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Um outro mundo (também feminista...) é possível: construindo espaços transnacionais e alternativas globais a partir dos movimentos

DOSSIÊ

Um outro mundo (também feminista...) é possível: construindo espaços transnacionais e alternativas globais a partir dos movimentos

Sonia E. Alvarez1 1 Este Dossiê foi co-organizado por Nalu Faria e Miriam Nobre, ambas da SOF Sempreviva Organização Feminista, e pela autora desta Apresentação.

University of California, Santa Cruz

Os anos 1990 são apontados como a década em que os movimentos feministas no Brasil, assim como na América Latina e em outras regiões do mundo, se 'globalizaram' ou 'transnacionalizaram'.2 2 Agradecemos a Júlia Di Giovanni e Fernanda Estima, da equipe da SOF, o apoio à realização deste Dossiê. Miriam Nobre e Julia Di Giovanni, da SOF, traduziram os artigos de Diane Matte e Nadia De Mond, respectivamente. Ficamos também agradecidas a Sônia Maluf, editora encarregada de dossiês da REF, e a Claudia de Lima Costa, editora adjunta, pelo convite inicial para organizarmos este Dossiê e pelo apoio que generosamente nos deram no decorrer da sua elaboração. Sonia Alvarez agredece a Ana Roberta Alcântara a assistência com a sua pesquisa sobre o Fórum Social Mundial. As análises acadêmicas tipicamente atribuem esse processo de globalização dos feminismos à crescente participação de setores expressivos dos movimentos feministas nas esferas hegemônicas da política internacional e, em particular, nas conferências e cúpulas mundias promovidas pelo sistema das Nações Unidas no decorrer desse período.3 3 Para uma amostra dessa literatura, ver Martha CHEN, 1996; Lois WEST, 1999; Robert O'BRIEN, Anne Marie GOETZ, Jan Aart SCHOLTE e Marc WILLIAMS, 2000; Margaret KECK e Kathryn SIKKINK, 1998; e Mary MEYER e Elisabeth PRUGL, 1999. Para análises que examinam a inter-relação entre os movimentos locais e a militância transnacional, consultar Nancy NAPLES e Manisha DESAI, 2002; Elisabeth FRIEDMAN, 1999; Sonia ALVAREZ, 2000b; e Amrita BASU, 2000.

A incursão de muitas feministas nesses espaços oficiais da política global sem dúvida teve um impacto marcante, e controverso, nos feminismos latino-americanos.4 4 Para análises do engajamento de alguns setores feministas da região latino-americana nos processos das conferências da ONU, ver Ann Marie CLARK, Elisabeth FRIEDMAN e Kathryn HOSCHSTETLER, 1998; FRIEDMAN, 2003; ALVAREZ, 2000a; OLEA MAULEÓN, 1998; e Virginia VARGAS, 1998. Neste Dossiê reunimos um amplo leque de reflexões feministas que afirmam, porém, que 'outros transnacionalismos', outros processos e modalidades de ativismo feminista que transcendem as fronteiras dos Estados-nação, também surgiram dos próprios movimentos. Os artigos aqui apresentados atestam que os feminismos também vêm construindo espaços públicos alternativos e contra-hegemônicos, em nível regional e global, nos quais novos sentidos, identidades, práticas transgressivas, rebeldias e resistências são forjados e retroalimentados.

Os ensaios reunidos neste Dossiê, na sua maioria, analisam a participação e a intervenção das feministas, especialmente as latino-americanas, no Fórum Social Mundial (FSM) - um dos mais recentes, mais inovadores e mais promissores desses espaços transnacionais contra-hegemônicos, o qual representa a primeira expressão mais concreta do chamado 'movimento mundial antiglobalização.'5 5 Sobre o movimento antiglobalização, ver José SEOANE e Emilio TADDEI, 2001; Janet THOMAS, 2000; Alexander COCKBURN, Jeffrey ST. CLAIR e Allan SEKULA, 2000; Benjamin SHEPARD e Ronald HAYDUK, 2002; Kevin DANAHER e Roger BURBACH, 2001. Porém, para contextualizar essa mais nova forma de atuação feminista no espaço movimentista global, o Dossiê abre-se com uma reflexão sobre um processo transnacional anterior ao FSM e que tem sido de fundamental importância para a construção dos movimentos feministas no Brasil e em toda a América Latina: os encontros feministas regionais das décadas de 1980 e 1990.

