Resumo:
Neste artigo, analisamos a construção de representações sobre lesbianas e lesbiandade no discurso médico-legal brasileiro dos anos de 1930, com o intuito de identificar quais sentidos foram empregados na produção dessas sujeitas sexuais. Para isso, selecionamos o relato do relacionamento de duas lesbianas de Salvador, na Bahia, presente no livro A Inversão dos Sexos (1935), do médico Estácio de Lima, tendo em vista o poder/saber disciplinar e burguês que embasava miradas patológicas sobre os corpos não cisheterossexuais e a intersecção de marcadores de desigualdade no período. Como técnica de pesquisa, empregamos alguns operadores da análise de discurso (AD) de vertente francesa.
Palavras-chave:
lesbiandade; gênero; mulher; discurso médico; interseccionalidade
Abstract:
This work seeks to analyze the construction of representations about lesbians and lesbianity in the brazilian legal medicine discourse of the 1930s, as well as identify which meanings were used in this production of sexual subjects. To do this, we selected the account of the relationship between two lesbians from Salvador, Bahia, present in the book A Inversão dos Sexos (1935), by the doctor Estácio de Lima, taking into account the disciplinary and bourgeois power/knowledge that supported pathological views on bodies non-cisheterosexuals and the intersection of inequality markers of the period. As a research technique, we employed some french discourse analysis (DA) operators.
Keywords:
Lesbianity; Gender; Woman; Medical Discourse; Intersectionality
Resumen:
Este trabajo busca analizar la construcción de representaciones sobre lesbianas y lesbianidad en el discurso médico-legal brasileño de la década de 1930, así como identificar qué significados fueron utilizados en esa producción de sujetos sexuales. Para eso, seleccionamos el relato de la relación entre dos lesbianas de Salvador, Bahia, presente en el libro A Inversão dos Sexos (1935), del médico Estácio de Lima, teniendo en cuenta el poder/saber disciplinario y burgués que sustentaba visiones patológicas sobre los cuerpos no cisheterosexuales y la intersección de marcadores de desigualdad del período. Como técnica de investigación, empleamos algunos operadores de análisis del discurso (DA) francés.
Palabras clave:
lesbianidad; género; mujer; discurso medico; interseccionalidad
Introdução
Ao se pensar sobre as homossexualidades nos dias atuais, em especial nos modelos veiculados pelos meios de comunicação, comumente vem à tona a imagem do gay macho, viril, branco e de classe média, o “gay padrão”, no entendimento de Leonardo Martinelli (2023), um sujeito sexual “desviante”, ironicamente tido como bem-comportado, saudável, atraente e aceitável para a cisheteronorma.1 Esse modelo, embora muito recente, se tornou mais visível e popular em comparação às representações de outras dissidências sexuais e de gênero, ofuscando a historicidade dessas e produzindo hierarquias valorativas.
Por sua vez, desde o final do século XIX, os discursos de autoridade no Brasil se dedicaram a estudar, de um ponto de vista patológico e criminoso, mais a homossexualidade masculina do que a feminina, sob a justificativa de que as relações afetivas e sexuais entre homens seriam mais prejudiciais e perigosas ao bem-estar da nação do que as transcorridas entre mulheres. Embora houvesse uma vigilância constante sobre a sexualidade das mulheres, especialmente em idade escolar, os encontros e namoros entre lesbianas2 não foram objetos de maiores preocupações enquanto patologicamente perigosos à sociedade. Também se acreditou por certo período que as palavras “homossexual” e “gay” diziam respeito a todas as pessoas LGBTQIA+,3 aglutinando suas individualidades, de modo que as existências de lesbianas e de pessoas trans, por exemplo, foram deixadas de lado, tratadas como menos importantes ou indignas de nota. É preciso, assim, olhar com mais acuidade para os vestígios históricos acerca desses sujeitos, desafiando criticamente a invisibilidade da “diferença dentro da diferença” e a violenta interpretação que lhes foi atribuída.
Para Michel Foucault, o sujeito homossexual4 emerge na segunda metade do século XIX como uma espécie dotada de uma “história, uma infância, um caráter, uma forma de vida, [...] uma fisiologia misteriosa” (Foucault, 2017, p. 48), ao contrário do antigo pecado e crime de sodomia, que designava mais uma prática que um personagem em si. Essa essência sexual foi produzida no sujeito circunscrito à díade normal/anormal, numa teia de enunciados de verdade que investiu politicamente sobre o sexo e que o regulou a partir do que Foucault denominou de dispositivo da sexualidade.5 Antes de ser reprimida, coibida, a sexualidade no Ocidente foi fabricada pelo poder (que também organizava interdições e silêncios), numa verdadeira explosão discursiva “na demografia, na biologia, na medicina, na psiquiatria, na psicologia, na moral, na crítica política” (Foucault, 2017, p. 37).
Já os termos “lésbica”, “lesbianismo” e “lesbianidade” têm origem na palavra em latim lesbius, que se referia à mulher moradora da Ilha de Lesbos, na Grécia Antiga. Por volta do século VI a.C., vivia nessa ilha a poetisa Safo (daí a palavra safismo), pessoa de muito talento que se inspirava na paixão e no desejo pelas mulheres para fazer sua arte. Safo mantinha uma escola para moças nos arredores de Mitilene, local onde aprendiam a arte da poesia e da música. Foi altamente considerada por seus contemporâneos, sendo erguidas estátuas e cunhadas moedas em sua homenagem. Sua obra, contudo, teria sido posteriormente “destruída, queimada, esquecida pela História oficial, apagada dos livros escolares, prova de que o amor entre as mulheres deve ser negado pelo silêncio” (Tânia Navarro Swain, 2004, p. 30).
No decorrer do século XIX e início do século XX, essas palavras foram retomadas e passaram a significar tanto o amor como o sexo entre mulheres pelo viés patológico e de anormalidade. Tem-se que, em 1842, a palavra “lesbianismo” aparece na França; em 1870, na Inglaterra; e em 1894, no Brasil, com o jurista José Viveiros de Castro, que a utiliza no sentido de “inversão sexual”6 (Swain, 2004). Normalmente, nos meios médicos brasileiros, os termos “inversão sexual feminina”, “homossexualismo feminino”, “safismo”, “intersexualismo feminino”, “missexualismo feminino” e “lesbianismo” eram tratados como sinônimos para nomear “a atração sexual que uma mulher sente por outra” (Estácio de Lima, 1935, p. 28).
Mas, foi nos anos de 1930, segundo Carlos Alberto Messeder Pereira (1994), que uma bibliografia nacional mais rica sobre as homossexualidades (masculina e feminina) começou a aparecer. O contexto favorecia esse movimento, tendo em vista a consolidação institucional de um paradigma “moderno” e autoritário que orientava a atuação de cientistas advindos das principais faculdades do país e a valorização crescente da figura do médico. Assim, as produções intelectuais acerca desse tema não eram tidas como menores, pois, além de serem publicadas por editoras importantes, eram escritas por autores que já gozavam de certo reconhecimento profissional, inclusive internacionalmente, e se colocavam como detentores da objetividade e “solucionadores” dos “graves problemas” do país.
Conscientes da invisibilidade anteriormente referida, e entendendo que os discursos médicos incidem na construção e difusão de representações que moldam uma dada realidade, este texto busca responder às seguintes questões: como o discurso médico construiu representações sobre a lesbiana e a lesbiandade no Brasil dos anos 1930? Quais sentidos foram usados nessa produção? Objetivamos, assim, analisar a construção de sentidos sobre a lesbiandade, ou seja, o modo como foi colocada no discurso e fabricada uma verdade sobre ela. Argumentamos que, num tecido social tão desigual como o daquele período, a lesbiana foi constituída por práticas discursivas como um sujeito “outrificado”, anormal, abjeto, como uma pessoa fundamentalmente doente, e que os marcadores interseccionais de desigualdade forjaram diferenças relevantes entre as lesbianas.
