Acessibilidade / Reportar erro

Narrativas da sexualidade: pressupostos para uma poética queer

Narratives of sexuality: presumptions for a queer poetics

Resumos

A articulação de uma epistemologia queer permite pensar a textualidade como o lugar de encenação de uma ficção política que questiona os regimes heteronomativos do sexo e do gênero, e propõe uma estratégia de resistência baseada tanto nos corpos e nos prazeres quanto nas políticas de representação e reinvenção das masculinidades e das feminilidades. A partir de uma retomada dos princípios da narratologia, investiga-se de que forma (ou formas) o texto narrativo configura-se como espaço de negociação de uma perspectiva queer sobre a nacionalidade, a sexualidade e o gênero na enunciação. Nesse sentido, a literatura reescreve tanto o corpo sexual, tido como o lugar da subjetividade individual, quanto o corpo social/ nacional, entendido como uma ficção reguladora das sociabilidades corporais e sexuais. Com vistas a uma poética queer, busca-se evidenciar as contradições e impasses que emergem na literatura, particularmente em relação a questões de raça, classe e gênero, bem como as potencialidades e os pontos problemáticos da poética queer como lugar de intervenção cultural, no qual são performativamente projetados novos arranjos de legibilidade social.

literatura; narratologia; teoria queer; gênero; interpretação


The articulation of a queer epistemology allows us to think about textuality as a place of dramatization of a politic fiction that questions the heteronormative patterns of sex and gender, and proposes a strategy of resistance based both on bodies and pleasures and on politics of representation and reinvention of masculinities and femininities. Through the principles of narratology, it is studied in which way (or ways) the narrative is configured as a space of negotiation, from a queer perspective, of nationality, sexuality, and gender in the enunciation. In this sense, literature rewrites both the sexual body, seen as the place of individual subjectivity, and the social/ national body, understood as a fiction that balances body and sexual sociabilities. At last, the contradictions and impasses that emerge from literature are analyzed, particularly in which concerns questions of race, class, and gender, as well as the potentialities and problematic points of a queer poetics as a place of cultural intervention, intending the construction and the comprehension of this queer poetics, where new arranges of social legibility are projected in a performative way.

Literature; Narratology; Queer Theory; Gender; Interpretation


ENSAIOS

Narrativas da sexualidade: pressupostos para uma poética queer

Narratives of sexuality: presumptions for a queer poetics

Anselmo Peres Alós

ISCTEM - Instituto Superior de Ciência e Tecnologia de Moçambique

RESUMO

A articulação de uma epistemologia queer permite pensar a textualidade como o lugar de encenação de uma ficção política que questiona os regimes heteronomativos do sexo e do gênero, e propõe uma estratégia de resistência baseada tanto nos corpos e nos prazeres quanto nas políticas de representação e reinvenção das masculinidades e das feminilidades. A partir de uma retomada dos princípios da narratologia, investiga-se de que forma (ou formas) o texto narrativo configura-se como espaço de negociação de uma perspectiva queer sobre a nacionalidade, a sexualidade e o gênero na enunciação. Nesse sentido, a literatura reescreve tanto o corpo sexual, tido como o lugar da subjetividade individual, quanto o corpo social/ nacional, entendido como uma ficção reguladora das sociabilidades corporais e sexuais. Com vistas a uma poética queer, busca-se evidenciar as contradições e impasses que emergem na literatura, particularmente em relação a questões de raça, classe e gênero, bem como as potencialidades e os pontos problemáticos da poética queer como lugar de intervenção cultural, no qual são performativamente projetados novos arranjos de legibilidade social.

Palavras-chave: literatura; narratologia; teoria queer; gênero; interpretação.

ABSTRACT

The articulation of a queer epistemology allows us to think about textuality as a place of dramatization of a politic fiction that questions the heteronormative patterns of sex and gender, and proposes a strategy of resistance based both on bodies and pleasures and on politics of representation and reinvention of masculinities and femininities. Through the principles of narratology, it is studied in which way (or ways) the narrative is configured as a space of negotiation, from a queer perspective, of nationality, sexuality, and gender in the enunciation. In this sense, literature rewrites both the sexual body, seen as the place of individual subjectivity, and the social/ national body, understood as a fiction that balances body and sexual sociabilities. At last, the contradictions and impasses that emerge from literature are analyzed, particularly in which concerns questions of race, class, and gender, as well as the potentialities and problematic points of a queer poetics as a place of cultural intervention, intending the construction and the comprehension of this queer poetics, where new arranges of social legibility are projected in a performative way.

Key words: Literature; Narratology; Queer Theory; Gender; Interpretation.

Introdução

"O que realmente é disputado quando se debate sobre o poder e a representação?"

