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Editorial

No número 3 do volume 18/2010 da REF, após o fechamento do segundo turno das eleições presidenciais, escrevemos um editorial comemorando a chegada de uma mulher ao posto máximo de poder político do país, a Presidência da República. Naquele editorial falamos na repercussão desse fato histórico, em relação às pesquisas e análises que certamente seriam produzidas devido a temas como aborto e laicidade do Estado que haviam dominado as campanhas eleitorais, ao papel da mídia impressa e televisiva nas campanhas políticas com a crescente importância da internet nesse processo, e ao tratamento desqualificador das mulheres em relação ao exercício do poder. Por fim, tomamos uma frase da presidenta eleita para significar nossas esperanças feministas em seu mandato: "Sim, nós podemos!"

O presente editorial é escrito em paralelo à posse de Dilma Roussef em seu segundo mandato como Presidenta da República. Enfatizamos o mérito e a esperança da preservação e continuidade das políticas sociais que tiraram da situação de miséria e pobreza um considerável contingente da população brasileira. Ressaltamos a importância da permanência da Ministra Eleonora Menecucci de Oliveira, com relevantes contribuições aos estudos feministas, na Secretaria de Políticas para as Mulheres, bem como da escolha de Nilma Lino Gomes, da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro Brasileira, para a Secretaria de Políticas da Igualdade Racial. Além da preservação das Secretarias Especiais com status de Ministérios, fundamentais para o combate a desigualdades históricas no país, essas escolhas nos permitem acreditar em continuidade nos esforços de conquistas nos campos das políticas feministas e de gênero e das políticas raciais, de Luiza Bairros. Por sua vez, o enunciado Brasil, Pátria Educadora deve ir além do fortalecimento do sistema educacional e perpassar por todos os ministérios, com práticas políticas que busquem a educação para a igualdade de oportunidades e a cidadania.

Não podemos deixar de assinalar, no entanto, a profunda frustração de nossas esperanças durante o primeiro mandato da Presidenta, no tocante à questão da descriminalização do aborto no Brasil e também com relação ao veto à utilização do material pedagógico produzido por especialistas e militantes de movimentos homossexuais, com intenção de combate à homofobia através da educação nas escolas. Esperamos, nesse novo ano e novo mandato, que essas questões possam fazer parte das políticas anunciadas na campanha, junto a outras ações inadiáveis, como o combate à corrupção, à violência e às desigualdades.

Se no primeiro mandato houve uma batalha linguística para se respeitar a vontade de Dilma Rousseff de ser chamada de Presidenta, palavra dicionarizada desde 1899 como a mulher que preside, o início do segundo mandato foi marcado pela ironia oposicionista e pelo desrespeito àquela que ocupa, desde 2010, o primeiro posto como mandatária da nação. A violência contra o corpo da mulher dessa vez foi além da força física, porque personificou, pela exposição e críticas ao corpo da Presidenta, o preconceito contra a mulher, contra o corpo gordo, o corpo velho, o corpo que foge dos padrões estéticos ditados pela moda e pelos padrões das elites que detêm o monopólio dos meios de comunicação. A força das redes sociais foi fundamental nesse processo de desconstrução do discurso desrespeitoso e preconceituoso iniciado por duas conhecidas jornalistas da mídia televisiva e impressa. Cabe a esta Revista denunciar toda e qualquer forma de preconceito e discriminação, e lutar contra a violência de gênero que exige das mulheres beleza e juventude. Nossa posição visa defender todas as mulheres, mesmo aquelas que estejam ocupando lugares de poder.

Neste número, a REF tem como primeiro artigo "Ecofeminismo e comunidade sustentável", de Bárbara Nascimento Flores e Salvador Dal Pozzo Trevizan, que analisa de um ponto de vista ecofeminista o movimento de ecovilas, comunidades regidas sobre os princípios ecológicos. Para isso, a autora e o autor analisam a Ecovila de Piracanga, localizada no município de Maraú, Litoral Sul da Bahia, Brasil, detalhadamente, buscando compreender se os princípios ecofeministas fazem parte do cotidiano, das práticas administrativas e técnicas da ecovila, e propondo alternativas e possibilidades de solução de problemas.

O segundo artigo, "Estereotipos de Género: la perpetuación del poder sexista en los tribunales argentinos", de María Angélica Peñas Defago, enfoca as práticas do poder judiciário na Argentina de maneira muito original. Para a autora, os estereótipos sexistas atuam em todas as instâncias processuais da justiça, desde a escrita das leis, sua leitura e interpretação, os pronunciamentos de procuradores, advogados e juízes, as sentenças. O artigo mostra que a Justiça, apesar de cega, tem discriminado por gênero, e que a distância entre o conteúdo das leis e sua aplicação oferece um refúgio que continua sendo muito amplo para as práticas sexistas e discriminatórias nas democracias contemporâneas.

No artigo, "O perfil socioeconômico das donas de casa na Nicarágua", Alvaro José Montoya, Maria das Dores Saraiva de Loreto e Karla Maria Damiano Teixeira caracterizam o perfil socioeconômico das donas de casa nicaraguenses e sua contri-buição monetária para o produto interno bruto. Através de análise estatística, concluem que a massa salarial do trabalho doméstico oscila entre 8,0% e 22,1% do PIB. Apesar de sua relevância na produção nacional, o lugar da mulher é determinado por seu papel na família, em função dos estereótipos de gênero.