Para isso, selecionamos o relato sobre um casal de lesbianas de Salvador presente no livro A Inversão dos Sexos (Lima, 1935),7 publicação dividida em três partes, dedicadas à discussão da “inversão sexual feminina”, da “inversão sexual masculina” e da “heterossexualidade”, respectivamente. O autor, o médico Estácio Luiz Valente de Lima (1897-1984), natural de Marechal Deodoro/AL, foi catedrático de Medicina Legal da Faculdade de Medicina da Bahia desde 1926, profissional com especializações na França e na Alemanha, membro do Conselho Penitenciário baiano e um dos fundadores, em 1929, do Laboratório de Criminalística do Instituto Nina Rodrigues. Antes da publicação desse livro, em 1934, Lima promoveu um congresso de sexologia em Salvador, junto à associação dos acadêmicos de sua faculdade, e publicou um livro exclusivo sobre a “homossexualidade feminina” (Marcos Antônio Vasconcelos Filho, 2012). Deduzimos que o livro escolhido para esta análise teve nesta publicação anterior o seu embasamento, embora essa referência não esteja presente em suas páginas. A obra em questão foi editada e impressa pela editora Guanabara Waissman Koogan e faz parte da coleção “Biblioteca Brasileira de Medicina Legal”; ademais, ao que parece, houve apenas uma edição do livro e não há informações sobre o número da tiragem.
Guiamos a análise da superfície discursiva da nossa fonte a partir das contribuições analíticas foucaultianas, das epistemologias feministas (lesbofeminismo e feminismo negro) e da teoria queer. Três conceitos são aqui fundamentais: gênero, interseccionalidade e representação social. Conjuntamente à Judith Butler, compreendemos que o gênero é performativo, isto é, feito por atos discursivos constantemente repetidos dentro de um quadro limitado de possibilidades que produzem como efeito corpos coerentes, desde que sigam os marcos regulatórios da heterossexualidade, e que mascaram essa produção por meio do artifício da pré-discursividade, da substância e da identidade natural (Butler, 2017). A interseccionalidade, como uma ferramenta feminista negra, diz respeito às “consequências estruturais e dinâmicas de interação entre dois ou mais eixos da subordinação” (Kimberlé Crenshaw, 2002, p. 177), normalmente gênero, raça e classe, que criam desigualdades cruzadas em determinados sujeitos. Por fim, pensamos a representação social como um fenômeno compartilhado que circula nas relações, “um modo particular de compreender e de se comunicar [...] que cria tanto a realidade como o senso comum” (Serge Moscovici, 2021, p. 49).
Além disso, empregamos alguns aparatos da análise de discurso (AD) de vertente francesa, técnica que não procura atravessar um texto para encontrar um conteúdo do outro lado, como uma verdade que estava oculta, ou como forma de ter acesso aos pensamentos das pessoas, mas que visa compreender como os objetos simbólicos significam, como os textos produzem sentidos, como atuam os gestos de interpretação presentes nos textos. Nessa perspectiva, os discursos são entendidos em suas condições de produção, na situação em que emerge um enunciado. As palavras significam pela história e pela língua. Assim, o dito está sempre constituído pelos já ditos; por isso, a memória é pensada em relação ao discurso, ou seja, como interdiscurso: aquilo que é produzido antes, em outro lugar, mas que está presente numa situação discursiva. Igualmente, o sujeito discursivo é atravessado pela história e pela linguagem; ele é uma posição que o indivíduo ocupa para ser sujeito do que diz e para que sua fala produza efeitos; é essa posição, ou esse “lugar de fala”, que confere autoridade e respeitabilidade (Eni Orlandi, 2020). Aqui Estácio de Lima ocupa a posição/lugar de uma autoridade científica, conferida pela medicina e por seu posto de professor catedrático, portanto, seu discurso produz efeitos de verdade sobre os corpos, os comportamentos, os sujeitos e as sexualidades.
Esforços recentes na historiografia têm sido feitos na mesma linha deste trabalho, buscando rastrear histórias das dissidências sexuais e de gênero, para além da homossexualidade masculina. A exemplo disso, Swain (2004), em seu livro O que é lesbianismo, demonstrou como o estatuto histórico pautado por modelos rígidos da “ordem natural e divina” da heterossexualidade dominada pelos homens anulou a atuação das lesbianas e das mulheres fora do arquétipo frágil e submisso. Patrícia Lessa (2023), em ChanacomChana e outras narrativas lesbianas em Pindorama, estudou minuciosamente a construção dos movimentos lesbianos brasileiros a partir do final da década de 1970, com foco nos discursos impressos de jornais, como o ChanacomChana. Elias Veras (2015), em “Carne, tinta e papel...”, analisou o processo de subjetivação que possibilitou a emergência do sujeito travesti, em Fortaleza/CE, na virada da década de 1970 para 1980, personagem construída entre o fascínio, o estigma e o público-privado. Por fim, Luiz Morando (2020), em Enverga, mas não quebra, retratou os percalços jurídicos e policiais, os relacionamentos e a religiosidade de Cintura Fina, uma travesti cearense que se tornou personalidade conhecida de Belo Horizonte (MG) na segunda metade do século XX.
Antes da análise documental, vejamos alguns apontamentos sobre as condições ideológicas e sócio-históricas que possibilitaram que o discurso médico-legal brasileiro sobre as homossexualidades emergisse na década de 1930.
Condições de emergência das lesbianas no discurso médico
Entre os séculos XVII e XVIII, na Europa Ocidental, surge, em várias instituições, um novo modo de lidar com o corpo. Treinamentos, manipulações, coações, vigilâncias minuciosas e ininterruptas são exercidas sobre o corpo individual dos sujeitos, sobre seus movimentos, atividades e forças (Foucault, 2020). Essas práticas imprimem nos corpos uma disciplina, uma “anátomo-política”, isto é, um poder que os distribui nos espaços, que organiza multidões confusas para sua análise e que é “modesto, desconfiado, que funciona a modo de uma economia calculada” (Foucault, 2020, p. 167). Emerge no âmbito dessa nova tecnologia um corpo máquina, corpo adestrado, um “organismo dotado de capacidades” (Foucault, 2005, p. 297); o que possibilita que a sexualidade se torne, no final do século XIX e início do XX, um campo de importância estratégica. Estava em ação uma individualização de capacidades corporais (instintos) que deveriam ser “bem orientadas”, para que os “desvios” fossem limados do mapa social em prol de uma sexualidade economicamente útil e politicamente conservadora, ou seja, reprodutiva e burguesa (Foucault, 2017).
Segundo Jeffrey Weeks (2016), nesse período, a sexologia surge como uma disciplina legítima, dedicada a estudar os comportamentos sexuais, e exerce grande influência no estabelecimento dos termos da discussão. Richard von Krafft-Ebing (1886), sexólogo e psiquiatra muito lido no Brasil, destacou-se como um dos pioneiros dessa área. Para ele, o sexo - conforme defende em seu Psychopathia sexualis - pode ser definido como um instinto, com origens em “forças identificáveis, internas, biológicas” (Weeks, 2016, p. 39), e como uma energia “vulcânica, engolfando o corpo, pressionando de forma urgente e incessante nossos eus conscientes” (Weeks, 2016, p. 40). Nessa perspectiva, tratava-se o sexo como o âmago da vida, como na asserção do inglês Havellock Ellis, outro influente sexólogo da época: “um homem é aquilo que o seu sexo é” (Ellis, 1946, p. 3 apud Weeks, 2016, p. 40). O normal oposto ao anormal foi erigido nesse campo como lente analítica, assim, outras práticas fora do intercurso heterossexual “ou eram aceitas como prazeres preliminares ou eram condenadas como aberrações” (Weeks, 2016, p. 63).