(Hugo Achugar, Planetas sem boca)

Há alguns anos, mais ou menos pela segunda metade da década de 1990, eu ainda era estudante de graduação. Acordava por volta das cinco e meia da madrugada, já que, no deslocamento de minha residência até o Instituto de Letras da UFRGS, eu costumava dispensar cerca de uma hora e meia (às vezes duas). Com vistas a aproveitar ao máximo esse tempo - cabe lembrar que eu realizava tal trajeto de ônibus - adquiri o excêntrico hábito de observar furtivamente os outros passageiros, de maneira a tentar 'desvendá-los' a partir das suas leituras matinais. "Psicologia de botequim, com um leve toque de arrogância letrada", era como uma amiga costumava descrever minha idiossincrasia. E nesse exercício diário, os jornais ganhavam a disputa pela preferência dos leitores, seguidos pelas obras de autoajuda e de alguns poucos romances best-seller. Por vezes, despontava algum romance de Machado de Assis, ou uma coletânea de poemas de Fernando Pessoa. Tal era minha dedicação (e furtividade) que dificilmente as pessoas apercebiam-se de minha curiosidade. Certa manhã, porém, inesquecível pela chuva torrencial e pelo frio antártico, sentei ao lado de um senhor de uns cinquenta, talvez sessenta anos, com o deliberado propósito de 'espiar' o leve volume de capa colorida que ele tinha em mãos.

Esse senhor, ao aperceber-se de minha intenção, esgueirava-se contra a janela do ônibus, na tentativa de ocultar o volume do meu olhar. Isso me deixou um pouco constrangido: mesmo sabendo que algumas pessoas sentiam que seu espaço pessoal era 'invadido' pelo meu olhar, era a primeira vez que eu presenciava uma atitude tão hostil. Na maioria das vezes, as pessoas hesitavam um pouco, mas logo em seguida facilitavam o acesso ao material que liam durante a viagem, algo como uma espécie de 'solidariedade letrada' compartilhada pelos adeptos da 'leitura em trânsito'. Um conceito bonito, mas que não dizia absolutamente nada ao referido senhor, da referida manhã de inverno. Apenas quando tive de descer do ônibus, um esforço mais bruto e invasivo do meu olhar conseguiu decifrar o título, impresso na capa, apesar das tentativas desse senhor de tornar 'aquele livro' o mais inacessível possível para mim. Finalmente, foi saciada minha curiosidade: tratava-se de O beijo da mulher-aranha, do argentino Manuel Puig, romance publicado pela primeira vez em 1976.

Haveria alguma ligação entre o tema da homossexualidade tratado no romance e o arredio comportamento do senhor com o qual dividi o assento do ônibus? O romance de Manuel Puig, àquela época, já fazia parte do rol dos meus 'livros de cabeceira'. Não foi necessário mais do que um mínimo de argúcia e perspicácia para chegar à conclusão de que minha apriorística hipótese (a de que aquele senhor não era dado a dividir suas leituras com outros passageiros do ônibus) estava errada. O fato que o levava a esconder sua leitura era a pressuposição de que, a partir do enredo do livro que tinha em mãos, o sujeito de olhar furtivo sentado ao seu lado 'desvelasse' algum segredo com relação à sua orientação sexual. Mesmo que o referido senhor não fosse homossexual, deduz-se, a partir de sua reação, alguma preocupação com o fato de que sua heterossexualidade fosse 'posta em dúvida' ao associar sua identidade com a subjetividade representada, no livro de Puig, através do personagem Molina.

A partir dessa situação, comecei a formular questões um pouco mais amplas, envolvendo literatura e homossexualidade. Ainda que alguns dos grandes escritores canônicos da literatura ocidental fossem homossexuais e tivessem dedicado ao menos alguma parte de sua obra para tratar do tema (basta lembrar de Gide, Proust e Wilde ou, no cenário das letras brasileiras, de Lúcio Cardoso ou Caio Fernando Abreu), dificilmente falava-se sobre o assunto nas aulas de graduação do curso de Letras. Não raras vezes, ao levantar a questão da homossexualidade como de relevância para a leitura de uma determinada obra, eu ouvia argumentos sobre o caráter 'particularista', 'irrelevante', 'impertinente' ou simplesmente 'menor' das minhas colocações. Pareceu-me que algo em comum havia entre tal hiato nas discussões acadêmicas sobre a literatura e homossexualidade, por um lado, e o desconforto do senhor que dividiu o assento do ônibus comigo naquela fria e chuvosa manhã.

O que está por trás do desconforto de ler - em público - um romance com considerável investimento na temática da homossexualidade, escrito por um autor sabidamente homossexual? Segundo Catherine Belsey, não é possível formular uma prática desvencilhada de uma teoria, por mais que essa teoria possa ser considerada óbvia ou evidente. Toda prática de leitura pressupõe uma formulação teórica que envolve a significação, os sujeitos sociais, a estrutura social e os lugares ocupados pelas pessoas nesta mesma estrutura social.1 1 BELSEY, [s.d.].