Desde o começo dos 1980, como documenta o primeiro ensaio deste Dossiê, as feministas latino-americanas vêm tramando redes de militância e de advocacy, tecendo laços político-pessoais e construindo identidades e solidariedades regionais através dos Encontros Feministas da América-Latina e do Caribe. Esses eventos têm ocorrido a cada dois ou três anos desde 1981, época em que se realizou o Primeiro Encontro em Bogotá, Colombia. Em novembro de 2005, o Décimo Encontro terá lugar no Brasil.

Os Encontros latino-americanos, da mesma forma que os nacionais realizados periodicamente em vários países da região, são lugares de diálogo, negociação, coalizão, conflito e contestação entre mulheres que se proclamam feministas ou que de alguma maneira já se identificam com o feminismo ou buscam se aproximar dele. Isto é, esses Encontros são espaços críticos onde as militantes latino-americanas trocam idéias, discutem estratégias e imaginam utopias entre si, junto com 'outras' feministas que mesmo pertencendo a diferentes países, classes sociais, grupos étnico-raciais, faixas etárias, opções sexuais, etc., com trajetóras político-pessoais das mais diversas e engajadas em práticas políticas das mais distintas - compartilham visões do mundo e declaram compromissos políticos com uma ampla diversidade de lutas feministas e pela justiça social.

Mais do que meros 'eventos' do movimento, os Encontros fomentam processos de solidariedade e também de disputa entre as feministas da região. Formam uma espécie de palcos supranacionais onde questões-chave para os feminismos latino-americanos são encenadas, debatidas e (re)formuladas. Entre os eixos de discussão mais contenciosos nos Encontros estão os significados e as práticas da autonomia e da 'instituticionalização' dos movimentos, a diversidade e as desigualdades entre as mulheres e entre as feministas, e a relação dos diversos feminismos com outros movimentos, especialmente com o movimento amplo de mulheres, e com os partidos políticos, os Estados e as esferas das políticas internacionais. Já desde o Sexto Encontro, realizado em Costa del Sol, El Salvador, em 1993, o envolvimento de muitas ONGs e redes regionais com as instituições dominantes da política nacional e internacional, especialmente com os processos da ONU, tem sido alvo dos mais intensos debates nos Encontros regionais.

Mas já na segunda metade dos 1990, as várias conferências '+5' que deram seguimento às cúpulas mundiais do Rio, Vienna, Cairo, Copenhagen e Beijing deixaram claro - inclusive para muitas/os dos que tinham se dedicado mais intensamente a intervir nesses processos - que o empenho feminista em influenciar as esferas internacionais oficiais tinha rendido parcos resultados concretos. Mesmo que se tenha conseguido incorporar alguns dos elementos (mais digeríveis) do ideário feminista nas plataformas e acordos internacionais dos 1990, a intensificação da globalização neoliberal, o enxugamento cada vez mais dramático dos Estados nacionais, os processos de ajuste econômico e a concomitante erosão da cidadanía e das políticas sociais, com efeito, bloquearam qualquer possibilidade de mudança mais signficativa nos direitos e condições de vida das mulheres.