A poetisa Safo, já referida, ressurge nessa literatura sexológica ora referenciada a partir de seus amores homossexuais, ora como uma mulher que resistiu a uma rejeição masculina. Esse último sentido atribuído à sua figura também é propalado em romances, óperas, peças de teatro, veiculando e validando a representação social da “lésbica-porque-mal-amada”. Desse modo, práticas sáficas se tornam sinônimo de lesbiandade, e os amores de Safo designam o sentimento e o romance entre mulheres. Para encontrar a homossexualidade feminina nos tratados sexológicos, psiquiátricos, médico-legais, era preciso buscá-la entre os canibais, os zoófilos, os necrófilos, coprófagos, assassinos passionais, estupradores, na sessão reservada ao mais abjeto e perigoso, manifestações classificadas como “psicopatologia sexual” (Swain, 2004).
Não demorou muito para que essas produções europeias chegassem ao território nacional (Érica Pretes; Túlio Vianna, 2008), iniciando a normalização do “lado de cá”, das mulheres que se relacionavam afetivo e sexualmente com outras mulheres e/ou que eram dissidentes das normas de gênero, em um terreno fértil de modernização e de aburguesamento social.8 Com a chegada da corte portuguesa e as crescentes demandas capitalistas relacionadas ao comércio e à indústria no decorrer do século XIX, o Estado brasileiro passou a entender que precisaria de aliados para evitar desordens, promover a saúde e converter os costumes considerados antiquados. A essas necessidades, a medicina respondeu com a higiene, um novo “padrão regulador dos comportamentos íntimos” (Jurandir Freire Costa, 1999, p. 109) que se colocava à frente do processo de adaptação das famílias às mudanças econômicas e morais, estimulando a competição entre sujeitos, propondo novos papéis e obrigações e freando atitudes lidas como excessos do passado (Costa, 1999).
A higiene se engajou de forma significativa na organização das características e dos papéis sociais do homem e da mulher, ou seja, na conformação da família nuclear burguesa, tida como ideal. A mulher, nesse entendimento, era considerada um ser frágil fisicamente, delicada, com predominância de afetos, doce, caprichosa, passiva, indulgente e submissa; “nascera para a família e para a maternidade” (Costa, 1999, p. 239). Suas tarefas principais resumiam-se à iniciação da educação das crianças e à guarda do patrimônio do marido. O homem higiênico, por sua vez, era o extremo oposto: forte e vigoroso fisiologicamente, firme emocionalmente, feito naturalmente para o pensamento e para a reflexão. “O homem devia ser mais seco, racional, autoritário, altivo, (...) mais duro” (Costa, 1999, p. 237). Destinado a ser pai, o chefe da família, ele era o emblema da virtude e do respeito, um exemplo para os filhos.
Aqueles e aquelas que fugiam à essa prescrição de gênero, como as lesbianas, eram situados(as) à margem do modelo de família burguesa, tidos como um risco à estabilidade da figura do pai, da mãe e de suas respectivas funções sociais. Margareth Rago (2014) destaca que médicos-higienistas e outras autoridades propagavam ao novo proletariado paulista o modelo normativo da esposa-mãe-dona-de-casa, com suas regras de etiqueta e comportamento, no exato momento da virada do século XIX para o XX, em que novas exigências econômicas solicitavam nos grandes centros, nas ruas, praças e cafeterias, a presença feminina. Dizia-se que o trabalho fabril atrapalhava a mulher no desenvolvimento de suas funções maternais, que a fábrica era um antro de prostituição, corrupção; um ambiente em que as investidas sexuais de um superior hierárquico sempre rondavam as trabalhadoras. Esses argumentos serviam para reforçar que o verdadeiro papel da mulher era ser “rainha do lar”, por isso, a sua presença no ambiente fabril seria inadequada e anormal.
Por sua vez, Sidney Chalhoub (2021) observa certo inconformismo ao modelo dominante de ser mulher, o burguês, no cotidiano de mulheres pobres da cidade do Rio de Janeiro. Além do já mencionado emprego em fábricas, era comum que a renda de mulheres menos favorecidas viesse de trabalhos relacionados ao âmbito doméstico, como lavadeiras, cozinheiras, vendedoras de salgadinhos e doces nas ruas. Com isso, elas conseguiam sustentar - muitas vezes, sozinhas - os filhos e desenvolviam relações de amizade, úteis nas horas de necessidade. O trabalho exercido por elas era, nesse sentido, “um aspecto essencial da construção de sua identidade social” (Chalhoub, 2021, p. 207). Por conseguinte, a mulher pobre, empregada, garantia para si certa independência em relação aos homens, podendo ter uma posição mais ativa dentro da relação ou, mesmo, decidir encerrá-la, caso estivesse insatisfeita com a postura do marido. Portanto, essa configuração destoava, mesmo que minimamente, da imagem corrente do homem tirânico, que tudo podia sobre a esposa e os filhos que eram seus dependentes.
De acordo com Susan Besse (1999), no Brasil, entre o Pós-Primeira Guerra e o final da década de 1930, uma série de profissionais, intelectuais e políticos voltam suas discussões para a “questão da mulher” ou para a “crise da família”, problemas tidos como graves às definições de gênero daquela época. Isso se devia ao projeto de modernização das relações entre homens e mulheres e, ao mesmo tempo, ao desejo de preservação das hierarquias e desigualdades históricas dentro do casamento.
Nesse contexto, havia algumas preocupações com o fato de as mulheres urbanas de classe média e alta estarem ampliando sua participação social como consumidoras e como trabalhadoras em alguns setores de serviços; a intensificação da imigração de europeus e com a migração rural, inclusive de ex-escravizados; a chamada “crise da família” entre as classes mais pobres, uma vez considerados os baixos índices de nupcialidade nestes setores. A instabilidade das uniões consensuais populares (os casamentos legais eram caros e burocráticos) era entendida como viciosa ou fruto de privação moral. Na verdade, essa preocupação com o casamento entre o proletário advinha do risco que a falta desse representava à ordem e à estabilidade da nova sociedade urbana industrial que nascia, uma vez que o casamento seria indispensável para um maior controle social dos sujeitos e para a garantia de uma educação adequada das futuras gerações (Besse, 1999). Por outro lado, Cláudia Maia (2023) mostra que um grande número de mulheres provenientes da classe média recusava o modelo burguês de esposa-mãe-dona-de-casa para se dedicarem a uma carreira profissional ou construírem outras formas de vida fora do casamento, uma vez que o contrato de casamento, além de estabelecer a submissão feminina, era um instrumento legal de controle do trabalho e dos bens das mulheres.
O aparato jurídico, por meio do Código Penal de 1890, apesar de não punir diretamente as relações sexuais e afetivas entre “pessoas do mesmo gênero”, buscava coibir essas condutas por meios indiretos que, muitas vezes, levavam os sujeitos desviantes da norma à prisão. Orientado à punição de “desvios de gênero” ou da moral, o Artigo 379 previa pena de quinze a sessenta dias de prisão aos sujeitos acusados de “travestismo”: o uso de roupas que “disfarçassem” o sexo do indivíduo, sendo-lhes “impróprias”. Já o Artigo 339 penalizava com quinze a trinta dias de cárcere a vadiagem, compreendida como o ato de não ter um emprego e domicílio fixo, e de se sustentar por meio de ocupações proibidas por lei ou ofensivas aos “bons costumes”. Destinado a forçar os pobres a serem produtivos, esse artigo afetava a prostituição feminina e masculina com “especial severidade” (Carlos Figari, 2007, p. 262). Mulheres que tinham amantes, que se “vestiam à moda masculina” ou que se sustentavam pela prostituição estavam, portanto, vulneráveis a ofensivas policiais nas grandes cidades brasileiras, sendo costumeiramente detidas e registradas pelos “atos de libidinagem”, supostamente, cometidos (Figari, 2007; James Green, 2019).