Uma 'moldura teórica' não diz respeito apenas a um modelo interpretativo a ser aplicado, tal como uma fórmula matemática, a um conjunto de textos literários de forma a deles extrair os 'verdadeiros' sentidos e significações. Pelo contrário, a moldura teórica é, em última análise, um marco epistemológico das crenças políticas do sujeito interpretante. A queda do mito da neutralidade na produção de conhecimento em literatura remonta, no mínimo, aos escritos sobre poética estrutural de Tzvetan Todorov.2 2 TODOROV, 2004, p. 11-38. Lembre-se aqui de que o objeto de uma investigação nunca é dado, mas sempre construído através da elaboração teórica. Assim, manter consciência das minhas escolhas teóricas permite-me não cair na ilusão da neutralidade do conhecimento científico, problema particularmente importante no que diz respeito à pesquisa em Literatura. Àqueles que ficarem com a impressão de que a leitura de um determinado corpus de romances é política e comprometida, afirmo com uma dupla afirmativa. Em primeiro lugar, porque 'toda' leitura é política e comprometida. 'Leitura', no sentido aqui invocado, é sempre um ato político, entendendo-se 'político' no sentido atribuído por Terry Eagleton:

Por "político" entendo apenas a maneira pela qual organizamos conjuntamente nossa vida social, e as relações de poder que isso implica [...] Qualquer teoria relacionada com a significação, valor, linguagem, sentimento e experiência humanos, inevitavelmente envolverá questões mais amplas e profundas sobre a natureza do ser e da sociedade humanos,

problemas de poder e sexualidade, interpretações da história passada, versões do presente e esperanças para o futuro.

3 3 EAGLETON, 1983, p. 209-210, grifo meu.

Se a crítica literária é sempre judicativa, é mister delinear o locus que produz dados julgamentos, o campo epistemológico norteador daquilo que entendo como produção de conhecimento e os vetores ideológicos aos quais me alinho. A segunda razão para afirmar que a leitura de um texto literário é comprometida é a de que todas as atividades de leitura e interpretação levam a marca do locus enunciativo do sujeito interpretante. Como um pesquisador situado no entrelugar dos estudos literários e dos estudos culturais, não é possível desvencilhar minhas reflexões dos discursos que me constituem como um sujeito histórico, como sujeito investigador e crítico. Minhas leituras são comprometidas politicamente do mesmo modo que todas as minhas atitudes são, em maior ou menor grau, politicamente comprometidas. É-me impossível desvincular meu trabalho intelectual das experiências de segregação e homofobia que me vitimaram durante a adolescência, condenando a expressão do meu desejo e da minha orientação sexual. Tampouco é possível desatrelar minhas reflexões sobre literatura e teoria da minha própria condição de intelectual latino-americano, herdeiro de memórias da violência dos regimes ditatoriais, os quais ameaçavam com a dor e a tortura os corpos insubordinados. Esse duplo pertencimento constitui-me como um sujeito para o qual as interconexões entre os significantes 'corpo', 'violência', 'política' e 'sexualidade' são particularmente evidentes. Parto aqui do pressuposto de que as concepções teóricas envolvidas na tarefa de crítica e interpretação revelam quais os compromissos intelectuais assumidos por um pesquisador.

Redefinindo a noção de poética

"O conteúdo representa o momento constitutivo indispensável do objeto estético, ao qual é correlativa a forma estética que, fora dessa relação em geral, não tem nenhum significado."

(Mikhail Bakhtin, Questões de literatura e de estética)

A proposição de uma poética queer implica considerar certa autonomia do literário face a outros campos disciplinares. Para Earl Miner, somente uma evidência intercultural é adequada para cobrir uma poética comparada. A noção de intertextualidade surgiu no debate comparatista a partir dos trabalhos de Julia Kristeva. Em Sèméiotiquè, Kristeva retoma a noção bakhtiniana de dialogismo textual e desenvolve-a, forjando a noção de intertextualidade: "todo texto se constrói como um mosaico de citações, todo texto é absorção e transformação de um outro texto. No lugar da noção de intersubjetividade, instala-se a de intertextualidade, e a linguagem poética se lê, pelo menos, como dupla".4 4 KRISTEVA, 1969, p. 146, tradução minha. A intertextualidade foi absorvida pelo sistema conceitual do comparatismo, permitindo uma série de novas perspectivas investigativas que não aquela das fontes e influências. Tal como Kristeva afirma em Revolution in The Poetic Language,5 5 KRISTEVA, 1984. a linguagem poética é o próprio lugar da revolução, no qual a semântica e a gramática são utilizadas em termos de contestação social e política. Em outros termos, a ambivalência da palavra poética implica a história e a sociedade no texto literário. Para retomar as reflexões formalistas, isso não implica uma indiferenciação entre a série literária e a série social,6 6 TYNIANOV, 1971, p. 105-118. mas sim a absorção da série social pela série literária como sua própria condição de significação.

