Open-access Guerrilhas poéticas feministas contra a soberania cisheteropatriarcal

Feminist poetic guerrillas against the cisheteropatriarchal sovereignty

Guerrillas poéticas feministas contra la soberanía cisheteropatriarcal

Resumo:

A finalidade deste ensaio é refletir sobre os movimentos contemporâneos de artistas e pensadoras que vocalizam, a partir de suas obras, o mal-estar que o cisheteropatriarcado colonial impõe às mulheres (bio e trans) e demais corpos dissidentes. Para pensar nessas produções artísticas, ancoro-me em pensadores como Paul B. Preciado, ao afirmar que uma quebra epistemológica está acontecendo neste momento, de Gloria Anzaldúa, para quem as ativistas e artistas deveriam subverter paradigmas hegemônicos inventando jeitos inéditos de contar a história de um país. Compreendo que vivenciamos um cenário de produção de solidariedades transnacionais a partir da pluralização dos feminismos e da circulação de narrativas por meio de poemas, protestos, peças de teatro. Gestos que produzem uma verdadeira guerrilha poética para derrubar o cisheteropatriarcado.

Palavras-chave:
cisheteropatriarcado; feminismos; epistemologias; arte

Abstract:

This essay aims to reflect on the contemporary movements of women artists and thinkers who vocalize, from their works, the discomfort that the colonial cisheteropatriarchy imposes to women (bio and trans) and other dissident bodies. To think about those artistic productions, I anchor myself in thinkers like Paul B. Preciado, when he states that an epistemological break is happening at this time, and Gloria Anzaldúa, for whom the activists and artists should subvert hegemonic paradigms by inventing original ways of telling the history of a country. I understand that we experience a scenario of production of transnational solidarities from the pluralization of feminisms and the circulation of narratives by means of poems, protests, plays. Gestures that produce a real poetic guerrilla to overthrow the cisheteropatriarchy.

Keywords:
Cisheteropatriarchy; Feminisms; Epistemologies; Art

Resumen:

El propósito de este ensayo es reflexionar sobre los movimientos contemporáneos de artistas y pensadores que vocalizan, desde sus obras, el malestar que el cisheteropatriarcado colonial impone a las mujeres (bio y trans) y otros cuerpos disidentes. Para pensar estas producciones artísticas, me anclan en pensadores como Paul B. Preciado cuando afirma que en este momento se está produciendo una ruptura epistemológica y de Gloria Anzaldúa, para quien activistas y artistas deben subvertir paradigmas hegemónicos inventando formas sin precedentes de contar la historia de un país. Entiendo que vivimos un escenario de producción de solidaridades transnacionales desde la pluralización de los feminismos y la circulación de narrativas a través de poemas, protestas, piezas de teatro. Gestos que producen una verdadera guerrilla poética para derrocar al cisheteropatriarcado.

Palabras clave:
cisheteropatriarcado; feminismos; epistemologías; arte

Neste ensaio, trago a escrita feita por artistas como possibilidade de produção de ferramentas desestabilizadoras do cisheteropatriarcado colonial e também de comunhão entre corpos dissidentes, como o de mulheres (bio e trans) e demais multidões. Minha reflexão é de que a circulação de nossas histórias tem nos dado potência para jogarmos com o cisheteropatriarcado um jogo diferente: passamos de silenciadas para faladoras, de envergonhadas para desavergonhadas. Com isso, percebemos que o peso do silêncio cisheteropatriarcal que nos é imposto não apenas é insustentável, mas é uma estratégia para nos manter isoladas. O título deste texto, guerrilhas poéticas, se inspira na frase de Audre Lorde (2020, p. 106): “[...] cavar boas trincheiras é ensinar”. Muito do que escrevo neste espaço tem a ver com processos de ministrar em salas de aula disciplinas sobre os feminismos. Nelas, tenho levado para estudantes o amplo universo de manifestações artísticas dissidentes que têm sido disponibilizadas para nós a partir dos últimos dez anos. Acredito que elas funcionem como trincheiras e guerrilhas por estarem comprometidas, politicamente, com a despatriarcalização do mundo. Coloco-me como uma testemunha das transformações éticas e estéticas que estamos vivenciando no Brasil e em muitos outros contextos. A pretensão de levar essas guerrilhas poéticas para a universidade se dá a partir da compreensão de que vivemos um momento diferenciado, no qual uma mudança epistemológica nos mostra que já não é mais possível sustentar nossas reflexões a partir de paradigmas tradicionais. Des-hierarquizar o espaço acadêmico, trazendo conhecimentos gestados em outros lugares, faz parte dessa transformação.

Aqui, fiz uma curadoria de algumas das obras de artistas que estão produzindo neste momento, no qual acontece uma intensa pluralização e socialização dos feminismos, o que produz efeitos em suas criações. São escritoras, poetas, atrizes, ativistas, pensadoras brasileiras, bascas, indianas, chicanas, russas, chilenas. Seus escritos possuem uma dimensão transnacional, uma vez que chegam até nós e nos afetam de um modo singular. Elas constroem poemas, autobiografias, dramaturgias que produzem uma autohistória-teoria (Anzaldúa, 2021a), e também coreografias performadas em protestos. A autohistória-teoria é uma teoria desenvolvida por Anzaldúa na qual a escritura autobiográfica está conectada com a história de vida e a autorreflexão. Aquelas(es) que se aventuram na autohistória-teoria misturam suas histórias pessoais e culturais com recordações, mitos e outras formas de teorizar. O que Anzaldúa (2021a) quer com isso é que as autohistória-teoristas quebrem os paradigmas tradicionais existentes.

