Open-access Estudos Feministas da Tradução no Brasil: ampliando perspectivas e abordagens

Feminist Translation Studies in Brazil: expanding perspectives and approaches

Estudios de traducción feministas en Brasil: ampliando perspectivas y enfoques

Nas duas últimas décadas, vimos a emergência dos Estudos Feministas da Tradução no Brasil. Especialmente após o golpe que destituiu a primeira mulher eleita à presidência da república e frente às organizações internacionais de mulheres na retomada da pauta grevista no 8 de Março e em prol das lutas por igualdade social, identificamos aumento significativo da produção científica nacional no campo dos Estudos da Tradução no Brasil, que mobiliza gênero como categoria analítica, bem como o crescente interesse dos feminismos sobre o fenômeno da tradução (Naylane Matos, 2022).

Concebemos os Estudos Feministas da Tradução não apenas como uma área dos Estudos da Tradução, cujas análise e práxis pautam-se em perspectivas feministas, mas como uma área interdisciplinar do conhecimento, cujas bases feministas se detêm sobre o fenômeno da tradução e seus/suas agentes, bem como sobre os fatores sócio-históricos, políticos, culturais e econômicos envolvidos nos processos tradutórios e na transnacionalização das pautas feministas. Tais quais os feminismos, ressalvam Olga Castro e Maria Laura Spoturno (2020), os Estudos Feministas da Tradução não devem ser compreendidos como hegemônicos nem universais, uma vez que suas práticas e correntes teóricas se diferem nos mais diversos contextos linguísticos e geopolíticos.

O que hoje se afirma como esta profícua área de estudos, tanto para os Estudos da Tradução quanto para os Estudos Feministas, tem suas raízes no século XIX, a partir do trabalho de mulheres engajadas com a tradução de textos que reivindicavam a emancipação feminina em diferentes contextos. No entanto, a tradução feminista enquanto método conscientemente orientado pelo feminismo configura-se no contexto do Canadá, mais especificamente em Quebec, em meados da década de 1970 e 1980, com a prática experimental de tradutoras feministas engajadas na desconstrução e subversão da linguagem convencional patriarcal, como explica Luise von Flotow (1991; 2024). No século XXI, testemunhamos a transnacionalização dos Estudos Feministas da Tradução, suas filiações teóricas e abordagens, bem como práticas que reverberam as diferentes demandas feministas onde se situam.

A perspectiva dos Estudos Feministas da Tradução que buscamos encampar nesta seção temática se apresenta para além do gênero e se configura no entrecruzamento das diferentes categorias que atenuam ou acentuam relações sociais de poder. Pensamos a tradução em seu papel fundamental de ampliação de conceitos feministas e de diálogos transfronteiriços que extrapolam demandas linguísticas. Dito de outro modo, a tradução transborda os limites linguísticos de transferência de significados, sendo compreendida em termos de ato de enunciação, se tornando também um importante ponto de inflexão para os Estudos Feministas, como discute Claudia de Lima Costa (2019).

Costa e Sonia Alvarez (2013) tratam esse aspecto da reflexão teórico-feminista sobre a tradução como a “virada tradutória” do feminismo, em que o conceito de tradução é ampliado e tomado como metáfora para pensar o deslocamento e o atrito das diferenças entre sujeites, línguas, culturas, políticas. Nos Estudos da Tradução, a virada tradutória, intimamente ligada com a virada cultural, expandiu para outras áreas do conhecimento a reflexão acerca de como alteridade e identidade estão amalgamadas no ato tradutório e na fricção entre línguas/ zonas de contato epistemológico (Patricia H. Collins, 2017). Assim, a tradução torna-se um tropo importante para pensar a zona de contato entre diferentes demandas feministas, seus contextos e elaboração teórica.

Nessa perspectiva, a linguagem, longe de ser compreendida como fixa e meramente representativa, é tomada como produtora de significados não mais estáticos, mas polissêmicos. Tal produção de significado está envolta numa cadeia de relações de poder e aspectos ideológicos que interessam duplamente aos Estudos da Tradução e aos Estudos Feministas na desestabilização de conceitos hegemônicos e hierarquias histórica e socialmente construídas.