Em A estratégia da forma, Laurent Jenny afirma que "as obras literárias nunca são memórias - reescrevem as suas lembranças, influenciam os seus precursores, como diria Borges. O olhar intertextual é então um olhar crítico: é isso que o define".7 7 JENNY, 1979, p. 10, grifo meu. De que maneira a intertextualidade se estabelece a partir do olhar crítico? A noção de intertextualidade estabelece uma nova modalidade de leitura e de crítica "que faz estalar a linearidade do texto. Cada referência intertextual é o lugar de uma alternativa: ou prosseguir a leitura, vendo apenas no texto um fragmento como qualquer outro [...] ou então voltar ao texto-origem, procedendo a uma espécie de anamnese intelectual".8 8 JENNY, 1979, p. 21. Jenny tem em mente, por ocasião dessa passagem, apenas a intertextualidade explícita, esteja ela materializada sob a forma de citação, paráfrase ou alusão. Busca-se aqui ampliar o alcance da intertextualidade: se ela se dá a partir de uma alternativa apresentada pelo texto, a hipótese de uma intertextualidade concretizada a partir do exercício crítico, aproximando textos que, em um primeiro momento, não citam, parafraseiam ou aludem um ao outro, é perfeitamente cabível. É a atividade crítica sobre os textos que deles extrairá uma possível poética. Assim, o intertexto comum a um dado corpus de romances pode ser tomado como este 'conjunto de relações' tornadas possíveis pela atividade crítica. Tal conjunto de relações estabeleceria, finalmente, uma poética de cunho comparatista. Destarte, a linguagem poética, amparada pela noção de intertextualidade, possibilita uma leitura conjunta dos romances que subvertem a heteronormatividade em seus enredos, no sentido de se buscar as estratégias retóricas e os temas comuns com vistas a identificar as formas da resistência aos regimes heteronormativos da normalidade.

Há que se deixar claro, pois, a noção de poética que aqui está a ser invocada. No campo da teoria literária, a noção de poética tem pelo menos duas acepções: uma de natureza normativa, outra de natureza descritiva. Historicamente, a primeira noção de poética está associada a modelos normativos do fazer literário. Basta pensar nas poéticas de Aristóteles e Boileau, por exemplo, as quais normativizavam, através de um conjunto de regras, o fazer literário. Após a ruptura provocada pelo formalismo russo e pelo estruturalismo francês, o termo 'poética' foi aplicado não a estudos de ordem 'normativa', mas a estudos de ordem 'descritiva'. Assim como a linguística estrutural buscou a descrição do funcionamento da língua, a poética estrutural buscou descrever o funcionamento da literatura, particularmente dos textos narrativos. Tzvetan Todorov utiliza o termo 'poética' em seus estudos descritivos das estruturas narrativas, como em Poética e Crítica,9 9 TODOROV, 2004, p. 65-78. enquanto Jonathan Culler o usa, em um sentido muito próximo, no seu Structuralist Poetics.10 10 CULLER, 1975. Para Mieke Bal,

qualquer prescrição a respeito de como escrever poesia fatalmente a essencializa e desafortunadamente a resume à generalidade. Excluindo a possibilidade de uma disciplina científica, a poética prescritiva também arruina a poesia. Através do essencialismo e da generalização, ela destrói aquilo que grande parte das pessoas considera ser suas mais importantes características, nomeadamente sua criatividade, sua originalidade, sua diferença e seu caráter de novidade.

11 11 BAL, 2000, p. 484, tradução minha.

Com a derrocada do mito de uma estrutura universal sobre o qual o pensamento estruturalista estava assentado, o termo poética perdeu sua pretensão universalista e ganhou uma nova conotação. Ao invés de buscar as 'constantes universais' que definiriam o romance, o conto, a poesia ou o teatro, o termo passa a ser utilizado em contextos mais específicos, dando conta de questões mais ou menos abrangentes, sem, no entanto, ambicionar a universalização dessas recorrências. Obras como A poética do pós-modernismo, de Linda Hutcheon,12 12 HUTCHEON, 1991. enquadram-se nesse novo uso, mais contemporâneo, do termo poética. Hutcheon preocupa-se com uma questão da literatura com limites precisos: a metaficção historiográfica do século XX. Nesse mesmo sentido, Edouard Glissant usa o termo em seu livro Introduction à une poétique du divers,13 13 GLISSANT, 1996. no qual trabalha com questões relativas a uma poética da diversidade na literatura antilhana. Finalmente, um uso comum da categoria está ligado à expressão 'poética autoral', referente a constantes estruturais, temas recorrentes ou estratégias narrativas típicas de um autor específico.