Nessa curadoria, procuro também fazer uma contextualização do momento em que essas obras são lançadas e, em alguns casos, traduzidas em nosso país. A escolha de tornar visíveis essas traduções e o ano em que aconteceram têm a ver com a preocupação em mostrar às leitoras como as políticas de tradução funcionam. Obras que já possuem uma longa história, como as da pensadora chicana Gloria Anzaldúa, tiveram sua primeira publicação entre nós muito recentemente e acredito que não seja por acaso. Utilizo algumas dessas obras publicadas a partir de 2010 para construir o argumento deste texto, tentando colar-me à ideia de Paul Preciado de que uma revolução epistemológica está acontecendo.

Cabe chamar atenção para o fato de que alguns desses trabalhos somente se tornam possíveis por circularem de modo independente, com a própria artista investindo seu dinheiro para que ele possa se concretizar, como é o caso da poeta Luiza Romão, por ocasião do lançamento de seu primeiro livro, Sangria, por meio de uma plataforma de financiamento coletivo. Ou, ainda, com a publicação da obra em pequenas editoras independentes, como as editoras A Bolha (RJ) e Monstra (SP). As vozes dessas mulheres são contemporâneas e, ao mesmo tempo, são antigas. Elas se encontram para produzir uma guerrilha poética que tem como propósito um claro combate estratégico frente ao Estado e à sociedade cisheteropatriarcal. Tais guerrilhas funcionam como um convite cuja finalidade última é agregar e coletivizar a luta, transformando-a numa única luta e carregando, ao mesmo tempo, todas as diferenças.

Este ensaio, então, é o resultado das múltiplas inspirações que essa polifonia de vozes tem oportunizado para pensarmos os movimentos feministas contemporâneos. Embora não esteja mais entre nós, Anzaldúa continua sendo uma dessas inspirações, sobretudo porque ela acreditava que as mulheres poderiam figurar como artistas comprometidas com o seu tempo e criadoras de ferramentas para denunciar as opressões vividas. Guerrilheiras. Anzaldúa (2021a), desde os anos de 1980, convoca as mulheres-artistas-escritoras a serem inovadoras e subversivas. Elas deveriam escrever aquilo que ainda não foi ensinado às leitoras e leitores lerem. Ou, ainda, elas deveriam apresentar uma experiência, caso fosse familiar, de um modo radicalmente diferente. É sobre isso que este ensaio fala: da possibilidade de conhecermos a nossa história articulada com a história nacional e, por que não, mundial. A história de subalternidade de corpos de milhares de mulheres. Essa cena tem se aberto cada vez mais diante de nossos olhos e a polifonia se faz um grito urgente. Este é um convite para adentrarem na vertigem desestabilizadora a que o mundo de hoje nos lança.

Uma revolução em curso

Em entrevista para a Folha de São Paulo, em 2021, Paul B. Preciado (Naná Deluca; Úrsula Passos, 2021) afirmava que uma revolução em curso iria fazer ruir o regime heteronormativo e patriarcal. Essa revolução se daria em função de uma ruptura epistemológica que estaria contestando a representação que temos do mundo como o conhecemos. Segundo ele, a epistemologia que nós conhecemos e que ele chama de epistemologia heteropatriarcal surge no século XV, a partir de uma divisão hierárquica e política do mundo. Trata-se de um modo de organização social e de um conjunto de tecnologias de governo que surgem com a expansão do capitalismo colonial e as formas de conhecimento raciais e sexuais da Europa (Paul Preciado, 2023). A infraestrutura epistêmica dessas tecnologias é a classificação social dos seres vivos de acordo com taxonomias científicas ancoradas no binarismo das existências e em sua naturalização para que se tornem verdades imutáveis, uma “natureza” sem intervenção humana ou tecnológica: feminilidade-masculinidade, branco-não branco, civilizado-não civilizado, homo-hetero, normal-anormal. Em Disphoria Mundi (Preciado, 2023), o autor afirma que tanto o patriarcado como o colonialismo não são épocas históricas que nós deixamos para trás, mas sim epistemologias, práticas, acordos, infraestruturas cognitivas, regimes de representação, narrativas e imagens que operam no presente. É para o colapso dessa epistemologia que ele aponta em algumas de suas obras. O autor, que na reportagem citada se considera otimista e acredita ser este o melhor período histórico para se viver, diz que, uma vez rompida essa estrutura epistemológica, ruirá também a estrutura política e econômica do capitalismo como peças de um dominó que cairão uma a uma. Assim, ele afirma que, neste momento, estamos vivenciando de forma intensa a disputa em torno do que significa a realidade, de sua definição, e isso só foi possível a partir do entendimento de que existe um sistema que produz diferenças e as hierarquiza, alterizando alguns corpos (Preciado, 2023). Em texto publicado originalmente em 2003, Multidões queer (Beatriz Preciado, 2011), o autor já anunciava uma multidão queer desidentificada e desontologizada, por isso mesmo monstruosa, cuja agenda política consistiria em se opor às instituições tradicionais que se pretendiam universais e soberanas como também às epistemologias sexopolíticas “normais” que ditavam e ainda ditam as regras científicas.