A evidente falência do modelo neoliberal gerou uma inovadora e efervescente resistência ao seu 'pensamento único' na América Latina nos últimos tempos - uma resistência que primeiro aparece no espaço público com o levantamento zapatista de 1994, e que se ramifica, diversifica e amplia por toda a região durante a última década do século 20 e os primeiros anos do século 21 - das mobilizações massivas do MST, à articulação dos movimentos indígenas e afro-descendentes em nível continental; das asambleas barriales e do movimento piquetero na Argentina aos enfrentamentos recentes entre os cocaleros e as forças da repressão na Bolivia. E ao mesmo tempo em que se encerrava o ciclo de conferências da ONU e crescia um 'desencanto' entre muitas e muitos dos que tinham participado nesses processos oficiais, surge uma nova força social mundial que se articula justamente em oposição radical ao sistema global neoliberal imperante: o chamado movimento antiglobalização ou, como preferem alguns, o movimento global pela solidariedade e pela justiça social. Desde o início, muitas militantes feministas fizeram parte desses amplos, porém difusos, novos movimentos regionais e globais que ganharam uma expressão mais consolidada através do FSM.

A proposta de um Fórum Social Mundial começou a ser gestada em 2000.6 6 Os três parágrafos que se seguem sobre as origens e a organização do FSM foram redigidos por Miriam Nobre. Para análises das origens, do desenvolvimento e das dinâmicas do Fórum Social Mundial, ver José CORRÊA LEITE, 2003; William FISCHER e Thomas PONNIAH, 2003; Isabel LOUREIRO, José CORRÊA LEITE e Maria Elisa CEVASCO, 2002; Gustavo CODAS, 2003; e Gianni MINÀ, 2003. Consultar também o site do Forum: http://www.forumsocialmundial.org.br. Há alguns anos já acontecia na Europa um Fórum anti-Davos como um contraponto ao pensamento neoliberal do Fórum Econômico Mundial, realizado anualmente em Davos, na Suíça. A proposta então foi organizar um fórum de dimensões mundiais e em um país do sul. Um grupo de trabalho formado por oito organizações brasileiras7 7 O grupo era formado pelas seguintes organizações: ABONG, ATTAC-SP, CBJP, CIVES, CUT, IBASE, MST e Rede Social de Justiça e Direitos Humanos. assumiu sua construção e apresentou a proposta em uma massiva assembléia dos movimentos de resistência à globalização neoliberal, os quais se reuniram em junho de 2000 em Genebra para protestar contra a Cúpula Social da ONU Copenhagen + 5.

Em janeiro de 2001 aconteceu o I Fórum Social Mundial em Porto Alegre, com a participação de mais de 20 mil pessoas de 117 países. No II FSM, realizado em janeiro de 2002, participaram mais de 50 mil pessoas de 123 países. No terceiro, em janeiro de 2003, participaram cerca de 100 mil pessoas de 130 países. A partir do primeiro FSM foi formado um Conselho Internacional que hoje reúne 112 organizações de caráter regional ou mundial, entre elas nove redes feministas.8 8 São elas: Articulación Feminista Marco Sur mujeresdelsur@mujersur.org.uy, www.mujeresdelsur.org.uy; International Gender and Trade Network secretariat@coc.org , www.genderandtrade.net; Red Latinoamericana Mulheres Transformando a Economia mujerdialogo@prodigy.net.mx, http://movimientos.org/remte; Rede Dawn de Mulheres dawn@is.com.fj, www.dawn.org.fj; Rede Latino Americana e Caribenha de Mulheres Negras criola@alternex.com.br, www.criola.ong.org; Rede Mulher e Habitat gem@agora.com.ar, http://www.redmujer.org.ar; Rede Mundial de Mulheres pelos Direitos Reprodutivos office@wgnrr.nl, www.wgnrr.org; REPEM Rede de Educação Popular entre Mulheres repem@repem.org.uy, www.repem.org.uy; World March of Women www.ffq.qc.ca/marche2000/en/index.html, dmatte@ffq.qc.ca. Esse Conselho Internacional foi aos poucos assumindo a coordenação do Fórum e de seu processo de mundialização, tendo organizado sete edições continentais e temáticas. A presença e a organização da juventude cresceu também com acampamentos cada vez maiores, representando o exercício de novas práticas de autogestão, economia solidária e redução do impacto ambiental.