Ao falar de uma poética queer, reivindica-se para a poética um status que extrapola os domínios de uma poética autoral, aproximando-se do uso consagrado por Hutcheon e Glissant no cenário da reflexão contemporânea. O uso que se faz aqui do termo poética ocupa, portanto, um espaço intervalar, na medida em que, através de estratégias comparatistas, reveste-se de um caráter 'trans-autoral', não por abarcar diferentes autores, mas por preocupar-se com uma poética trespassada pela subjetividade de um grupo social específico. Para a articulação de uma poética queer comparatista, contudo, a noção de intertextualidade apenas não é suficiente. Há a necessidade de se recorrer a uma outra categoria produtiva, na medida em que o intertexto não está sendo aqui tomado como uma evidência citacional ou um dado apriorístico, mas como uma construção que se dá na atividade crítica. A noção de 'ideologema' parece apropriada para mediar a construção dessa cadeia intertextual que definirá a construção de uma poética. Segundo Julia Kristeva, "o idelogema é essa função intertextual que se pode ler 'materializada' nos diferentes níveis da estrutura de cada texto, e que se estende ao longo de seu trajeto dando-lhe as suas coordenadas históricas e sociais".14 14 KRISTEVA, 1978, p. 38. Os fundamentos de uma poética queer, nesse sentido, não estão apenas a serviço de uma descrição das narrativas; eles também possibilitam uma acurada análise de como o texto reflete, subverte e questiona a realidade do mundo social no qual está inserido.

No texto narrativo, a enunciação de valores, juízos e percepções acerca do mundo social (seja ele interno ou externo à narrativa) está atrelada à questão da configuração do narrador. Logo, é a partir da voz narrativa que se pode instaurar uma análise do locus de enunciação em questão. As articulações entre narração e focalização são cruciais para que se compreenda a delimitação de um espaço de enunciação - marcado por certa subjetividade, isto é, pela construção de um determinado 'interesse' - na narrativa literária. Cabe, portanto, revisitar algumas considerações acerca da narratologia. Por mais tautológico que possa parecer, a definição primeira de narratologia seria 'ciência ou estudo da narrativa'. Tal termo expandiu consideravelmente seu horizonte de alcance a partir de outros veios do pensamento crítico, tais como a desconstrução, os estudos de gênero e a psicanálise. Assim, talvez fosse mais adequado pensar a narratologia não como uma área específica dos estudos literários, mas sim como uma espécie de 'termo guarda-chuva', um lugar no qual múltiplas e variadas formas de abordar a narrativa se encontram.

Nas narrativas culturais (particularmente as literárias), a forma também é conteúdo; a manutenção ou a subversão da forma em uma obra pode ser decisiva para potencializar determinadas significações. A utilização de uma descrição baseada em um constructo teórico sistematizado traz, tal como afirma Mieke Bal, uma outra vantagem: "se a descrição de um texto é compreendida como uma proposta a ser apresentada aos outros, o fato desta descrição ser formulada no interior do esquema de uma teoria sistemática traz outra importante vantagem: ela facilita a discussão da descrição proposta".15 15 BAL, 1997, p. 4, tradução minha. Um texto narrativo é um texto no qual um 'sujeito da enunciação' relata uma história em um meio (ou 'sistema sígnico') particular, tal como imagens linguísticas, sons, construções, ou uma combinação de todos eles. Logo, torna-se evidente que não apenas a linguagem verbal, mas praticamente todo o tipo de signo pode ser organizado como um texto narrativo, o que permite considerar não só o texto literário, mas também o fílmico e o pictórico, como narrativas.

Por artefato cultural, compreende-se qualquer representação cultural instituída através de um sistema sígnico. Para que um artefato cultural seja considerado um texto narrativo, ele precisa, necessariamente, ser decomponível em três níveis distintos de análise: texto, história e fábula. 16 16 Utilizo 'fábula' no mesmo sentido que Mieke Bal dá ao termo em inglês ( fabula), em oposição a text e story. O termo fábula, em português, pode causar certa confusão, dado que ele é normalmente utilizado para designar um gênero narrativo muito específico (como, por exemplo, as Fábulas de Esopo). Bal utiliza o termo para pensar o cerne da narrativa, o núcleo de eventos e agentes organizado a partir de uma lógica causal e cronológica. Se o texto é uma estrutura finita composta por signos, na qual um agente necessariamente relata algo, a fábula é justamente aquilo que é relatado: consiste em "uma sequência de eventos lógica e cronologicamente relatados, os quais são provocados ou experienciados por atores [textuais]".17 17 BAL, 1997, p. 5, tradução minha. História, por sua vez, é concebida como "uma fábula apresentada de uma determinada maneira".18 18 BAL, 1997, p. 5, tradução minha. O texto é o constructo linguístico/semiótico da narrativa, na qual um agente relata uma história; a fábula é o que propriamente é contado em um texto narrativo - uma sequência lógica e cronológica de eventos produzidos por atores. A história é a maneira pela qual está disposta e organizada, ao longo da narrativa, esta sequência lógico-cronológica de eventos. Mesmo que não se confundam, tais instâncias também não são estanques e incomunicáveis. São, na verdade, elaborações teóricas, abstrações necessárias para se compreender o funcionamento do texto narrativo.19 19 Mieke Bal inspira-se nos trabalhos de Jonathan CULLER, 19775, e de Gérard GENETTE, 1972, para fazer essas formulações, que são uma espécie de 'síntese' dos dois autores, embora tal síntese não coincida exatamente nem com a proposta de Genette, nem com a de Culler, apresentando significativas inovações.