Portanto, o autor do documento em análise, o médico Estácio de Lima, produziu - por meio da literatura sexológica europeia referida - um saber/poder disciplinar e burguês que detalhava corpos, identificava, vigiava, classificava, diagnosticava e tornava abjeto tudo aquilo que fugia à norma cisheterossexual em voga. Esse saber foi constituído também a partir de aparelhos de informações de instituições baianas, como presídios, escolas, famílias, repúblicas estudantis etc., o que explica a presença nos enunciados de pessoas lesbianas pobres, desempregadas, prostitutas, e em ambientes domiciliares em Salvador. O controle dos corpos nesses discursos passava por um disciplinamento das forças de trabalho do proletariado; pela imposição de uma libido que deveria ser essencialmente reprodutiva; e pela tentativa de transformação de comportamentos que poderiam “escandalizar”, “atrapalhar”, “contaminar” as famílias “bem-educadas”. Por isso, a Medicina Legal de então teve que lidar com representações sociais sobre a “vagabundagem” ou sobre a prostituição feminina, por exemplo, o que trouxe possibilidades de análise e intervenção para aqueles círculos elitizados que estariam, em tese, bem preparados para resolver essas questões. Contudo, o que ocorreu foi que os sujeitos dissidentes, na maioria das vezes, foram excluídos, presos ou afastados da sociedade.
Nos debruçamos agora sobre um caso específico que chegou até Lima: o relacionamento de Vivi e Amelinha.
Vivi e Amelinha
Na primeira parte do livro A Inversão dos Sexos (Lima, 1935), intitulada “Inversão sexual feminina”, Estácio de Lima não apenas relatou as histórias das sujeitas que encontrou, mas produziu sentidos sobre elas fundados numa suposta natureza. Esses sentidos foram pautados em diferenças interseccionais de gênero, sexualidade e capacidade física, que o médico naturaliza e essencializa, conforme analisamos no relato que se segue.
Vivi e Amelinha moravam em um sobrado da Rua da Oração, no Pelourinho, em Salvador. Vivi era uma pessoa jovem, de compleição franzina e estatura baixa, não racializada, que abandonou a família antes mesmo de completar a maioridade. Já sua companheira, Amelinha, era uma mulher jovem, com “olhos de geisha”, prostituta e amante de um fazendeiro de cacau da região.
Em sua descrição, Lima avalia que, pelas circunstâncias inerentes às “lésbicas”, elas não precisavam se organizar para viver, já que mantinham suas relações de forma mais escondida. Essa representação emerge nesse discurso, talvez, porque, historicamente, as práticas e os encontros sexuais entre mulheres têm sido incompreendidos, desdenhados e invisibilizados nos próprios registros e documentos médicos, jurídicos, religiosos, se comparado aos homossexuais masculinos, e menos por uma inércia ou pudor da essência dessas mulheres como ele quer dizer (Cláudia de Oliveira, 2015). Sabemos, a partir de Denise Portinari (1988), que os signos do feminino e das lesbianas habitam as regiões mais inóspitas dos discursos, naqueles lugares acometidos por tremores e colisões, onde a linguagem vacila e pretende-se indizível. Entretanto, há um lugar, “o antro ruidoso das inversões sexuaes femininas, [...] onde as lesbicas temiveis apparecem, é o meretrício de todos os bordos: alto, médio ou baixo”9 (Lima, 1935, p. 39, grifo nosso). Como “antimãe”, a representação da lesbiana aparece aqui como algo que causa temor e é associada à outra figura também perigosa: a prostituta. O lugar da prostituição, por ser propício à “degeneração” social, é o ambiente em que a lesbiana mais está, seja em qualquer nível social dessa ocupação.
Foi exatamente a partir do “mundo prostitucional” que o médico diz ter conhecido “M. A. G.” ou “Vivi”. Ao ir à sua casa, viu “sentadinha no seu canto, vestindo peignoir bem feminino, Vivi parecia uma garôta de mais ou menos 16 annos, quando a vimos pela primeira vez” (Lima, 1935, p. 77). A referência à vestimenta “bem feminina” serve para destacar a surpresa que Lima teve ao encontrar Vivi, já que falavam dela/dele10 sempre em “trajes masculinos”. Comenta-se sobre a violência com que a sociedade, à época, lidava com Vivi e com “sua querida Amelinha” em sua própria casa: “a porta de entrada com o trinco batido [...] e as janellas, por seu turno, perduravam cerradas visto como, aos quandos, uma pedrada violenta vinha contra as vidraças, despedaçando-as” (Lima, 1935, p. 78). Por quebrarem o “contrato heterossexual” (Adrienne Rich, 2010) que instituiu as mulheres como corpos domináveis pelos homens, como o sexo a seu serviço, as lesbianas são imediatamente punidas, mesmo quando ocupam o espaço privado. Não há privacidade familiar ou anonimato possível para essas personagens. Vivi e Amelinha deixam notar, também, uma força de vida e de existência salutar. As mais diversas violências cometidas contra essas pessoas não conseguiram apagar suas vontades e escolhas nem destruir o vigor, ousadia, exuberância e tenacidade de suas histórias.
Após essa primeira descrição, o médico diz que Vivi pediu licença, se desfez, retirou sua boina e voltou “como se fosse um homemzinho que falasse” (Lima, 1935, p. 80). Lima emprega esse diminutivo num gesto de infantilização e descrédito da performance de gênero de seu(sua) interlocutor(a). Era agora uma “mulher-macho”, com “cabellos cortados a homem, [...] modos, gestos, geitos que não lembravam a sua condição de mulher. Pediu um cigarro [...] Quis a caixa de phosphoros. Risca, energicamente, um deles [...]” (Lima, 1935, p. 79). Há aqui um movimento de diferenciação de signos e atos no corpo de Vivi como sendo femininos ou masculinos, dentro de uma ideia de unidade, conforme assinala Butler:
Observe-se não só que as ambiguidades e incoerências nas práticas heterossexual, homossexual e bissexual - e entre elas - são suprimidas e redescritas no interior da estrutura reificada do binário disjuntivo e assimétrico do masculino/feminino, mas que essas configurações culturais de confusão do gênero operam como lugares de intervenção, denúncia e deslocamento dessas reificações. Em outras palavras, a “unidade” do gênero é o efeito de uma prática reguladora que busca uniformizar a identidade do gênero por via da heterossexualidade (2017, p. 67).
Além disso, a transformação de aparência aqui relatada sugere que os significados do corpo são cotidianamente constituídos e atualizados por atos de gênero, e que estes possuem um sentido teatral. Num curto intervalo de tempo, Vivi demonstra que são seus gestos, ações e movimentos incessantemente repetidos que materializam certas possibilidades históricas de gênero, que nunca se estabilizam plenamente. Porém, estes atos não são só “seus”, pois já foram ensaiados anteriormente e carregam os sedimentos de performances coletivas de masculinidades e feminilidades. A cena já estava previamente montada quando Vivi apareceu. Da mesma forma, estes atos de gênero não são praticados livremente, porque o “corpo generificado atua em seu papel dentro de um espaço corporal culturalmente restrito, encenando interpretações dentro dos limites diretivos preexistentes” (Butler, 2018, p. 11). Já que Lima entende que gênero é uma essência e não um ato, ele imediatamente lê a masculinidade de Vivi como uma farsa ou algo irreal e sinaliza, por outro lado, que gênero também envolve acreditar na ficção política de que os sujeitos expressam uma substância identitária, isto é, levar a sério a dramatização da existência de uma interioridade sexual.