Preciado (Deluca; Passos, 2021) se coloca como um pesquisador de um novo paradigma e defende três ideias que têm sido objeto de seus estudos: 1) que o regime da diferença sexual não é uma natureza ou ordem simbólica, mas sim uma epistemologia política do corpo, portanto, histórica e mutável; 2) que essa epistemologia está em crise desde os anos de 1940, abalada pelos movimentos de minorias dissidentes e também pela invenção de novas técnicas de manipulação de estruturas bioquímicas (como, por exemplo, a leitura cromossômica); 3) que essa epistemologia está sendo abalada e será modificada nos próximos vinte anos. Como proposta, defende a abolição da diferença sexual por compreendê-la como uma epistemologia que violenta os corpos desde o nascimento. Ele acredita que este seria o desmonte de uma infraestrutura que sustenta o patriarcado colonial e capitalista contemporâneo.

Como não poderia deixar de ser, essa revolução vem acompanhada de uma contrarrevolução que é a tentativa de manutenção do regime que privilegia determinados grupos. Nas palavras dele: “Há, evidentemente, um efeito bumerangue, uma volta do pensamento e do regime de poder neopatriarcal, que eu chamo de tecnopatriarcado barroco, já que não vivemos mais o período feudal” (Deluca; Passos, 2021). No caso brasileiro, acredito que essa contrarrevolução tenha se intensificado a partir de 2018, por meio de um populismo de direita com toques fascistas (Joana Pedro; Cristina Wolff; Janine Silva, 2022) que toma a retórica de uma cruzada antigênero como força motriz. Essa cruzada surge na América Latina durante os anos 2000 e, no Brasil, a partir de 2010. De acordo com Pedro, Wolff e Silva (2022), esse populismo ultraconservador acaba por esbarrar nas novas configurações feministas que já vinham se solidificando desde o início da década. Neste período são considerados inimigos da pátria indígenas, afrodescendentes, feministas e homossexuais e uma perseguição a esses grupos acontece de forma sistemática. Ao mesmo tempo que se adensa no país uma retórica antigênero, também se aguça uma consciência feminista que resulta na Primavera Feminista e acaba por ser a pedra angular das novas dinâmicas dos feminismos. Localizada entre os anos de 2013, a Primavera Feminista se caracteriza pelo adensamento de manifestações e a articulação via plataformas virtuais como Facebook e WhatsApp. De acordo com as autoras, essas manifestações foram uma resposta à onda conservadora que se fez presente em escala transnacional e que, no Brasil, tem como representantes figuras evangélicas e políticos ligados a igrejas evangélicas e católicas.

Os feminismos praticados nesse período possuem características que se diferenciam de décadas anteriores e algumas pesquisadoras o consideram como uma quarta onda (Bogado, 2018; Fabiana Martinez, 2021). O estopim desses movimentos se deu com a tentativa de Eduardo Cunha (PMDB-RJ), presidente da Câmara Federal, na época, de dificultar o aborto legal em caso de estupro, além de modificar o entendimento do que seria a violência sexual com o Projeto de Lei 5069/2013 (Brasil, 2013). Milhares de mulheres de todas as gerações saíram às ruas em protesto por todo o país. Martinez (2021, p. 2) define esse momento como o de assunção de uma “nova consciência feminista”. Ele se constitui por diferentes eixos como: sua horizontalidade, o protagonismo jovem, o uso das redes sociais com informações e socialização de teorias, das hashtags como “campanhas virais” (Bogado, 2018, p. 35) que agregam suas usuárias no combate às violências vividas e até então silenciadas, o uso do corpo, compreendido como uma plataforma política, que sai do âmbito privado e torna-se politizado e central nas performances (Lara, 2022), a recusa de lideranças, as experimentações estéticas e performáticas, os protestos e manifestações nas ruas que passam a ser entendidas como espaço coletivo de reivindicação por direitos, reunindo milhares de pessoas como as grandes marchas de mulheres indígenas, negras e camponesas.

Segundo Marlise Matos e Clarisse Paradis (2014, p. 94), essa é a primeira vez que se deve levar a sério a profusão radical de circuitos feministas operados a partir das mais distintas “correntes horizontais”: jovens, acadêmicos, negros, lésbicos, rurais, masculinos etc. Cabe também salientar a importância das manifestações surgidas em torno do dia das mulheres a partir de 2017, denominadas de 8M, marcadas por greves e manifestações. Diante disso, Pedro, Wolff e Silva (2022) afirmam que muitos desses movimentos, em função dessas características, estão conectados com movimentos mundiais, sobretudo com aqueles vindos de países latino-americanos. Todas essas manifestações possuem suas particularidades, ora se encontrando em pautas comuns, como, por exemplo, o feminicídio, ora se afastando delas. De qualquer forma, essas autoras o denominam como um movimento de massa, devido ao número de pessoas que ele tem reunido nos últimos anos.

A popularização e o enegrecimento das universidades (Regina Facchini; Íris do Carmo; Stephanie Lima, 2020), por sua vez, também promovem uma revolução epistemológica a partir do questionamento de produções de conhecimento brancocêntricas e sexistas. A existência de coletivos de estudantes organizadas, dentro dos espaços acadêmicos, volta-se para a luta por permanência a partir de um sentido ampliado, sem se reduzir apenas ao acesso a bolsas de estudos (Maíra Mendes, 2020). Noções como lugar de fala e categorias como cisgeneridade passam a circular com intensidade e tornam-se úteis para a compreensão dos sujeitos que ali se encontram, o tipo de conhecimento que produzem e as relações de poder desenhadas neste espaço (Facchini; Carmo; Lima, 2020). De 2010 para cá, há um aumento significativo de acadêmicas que se dizem feministas, como demonstram as entrevistadas de coletivos estudantis na ocasião do VII Encontro Nacional de Mulheres Estudantes da União Nacional dos Estudantes de 2016 (Martinez, 2021). É possível pensarmos que tais discussões ganham intensidade nas redes sociais e adentram a universidade como forma de produzir tensionamento em docentes e seus planos de curso, mas não só: na estrutura universitária como um todo.