A organização dos elementos da fábula se dá de forma a constituir a história. A concatenação desses elementos na história é produzida a partir de determinados efeitos que se queira produzir: suspense, humor, retardamento ou aceleração. Se a narrativa configura-se necessariamente como uma história 'contada' por um agente, é justamente esse agente quem operacionaliza os aspectos da narrativa: esse agente é o narrador. Um texto narrativo, entretanto, não se estrutura apenas através da narração: algumas passagens podem expressar opiniões, ou ainda descrever elementos internos ao universo diegético. Esse 'agente' que fala, dada a divisão analítica proposta para o texto narrativo (texto, história e fábula), pode configurar-se de maneiras diversas em cada uma das referidas instâncias. É a distinção do diferente status entre esses agentes que delineia as características de um texto narrativo:

1) Dois tipos de "enunciadores" podem ser encontrados em um texto narrativo; um deles não atua na fábula, enquanto o outro atua. Esta diferença existe mesmo quando o narrador e o personagem são uma única e mesma pessoa, como, por exemplo, em uma narrativa relatada em primeira pessoa. O narrador é a mesma pessoa, mas em um outro momento e em uma outra situação, posteriores ao momento em que esta pessoa originalmente experienciou os eventos relatados.

2) É possível distinguir três planos em um texto narrativo: o texto, a história e a fábula. Cada um desses planos é passível de ser descrito.

3) Tal como o texto narrativo é concebido, os "conteúdos" que ele leva aos seus leitores constituem-se como uma série de eventos conectados entre si, causados ou experienciados por "actantes" [ou "atores textuais"], os quais são apresentados de uma maneira específica.20 20 BAL, 1997, p. 9, tradução minha.

O narrador é a instância que define, a partir das diferentes maneiras pelas quais pode ter sua presença indicada no texto, 'características específicas' desse texto. Acoplada à questão do narrador está a questão da focalização; juntos, narrador e focalização determinam o que se conhece por narração. Dados os três níveis distintos estabelecidos anteriormente,a focalização insere-se no âmbito da história, enquanto o narrador pertence ao âmbito do texto e das técnicas narrativas. A identidade do narrador e a focalização de uma narrativa estão estreitamente relacionadas, mas não se confundem. Tal confusão provém da ideia de que a linguagem carrega sempre uma visão de mundo; entretanto, se o narrador tem sua identidade definida pelas estratégias textuais, a focalização está, por sua vez, ligada à maneira pela qual os eventos que constituem a fábula são apresentados. É a partir do momento em que se consegue discernir o status diferenciado do narrador e da focalização que se compreende as diferentes manifestações dos agentes narrativos em cada um dos níveis de análise.

Ao invés de manter a nomenclatura tríplice de Gennete (homodiegético, heterodiegético e autodiegético), Bal distingue apenas duas instâncias narrativas no nível textual: o narrador externo (external narrator), e o personagem-narrador (character-bound narrator). O que importa nessa distinção não é a cristalização do narrador na primeira ou na terceira pessoa, mas se o narrador fala de si mesmo ou de algo que ele tenha presenciado como espectador, pois isso interfere no valor retórico de verdade das afirmações por ele feitas. Um narrador que se mostra como um narrador externo lança mão da isenção e da neutralidade para asseverar o valor de verdade não subjetivo de seus enunciados, enquanto um narrador que se insere na fábula não apenas como narrador, mas também como personagem, assume que seu depoimento está marcado pela subjetividade, por uma 'perspectiva'. Se o discurso do narrador interno implica um 'eu narro (eu testemunho)'; o discurso do narrador externo é muito mais dúbio, ao implicar tanto um 'eu narro (eu testemunho)' quanto um 'eu narro (eu invento)'.