O médico apresenta quais seriam os indícios da “inversão sexual feminina” presentes em Vivi desde a tenra infância. Relata que ela/ele gostava muito do pai, que morrera deixando-a(o) já bastante crescida(o), fato que teria marcado sua memória para sempre. Interessante pontuar como esse discurso tende a atribuir a lesbiandade a uma identificação feminina com o pai ou com outro homem da família, numa relação de proximidade, ao passo que culpabiliza a mãe por sua ausência ou pouca influência afetiva sobre a filha. Por Lima, somos também informadas de que Vivi admirava muito suas colegas de escola e enviava bilhetes a elas; já um pouco maior, tomou contato com o meretrício, onde nutriu amores por duas ou três marafonas e só depois conheceu “Amelinha”. Rago (2008) assinala que algumas prostitutas daquele período viviam, mesmo que momentaneamente, um nomadismo identitário e de práticas, reinventando-se continuamente, não se fixando em um modelo conjugal com os clientes, com hábitos, gestos e escolhas inconstantes, fugazes.
Amelinha, por sua vez, é descrita inicialmente como “meio recatada”. “Approximadamente devia ter, no momento, 22 a 24 annos. Sympáthica, morena, olhos oblíquos” (Lima, 1935, p. 82). No decurso do relato, descobrimos que Vivi foge de casa e passa a residir com Amelinha, sem que qualquer “força moral” pudesse segurá-la na sua família de origem, o que teria sido, de acordo com o autor, um escândalo para a época. Amelinha não era, nos termos de Lima, uma grande invertida, porque ainda continuava apresentando interesse por homens: “era mais uma cynica e devassa, do ponto de vista sexual, do que invertida. E’, dahi, (...) amada de Vivi, não deixava de ter os seus fregueses clandestinos” (Lima, 1935, p. 83). Amelinha se “prestava” a(o) sua/seu companheira(o) de maneira “passiva”, e essa(esse) era “fortemente ciumenta/o”, mas apenas nas relações da parceira com outras mulheres, não se importando com os encontros dela com rapazes ou homens mais velhos.
O fato de Amelinha manter relações heterossexuais a coloca em uma posição melhor que sua/seu companheira(o), Vivi. Aparentemente, e apesar dos desvios, ela se “enquadraria” na matriz de inteligibilidade cultural (organizadora de sentidos aqui) que regia os corpos naquele momento. Por isso mesmo, o olhar disciplinador de Lima percorreu de forma rápida seus movimentos, sua aparência, em suma, sua performatividade de gênero.11
O médico lembra que, no primeiro contato com Vivi, não teria reparado que ela/ele tinha uma “deformação” no joelho esquerdo, característica que tentava a todo custo dissimular, “condição, dizia, de inferioridade” (Lima, 1935, p. 84). Ela/ele teria dito para o autor: “Eu sou mulher. Joven. Formosa. [...] E agora, não posso mais andar direito... Estou aleijada... Feia... Nenhum ha de querer-me... Não sou mulher completa... Deixei de ser mulher... Não sou mulher” (Lima, 1935, p. 84). Observem que o sexo, na fala de Vivi, não é o que determina o gênero feminino nem seu próprio reconhecimento enquanto tal, mas sim a capacidade física, que é alçada, seja pelo autor seja pela(o) própria(o) Vivi, como marcador de rebaixamento, de ininteligibilidade de gênero e, portanto, de obstáculo à própria condição humana. Há um lamento expresso por não se alcançar a posição de gênero esperada, sem a deficiência. A matriz de sentido - categorias constitutivas dos discursos de uma dada realidade que sustentam um determinado saber (Orlandi, 2020) - é, portanto, a abjeção vinculada à capacidade locomotora da(o) sujeita(o) e ao estigma de “aleijada”, de “deformação” corporal. Assim, temos o gênero e a capacidade física entrelaçados, interseccionados.
Vivi se descreve como feia e não completa, o que sugere que havia representações sociais à época que primavam pela beleza e pela “perfeição” corporal das mulheres, critérios tidos como fundamentais para o reconhecimento de gênero e para as trocas afetivo-eróticas. Vale recordar que esse foi um período em que o culto da autoimagem era bastante incitado entre as classes abastadas, cenário propício para que os novos símbolos do “eu” se proliferassem: lojas de vestidos, perfumes, joias, chapéus inundavam as principais capitais brasileiras, influenciados pelas últimas tendências da moda parisiense. A aparência feminina foi posta como prioridade “pela própria mulher, preocupada em exibir-se como figura sedutora, charmosa e sofisticada, sobretudo no caso das mais privilegiadas socialmente, [...]. Cobrava-se dela esse modo de subjetividade” (Rago, 2008, p. 76). A fisionomia da mulher se transformava em principal foco de observação dos transeuntes nas ruas, dos jornalistas ávidos por notícias, dos homens desejosos de flerte, de outras mulheres curiosas e ansiosas para comparar suas roupas com as de suas “concorrentes” (Rago, 2008). Por isso o pesar de Vivi, já que no mercado da sedução, ela/ele estaria prejudicada(o) triplamente: pela performatividade de gênero inconforme, pela sexualidade lesbiana e pelo marcador físico de inferioridade, o “aleijão”.
Essa marca no joelho é tratada como um sinal a mais de “desvirtuamento” libidinal e psíquico, inclusive, o médico orienta seu discurso no sentido de questionar se a “deformidade” teria se originado dos atritos da tribadia12 entre as(os) amantes. As doenças no joelho da(o) personagem são apresentadas, a saber: gonorreia, artrite e ancilose, marcadores de inferioridade tão relevantes no discurso, que são datados na mesma época em que Vivi teria tido a ideia de arrumar-se, “estrictamente, á moda masculina” [...]. Antes, era uma saphista discreta, meio escondida. Depois, enfrentou o escandalo, arrostou com os preconceitos, perdeu a timidez” (Lima, 1935, p. 85). É como se o marcador de (in)capacidade física da(o) personagem a(o) tivesse lançado de vez na anormalidade sexual: “[...] apenas aggravou o mal, que já vivia indiscutível” (Lima, 1935, p. 85). Na Figura 1, Vivi está com a perna direita flexionada, numa tentativa gestual de “disfarçar” seu “defeito”, segundo Lima. A posição dos braços e das pernas sugere recolhimento e certa timidez.
Observa-se nesse gesto de registro da figura de Vivi a exposição visual da(o) “anormal” para decodificação e controle. Nesse momento histórico, devemos lembrar, a aparência - e mais do que isso, a visão - funcionava como um mecanismo disciplinar da maior importância nos meios urbanos, tendo em vista a diluição de referências ópticas pré-industriais. Era preciso distinguir pobres de ricos, mulheres de homens, crianças de adultos, jovens de velhos, negros de brancos, trabalhadores de “vagabundos”, doentes de saudáveis etc. (Rago, 2008). Precisamente, as demarcações de gênero e a diferenciação no reconhecimento das identidades das pessoas eram tidas como cruciais, como garantidoras da ordem e do progresso da nação. Luz nos “monstros” do dia a dia. A noção autocentrada da(o) sujeita(o), com uma identidade única, pré-discursiva e gênero estável, orientou os critérios do olhar, desqualificando corpos como o de Vivi. Ela/ele embaralhava os significados corporais de então, exatamente por apresentar a possibilidade de ruptura, de repetição subversiva, de constituição de outras formas de se fazer o “eu”, fora da polarização binária. Ameaçava expor, em última instância, o próprio mecanismo performativo de gênese do gênero (Butler, 2018). Não era aceitável essa recusa da “normalidade” por parte do “belo-sexo”. Muitas vezes, elas empregavam esses recursos não só apenas por predileção estética, mas para acessar espaços e exercer ocupações proibidas para as mulheres (Rago, 2008).
