais duas unidades prisionais, a Penitenciária Feminina da Capital e o Centro de Detenção Provisória (CDP) do bairro de São Miguel Paulista.
Tempestade ou Temps, como é carinhosamente chamada, foi responsável pela articulação dos diversos grupos que, desde 2017, se organizam em torno da recepção das mulheres que saem provisoriamente da prisão, em datas comemorativas (dia das mães, Páscoa etc.). Quando desses eventos, os grupos ocupam calçadas nas proximidades dessas unidades, oferecendo às mulheres, homens trans e pessoas não binárias que saem da prisão diferentes formas de acolhimento: escuta, roupas, brinquedos, dinheiro para passagem, um abraço, orientação jurídica ou até mesmo um local para acolhida nos breves dias de liberdade.
Trata-se de uma coalizão entre diferentes organizações e movimentos, muitos deles pertencentes à Frente Estadual de Encarceramento, além de contar com um número expressivo de ativistas de direitos humanos e estudantes. Há desde organizações consolidadas como a “Amparar”, constituída no início dos anos 2000, até grupos formados nos últimos anos em torno da militância anticárcere, com destaque à atuação para as mulheres presas e sobreviventes.
Apresento, agora, três coletivos que atuam na saidinha em São Paulo, privilegiando as falas e os pontos de vista de suas fundadoras.
Amparar - Associação de Amigos/as e Familiares de Presos/as e Internos/as da Fundação CASA
Sua existência remonta à Associação de Mães e Amigos da Criança e Adolescente em Risco (“Amar”), que nasceu como movimento de mães da FEBEM, em 1998. É considerado o primeiro movimento de mães a realizar denúncias e atuação sistemática no combate à tortura dentro das unidades socioeducativas da FEBEM no Brasil. Em 2004, a “Amar” se expande para as mulheres que têm familiares em instituições prisionais, nascendo assim a Amparar, a partir, sobretudo, do encontro de duas mães, Raílda Alves e Miriam Duarte Pereira, esta última que vinha da “Amar” (Pereira, 2024).
A atuação da organização volta-se também ao território, sobretudo ao bairro periférico de Sapopemba, no qual Miriam atua há décadas como liderança comunitária, realizando o atendimento das famílias e o referenciamento à rede de serviços públicos (assistência social, saúde, trabalho, justiça). Destacam-se ainda trabalhos de formação coletiva, nos quais temas como escravidão, sistema penal e abolicionismo são discutidos. As rodas de conversa têm mobilizado, nos últimos anos, debates em torno do cuidado: na expressão “quem cuida de quem”, as integrantes desse coletivo têm problematizado o processo de adoecimento das mães, a invisibilização do seu trabalho cotidiano e de seu sofrimento (Pereira, 2024). Registra-se que as famílias (no plural) são o verdadeiro público-alvo dessa organização, a partir da centralidade do lugar das mães e do trabalho incessante de cuidado. A perspectiva dessa mãe trabalhadora, periférica, cuja maternidade é ameaçada pelo Estado a todo o momento, orienta a atuação desse coletivo e é de onde advêm sua força e resistência.
Por ser a mais antiga e possuir uma atuação bastante capilar e articulada em rede com diversos movimentos de direitos humanos, a Amparar já foi objeto de pesquisas acadêmicas (Lago, 2019; Mariana Lins de Carli Silva, 2021), assim como suas coordenadoras contempladas com diversos prêmios nacionais e internacionais.
A participação da Amparar na cena das saidinhas foi crucial para que a organização passasse a olhar para a questão de gênero no encarceramento, como informa Miriam Duarte Pereira, em entrevista realizada em 26 de janeiro de 2025:
Pra Amparar, em 2018, fez muito sentido estarmos próximas da Temps para junto realizar o acompanhamento da saidinha. A Tempestade conseguiu conectar o movimento de luta antiprisional, ultrapassar as barreiras (tipo “a gente só atua nisso ou naquilo”), então ela trouxe uma conexão, mostrou que o trabalho do cárcere é contínuo. Estar com uma pessoa do semiaberto para poder também dialogar com as famílias dessa pessoa, é onde a Amparar também veio para fazer esse trabalho, para fazer que na saidinha as famílias se acheguem também, famílias que ainda têm vínculo com as pessoas aprisionadas no semiaberto. Então esse movimento foi ganhando outra roupagem, o coletivo foi ganhando muita força na questão da saidinha, mas também essa força teve a ver com o aumento de debates sobre prisões de mulheres, então essa movimentação da saidinha iniciada pela Tempestade, desse acompanhamento, dessa escuta e desse acolhimento, a gente percebe que vem trazendo luz pra essa questão de gênero, para as denúncias, porque nós estamos falando de um local onde estão mulheres, que são mães, estão adoecidas, saem doentes, mas que projetam estar no seio familiar para cuidar dos seus filhos, para cuidar dos seus lares (Entrevista de Miriam Pereira Duarte, realizada em 26 de janeiro de 2025).