De acordo com Martinez (2021), o imaginário das mulheres atualmente é composto pelos feminismos e isso se deve à relação significativa que elas possuem com as redes sociais. Para Facchini, Carmo e Lima (2020), recursos teóricos passam a ser apropriados devido à sua tradução no país e pela circulação de obras em blogs e páginas de redes sociais. Discussões propostas por grupos on-line e um leque de filiações intelectuais de múltiplos feminismos são criadas nesses espaços, produzindo impactos em suas vidas. Para as autoras, o foco que a categoria experiência ganha neste momento tem sido uma forma de reencantamento da política ao articulá-la com as práticas cotidianas e as relações de poder que fazem parte do dia a dia dos sujeitos, influenciando-os diretamente.

É imbuído desse projeto político de desmonte da infraestrutura da taxonomia patriarco-colonial e da reflexão sobre a epistemologia binária que nos rege e que está sendo desmontada que Preciado faz seu discurso, em 2019, em uma jornada internacional de psicanalistas em Paris, resultando no livro O monstro que vos fala, traduzido no Brasil pela editora Zahar, em 2022, tendo circulado, antes disso, nas redes pela livre tradução da ativista e intelectual Sara York. O discurso foi recebido com vaias de algumas das pessoas presentes e também ovacionado por tantas outras. Impedido de pronunciá-lo por completo, o autor publica aquele que viria a ser um ensaio sobre o modo como as práticas psi inventam as pessoas consideradas anormais - os monstros - a partir de uma epistemologia binária cisheteropatriarcal responsável por aprisionar as subjetividades em jaulas. É a partir da posição de um doente mental, um “disfórico” de gênero (Preciado, 2022; 2023), um monstro que se ergue do divã e recusa a jaula que lhe foi designada, que Preciado tece esse potente discurso no qual ele conta para a plateia o modo como gradualmente abandonou a posição legal e política de mulher para adentrar nas experimentações com a testosterona como aliada a fim de inventar um outro lugar para si dentro deste mundo binário.

Narrativas feministas para despatriarcalizar a existência

se há 2 no colchão
de 1 visita sempre
haverá um que não é
inocente.
(Ivánova, 2017, p. 14)

Para Maria Bogado (2018), o atual compartilhamento público das experiências e das opressões pelas quais as mulheres passam possui uma dinâmica singular, na qual a fala e a escuta são ativadas e a partilha de experiências, antes consideradas um segredo por gerar culpa e vergonha, ganham as ruas. Nas palavras da autora: “O corpo ganha palavra e a palavra, corpo” (Bogado, 2018, p. 36). Produções como o livro de poesia O Martelo, da brasileira Adelaide Ivánova (2017), podem ser mencionadas por se tratar do relato do estupro que a poeta sofreu. Ao falar sobre a coragem de escrever o livro para Julia Klein (2018, p. 125), Adelaide conta: “Nesse meio tempo, veio a primavera feminista de 2013, que acho que deu coragem a todo mundo, depois veio a hashtag #PrimeiroAssédio e abriu-se uma caixa de Pandora”. O martelo era a ferramenta que ela colocava debaixo do travesseiro, ao dormir, para se proteger de eventuais ataques novamente. Uma polifonia de vozes como a de Adelaide se amplifica e expressa experiências de assédios através de poemas, hashtags, músicas, caracterizando o que Camila Ponce Lara (2022, p. 2) nomeia de “politização do espaço íntimo”. Trago aqui o livro de Adelaide para mostrar a experiência de uma mulher após sofrer um estupro e o modo como as instituições a (mal)tratam. No poema “a porca”, ela escreve:

a escrivã é uma pessoa
e está curiosa como são
curiosas as pessoas
pergunta-me por que bebi
tanto não respondi mas sei
que a gente bebe pra morrer
sem ter que morrer muito
pergunta-me por que não
gritei já que não estava
amordaçada não respondi mas sei
que já se nasce com a mordaça
a escrivã de camisa branca
engomada
é excelente funcionária e
datilógrafa me lembra muito
uma música
um animal não lembro qual (Ivánova, 2017, p. 23).

O trauma, segundo Duda Kuhnert (2018), é trazido e elaborado por essas jovens que acabam por acionar a arte como possibilidade de expressão estética, emocional e política. A poeta indiana Rupi Kaur tornou-se conhecida como instapoeta por publicar seus poemas na plataforma Instagram, sendo lida por milhões de internautas. Livros publicados por ela como Outros jeitos de usar a boca, Meu corpo, minha casa, traduzidos pela Editora Planeta a partir de 2017, narram a experiência de ser estuprada quando menina por um adulto próximo. O processo de escrita é sua ferramenta para vocalizar o horror vivido e encontrar processos de cura ao se expor, ser lida e compreendida por uma rede de solidariedade transnacional. Talvez por isso mesmo Anzaldúa afirme que “a leitora é em alguma medida, uma coautora” (Anzaldúa, 2021b, p. 158). O primeiro livro de Kaur traduzido no Brasil, Outros jeitos de usar a boca, traz na abertura a necessidade imperiosa de desabafar e ser ouvida: “meu coração me acordou chorando ontem à noite/o que posso fazer eu supliquei/meu coração disse/escreva o livro” (Kaur, 2021). Virginie Despentes (2016), ao falar sobre o estupro que sofreu, relata que, anos após, sua triste constatação era de que os livros não poderiam fazer nada por ela. Nos livros ela encontrava todos os tipos de assunto, mas a literatura se calava em relação ao estupro. Em suas palavras: “Nenhuma mulher, após passar por um estupro, havia conseguido usar a linguagem para fazer dessa experiência o tema de um livro. Nada, nem guia, nem companhia” (Despentes, 2016, p. 34).