O FSM combina atividades concertadas com o Conselho Internacional: conferências e testemunhos, em que intelectuais e ativistas se dirigem a grandes públicos; mesas de diálogo e controvérsias; e painéis organizados por redes para aprofundar o debate sobre análise e alternativas em torno de cinco eixos temáticos. Os cinco eixos do FSM 2003 foram: 1) Desenvolvimento democrático e sustentável; 2) Princípios e valores, direitos humanos, diversidade e igualdade; 3) Mídia, cultura e alternativas à mercantilização e homogeneização; 4) Poder político, sociedade civil e democracia; e 5) Ordem mundial democrática, luta contra a militarização e promoção da paz. O segundo e o quarto eixos do III FSM foram coordenados por duas redes feministas, a Marcha Mundial de Mulheres e a Articulação Feminista Marcosur, respectivamente. Tais eixos temáticos servem de parâmetro para a inscrição de oficinas e seminários por parte de centenas de entidades que participam do FSM. Em 2003 aconteceram 1.286 atividades autogestionadas. Em cada edição crescem também as manifestações públicas e as atividades culturais, colocando em outras linguagens o debate que se realiza no Fórum.

As mais diversas expressões do feminismo latino-americano e global, juntamente com uma extensa e heterogênea gama de movimentos, ONGs e redes de todos os tipos imagináveis, confluiram em grandes números e com enormes, porém nem sempre convergentes, expectativas para o FSM.9 9 Outras análises da participação das feministas no FSM incluem Irene LEÓN, 2002; Nalu FARIA, 2003; Lilian CELIBERTI, 2001; e Marta ROSENBERG, 2002. Evidentemente, em um espaço-processo tão amplo e diverso como tem sido o Fórum, existem importantes diferenças e divergências políticas e estratégicas entre as/os que dele participam. Mesmo unidas/os na sua oposição aos efeitos mais nefastos da globalização neoliberal, as/os participantes do FSM avançam nas mais variadas, e às vezes antagônicas, visões estratégicas para combatê-los que vão desde as/os que buscam 'democratizar' o Banco Mundial, o FMI, e a OMC às/aos que querem 'aniquilá-los'; desde algumas ONGs e redes que 'negociam' com as arenas nacionais e internacionais de políticas públicas aos grupos e movimentos que rejeitam e 'denunciam' esses espaços oficiais e reivindicam mudanças estruturais radicais; desde as/os que promovem 'outras globalizações' mais solidárias e horizontais entre os povos do planeta até as/os que procuram reafirmar a soberania nacional ou dos seus povos e etnias componentes; desde quem promove a mobilização e ação direta contra o capitalismo global a quem se empenha em estratégias de lobby e advocacy; desde posicionamentos sectários que advogam um outro mundo até aqueles que defendem que muitos outros mundos são possíveis ou querem fomentar um outro mundo onde, como dizem os zapatistas, caibam todos os mundos. Todos esses posicionamentos e muitos outros mais - a maioria dos quais oscilam entre essas posições mais polarizadas - se encontram, dialogam, debatem, divergem e, às vezes, articulam táticas e estratégias de comum acordo.

Esses consensos e dissensos também têm caracterizado o engajamento feminista no processo do FSM. As colaboradoras deste Dossiê - que incluem militantes feministas da Argentina, Uruguai, Equador, Peru, Itália, Canadá e Brasil - são unânimes ao afirmar que o FSM é um espaço de atuação imprescindível para os feminismos. A uruguaia Lilian Celiberti e a peruana Virginia Vargas, ambas da Articulação Feminista Marcosur, entendem que o FSM "se ha convertido en un espacio de confluencia de las luchas y propuestas de movimientos, organizaciones, redes, campañas, múltiples actores y actoras que han asumido ese espacio como propio, avanzando nuevas perspectivas para un pensamiento utópico, algo casi perdido en el horizonte social de las ultimas décadas". "Parece-me um caldeirão", proclama a brasileira Maria Ednalva Bezerra Lima, da CUT, "onde cabem todas as porções necessárias para a construção de um mundo melhor". Portanto, todas as autoras concordam que, como sugere a canadense Diane Matte, coordenadora da Marcha Mundial de Mulheres, a participação feminista no processo do FSM é fundamental para estreitar a "relação entre o movimento feminista e o movimento por uma outra globalização, aí inscrevendo nossas prioridades e fortalecendo as possibilidades de uma verdadeira transformação social". "Um otro mundo, sem o feminismo", Matte insiste, "é impossível". "Queremos que la agenda feminista (la subversión simbólico-cultural, los derechos sexuales, la equidad, etc.)", afirma a uruguaia Lucy Garrido, da revista Cotidiano Mujer e da Articulação Feminista Marcosur, "forme realmente parte de la agenda por la justicia económica y la profundización de la democracia".