Devemos considerar, entretanto, que as interações entre as perspectivas feministas se dão em contextos assimétricos e estão inseridas em uma superestrutura social e econômica que sustenta e é sustentada por relações desiguais de poder. Por isso, Costa (2003) alerta para a necessidade de levar em conta os contextos em que são produzidos determinados conhecimentos feministas e o seu lugar de enunciação, apontando para a necessidade de historicização e politização do lugar enunciativo.

Assim, buscamos situar a produção científica brasileira no que concerne aos Estudos Feministas da Tradução, considerando as relações de poder estabelecidas entre Norte e Sul Globais e a nossa posição no sistema mundo colonial moderno. Aqui nos referimos à ordem mundial estabelecida com o nascimento da América, enquanto entidade geossocial (Rita Segato, 2021), ao longo do século XVI, cuja precondição foi a colonialidade, tal qual categorizada por Aníbal Quijano (2005). Isto é, um sistema/padrão de dominação que não se limitou à dominação formal pautada na relação político-econômica do colonialismo, mas que se expandiu a outras formas de dominação intersubjetivas, pautadas na categorização racial, estabelecendo posições de domínio e subalternidade. Tal sistema de dominação, para além do viés racial, também esteve igualmente moldado pelo gênero, controlando as subjetividades, as forças de trabalho e a produção do conhecimento em países do Sul Global (María Lugones, 2020).

Nesse sentido, no campo dos Estudos Feministas da Tradução, o Brasil, enquanto lugar de enunciação, evoca uma reconfiguração e um alargamento de conceitos e agendas da tradução feminista, tal qual inicialmente elaborada no contexto canadense, a partir da década de 1970. Os Estudos Feministas da Tradução desde o Brasil fazem reverberar sua história colonial e as consequentes assimetrias sociais forjadas pela colonialidade, fomentando a ampliação de conceitos, a revisão de lugares enunciativos hegemônicos, questionando binarismos conceituais e de gênero, estabelecendo novas formas feministas de pensar a tradução, agentes e demandas sociais e políticas.

Desde os anos 2000, a Revista Estudos Feministas (REF) tem pautado a importância das práticas da tradução cultural para os feminismos contemporâneos, especialmente salientando a tradução como parte da transnacionalização dos feminismos. Com o intuito de contribuir para a ampliação das discussões acerca dos feminismos e/m tradução, apresentamos esta seção temática, que reúne pesquisadories de diferentes instituições brasileiras e tradutories engajades em elaborar novos diálogos transfronteiriços para construção de solidariedades feministas transnacionais.

Abrimos, então, a seção com textos que partem da perspectiva da tradução cultural para alavancar discussões em torno da centralidade da tradução para construção de diálogos feministas transfronteiriços. Os artigos “A tradução e a reescrita de decisões judiciais: a linguagem nas lutas feministas” e “Tradução feminista e movimentos sociais: o caso de Un Violador en Tu Camino” nos permitem identificar como as lutas feministas transnacionais incidem no contexto brasileiro, mas se configuram, no Brasil, a partir de elementos localizados da conjuntura do país.

Em “A tradução e a reescrita de decisões judiciais: a linguagem nas lutas feministas”, Alessandra Ramos de Oliveira Harden e Fabiana Cristina Severi apresentam relevante contribuição tanto para o âmbito dos Estudos da Tradução quanto dos Estudos Feministas e do Direito, à medida que entrecruzam diferentes categorias analíticas para problematizar práticas judiciais e a sua linguagem, reivindicando uma perspectiva translocal da tradução de decisões judiciais através da edição brasileira do Projeto de Reescrita de Decisões Judiciais em Perspectivas Feministas. Ao abarcar diferentes tipos de discriminação social, as autoras partem de traduções e estratégias utilizadas pelas tradutoras no âmbito brasileiro do projeto, questionando práticas judiciárias que acentuam opressões sociais para além do gênero e contribuindo para o arcabouço jurídico-feminista com vistas a reforçar posicionamentos e práticas transformadoras no âmbito do Direito.