Em seguida, o autor passa a relatar hábitos, aspectos físicos e fisiológicos de Vivi, à procura de algum problema ou doença que atestasse/justificasse ainda mais a sua atração por mulheres:
Soffre, porém, de colicas uterinas, o que lhe exarceba os “nervos”... Quando menstruada, accusa dôres, e fica excitada, impetuosa, irritável [...] Soube, por informes seguros, que, actualmente, a mais e mais se entrega ao ethylismo. Tem outra sequella moral [...]: o gosto pelas injecções de morfina. Se podesse, diz, tomava diariamente o seu opio. [...] aprendeu a imitar a lettra de um medico; e falsificando a firma do facultativo, ha comprado algumas caixas do seu alcaloide preferido. [...] A’ inspeção geral do corpo, nada existia que denotasse qualquer pratica libidinosa (manchas ecchymoticas, dentadas, etc.). [...] Orgãos genito-urinarios nada de mais importante. Reflexibilidade geral satisfactoria [...] Labios grossos, firmes, rosados. Orelhas furadas desde creança. Aborrece-lhe, porém, o uso dos brincos (Lima, 1935, p. 86, 87, 88, 89).
Todo esse detalhamento nos lembra que o saber disciplinar, por definição, regulamenta tudo ao seu radar, não deixa escapar nada: “seu princípio é que as coisas mais ínfimas não devem ser deixadas entregues a si mesmas. A menor infração à disciplina deve ser corrigida com tanto maior cuidado quanto menor ela for” (Foucault, 2008, p. 59). As infrações, na enunciação acima, dizem respeito aos nervos exacerbados, o gosto por bebidas alcoólicas e por morfina, três características que a constituem como uma “mulher não normal”, inquieta e viciada em coisas que lhe dão prazer. Além desses aspectos, nada de mais relevante foi encontrado no plano somático, o que não atrapalha globalmente o “diagnóstico” de “inversão”, alocado, como vimos, em sua performatividade de gênero, na doença de seu joelho e em sua própria história pessoal. Não deixa de chamar atenção o fato de Amelinha não ter sido minuciosamente investigada como foi Vivi. O quarto de Vivi é apresentado como limpo, asseado, modesto, com vários quadros de atrizes de cinema em “posições artísticas”. Para “não dar o que falar”, ela/ele retirou um retrato que mostrava a intimidade e os afetos das duas mulheres/pessoas. Essa fotografia foi encontrada por Lima em outro canto do quarto e é reproduzida na Figura 2.
Por meio da imagem, percebemos que Amélia cumpre o papel da “bela”, figura de linguagem corrente em relação às lesbianas, como nos diz Portinari (1988). Nos discursos normativos, a “bela” e a “fera” representam dois extremos interpretativos de gênero que demarcam hierarquicamente corpos a partir do masculino/ativo (a fera) e feminino/passivo (a bela). A “fera” é percebida como a caricatura do homem coerente, e a “bela”, por sua vez, a caricatura da mulher inteligível. Além disso, essas imagens estabelecem o mote de “lá onde há igualdade, que se faça a diferença!”, diante de “uma ordem que carrega a marca da linguagem que ordena o mundo, pois é precisamente através da diferenciação que ela se constrói. O indiferenciado é o ininteligível” (Portinari, 1988, p. 41). Essas diferenças cumprem o papel de tornar o estranho, o confuso, algo traduzível para a “sociedade heterossexual” (Rich, 2010), uma vez que só era possível conceber a união e atração dessas personagens pela via da oposição binária tradicional de sexo-gênero.
Para Lima, em Vivi “vemos nitidamente, que se trata, ahi, de caso typico de inversão sexual. Com ausência, porém de estygmas somaticos secundários, sem os vestígios anatomicos do virilismo [...]” (Lima, 1935, p. 91). Ele narra ainda aspectos que diferenciam as(os) companheiras(os): “a mimica, as expressões da linguagem, e até mesmo o caracter da lettra, ainda quando escreve sem nenhuma intenção, atraiçoam a masculinidade espiritual de Vivi”; já Amélia “conversa, galantemente, como qualquer rapariga normal de sua idade, de sua cultura, de seu ambiente moral” (Lima, 1935, p. 91-92). Complementa que Amélia tem o instinto de agradar o homem, próprio da “alma feminina”, e alimenta a rivalidade com outras mulheres; Vivi, por sua vez, fala de igual para igual com o médico, de forma crua. Ou seja, enquanto a primeira apresenta aspectos típicos da mulher burguesa, age como a “bela”, buscando seduzir, encantar e agradar ao homem, a(o) segunda(o) não faz questão disso e age como se “fosse” um homem falando para outro, uma “fera”. Daí as conotações que acompanham o epíteto “lésbica”, sobretudo quando relacionadas à figura de Vivi, serem sempre qualitativamente negativas: mulher-macho, paraíba, mulher feia, mal amada, desprezada (Swain, 2016). Sendo assim, o médico conclui que o diagnóstico de Vivi é evidente, já o de Amelinha requer um trabalho mais árduo de investigação.
Como explicar o fato de uma mulher como Amelinha, que, além de prostituta, se atrai sexualmente também por homens e já foi até amante de um fazendeiro rico, coabitar uma casa com Vivi, um(a) sujeito(a) totalmente “invertido(a)”? “Acaso a compaixão, sozinha, conduz aquela morena de olhos de geisha, a ser o arrimo exclusivo da lésbica?” (Lima, 1935, p. 95). Veja que é insustentável, para Lima, uma relação entre mulheres movida por afeto e desejo sexual simplesmente; tinha que existir algo a mais. A matriz de sentido desse enunciado é a cisheteronorma, que impõe que uma tão “bela” mulher, como indica ser a “morena de olhos de geisha”, não deve se juntar - ou é impossível se juntar - a uma “lésbica”, um ser anormal por excelência. A “bela” é supostamente o objeto de desejo, aquilo que é cobiçado, seja por homens ou por mulheres; e a “fera” encarna a representação da ideal “inversão”, é o parâmetro e o critério para se medir outras homossexuais (Portinari, 1988), visto que nada é tão “monstruoso” quanto ela/ele. De fato, nesse ponto, parece que a única lesbiana do relato é Vivi, com todas as suas “marcas” e “trejeitos” masculinos, de inferioridade e abjeção, mas sua companheira aparenta ainda ser um caso em aberto. Há uma operação de diferenciação e de desigualdade nesse discurso, na medida em que Vivi é apresentada como um caso perdido, uma “aberração da natureza” perante sua companheira que, frente à “fera”, é alguém mais adorável, cuja performatividade feminina permanece intacta e de quem se espera um casamento heterossexual um dia.
Segundo o autor, Amelinha sustentava de boa vontade sua companheira, a partir do que rendiam seus “concubinatos”, tendo em vista que Vivi se sentia incapaz fisicamente para o trabalho. Novamente, a capacidade física do joelho é referenciada pelo discurso do médico como um limitador (verdadeiro ou falso) das atividades, da boa conduta da(o) jovem, servindo para construir agora o sentido de acomodação e exploração de Vivi para com Amélia. O modo como o arranjo de sobrevivência entre o casal se dá é curioso, pois convive com um momento em que discursos em circulação buscavam reintroduzir as mulheres ao lar, tentando fixá-las exclusivamente no “papel feminino” de dona de casa (Rago, 2008), sob a tutela masculina. Com Vivi, esse discurso se inverte completamente em uma moral disciplinar que parecia expor um certo incômodo com o fato de ela/ele não trabalhar fora de casa. Seria uma pessoa “escorada” essencialmente.