Para a equatoriana Irene Léon, da Agência Latinoamericana de Informação (ALAI), o FSM representa uma oportunidade sem par para construir e consolidar alianças não só entre feministas, mas principalmente entre os feminismos e as forças do movimento mundial por outra globalização - "la participación del movimiento en la configuración de las alianzas, en la creación de los discursos críticos y de las propuestas nuevas, es un esfuerzo necesario para que la visualización de un mundo diferente sea incluyente y tenga enfoque de género". Ao mesmo tempo, Nadia De Mond, da Marcha na Itália, aponta que "a expansão do processo do FSM em nível continental e regional permitiu a criação de espaços de encontro e de articulação internacional dificilmente realizáveis para o movimento de mulheres em outras circunstâncias", observando que o processo do Fórum tem fomentado o crescimento do feminismo - já que muitas jovens e outras mulheres que "se tornaram ativistas no caminho de Seattle e Porto Alegre, em todo tipo de movimento misto, viram pela primeira vez com interesse a presença de um componente feminista e se interessaram por uma leitura de gênero a respeito do próprio âmbito de engajamento". Para a brasileira Julia Ruiz Di Giovanni, uma dessas jovens feministas, as mulheres jovens que participam dos processos do Fórum "são portadoras de um feminismo renovado porque precisam responder continuamente a desafios históricos que se colocam hoje não apenas para o feminismo, mas também para o conjunto dos projetos emancipatórios dos quais o 'movimento de movimentos' pretende ser canal de convergência".

Mas além desses pontos de convergência, existem diferenças de enfoque, de ênfase e de estratégias entre as feministas que confluem para o FSM. Primeiro, da mesma forma que outras/os participantes do processo do Fórum, as feministas também abarcam um amplo espectro de posicionamentos sobre como melhor enfrentar e combater a globalização neoliberal em geral e o seu devastador impacto sobre a vida das mulheres em particular. E, segundo, as feministas diferem também sobre quais estratégias seriam as mais indicadas para promover alianças com as outras forças sociais que confluem no FSM e para assegurar que as questões centrais dos feminismos façam parte integral dos 'outros mundos' almejados pelos novos movimentos globais.