Miriam constata a importância do movimento das saidinhas para que o debate sobre a questão de gênero no sistema prisional ganhasse evidência, e sobretudo fosse politizado, visibilizando as profundas iniquidades que atravessam a vida dessas mulheres e pessoas dissidentes de gênero, e seu agravamento pela prisão. Ela reconhece que a participação da Amparar nessa cena amplia e diversifica sua atuação, alcançando famílias que, em regra, não eram acessadas ou atendidas pela organização. De certo modo, essa participação permitiu também à Miriam e às lideranças da Amparar generificarem a compreensão de sua própria atuação.
Cooperativa Libertas
A Libertas nasce também do encontro de duas mulheres: Geralda Ávila, socióloga, militante anticárcere, membro da Pastoral Carcerária, ativista participante da saidinhas desde seu início, e Marcita Assunção, estilista e designer que busca a Pastoral, em 2018, com o intuito de oferecer aulas de costura nas prisões femininas. Geralda e Marcita iniciam as atividades por meio da oferta de oficinas de costura associadas à formação feminista (com destaque à questão dos direitos sexuais e reprodutivos) na Penitenciária do Butantã. Com o tempo, a compreensão de uma demanda pela formação e autonomia financeira das mulheres egressas da prisão se mostra urgente, de modo que, em abril de 2019, nasce a “Cooperativa Libertas”. A preocupação com a empregabilidade das mulheres que saem da prisão norteia a concepção e a atuação da Libertas. Para tanto, há uma busca ativa pelas pessoas egressas das prisões femininas, ou em vias de obter a liberdade, a partir do trabalho de agente pastoral de Geralda Ávila.
O grande diferencial desse coletivo em relação a outros grupos é justamente a possibilidade de “além de gerar trabalho e renda por meio de costura a fabricação de produtos ecológicos, ser um centro de amparo e formação para as egressas que a procuram, uma espécie incubadora de talentos estigmatizados da sociedade”.8
Em 2022, a Libertas inaugurou uma Casa de Acolhida a mulheres sobreviventes do sistema (que funcionou de “portas abertas”), fixando sua sede em espaço cedido pelo Cedeca Sapopemba, a convite de Miriam Duarte, da Amparar. Embora o trabalho de acolhida esteja suspenso por falta de recursos, a sede se mantém e hoje há 8 mulheres que compõem o “corpo sólido” da Cooperativa, três delas sobreviventes do sistema. Geralda Ávila, uma de suas fundadoras e mentoras do projeto, em entrevista concedida para este estudo, descreve a atuação e os desafios da Libertas da seguinte forma:
A nossa ideia enquanto cooperativa é que as mulheres tenham autonomia, que elas descubram seu talento e sobrevivam com dignidade. Para isso fornecemos subsídios, parcerias de formação, de atendimento psicológico e de assistência social (com profissionais voluntárias). O objetivo é um só, que as pessoas tenham autonomia e que elas não sejam exploradas. A cooperativa é algo tão antigo e tão moderno ao mesmo tempo, porque ela é contra o sistema. É difícil uma pessoa entender isso estando nesse sistema capitalista, a gente faz divisão igualitária de tudo, e tem altas brigas por isso também… “Por que ela vai receber a mesma coisa que eu, se eu que fiz a costura?”. Eu respondo: “porque ela trabalhou também. Tudo é trabalho” (Entrevista de Geralda Ávila, realizada em 28 de outubro de 2024).