Na sequência, o médico questiona: como gostar de uma “lésbica” que, além de “ser” uma “mulher-macho”, vigiava Amélia dia e noite? Em suas palavras, o que era mais interessante era “a durabilidade desses exquisitos laços affectivos entre as duas. Quanto á missexual pura, muito bem. Perfeitamente explicável. Porque Amelinha, entretanto, não se aborrece, não se contraria (...)?” (Lima, 1935, p. 95). Para ele, essa relação só poderia ser explicada pela vaidade de Amélia, pelo desejo de se sentir querida, já que havia despertado por Vivi uma grande paixão, ou pela sua generosidade e o espírito de caridade, ou seja, ela estaria fazendo um favor ou só pensando em si mesma. Mas, para além disso:
Pelo motivo de que, possuída, talvez, por homens egoistas e brutaes que objectivam, somente, experimento o orgasmo, deixando-a excitada, insatisfeita, vê-se na contigencia de só encontrar, nos attrictos da tribadia, o termino de um prazer tantas vezes interrompido (Lima, 1935, p. 95-96).
A partir da fala de Lima, supõe-se que a experiência ruim com homens cis no campo sexual levou Amélia a recorrer a uma lesbiana como uma alternativa posterior para alcançar o prazer ou saciar-se. Nesse sentido, há um interdiscurso aqui, ou seja, uma memória discursiva - o dito antes, em outro lugar - que afeta a significação na tomada da palavra (Orlandi, 2020), trata-se da já referida poeta grega Safo. Ao ser recuperada pelo poeta romano Ovídio, que escreve sobre sua vida em Heróide, Safo ganha como fim o suicídio; o autoextermínio que encerra a narrativa de Ovídio sobre a poeta grega é motivado, justamente, pelo desprezo de um homem. Essa história, desde o começo da Era cristã, foi repetida exaustivamente: uma mulher “se joga no abismo porque um rapaz a despreza. Isso com certeza contribuiu na formação da imagem da lésbica: ela se volta para as mulheres porque os homens não a querem” (Swain, 2004, p. 32-33). Ao colocarmos em contraste o discurso de Lima ao intertexto mencionado, pode-se perceber que nas “justificativas” que pretendem explicar a lesbiandade, que mobilizam o desprezo, a falta de delicadeza ou mesmo a incapacidade de satisfazer sexualmente uma mulher, o homem é colocado como o centro. Dessa forma, a lesbiana sempre é remetida ao homem e à relação sexual “correta” que deveria ter tido com ele.
Relações amorosas e sexuais entre lesbianas, no universo da prostituição, não parecem ter sido muito incomuns nesse período. No romance Virgindade Inútil, novella de uma revoltada, publicado em 1927, a escritora Ercília Nogueira Cobra (1891-?) ficcionaliza a própria vida, narrando a história da protagonista Cláudia que, como ela, nasceu numa família abastada do interior paulista, mas, com a morte do pai, se viu pobre e sem recursos para pagar o dote, motivo pelo qual foi desprezada pelo noivo. Após várias peripécias para escapar ao destino tradicional das mulheres no casamento e assegurar a sua liberdade, a personagem adentra o universo da prostituição, marcado por humilhações e exploração, até se tornar uma rica cortesã - prostituta de luxo - em Buenos Aires. Quando ela finalmente se vê livre e economicamente independente, se entrega à paixão por um homem, que a engana e a rouba. Após a desilusão amorosa, a heroína se lança à relação lesbiana com uma espanhola fogosa chamada Clarika Monteiro. Alguns meses depois, Cláudia dá à luz a menina, a quem batiza com o nome de “Liberdade”. De pai desconhecido, dizia que Liberdade era uma “autêntica filha só de mãe” e que se parecia com sua amante espanhola. Embora seja possível, num primeiro momento, perceber que a relação entre mulheres nesse romance autobiográfico decorra da frustração com uma relação heterossexual, a autora denuncia de fato a opressão, a humilhação e a exploração das mulheres nessas relações, seja por meio do contrato de casamento, seja por meio do amor romântico que passou a fundamentar o contrato sexual (Maia, 2008). Longe da perspectiva moralizante, disciplinadora, ordenadora do gênero e da sexualidade compulsória presente nos escritos de Estácio de Lima, seu contemporâneo, no romance de Ercília, a relação lesbiana é apresentada como uma possibilidade de liberdade, prazer, amizade, uma relação não marcada pela apropriação e exploração das mulheres.
Ao contrário de Ercília, Lima circunscreve a relação entre mulheres à prática sexual, por isso, em seu discurso, assinava a possibilidade de que a relação sexual com homens cis pudesse restituir a lesbiana ao patamar da “normalidade”, já que o “coito inacabado” entre mulheres compromete a libido, causando “efeitos nefastos” à saúde (Lima, 1935). Essa ideia de “coito inacabado” faz referência ao que Paul B. Preciado (2018) entende como ficções somáticas heterossexuais: a subjetividade hétero feminina no Ocidente é desenhada como um tubo no qual a boca é o local de privatização de sinais, e a vagina e o ânus são tratados como orifícios públicos, por isso, passíveis de serem penetrados; ao contrário da subjetividade masculina e heterossexual, que tem no ânus o local de privatização máxima.
Assim, na concepção de Lima, o fato de a relação sexual entre mulheres não envolver penetração da vagina faz do ato um coito incompleto, que causa um “curto-circuito” na divisão dos sexos e acarreta doenças em seus corpos. Lima encerra dizendo: “Dois temperamentos bem diversos que o destino caprichoso os uniu, na torpe e aberrante união, (...) conduzindo-as aos dominios tortuosos e trágicos do amôr contrario á natureza” (Lima, 1935, p. 96).
Considerações finais
Buscamos, neste trabalho, analisar como se construíram representações e sentidos sobre as lesbianas nos discursos médico-legais brasileiros da década de 1930. Centramo-nos no modo como as sujeitas emergiram nos enunciados e como foram significadas por efeitos de verdade científicos. Discutimos as condições de emergência de tal discurso e selecionamos o caso de duas lesbianas baianas presente no livro A Inversão dos Sexos (Lima, 1935), do médico Estácio de Lima, aplicando alguns operadores da análise de discurso.
As personagens “Amelinha” e “Vivi”, apesar de emergirem no discurso de Lima em uma relação afetiva-erótica significada globalmente como anormal, seus tipos e “naturezas” foram constituídas de modo diferencial e hierárquico, a partir de marcadores interseccionais que definiram Vivi como um corpo e uma vida menos aproveitáveis do ponto de vista da norma cisheterossexual do que o de Amelinha. Enquanto Amélia é construída nas representações discursivas como uma mulher bonita, “passiva”, mais recatada, que busca por seu “instinto feminino” “agradar” aos homens, mesmo em seu trabalho como prostituta, Vivi é desigualmente interpretada como uma pessoa feia, ciumenta, com performatividade masculina, incapaz fisicamente, “escorada”, viciada em bebidas alcoólicas e drogas, com uma história de vida pessoal toda marcada pelo desvio moral e sexual. Assim, Vivi funciona nesses enunciados como a representação ideal da “grande invertida”, alguém “inferior” que deve ser evitado, e do perigo que ronda a inteligibilidade de gênero de mulheres como Amélia, que é uma sujeita mais útil para os desígnios da mulher burguesa do que a anterior. Amélia a “bela”, Vivi a “fera”. Amélia tem cura; Vivi, não.
Por uma ironia do destino, os rastros daquelas subjetividades que deveriam ser apagadas, salvas ou “consertadas” sobreviveram. Breves indícios, representações, discursos e imagens das lesbianas do passado chegaram até nós, e, talvez, o melhor modo de respeitá-las em suas possibilidades, pluralidades e humanidades seja analisando criticamente como foram marginalizadas. Parece que um dos maiores trunfos históricos da Medicina Legal brasileira daquele tempo foi a criação do lugar de abjeção para as dissidências de gênero, a marca da anormalidade direcionada aos desejos e práticas não cisheterossexuais, persistente até os dias de hoje. Mas, no jogo entre passado, presente e futuro sempre há espaço para subversões de sentidos preconceituosos, para o florir da criatividade e para dias mais livres, equitativos e justos.