Como aponta o ensaio das argentinas Silvia Chejter e Claudia Laudano, por exemplo, desde o II FSM houve diferenças entre as que insistem na necessidade de um espaço própio, com programação própia, para as feministas dentro do FSM, "un espacio de encuentro, debate, creatividad, expresiones artísticas, trabajo corporal y circulación de información de temas vinculados, entre otros, con la salud, el desarrollo, la sexualidad, el medioambiente, la teología y la violencia, desde la perspectiva de las mujeres," e outras feministas que apostam em conseguir uma maior inserção política em todos os espaços do Fórum. Argumentando que um "Foro paralelo de mujeres, siguiendo igual formato de los realizados por la sociedad civil en la ONU", não é a melhor estratégia feminista para o FSM, a equatoriana Magdalena León T., da Red Latinoamericana de Mujeres Transformando la Economía, propõe que "Esto no quiere decir que las mujeres no precisemos de espacios propios, ni que en el Foro se viva ya un mundo ideal de igualdad, sino que se trata de un proceso cualitativamente distinto [ ] es un esfuerzo colectivo y solidario donde no se ejerce ni disputa poder - en su acepción institucional y formal -, y donde le cabe al feminismo un papel central en el impulso de sus utopías y propuestas, que son de carácter radical y global". Mas outras, como a brasileira Maria Betânia Ávila, do SOS-Corpo e da Articulação de Mulheres Brasileiras, afirmam que as relações desiguais de poder "ainda constituem esse espaço político em movimento" e insistem que "o feminismo como pensamento e prática política é parte daquele lugar e daquela construção [que é o processo do Fórum], e parte dessa construção é a superação" das desiguladades que se manifestam no interior do FSM e nos movimentos que o compõem. Para ela e para várias outras das colaboradoras deste Dossiê, o FSM se apresenta como "um espaço onde o feminismo encontra um locus fecundo para tecer suas alianças, idéias com outros sujeitos, mas também para agir no sentido de marcar sua contribuição para uma forma democratizada da política". Nesse sentido, como sugere Irene León, a participação feminista no FSM enfrenta um "doble reto de, por un lado, romper con las visiones y prácticas andro y etnocentristas, para transitar hacia éticas inclusivas en todos los sentidos, y por otro, llamar a los movimientos dichos específicos a ampliar su campo de acción y propuesta, para incluir el conjunto de problemáticas sociales en sus enfoques".

Esperamos que este Dossiê ajude a estimular o debate sobre como enfrentarmos esse duplo desafío e contribua para dar maior visibilidade à atuação feminista em esferas transnacionais alternativas e às contribuições e intervenções das diversas expressões do feminismo que participaram dos três primeiros Fóruns - tanto nos eventos propriamente ditos, como nos processos globais e regionais que foram desencadeados e articulados por meio do FSM. Pedimos para as autoras abordarem as seguintes perguntas, embasadas na perspectiva e 'posicionalidade' específica de cada uma: O que significa o FSM, como evento e como processo, para os feminismos, especialmente para os feminismos na região latino-americana? Quais têm sido e/ou deveriam ser os significados e/ou contribuições dos diversos feminismos para o Fórum? A participação dos feminismos no FSM constitui uma forma nova ou diferente de atuação, inserção, intervenção e articulação na esfera transnacional? Em particular, como se compara essa atuação com a articulação regional feminista nos Encontros latino-americanos e com a participação feminista nos vários processos preparatórios para as conferências das Nações Unidas e/ou outros processos internacionais oficiais?

Procuramos juntar reflexões que dessem conta do mais amplo espectro possível das múltiplas redes feministas, tanto latino-americanas como globais, que participam do processo do FSM. As autoras, todas militantes feministas, desenvolvem suas práticas feministas em diversos países e articulações regionais e globais e/ou falam de diferentes lugares do feminismo: a partir dos feminismos das novas gerações, dos sindicatos, das ONGs, das redes de militância e de advocacy, e assim por diante. Buscamos colaborações de feministas vinculadas a várias outras redes que também têm atuação destacada no espaço do Fóum, entre elas a REPEM-DAWN, a CLADEM, a coordenadora de mulheres da Via Campesina e a Articulação de ONGs de Mulheres Negras. Porém, o prazo editorial bastante curto que tivemos para organizar o Dossiê impossibilitou a contribuição de algumas das nossas convidadas. Sem pretensão de ser representativo da vasta gama de posicionamentos feministas perante o FSM, então, este Dossiê procura contribuir para um debate e um processo ainda em construção. O debate sobre os feminismos e o Fórum continuará em Mumbai, India (quando se realizará o IV FSM, entre 16 e 21 de janeiro de 2004),10 10 Para mais informações sobre o IV FSM em Mumbai, visite o site oficial: http://www.wsfindia.org. bem como em todos os espaços onde, quotidianamente, se articulam as mais diversas formas de resistência à globalização neoliberal.