É no sentido de se resolver esse impasse com relação ao narrador externo que reside a importância da noção de focalização. O narrador, por vezes, abre espaço para que os personagens falem: tem-se assim o discurso direto. Outras vezes, o narrador descreve cenários, personagens e eventos: é a partir da focalização que se pode apreender de onde é que fala o narrador, bem como quais são os juízos de valor que ele assevera. Um ponto de vista sempre é escolhido para realizar a organização dos eventos. Quando eles são apresentados de forma a organizar a história de uma narrativa, isso sempre é feito a partir de uma 'visão', de uma perspectiva. Isso implica a escolha de um ponto de vista; implica também uma determinada maneira de ver as coisas, um determinado ângulo a partir do qual tais eventos são percebidos. Mesmo sendo possível argumentar que a 'objetividade' seja o foco escolhido, é necessário lembrar que essa suposta objetividade é sempre uma possibilidade de percepção, e que essa mesma objetividade não é uma essência estanque ou a única possível. Vários elementos entram em questão quando se fala em percepção: a posição a partir da qual algo está sendo percebido, a distância entre quem percebe e aquilo que é percebido, o conhecimento prévio que se tem sobre o evento que está sendo percebido, e mesmo a posição ou o status social daquele que percebe. Bal define a focalização da seguinte maneira: "Gostaria de me referir às relações entre os elementos apresentados e a visão através da qual eles são apresentados com o termo focalização. A focalização é, pois, a relação entre a visão e aquilo que é 'visto' ou 'percebido'".21 21 BAL, 1997, p. 142, tradução minha.

Bal salienta ainda a existência de uma série de termos, mais ou menos consagrados, usados simetricamente ao de focalização, tais como 'ponto de vista narrativo', ou ainda 'perspectiva narrativa'. Entretanto, tais conceitos não permitem diferenciar claramente 'quem percebe' daquilo que 'é percebido': "quando não se faz distinção entre estes dois enunciadores diferentes, torna-se difícil descrever adequadamente a técnica de um texto no qual alguma coisa é vista, e esta mesma visão é narrada".22 22 BAL, 1997, p. 143, tradução minha. O termo focalização, mais do que cobrir os aspectos físicos e psicológicos da perspectiva, dá conta também do sujeito e do objeto da focalização; é graças à contribuição de Bal que se pode distinguir entre 'focalizador' (o sujeito da focalização) e o 'objeto focalizado' (o objeto da perspectiva em questão). Dado que a definição de focalização se refere a uma relação, cada um dos polos desta relação (o sujeito e o objeto da focalização) deve ser estudado separadamente. O sujeito da focalização - o focalizador - é o ponto a partir do qual os elementos que constituem a fábula são vistos e apresentados. Os objetos focalizados, por sua vez, são os próprios elementos em questão. Se a percepção do focalizador coincide com um personagem, esse personagem possui então uma vantagem sobre os demais; o leitor 'vê' com os olhos desse personagem e, ao menos a princípio, sentir-se-á inclinado a ler a 'verdade' da narrativa com as mesmas lentes pelas quais esse personagem lê essa suposta verdade.

Assim, da mesma forma que se pode pensar em narrador externo ou em um narrador-personagem (interno) à fábula, pode-se também pensar em um focalizador externo e em um focalizador-protagonista (interno).

Quando a focalização está sob o domínio de um personagem que participa da fábula como actante, podemos nos referir a uma focalização interna. Poderíamos então indicar, com a utilização do termo

focalizador externo

, que um agente anônimo, localizado no exterior da fábula, está atuando como focalizador.

23 23 BAL, 1997, p. 148, tradução minha.

Por ocasião de um focalizador externo, há a impressão de que o texto narrativo é mais objetivo, o que é, na verdade, uma falácia. Toda e qualquer narrativa consiste em um conjunto de eventos apresentados, semioticamente, a partir de uma dada perspectiva. Uma narrativa aparentemente neutra tem, na verdade, um focalizador externo, ou seja: o focalizador não coincide com nenhuma das consciências dos personagens. A narrativa pode então parecer objetiva, porque os eventos não são apresentados a partir da perspectiva dos personagens. O juízo do focalizador, pois, não está ausente:24 24 BAL, 1997, p. 149. essa consciência organizadora continua lá, ainda que fora da fábula, não apenas a organizar a apresentação dos elementos constitutivos da narrativa, mas também a emitir pareceres valorativos, tais como descrições (nas quais uns elementos são mais valorizados - detalhados - do que outros) e comentários acerca de personagens.

Ou seja: a imagem que o leitor recebe de um determinado personagem é sempre determinada pelo focalizador.25 25 Importa aqui não confundir, então, a focalização com o 'ponto de vista narrativo', uma vez que este muitas vezes é descrito como atrelado exclusivamente ao autor, outras exclusivamente ao narrador, e nunca a um personagem (à exceção das narrativas autodiegéticas). Ver, por exemplo, as considerações de Susan LANSER, 1986. Destarte, por ocasião de uma análise narrativa, quando se defronta com a descrição de um personagem ou de um narrador, cabe sempre perguntar: 1) o que o personagem/narrador focaliza dentro da narrativa? Qual a intenção desse personagem-focalizador (que pode ou não coincidir com o narrador?); 2) como tal personagem/narrador realiza a focalização? Quais são as atitudes desse personagem/narrador? Como tal personagem/narrador reage ao focalizar o objeto?; e, por fim, 3) quem o personagem/ narrador focaliza e quais são os objetos focalizados?