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A partir das considerações de Adrienne Rich (2010), Monique Wittig (2022) e Viviane Vergueiro (2016), entendemos a cisheteronorma não como uma escolha individual, mas como um regime político, uma norma cultural e histórica na qual os sujeitos, para serem considerados normais, saudáveis, corretos, honestos e legítimos, devem ser cisgêneros e heterossexuais, ou se aproximarem bastante disso. Desse modo, elege-se essa configuração de sexo, gênero, desejo e prática sexual como a única inteligível, ao mesmo tempo que torna abjetas subjetividades e práticas que fogem disso (WITTIG, Monique. O pensamento hétero e outros ensaios. Belo Horizonte: Autêntica, 2022; VERGUEIRO, Viviane. Por inflexões decoloniais de corpos e identidades de gênero inconformes: uma análise autoetnográfica da cisgeneridade como normatividade. 2016. Mestrado (Programa de Pós-Graduação em Cultura e Sociedade) - Universidade Federal da Bahia, Salvador, BA, Brasil).
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Seguindo Swain (2016) e Lessa (2023), adotamos aqui os termos lesbiandade e lesbiana em substituição à lesbianismo e lésbica, visando transformar os sentidos pejorativos desses últimos, ligados historicamente ao delito e à noção de doença.
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Sigla para designar Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais, Transgêneros, Pessoas Queers, Pessoas Intersexo, Assexuais. O “+” é utilizado para indicar outras possibilidades de orientação sexual e identidades de gênero existentes.
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Karl-Maria Kertbeny ou Benkert, um escritor austro-húngaro, cunhou pela primeira vez a palavra “homossexual”, em 1869. Essa palavra, mobilizada para designar uma doença do instinto sexual, chega ao Brasil nos finais do século XIX em obras médicas, concorrendo com outras, como “inversão sexual”, “intersexualidade” e “pederastia” (Pretes; Vianna, 2008).
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O dispositivo é entendido como um conjunto heterogêneo, uma rede que engloba desde instituições, leis, decisões regulamentares até proposições morais (Foucault, 2012) (FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. São Paulo: Graal, 2012).
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Seguindo Pereira (1994), a categoria “inversão sexual” aponta para algo que está fora do lugar, que foi invertido, no que se refere aos chamados “caracteres sexuais masculinos e femininos”. O termo já tinha sido mencionado pelo médico e psicólogo britânico Havellock Ellis (1897), em seu clássico Inversão dos Sexos, e foi apropriado por Sigmund Freud (1856-1939), para designar homens cujo objeto da libido se orienta para outros homens, e não para as mulheres. Posteriormente, foi empregada também para as mulheres.
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Para selecionar esse documento, utilizamos como critérios: a grande relevância de Estácio de Lima na defesa das causalidades psíquicas e sociais da homossexualidade/lesbiandade (Pereira, 1994) e o acesso facilitado à fonte, se comparada com outras obras do período, por meio de sebo online.
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No artigo “A construção imaginária da história e dos gêneros: o Brasil no século XVI”, Swain analisa relatos de cronistas e viajantes do século XVI sobre os povos nativos da América Portuguesa e identifica, nesses relatos, o trânsito entre o masculino e o feminino, argumentando que ser homem ou mulher aparece de forma evidente como uma escolha da pessoa. Se uma pessoa com o corpo biológico que corresponde à mulher em um determinado momento “decide ser um homem ela será considerada e aceita como tal. O indivíduo escolhe assim seu gênero, seu papel social sexuado na sociedade e, portanto, seu papel social. Não havia determinações ‘naturais’ ou sociais impondo a heterossexualidade” (Swain, 1996, p. 144) (SWAIN, Tânia Navarro. “A construção imaginária da história e dos gêneros: o Brasil no século XVI”. Textos de História, Brasília, v. 4, n. 2, p. 130-153, 1996. Disponível em https://periodicos.unb.br/index.php/textos/article/view/27747/23851. Acesso em 22/01/2024).
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Optamos por manter a grafia original do documento analisado.
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A(O) personagem Vivi indica uma não identificação significativa com o gênero designado no momento do seu nascimento, aproximando-se das experiências transgêneras. Por não termos acesso a informações robustas de como ele/ela se via e se construía em autorrepresentações sexuais e de gênero, adequando-se ou não aos ditames sexológicos, optamos por conservar a caracterização normativa como lesbianas, mas empregamos artigos e desinências nominais tanto no masculino quanto no feminino, admitindo uma abertura à possibilidade de um não enquadramento deliberado nessas identidades e nas linearidades seja de sexo-gênero seja de gênero-desejo.
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A ativista feminista e anarquista Maria Lacerda de Moura (1887-1945) foi uma ferrenha e ousada crítica da moral sexual de sua época, inclusive dos discursos médicos e jurídicos, o que nos ajuda a entender melhor as práticas discursivas generificadas das décadas iniciais do século XX. Nos seus trabalhos, Lacerda abordou temas espinhosos, como o controle da natalidade, o amor livre, a defesa do direito à educação e autonomia intelectual feminina, e denunciou o casamento como um contrato sexual (Maia; Lessa, 2022). No livro A mulher é uma degenerada, publicado em 1924 (Moura, 2018[1924]), ela afronta e nega o modelo da esposa-mãe-dona-de-casa que incidia sobre as lesbianas (MOURA, Maria Lacerda de. A mulher é uma degenerada. São Paulo: Tenda de Livros, 2018[1924]; MAIA, Cláudia; LESSA, Patrícia. “O feminismo rebelde de Maria Lacerda de Moura”. In: VEIGA, Ana Maria; VASCONCELOS, Vânia Nara Pereira; BANDEIRA, Andréa. Das Margens: lugares de rebeldias, saberes e afetos. Salvador: Editora da Universidade Federal da Bahia, 2022. p. 47-66).
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O ato sexual entre mulheres de esfregar uma genitália na outra ou em outra parte do corpo da parceira.
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Como citar esse artigo de acordo com as normas da revista:
NASCIMENTO, Renan de Souza; MAIA, Cláudia. “Vivi e Amelinha: lesbiandade no Brasil dos anos de 1930”. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 33, n. 3, e100294, 2025.
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Financiamento:
O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001, e do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), por meio de bolsa de produtividade
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Consentimento de uso de imagem:
Não se aplica
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Aprovação de comitê de ética em pesquisa:
Não se aplica
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
22 Set 2025 -
Data do Fascículo
2025
Histórico
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Recebido
21 Maio 2024 -
Revisado
01 Dez 2024 -
Aceito
24 Fev 2025



Fonte: Lima (1935).#PraTodoMundoVer A imagem em preto e branco representa Vivi em sua casa, em Salvador. Ela/ele está de calça formal, blusa de botão e cinto destacado, roupas que lhe agradavam e serviam para sua identificação social. Traz os cabelos curtos em corte masculino, tem um semblante sério e está em pé encostada(o) numa parede, ao lado de um grande abajur.
Fonte: Lima (1935).#PraTodoMundoVer A imagem em preto e branco representa Amelinha em sua casa, sentada em uma cadeira de lateral elegante, com um corte de cabelo bem próximo à cabeça, estilo la garçonne, corte associado, à época, às mulheres modernas. Ela está maquiada, porta um colar de pérolas destacável, roupa branca e segura rosas nas mãos. Vivi está presente no plano de fundo, numa espécie de bricolagem.