Sobre as saidinhas, Geralda Ávila esclarece que a Libertas participa de sua realização desde o início, oferecendo às pessoas que deixam a prisão temporariamente informações importantes para a transição à vida em liberdade. O coletivo elaborou uma cartilha chamada “Desenrola” para ser entregue às mulheres nas saidinhas, e nela se encontram informações acerca de serviços e equipamentos públicos, de organizações públicas e privadas que podem ajudá-las na dispensa do pagamento das multas pecuniárias, além de um passo a passo para a retomada da vida em liberdade, e para o acesso à renda e ao trabalho (como tirar documentos, passe para transporte etc.).
Com relação à recente aprovação da Lei que extinguiu as saídas temporárias, Geralda se mostra consternada e chama a atenção para o fato de que essa proibição afetará de modo desproporcional as mulheres no sistema prisional, justamente porque as saidinhas constituem a única possibilidade que a elas se apresenta de tentarem reconstituir os vínculos familiares, além de acessarem uma rede de apoio e cuidado que os movimentos sociais têm a elas provido. Para ela:
Privar a pessoa desse contato com a sociedade e com a família é uma medida muito negativa, pois é um vínculo que já é tênue, principalmente para as mulheres, já que as mulheres não recebem visita; num universo de mil mulheres pode contar que 15 recebem visitas, um contingente bem escasso, e essa medida só vai acentuar ainda mais a violência contínua [de] que as mulheres já são vítimas. Elas me dizem que o único contato que elas têm com a família é na saidinha (Entrevista de Geralda Ávila, realizada em 28 de outubro de 2024).
Coletivo Por nós
A “Por Nós” se define como rede de apoio constituída por e para mulheres egressas e sobreviventes do cárcere, que atua juntamente com a RENFA - Rede Nacional de Feministas Antiproibicionistas, e tem no acompanhamento das saídas temporárias de mulheres sua principal atuação. Constituída em novembro de 2019, a Por Nós foi inicialmente pensada pelas irmãs Mary Jello e Iyá Batia Jello, anos antes, quando cumpriam pena em uma penitenciária em SP e refletiam sobre a condição de desamparo a que as mulheres se encontravam na prisão, o que agrava as violências sofridas.9
O coletivo busca fortalecer as mulheres egressas e suas famílias, oferecendo informações, organizando ações nas datas de “saidinha” em algumas unidades penitenciárias do estado de SP, especialmente na Penitenciária Feminina da Capital, momento em que oferece acolhimento para as mulheres, orientação jurídica, além de alimentação, roupas e dinheiro de passagem para que possam visitar suas famílias, atuando, ainda, no envio de cartas de afeto para as mulheres presas e em encontros de mobilização em torno da problematização do encarceramento feminino.
A Por Nós se denomina prioritariamente como antiproibicionista (dada, inclusive, sua relação direta com a RENFA), além de abolicionista, como a Amparar e a Libertas. O acolhimento das mulheres e pessoas dissidentes que deixam as prisões femininas é o núcleo do seu trabalho, razão pela qual a atuação nas saidinhas ocupa centralidade estratégica. Mary Jello, uma de suas fundadoras, em entrevista realizada em 30 de janeiro de 2025, descreve essa centralidade:
Pra gente é um papel fundamental que nós fazemos, principalmente por sermos egressas do sistema carcerário, por termos passado por todas aquelas violações a qual as mulheres passam, e quando nós estamos aqui na saída temporária acolhendo elas, pra gente, é muito gratificante, um abraço, um afeto e você tá levando pra elas orientação, você estar mostrando pra elas que elas não estão sozinhas, indo ali pra promover a justiça social. A gente sabe que as estruturas do poder que perpetuam a opressão são muito grandes, então é uma forma da gente estar lutando contra todas essas desigualdades sociais, sobretudo o sistema carcerário que, pra nós, é a continuidade da escravidão, porque as pessoas mais atingidas são as pessoas pobres, pretas e periféricas, então a gente tem essa compreensão [de] que é necessário esse trabalho de corpo a corpo na saída temporária, pra orientar elas na questão de saúde mental, da redução de danos, o quanto é necessária a autoestima. Esse é o trabalho do Coletivo Por Nós (Entrevista de Mary Jello, realizada em 30 de janeiro de 2025).