Desde 2016, a expressão “cultura do estupro” começou a circular entre nós, tal como demonstra a entrevista com a professora Marlise Matos Almeida (2016). Para ela, o estupro é uma forma de exercício de poder sobre o corpo das mulheres, sendo o ato de penetração uma expressão da soberania masculina. A insurgência de um ativismo protagonizado por mulheres jovens tem sido responsável por nomear essa cultura do estupro a partir do repúdio a essa prática. Do reconhecimento de que o estupro é um programa político bem delineado: esqueleto do capitalismo e representação direta do exercício do poder (Despentes, 2016). Da compreensão de que a posição dos homens é caracterizada em sociedades heterocêntricas e patriarcais pelo uso legítimo da violência (Preciado, 2020). Para Preciado (2020), essa violência se expressaria socialmente como domínio, economicamente como privilégio e sexualmente como agressão e estupro. A soberania dos homens pode ser entendida como necropolítica, já que eles têm o direito de dar a morte e reúnem consigo as tecnologias de poder que lhes dão livre acesso para praticá-las. Daí o autor considerar que homem e mulher são umas das ficções normativas mais violentas do capitalismo colonial.

Muito mais do que obras temáticas sobre assuntos como assédios, cantadas, violências, essas obras (bem como as demais mobilizações feministas e antirracistas) demonstram que a “violência sexual, racial, econômica não é um tema, mas sim uma estrutura política que configura a vida das mulheres, dos corpos feminizados, e das pessoas racializadas” (Sonia Alvarez, 2022, p. 103, grifos meus). Essas narrativas ganham o mundo, produzindo conexões e alianças num cenário globalizado, a partir de solidariedades “impensadas” (Lara, 2022, p. 6), como é o caso da performance O violador eres tu, do Coletivo Las Tesis, no Chile. Alvarez (2022) compreende protestos como este dentro de uma dinâmica transmidiática, performática, corporal e afetiva. A performance teve um efeito viral, atingindo outras realidades locais em inúmeros países, denunciando o modo como o patriarcado está entranhado nos aparelhos e instituições estatais conservadoras, reproduzindo e legitimando violências múltiplas contra as mulheres. Para Kuhnert (2018), essa vocalização do trauma tem como intencionalidade comunicar o intolerável, criando laços de coletividade para experiências até então tão pouco relatadas. As manifestações protagonizadas por milhares de mulheres em torno da coreografia O violador eres tu se dão a partir de 2019, motivadas pela morte da jovem chilena Antônia Barra, de vinte e um anos, que foi violentada e, depois de um mês, tirou a própria vida. O caso dela escancarava a conivência do sistema judiciário com o agressor e o pouco caso dado ao abuso cometido. A performance, que foi multiplicada em escala transnacional, gritava que o Estado opressor era o macho estuprador e o estribilho reunia as vozes femininas gritando uma frase importante: “E não foi minha culpa, nem onde eu estava, nem como eu me vestia”.1

A teórica e ativista boliviana María Galindo (2013) ensina que a despatriarcalização é um fato que está em andamento em nossa sociedade e que tem como característica o desacato e a desobediência das mulheres. A despatriarcalização é um método de desestruturação do poder, que funciona como uma utopia social. As ruas são fundamentalmente o palco de contestação e de construção de uma voz pública e, para ela, as ideias e as metodologias têm nascido sempre fora das tramas institucionais. A despatriarcalização parte da concepção de que, enquanto estrutura, o patriarcado pode e deve ser desmontado. Matos e Paradis (2014) apontam para a construção do estado moderno alicerçado em pressupostos de teorias liberais clássicas e patriarcais. Estas relegam as mulheres ao confinamento privado e doméstico por não as verem como aptas para o exercício político e a tomada de decisões em esferas públicas. Elas afirmam que passamos a acompanhar atualmente a desestabilização e possível despatriarcalização da instituição estatal. Nas palavras delas (Matos; Paradis, 2014, p. 68): “Entendemos toda essa movimentação recente (especialmente oriunda da virada dos anos 2000 para cá) como uma estratégia orquestrada e reflexiva das mulheres brasileiras de despatriarcalização do Estado brasileiro”.

Como mencionado anteriormente, o corpo torna-se uma plataforma política nesse período, uma plataforma de exposição e subversão. De despatriarcalização à medida que se vai às ruas com ele todo pintado e não se está só, o que implica uma espécie de segurança construída junto a outros corpos subordinados. Penso que nisso consiste um modo de desestruturação de um poder patriarcal, neste dizer: o corpo é nosso, não é do Estado, nem dos biohomens tampouco das instituições religiosas. O corpo assujeitado pelo abuso emerge das trevas e conta sua história até então colocada debaixo do tapete. No teatro, o corpo da travesti aparece inicialmente seminu e com a cabeça imersa na escuridão do palco, como se dá na peça Manifesto Transpofágico, da atriz e dramaturga Renata Carvalho:

O meu corpo (TRAVESTI) sempre chega antes, na frente, como um muro, um outdoor ou um letreiro piscante, independentemente de quem eu seja ou do que eu faça, mesmo eu existindo a partir de 1981, com impressões digitais únicas, RG tal, CPF tal, certidão de nascimento e não importa o nome escrito (Carvalho, 2021, p. 8).