Por sua vez, Natalia Martínez Prado, em "La emergencia del feminismo en la Argentina: un análisis de las tramas discursivas a comienzos del Siglo XX", reconstrói sentidos dominantes para certas práticas reconhecidas como feministas. Busca uma concepção antiessencialista, relacional e radical de identidade para, em sua análise, deter-se no discurso das anarquistas do periódico "La Voz de la Mujer" e na tese de doutoramento de Elvira López, defendida em 1901 e intitulada "El movimiento feminista. Primeros trazos del feminismo en Argentina".

Em "Os desafios de um projeto de prevenção à violência e à criminalidade: o Mulheres da Paz em Santa Luzia/MG", Simone Maria dos Santos e Andrea Maria Silveira analisam a experiência, realizada em um município de Minas Gerais, da implementação de um projeto que objetiva identificar e encaminhar jovens em situações de risco para a rede de proteção social, através da atuação de mulheres de comunidades. Ressaltando o fato de as teorias atribuírem, em geral, diferenças no comportamento violento às variações nos padrões de socialização de homens e mulheres, as autoras deixam entrever uma tendência à naturalização de estereótipos de gênero circundando a questão, manifestando-se inclusive na escolha de mulheres para atuarem em políticas públicas de assistência a populações carentes, e no Mulheres da Paz, um dos projetos integrantes do Programa Nacional de Segurança Pública com cidadania (PRONASCI). Avaliando o processo de implementação do projeto, as pesquisadoras analisaram a articulação das organizações municipais envolvidas, o atendimento dos objetivos do projeto e das demandas e encaminhamentos realizados pelas Mulheres da Paz, com resultados positivos, mas também frustrantes, de acordo com depoimentos de gestores e mulheres participantes, em função de fatores políticos, como descontinuidades nas ações e falhas na articulação das secretarias envolvidas.

O artigo "Usos e incompreensões do conceito de 'gênero' no discurso educacional no Brasil", de autoria de Maria Eulina Pessoa de Carvalho e Glória Rabay, analisa falas de mulheres professoras de "cursos masculinos", detendo-se nos relatos de docentes de matemática entrevistadas em uma Instituição de Ensino Superior (IES) do Nordeste brasileiro. Valendo-se também da análise de documentação que regula a educação e políticas públicas de equidade de gênero no país, além de dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), as autoras concluem que o esforço para implantar e consolidar os estudos de gênero, ou estudos de mulheres, como campo específico de conhecimento na educação superior, conforme consta na Declaração Mundial sobre Educação Superior no Século XXI, da UNESCO, ainda não concretizou no Brasil "a transversalização da perspectiva de gênero no ensino e na pesquisa", restando inconclusa a tarefa de reverter o "hiato de gênero" na educação brasileira.

Angelo Brandelli Costa e Henrique Caetano Nardi, em "O Casamento homoafetivo não é o casamento homosexual: implicações do uso do afeto como justificativa para as uniões de pessoas do mesmo sexo", buscam um sentido teórico à categoria da "homoafetividade" e suas repercussões políticas e subjetivas. A análise indica que o Estado legisla modelos de afeto sem garantir um direito democrático da sexualidade. Usa-se o discurso do amor romântico e produz-se, implicitamente, um quadro regulamentar para as subjetividades com base em demandas particulares.

Neste primeiro número da REF, temos ainda a triste missão de anunciar uma nova perda de companheira feminista, Ana Alice Costa, uma das criadoras do NEIM/UFBA, cujo exemplo de reflexões e militância feminista permanecerá na memória dos movimentos feministas brasileiros.

Na seção Ponto de Vista deste número, temos a entrevista com a historiadora feminista Claire Moses, que foi Diretora Editorial da Revista Feminist Studies, nos Estados Unidos, durante mais de vinte anos. A entrevista, realizada por Cristina Scheibe Wolff, e editada e traduzida por Maurício Pereira Gomes, enfoca a trajetória acadêmica e feminista de Claire Moses, que se confunde com a própria história do feminismo de segunda onda nos Estados Unidos, nos últimos 50 anos. Além disso, Claire Moses comenta sobre a revista Feminist Studies, e também sobre sua obra como historiadora do feminismo francês a partir da época Moderna.

Neste número, apresentamos o dossiê "Artes visuais: diálogos com os estudos feministas, trans e queer", proposto e organizado por Rosa Blanca, num desdobramento da Exposição Internacional de Arte e Gênero realizada sob sua curadoria em setembro de 2013, como parte da programação do Seminário Internacional Fazendo Gênero 10: Desafios atuais dos Feminismos. O dossiê, com escritos de artistas, historiadoras, cientistas sociais e professoras/pesquisadoras que atuam desde uma posição feminista e a partir de perspectivas lésbica, trans ou queer, teve como objetivo partilhar a arte como uma forma de produção do conhecimento para um processo de subjetivação autônomo. Com artigos que criticam a colonização da arte e propõem olhares para uma tradição e uma produção artística latino-americana que considere sujeitos e corpos não hegemônicos, essa seção da revista traz um dossiê poético e teórico que apresenta contribuições para pesquisas em poéticas visuais, articulando campos inter e transdisciplinares, conforme as palavras da organizadora.

A seção Resenhas disponibiliza, mais uma vez, análises de publicações atuais no campo dos estudos de gênero e feministas, num convite a leituras.

Cristina Scheibe Wolff
Mara Coelho de Souza Lago
Tânia Regina de Oliveira Ramos

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Apr 2015
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