Referências bibliográficas

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  • 1
    Este Dossiê foi co-organizado por Nalu Faria e Miriam Nobre, ambas da SOF Sempreviva Organização Feminista, e pela autora desta Apresentação.
  • 2
    Agradecemos a Júlia Di Giovanni e Fernanda Estima, da equipe da SOF, o apoio à realização deste Dossiê. Miriam Nobre e Julia Di Giovanni, da SOF, traduziram os artigos de Diane Matte e Nadia De Mond, respectivamente. Ficamos também agradecidas a Sônia Maluf, editora encarregada de dossiês da REF, e a Claudia de Lima Costa, editora adjunta, pelo convite inicial para organizarmos este Dossiê e pelo apoio que generosamente nos deram no decorrer da sua elaboração. Sonia Alvarez agredece a Ana Roberta Alcântara a assistência com a sua pesquisa sobre o Fórum Social Mundial.
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    Para uma amostra dessa literatura, ver Martha CHEN, 1996; Lois WEST, 1999; Robert O'BRIEN, Anne Marie GOETZ, Jan Aart SCHOLTE e Marc WILLIAMS, 2000; Margaret KECK e Kathryn SIKKINK, 1998; e Mary MEYER e Elisabeth PRUGL, 1999. Para análises que examinam a inter-relação entre os movimentos locais e a militância transnacional, consultar Nancy NAPLES e Manisha DESAI, 2002; Elisabeth FRIEDMAN, 1999; Sonia ALVAREZ, 2000b; e Amrita BASU, 2000.
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    Para análises do engajamento de alguns setores feministas da região latino-americana nos processos das conferências da ONU, ver Ann Marie CLARK, Elisabeth FRIEDMAN e Kathryn HOSCHSTETLER, 1998; FRIEDMAN, 2003; ALVAREZ, 2000a; OLEA MAULEÓN, 1998; e Virginia VARGAS, 1998.
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    Sobre o movimento antiglobalização, ver José SEOANE e Emilio TADDEI, 2001; Janet THOMAS, 2000; Alexander COCKBURN, Jeffrey ST. CLAIR e Allan SEKULA, 2000; Benjamin SHEPARD e Ronald HAYDUK, 2002; Kevin DANAHER e Roger BURBACH, 2001.
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    Os três parágrafos que se seguem sobre as origens e a organização do FSM foram redigidos por Miriam Nobre. Para análises das origens, do desenvolvimento e das dinâmicas do Fórum Social Mundial, ver José CORRÊA LEITE, 2003; William FISCHER e Thomas PONNIAH, 2003; Isabel LOUREIRO, José CORRÊA LEITE e Maria Elisa CEVASCO, 2002; Gustavo CODAS, 2003; e Gianni MINÀ, 2003. Consultar também o site do Forum:
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    O grupo era formado pelas seguintes organizações: ABONG, ATTAC-SP, CBJP, CIVES, CUT, IBASE, MST e Rede Social de Justiça e Direitos Humanos.
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    São elas: Articulación Feminista Marco Sur
    www.mujeresdelsur.org.uy; International Gender and Trade Network
    www.genderandtrade.net; Red Latinoamericana Mulheres Transformando a Economia
    http://movimientos.org/remte; Rede Dawn de Mulheres
    www.dawn.org.fj; Rede Latino Americana e Caribenha de Mulheres Negras
    www.criola.ong.org; Rede Mulher e Habitat
    http://www.redmujer.org.ar; Rede Mundial de Mulheres pelos Direitos Reprodutivos
    www.wgnrr.org; REPEM Rede de Educação Popular entre Mulheres
    www.repem.org.uy; World March of Women
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    Outras análises da participação das feministas no FSM incluem Irene LEÓN, 2002; Nalu FARIA, 2003; Lilian CELIBERTI, 2001; e Marta ROSENBERG, 2002.
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    Para mais informações sobre o IV FSM em Mumbai, visite o site oficial:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      30 Mar 2004
    • Data do Fascículo
      Dez 2003
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