Em “Tradução feminista e movimentos sociais: o caso de Un Violador en Tu Camino”, Andréa Moraes da Costa demonstra como a tradução perpassa os movimentos sociais e materializa formas enunciativas politizadas e localizadas em torno das demandas reivindicadas pelos feminismos nos diferentes contextos geopolíticos. Ao analisar a performance Un Violador en Tu Camino, do coletivo feminista chileno Las tesis, no Brasil e em outros países, a autora chancela discussões em torno das condições reais que motivam práticas feministas de tradução, além de fomentar a reflexão sobre a tradução para além da atividade linguística.

Em “O Que os Machos Querem: tradução intercultural desestabilizando o patriarcado”, Monaliza Rios Silva levanta importantes reflexões para a desestabilização do patriarcado enquanto símbolo linguístico-cultural, por meio da análise do intersigno “macho-male” no texto “O que os machos querem”, de Ruth Ducaso / Luciany Aparecida (2017) e sua tradução ao inglês “What males want”, de Sarah Kersley (2020). A análise linguística-cultural conduzida pela autora fundamenta-se na perspectiva da tradução intercultural, com pertinente respaldo dos Estudos Culturais e intersemióticos, além de conceber uma abordagem interseccional, galgada nos Estudos Decoloniais e com importante articulação com as elaborações de Lélia Gonzalez acerca da condição da mulher negra na sociedade capitalista patriarcal branca.

Em “Horror e(m) tradução: o gótico italiano escrito por mulheres traduzido ao português”, Karine Simoni e Júlia Ferreira Lobão Diniz realizam parte do importante papel dos Estudos Feministas da Tradução, a saber, a recuperação de obras de mulheres obliteradas pelo cânone literário androcêntrico. As autoras comentam a tradução ao português brasileiro de dois textos do gótico italiano escrito por mulheres: “O castelo de Binasco” (Diodata Saluzzo, 1819) e “Mariposa” (NEERA,1 1893), tendo como foco episódios de horror e violência de gênero, além de situar como a estética de horror é elaborada pelas escritoras italianas e (re)elaborada na tradução brasileira a partir de uma ética declaradamente feminista.

Em “Práticas feministas na tradução de teoria”, Monique Pfau e Ana Clara Cerqueira apresentam a atuação do grupo de pesquisa Textos Fundamentais em Tradução (Key Texts in Translation - KiT), que se propõe a traduzir textos de teorias da tradução ao português brasileiro. No artigo em questão, é dada ênfase às perspectivas feministas encampadas nas práticas tradutórias do grupo, com destaque para as estratégias intratextuais e escolhas dos textos a serem traduzidos. Os exemplos apresentados no texto auxiliam na compreensão de como a ética feminista da tradução emerge no contexto da prática tradutória, viabilizando formas ativas de engajamento de quem traduz no texto e chancelando discussões que ampliam a compreensão acerca da teoria e o seu caráter androcêntrico no campo dos Estudos da Tradução.

Por fim, ao partir da ética queer da primeira pessoa para conceber práticas tradutórias e reflexivas sobre a tradução, no artigo “Estudos feministas da tradução e/m Queer~cu-ir”, Breno Guimarães Barboza (be rgb) realiza uma vasta revisão bibliográfica acerca dos conceitos de gênero que permeiam os Estudos Feministas da Tradução. Seu texto apresenta uma cronologia que auxilia na compreensão do desenvolvimento dos Estudos Feministas da Tradução, desde o fator canadense às discussões contemporâneas, com ênfase em uma perspectiva queer~cu-ir que localiza o contexto brasileiro na produção científica em torno dos Estudos Queer. A construção textual intimista e a linguagem poética que Breno utiliza em seu artigo desestabilizam a razão moderna cis hétero patriarcalista, tal qual propõe a perspectiva queer que sustenta a argumentação própria do texto.