A atriz interrompe a peça perto do final e se apresenta para a plateia como uma transpóloga disposta a tirar dúvidas das pessoas presentes. Com um humor fino, ela se dirige às pessoas sentadas e começa a fazer perguntas, como, por exemplo, se elas sabem qual é a forma correta de se dirigir a uma travesti, se no feminino ou masculino. Nessa interação, ela produz um exercício de desestabilização das pedagogias de gênero e sexualidades e, pacientemente, ensina e provoca quem foi assisti-la.

Nadya Tolokonnikova, ativista russa fundadora do coletivo artístico e da banda punk Pussy Riot, em seu Guia Pussy Riot para o ativismo (2019), cria dez regras para agirmos em um mundo tão escancaradamente desigual. Na regra 5 - Seja um delinquente artístico -, ela nos ensina que a magia da arte é que ela amplifica nossa voz, criando realidades alternativas, algo que ela considera muito útil quando nos deparamos com tanta falta de imaginação política. Tolokonnikova (2019) fala da importância da arte para ultrapassar limites e conectar pessoas que não falam a mesma língua. Para ela, a arte de protesto pode se tornar uma força unificadora fundamental para mobilizar ativistas mundialmente. A partir da proposição da quebra da quarta parede, ela sugere que devemos confiar em nosso público e tratá-lo como igual, envolvendo as(os) convidadas(os) na jornada, na investigação e na conversa, algo que Renata faz em sua peça. Diz ela: “O público também faz parte da obra de arte” (Tolokonnikova, 2019, p. 99). Em 2012 a banda tornou-se notícia nas manchetes de todo o mundo após entrar na Catedral de Cristo Salvador, em Moscou e, com gorros coloridos cobrindo seus rostos, dirigir-se até o altar cantando uma “oração”. Algo que durou muito pouco; segundo Nadya, elas nem chegaram ao refrão. A letra da canção pedia à Virgem Maria que tirasse Putin do poder e que se tornasse feminista. Elas também criticavam o apoio dado a Putin pelo líder da Igreja. A ação levou-as a ficarem presas por dois anos.

Feridas patriarcais e cadelas feministas

É recente a chegada dos livros de Itziar Ziga em terras brasileiras. Nos últimos dois anos, as editoras n-1 e Crocodilo lançam, em parceria, dois deles: Devir Cachorra, em 2021, e A feliz e violenta vida de Maribel Ziga, em 2022 (Ziga, 2021; 2022). O primeiro, com prólogo de Virginie Despentes e Paul Preciado, é dedicado à mãe da autora, que a buscava na escola do alto de um saltão calibre .38. Mãe essa que protagonizará o segundo livro que, como o título mesmo diz, nos contará sua vida atravessada pela violência do patriarcado. No prólogo do Devir, Despentes e Preciado (2021, p. 9) apresentam Itziar como uma “biomulher capaz de produzir uma versão putona da feminilidade [...] como estratégia de luta guerrilheira”. Segundo ela(e), uma feminilidade feita das sobras, dos detritos do gênero que repousam na lixeira da heteronorma. Tentativa de não ser capturada. Essa feminilidade que não cabe em nenhum lugar, que não está aí para agradar, Despentes (2016, p. 7) também traz na abertura de seu livro: “Escrevo a partir da feiura e para as feias, as caminhoneiras, as frígidas, as mal comidas, as incomíveis, as histéricas, as taradas, todas as excluídas do grande mercado da boa moça”. Quebrar ao meio essas tentativas de produzir boas moças tem sido o que algumas dessas escritoras ativistas trazem como jeito de questionar o patriarcado, falando a partir de uma posição de “proletária da feminilidade” (Despentes, 2016, p. 8).

Ainda segundo Despentes e Preciado (2021), a escrita de Itziar se caracteriza por vir justamente do lugar de alguém que não tem permissão para escrever e ser publicado. Ela surge dos conjuntos habitacionais, das margens acadêmicas e feministas. “Escrita-cachorra. Mas também escrita-matilha” (Despentes; Preciado, 2021, p. 11). Matilha porque feita em coletividade, uma coletividade de cachorras - mulheres fora da norma, feminilidades propositalmente sem jeito -, pois como bem vai mostrando Itziar, é necessário estar acompanhada para enfrentar as dores produzidas pela sociedade patriarcal. Nas palavras da escritora: “Porque há uma rede tecida entre nós que nos acolhe pra nos defendermos juntas das violências sistêmicas que assediam nossas vidas por sermos mulheres” (Ziga, 2022, p. 81).