Dos três coletivos tratados aqui, é o único fundado por mulheres sobreviventes da prisão, e o que mais possui egressas do sistema no seu núcleo coordenador e executor. Essa condição confere a elas aquilo que Patricia Collins (2019) vai chamar de privilégio epistêmico, elemento estratégico para qualificar sua intervenção, assim como para inteligibilidade dos fenômenos em que atuam. Mary Jello recorre ao conhecimento situado para a definição do papel desempenhado pela saída temporária na vida das mulheres em prisão, e a violência que sua extinção pode representar:
A saída temporária, pra mim, foi um divisor de águas porque a primeira vez que eu saí eu estava tão desesperada, sem perspectiva nenhuma e a saidinha permitiu que eu tivesse aquela sensação de poder experimentar a liberdade, sabe?, mesmo que fosse temporariamente. Então foi um estímulo. A possibilidade de estar com a família, com amigos, te dá forças para você estar enfrentando e desafiando o sistema carcerário, porque a liberdade é tudo. Penso que a suspensão das saídas temporárias é uma punição a mais, uma forma de te punir de modo muito mais cruel, dependendo da quantidade de tempo que for sua sentença [...] Nós acolhemos duas manas, uma delas está privada de liberdade há 12 anos e 2 meses, a primeira saidinha dela foi no ano passado, e ela com a saúde mental bem abalada, não viu os filhos crescerem, então é muito difícil, é uma forma de extermínio (Entrevista de Mary Jello, realizada em 30 de janeiro de 2025).
Considerações finais
A partir da perspectiva da emergência de ativismos desencarceradores dos últimos 15 anos, este artigo abordou a militância estratégica das mulheres sobreviventes das prisões femininas, apontando sua afinidade (e suas especificidades) em relação à mobilização das mães de filhos vitimados pela violência estatal. Apontou-se como ambas atuam em rede pelo desencarceramento, se denominam abolicionistas, denunciam a política de drogas, e lutam por memória, justiça, reparação, resgatando e inserindo-se na tradição radical negra.
Em suas práticas discursivas, a rejeição à humanização é imperiosa, pois ela permite denunciar a prisão e a violência policial como efeitos diretos do projeto racializador da colonialidade e da escravidão modernas, e não como instituições reintegradoras e democráticas. Entre o navio negreiro e o camburão, entre a senzala e a prisão, há continuidades reatualizadas, e não rupturas civilizatórias. Ao rejeitarem o discurso humanitário, elas acabam também expondo o lócus fraturado em que habitam (Lugones, 2019) como uma vantagem ontológica. Abandonar, assim, a utopia da emancipação do sujeito moderno permite a elas escapar das armadilhas do assujeitamento com o qual o feminismo liberal se debate ainda hoje.
Mas é certamente ao se voltarem ao trabalho de acolhimento e cuidado das mulheres e pessoas dissidentes de gênero que deixam temporariamente a prisão, que esses coletivos evidenciam deslocamentos importantes em relação à forma de denunciar e enfrentar as iniquidades de gênero. Eles politizam tal quadro de iniquidades e injustiças que nunca foram enfrentadas em seu caráter estruturante - como resultado das desigualdades de gênero, classe e raça e do modo como a divisão sexual do trabalho, o sexismo e os papéis de gênero são organizados e definidos socialmente -, visibilizando, assim, o paradoxo que atravessa nossa sociedade e que se intensifica a partir da prisão: mulheres que se ocupam incessantemente do cuidado, porém jamais são cuidadas, nem por seus companheiros e familiares, nem por políticas públicas orientadas por paradigmas de justiça social e reprodutiva. Ao fornecerem a essas sujeitas o mínimo, esses grupos abrem uma senda pela qual as mulheres e pessoas não binárias, em situação de prisão e, para além dela, podem vislumbrar uma vida vivível. Ao mesmo tempo, a atuação desses grupos forja uma nova relação de cuidado que não é baseada em laços familiares e conjugais, mas na politização do trabalho reprodutivo, pela reivindicação de sua liberação da esfera privada e de sua “inerência” ao feminino, lugares materiais e simbólicos nos quais ele foi encerrado há pelo menos trezentos anos.