A diversidade dos temas abordados nos textos aqui reunidos demonstra a transdisciplinaridade dos Estudos Feministas da Tradução no Brasil e a sua articulação com diferentes demandas feministas situadas no contexto brasileiro, mas também o seu diálogo com os feminismos em nível transnacional. Esperamos, assim, contribuir para o fortalecimento dos Estudos Feministas da Tradução no Brasil, ao passo que almejamos estimular práticas de tradução feminista e solidariedade que visem forjar alianças transfronteiriças.

Desejamos boa leitura!

Referências

  • CASTRO, Olga; SPOTURNO, María Laura. “Feminismos y traducción: apuntes conceptuales y metodológicos para una tradutología feminista transnacional”. Mutatis Mutandis: Revista Latinoamericana de Traducción, v. 13, n. 1, p. 11-44, 2020.
  • COLLINS, Patricia Hill. “Preface: On translation and intellectual activism”. In: CASTRO, Olga; ERGUN, Emek (Orgs.). Feminist Translation Studies: local and transnational perspectives New York and London: Routledge, 2017.
  • COSTA, Claudia de Lima; ALVAREZ, Sonia. “A circulação das teorias feministas e o desafio da tradução”. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 21, n. 2, 2013.
  • COSTA, Claudia de Lima. “As publicações feministas e a política transnacional da tradução: reflexões do campo”. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 11, n. 1, 2003.
  • COSTA, Claudia de Lima. “Feminismos traduzidos e a tradução como prática feminista: entrevista a Beatriz Regina Guimarães Barboza”. In: MATOS, Naylane; MANZATO, Elena; GUERINI, Andréia (Orgs.). Escrituras de mulheres: literatura e tradução Florianópolis: LLE/CCE/UFSC, 2019.
  • DUCASO, Ruth / APARECIDA, Luciany. “O que os machos querem”. In: DUCASO, Ruth / APARECIDA, Luciany. Contos ordinários de melancolia 1 ed. Salvador: Boto-cor-de-rosa livros, arte & café; paraLeLo13S, 2017. p. 33-35.
  • FLOTOW, Luise von. “Feminist translation: contexts, practices and theories”. TTR: traduction, terminologie, rédaction, v. 4, n. 2, p. 69-84, 1991.
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  • KERSLEY, Sarah Rebecca. “What males want”. Jellyfish review, 2020. Epub: 23/04/2020. Disponível em Disponível em https://jellyfishreview.wordpress.com/2020/04/23/what-males-want-by-ruth-ducaso-luciany-aparecida-tr-sarah-rebecca-kersley/ Acesso em 23/08/2024.
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  • LUGONES, María. “Colonialidade e gênero”. Traduzido por Pê Moreira. In: HOLLANDA, Heloísa Buarque (Org.). Pensamento feminista hoje: perspectivas decoloniais Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2020.
  • MATOS, Naylane Araújo. Estudos Feministas da Tradução no Brasil: Percursos históricos, teóricos e metodológicos na produção científica nacional (1990-2020) 2022. Doutorado - Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, SC, Brasil.
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  • SALUZZO, Diodata. “Il castello di Binasco”. Raccoglitore Milano, 1819.
  • SEGATO, Rita. Crítica da colonialidade em oito ensaios: e uma antropologia por demanda Traduzido por Danú Gontijo e Danielli Jatobá. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2021.
  • 1
    Pseudônimo de Anna Radius Zuccari.
  • Como citar esse artigo de acordo com as normas da revista:
    MATOS, Naylane Araújo; GUERINI, Andréia. “Estudos Feministas da Tradução no Brasil: ampliando perspectivas e abordagens”. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 33, n. 3, e106926, 2025.
  • Financiamento:
    Não se aplica.
  • Consentimento de uso de imagem:
    Não se aplica
  • Aprovação de comitê de ética em pesquisa:
    Não se aplica

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Ago 2025
  • Data do Fascículo
    2025

Histórico

  • Recebido
    10 Maio 2025
  • Aceito
    12 Maio 2025
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