A feliz e violenta vida... é um livro-harakiri, diz a autora a certa altura. Não à toa ela faz uma referência a um ritual japonês no qual se corta o abdômen para se restituir a própria honra. Pois se trata de uma longa incisão nas vísceras e sinto que nós, leitoras, a acompanhamos, pois não se pode restituir uma história sem que tenhamos testemunhas. Ao fazê-lo, correr o risco de ser tratada como uma “boneca quebrada” (Ziga, 2022, p. 92), uma vítima e, assim, derrotada. Narrar e correr o risco de verem-na como vítima/derrotada, quando, na verdade, a coragem de se dizer sobrevivente de uma família violenta requer muito preparo emocional. Sua mãe viveu as piores violências físicas, psicológicas e patrimoniais durante trinta anos e Itziar precisa denunciar que “o amor romântico é a cola mágica do patriarcado” (Ziga, 2022, p. 26). Essa cola mágica é um processo de normalização social extrema, como afirma Preciado que, paradoxalmente, vem com um conjunto de privilégios e da captura total da função desejante. Itziar Ziga identifica o início das violências de seu pai da seguinte forma: “Muitos dos ataques do meu pai contra ela começaram com as reclamações sobre comida ou limpeza, mas nós sabíamos que eram desculpas, e havia tantas...” (Ziga, 2022, p. 60). O “ogro” (Ziga, 2022, p. 47), como a escritora se refere ao pai, vivia em uma caverna, trancado em seu quarto tão logo chegava do trabalho; ele se enfurnava no cômodo a partir do meio-dia, todos os dias. Ali ele ficava jogado em sua cama, fumando e ouvindo rádio no escuro, com a persiana sempre cerrada, até levantar-se no dia seguinte às cinco da manhã e repetir as mesmas ações.

Apesar disso, sua mãe conseguiu cavar trincheiras e espaços em sua casa, junto às filhas, oportunizando uma vida também feliz como um movimento de resistência, tendo como pano de fundo o regime franquista. A autora salienta que essa trincheira aberta pela mãe, na qual ela e a irmã poderiam tomar ar diante da truculência do pai, pode ser entendida como uma forma de sobrevivência e irmandade que se dá entre mulheres. Momentos de alegria são retratados por ela:

Existiam dois mundos na minha casa: a caverna do ogro e o resto dos espaços pelos quais fluíamos despreocupadamente, a escuridão e a luz. Embora o ogro muitas vezes devastasse nosso mundo, nós três logo o reconstruíamos: essa alegria cotidiana foi nossa verdadeira sobrevivência. Depois de bater nela, sempre voltava a se fechar na caverna, e o abismo entre nós e ele se tornava insondável até o dia seguinte (Ziga, 2022, p. 35).

Neste livro, o amor e a solidariedade entre mulheres ganham realce, apontando como rota para todas nós. Em entrevista para o blog Parole de Queer (s.d.), Itziar Ziga reflete sobre o fato de sua mãe ter vivido seus primeiros trinta e seis anos em uma sufocante ditadura ultracatólica e cruel; regime político e vidas íntimas sempre estão interconectados. Trata-se, em igual medida, da necessidade de vencer uma vergonha e construir redes com leitoras na tentativa de dizer que não estamos sós. É o percurso de dor e de reação de um corpo e uma memória atravessados pela violência, a reconstrução de uma garota nascida nos anos 1970, seu contato com os feminismos e uma análise da vida de sua mãe, seu pai, e de si mesma a partir das lentes da violência machista.

Nas linhas finais, Ziga recorre à dificuldade que foi escrever aquele relato, embora consiga compreender que a vergonha não deve ser dela por ter vivido desde menina as violências patriarcais e, sim, do próprio patriarcado, que é tão desavergonhado e continua reproduzindo sempre as mesmas opressões. Em fala pública na XII Edición Escuela para el empoderamiento feminino, em 2023, Ziga afirma que onde houver patriarcado haverá movimento de mulheres. Acredito que o livro de Itziar Ziga seja a tentativa de compreensão sobre o modo como o sistema heteropatriarcal funciona bem como o exercício de nomear práticas que, por serem naturalizadas, não são compreendidas como violências machistas. Ainda nesta conferência, ela menciona a importância de compreender por que homens como seu pai, que no livro ela chama de “abismo de homem” (Ziga, 2022, p. 43), são tão perigosos e, ao mesmo tempo, tão desgraçados. Neste sentido, a escritora diz ter sido capaz de ver as fraturas que constituem este homem violento e aterrorizador, o que permitiu que ela pudesse habitar um lugar menos traumatizado. Com isso, ela pôde descolar-se da ideia de ser uma mulher marcada por toda a vida, portanto, uma vítima, uma “boneca quebrada”, rompendo com narrativas hegemônicas que a colocariam em um lugar de impotência. Sobre a morte de seu pai, ela escreve: “Aposto que [ele] teria adorado voltar a este mundo e não machucar as mulheres que amava. E ser mil vezes mais feliz do que foi. Chorei muito quando ele morreu, chorei amargamente sua solidão e seu fracasso” (Ziga, 2022, p. 54).

Trago aqui Itziar Ziga justamente por considerá-la uma guerrilheira poética porque, a partir de sua autohistória, ela faz o gesto de exposição de suas vísceras e, a um só tempo, de reflexão feminista. Sua narrativa não se reduz à descrição do sofrimento vivido, mas parte do reconhecimento de conexões impensadas entre mulheres a fim de sobreviverem e buscarem, juntas, algum refúgio numa alegria difícil diante das violências erguidas pelo cisheteropatriarcado. Resistências que só conseguimos enxergar olhando para as brechas.