Para além, esse novo ativismo desencarcerador, que classifico aqui como uma prática abolicionista feminista, representa, sobretudo, um giro epistemológico em relação aos paradigmas da justiça penal moderna. Ao evocarem a ética do cuidado no lugar dos ritos enviesados da punição, esses coletivos, além de denunciarem a seletividade e a ineficácia dos mecanismos penais, oferecem principalmente uma alternativa às representações sociais sobre os fenômenos do crime e do castigo, redesenhando assim o imaginário punitivo com elementos urdidos nas tramas da justiça social, racial e reprodutiva.
Referências
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- BRASIL. Ministério da Justiça e Segurança Pública. DEPEN - Departamento Penitenciário Nacional. Dados Estatísticos do Sistema Penitenciário: Período de janeiro a junho de 2022, 12º ciclo de coleta Brasília, 2023.
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- TELLES, Vera da Silva; GODOI, Rafael; BRITO, Juliana Machado; MALLART, Fábio. “Combatendo o encarceramento em massa. Lutando pela vida”. Caderno CRH, Salvador, v. 33, p. 1-16, e020024, 2020.
- VOGEL, Lise. Marxismo e a opressão às mulheres: rumo a uma teoria unitária São Paulo: Expressão Popular, 2022.
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Entre eles, é possível citar desde organizações religiosas como a Pastoral Carcerária, até institutos acadêmicos científicos como a Comissão Teotônio Vilela (USP), ongs e associações profissionais como Conectas Direitos Humanos, Justiça Global, AJD e OAB.
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Destaco, aqui, a atuação do GET Mulheres encarceradas, constituído em 2001 justamente por diferentes organizações já citadas (AJD, IBCCRIM, Pastoral Carcerária, ITTC, IDDD).
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Entre as organizações estão entidades tradicionais de direitos humanos como Pastoral Carcerária, IBCCRIM, ITTC etc. e os grupos de ativismos situados como a Amparar, Mães de Maio e dezenas de associações de familiares e amigos de presos. Disponível em https://desencarceramento.org.br/quem-somos. Acesso em 16/11/2024.
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Disponível em https://carceraria.org.br/agenda-nacional-pelo-desencarceramento. Acesso em 16/11/2024.
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Esse percentual já chegou a ser 63% em 2018; é provável que sua redução decorra da aplicação do Marco Legal da Primeira Infância, que prevê concessão de prisão domiciliar às mães e gestantes em crimes sem violência, o que incluiria o tráfico.
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A saída temporária foi prevista na Lei de Execução Penal (Lei 7210/84) como um benefício a ser concedido para presas/os no regime semiaberto, como forma de retorno gradativo à liberdade. A recém-aprovada Lei 14.843/2024 (não obstante os vetos presidenciais que foram derrubados pelo Congresso) proibiu as saídas temporárias, mas sua incidência não retroage a quem já tem o direito garantido, razão pela qual as pessoas que estavam em cumprimento de pena antes dessa Lei continuam realizando as saídas temporárias. Referida Lei está sendo objeto de ADI (ação direta de inconstitucionalidade) no STF.
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A rede de proteção contra o genocídio reúne diferentes ativistas e coletivos na cidade de São Paulo que se articulam a diversas instituições para a denúncia contra o genocídio da juventude preta e periférica, após os crimes de maio de 2006. Disponível em https://juventudenacidade.wixsite.com/juventudesnacidade/copia-periferia-preta.
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Disponível em https://wikifavelas.com.br/index.php/Cooperativa_Libertas. Acesso em 29/01/2025.
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Por Nós: Coletivo de mulheres sobreviventes do cárcere. Carta de princípios. Disponível em https://promotoraslegaispopulares.org.br/biblioteca.php?pag=18#foco. Acesso em 02/02/2025.
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Como citar esse artigo de acordo com as normas da revista:
TEIXEIRA, Alessandra. “Abolicionismos feministas e redes de cuidado: os ativismos e suas práticas insurgentes”. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 33, n. 3, e107941, 2025.
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Financiamento:
Chamada CNPq Nº 4/2021 - Bolsas de Produtividade em Pesquisa - PQ. Processo: 311436/2021-8.
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Consentimento de uso de imagem:
Não se aplica.
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Aprovação de comitê de ética em pesquisa:
Não se aplica
Disponibilidade de dados
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Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
24 Out 2025 -
Data do Fascículo
2025
Histórico
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Recebido
14 Jul 2025 -
Aceito
20 Jul 2025