Por epistemologias não binárias

Para Preciado (2023), uma nova epistemologia está sendo construída em escala planetária a partir de múltiplas vozes como de Angela Davis, Achille Mbembe, Donna Haraway, os escritos zapatistas, dentre inúmeras outras inspirações que o filósofo elenca. No Brasil, essas vozes têm sido cada vez mais traduzidas e também pensadoras brasileiras têm recebido mais atenção. Dentre essas obras, gostaria de destacar a tardia tradução de um conjunto de textos da teórica chicana Anzaldúa, A vulva é uma ferida aberta & outros ensaios. Este livro é publicado em 2021 por uma editora independente, carioca, chamada A Bolha. Trata-se de um conjunto de textos escritos pela autora tendo, dentre eles, um artigo publicado pela Revista Estudos Feministas, nos anos 2000, Falando em línguas (esta carta foi originalmente escrita nos anos de 1980). Este artigo tem sido muito acessado em textos acadêmicos tendo como base, muitas vezes, o questionamento de escritas masculinistas hegemônicas dentro da universidade. Embora o livro pelo qual a autora ficou conhecida entre nós seja de 1987 - Borderlands/La Frontera -, ele permanece sem tradução em nosso país. Acredito que é na esteira do aumento das traduções de teóricas que desestabilizam epistemologias hegemônicas que Anzaldúa é trazida para nós a partir da reunião dos ensaios que A vulva traz.

O prefácio da obra é um artigo escrito por Cláudia de Lima e Costa, originalmente publicado também na Revista Estudos Feministas, em 2005, no qual a pesquisadora nos contextualiza sobre a obra de Anzaldúa dentro de um cenário norte-americano no qual a desintegração de epistemologias e a desestabilização de certezas ganham vigor; algo que acontece mais tardiamente em nosso país. Anzaldúa (2021b) traz a Mula de Tróia como possibilidade para se pensar na subversão das hierarquias. Batendo a cabeça nos muros, a Mula abre espaço para ela e para aquelas que virão. Ato sacrificial porque, ao estilhaçar paredes, estilhaça a si mesma. Ensanguentada, se vê seu esforço para derrubar paradigmas, metodologias.

Como dito no início deste ensaio, Anzaldúa (2021a) abordará algo que nos interessa aqui, que é o trabalho da artista como aquele que oportuniza o testemunho do que está acontecendo em um país. O lado sombrio dele. Ela acreditava no poder medicinal e transformador da arte. Em suas palavras: “La sanación de nuestras heridas resulta en transformación, y la transformación resulta en la sanación de nuestras heridas” (Anzaldúa, 2021a, p. 30). Nesse sentido, ela convida as escritoras e artistas, de modo geral, a compartilharem suas experiências mais dolorosas, transmutando-as em algo valioso. Algo que, ao circular, poderá inspirar e empoderar todo mundo. Questionar as doutrinas sob as quais estamos submetidas é seu conselho. Acredito que os feminismos contemporâneos, ao trazerem diversas linguagens para a narrativização de experiências individuais e coletivas, têm trabalhado a partir deste pensamento. Anzaldúa (2021a) ampara sua teoria conceituando conhecimento/conocimiento. Para ela, conocimiento é alcançado por vias criativas - ensino, arte, dança, ativismo espiritual, meditação, escrita -, é um gesto de enlace somático e intelectual. São conocimientos subversivos estes que entrelaçam lutas, sofrimentos, teorias, capazes de ativar a imaginação e desalinhar o mapa do mundo conhecido.

Gostaria de finalizar trazendo mais uma poeta feminista que (re)conta o modo como nosso país se constitui enquanto um lugar heteropatriarcal. Em Sangria, Romão (2017) conta a história do Brasil na perspectiva de um útero, “[...] com as marcas das relações coloniais e patriarcais conservadas na constituição dos processos políticos e ciclos econômicos do país” (Luciana Borges, 2020, p. 1). O livro traz 28 poemas que retratam a “odisseia do útero” (Borges, 2020, p. 2) com seus processos fisiológicos. É construído na forma de um calendário, com fotos de partes do corpo insubordinado da poeta articulado com linhas vermelhas e objetos cotidianos (chaves, colheres, parafusos). No prefácio, Heloísa Buarque de Hollanda aponta que a estrutura do poema passa por cortes: na fisiologia do ciclo menstrual, a interrupção e a impossibilidade de concepção acontecem com a entrada das pílulas. Não por acaso, também a história do país fica em suspenso com o golpe sofrido pela presidenta Dilma, em 2016. Na pílula-poema 4, do capítulo 4, Corte, a poeta escreve: “after all como deixar uma mulher comandar o país/se ‘presidentA’ não existe?” (Romão, 2017). Borges (2020) se refere ao “modo fêmeo” de Romão pensar a história do país. A poeta constrói um projeto em torno do livro, levando-o também para o audiovisual. Em programa sobre o projeto exibido pela Rede TVT - Olhar TVT: Sangria, a voz do útero, Romão diz estar acostumada a se referir a este trabalho como um “projeto de guerrilha”. Finalizo trazendo um pensamento de seu calendário poético: “dia 10. Masturbação: [...] no pescoço/coleciono fraquezas/poemas pra não enforcar” (Romão, 2017). Poemas para não enforcar, guerrilhas para sonhar com um mundo feminista.

Referências

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    » https://www.youtube.com/watch?v=yXwgvQnTEKw
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    Para quem quiser assistir: https://www.youtube.com/watch?v=tB1cWh27rmI.
  • Como citar esse artigo de acordo com as normas da revista:
    OLIVEIRA, Érika Cecília Soares. “Guerrilhas poéticas feministas contra a soberania cisheteropatriarcal”. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 33, n. 3, e96858, 2025.
  • Financiamento:
    Não se aplica
  • Consentimento de uso de imagem:
    Não se aplica
  • Aprovação de comitê de ética em pesquisa:
    Não se aplica

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Set 2025
  • Data do Fascículo
    2025

Histórico

  • Recebido
    17 Out 2023
  • Revisado
    18 Nov 2024
  • Aceito
    28 Mar 2025
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