A maneira pela qual um personagem é apresentado fornece informações - ao mesmo tempo - sobre o focalizador e sobre o próprio objeto focalizado. Um objeto pode, por exemplo, ser visto apenas no interior da consciência do personagem-focalizador, o que aponta para o fato de ser apenas esse personagem que tem acesso a tal objeto. Em outras palavras, um objeto pode ser visível apenas dentro da mente de um personagem-focalizador. Esse personagem que percebe não pode ser um outro personagem, pelo menos não de acordo com a definição clássica de personagem; entretanto, o acesso ao universo interior de um personagem é possível a partir de uma outra instância: o focalizador externo. Por exemplo: um personagem normalmente tem acesso apenas ao que um outro personagem diz, e não ao que este outro personagem pensa.26 26 A não ser, é claro, no caso de um personagem vidente, ou com o poder de ler as mentes alheias. Neste caso, e somente em um caso desse tipo, o personagem-foca-lizador poderia 'ver' objetos perceptíveis e não perceptíveis a outros personagens. Para um personagem 'vidente', os pensamentos mais íntimos de um outro personagem configurar-se-iam como objetos perceptíveis, pois a capacidade de ler mentes transforma os pensamentos dos outros personagens - dentro deste universo diegético - em objetos perceptíveis ao focalizador. Logo, é mister ressaltar a diferenciação existente entre um focalizador que 'vê' apenas os objetos perceptíveis (presentes na fábula e ao alcance da percepção de qualquer outro personagem, configurando-se como um personagem-focalizador) daquele que também vê os objetos não perceptíveis. Por objetos não perceptíveis se entenda toda e qualquer emoção, pensamento ou sensação de um determinado personagem, elementos que não estão ao alcance da percepção de todos os outros atores textuais, mas apenas do focalizador.

De certa forma, isso diz respeito à diferença entre as palavras ditas e/ou não ditas pelos personagens. O focalizador faz com que o leitor tenha acesso aos pensamentos de determinados personagens; em contrapartida, somos compelidos a aceitar esse ponto de vista (o que nos é dado pelo focalizador) como a versão mais completa e rica em informações. A voz que narra não pode ser confundida com a consciência que focaliza, pois, enquanto no plano textual este narrador que se declina na primeira pessoa será sempre um narrador interno, a focalização não necessariamente será interna: ela pode oscilar entre interna e externa à medida que o focalizador delegue a focalização para outros personagens, através do discurso direto. O que se quer aqui explicitar é que a perspectiva do focalizador não é necessariamente a mesma do narrador, mesmo quando este narrador é um narrador-protagonista:

Quando tentamos reproduzir o ponto de vista de um outro sujeito, apenas o podemos fazer até o limite em que se conheça ou que se compreenda tal ponto de vista. É um função disso que não há diferença significativa de focalização entre uma suposta "narrativa em primeira pessoa" e uma "narrativa em terceira pessoa". Em uma "narrativa em primeira pessoa" um focalizador externo, frequentemente um "eu" amadurecido, apresenta através de sua visão uma fábula na qual participou, em um momento anterior, como actante.

27 27 BAL, 1997, p. 158, tradução minha.

Ao se articular a questão da focalização e da voz narrativa na proposição de uma poética queer, parte-se de pressuposto de que é a partir do plano da enunciação, mais do que do plano do enunciado, que são construídas as estratégias de subversão e deslocamento da matriz heteronormativa. Contudo, tais arranjos dar-se-ão sempre da mesma maneira, ou haverá uma gama de diferentes possibilidades para tal articulação? Consegue a subversão articular estratégias plurais de enunciação literária ou, pelo contrário, aposta em uma constante como forma de reiterar os deslocamentos? É a partir da interpretação dos arranjos de voz narrativa e focalização que essa pergunta poderá ser respondida.

Prolegômenos para uma poética queer

"O trabalho da narratividade consiste no engajamento do sujeito em certas posicionalidades de sentido e de desejo."

(Teresa de Lauretis, Alice Doesn't)

Que estratégias textuais estão sendo articuladas por ocasião da enunciação da homossexualidade no discurso literário? Dada a inexistência de uma homossexualidade concebida como 'essencial' ou 'arquetípica', que particularidades do campo textual e do campo da enunciação permitem afirmar um 'projeto poético' a contestar a presumida heterossexualidade do campo literário? Seria este projeto homogêneo, ou estaria ele atravessado por outras questões identitárias, tais como as diferentes maneiras de se negociar, no campo simbólico, a masculinidade, a feminilidade e a pertença nacional, entre outras pertenças identitárias? De que maneiras essa escrita literária articula o exercício de práticas eróticas não heterossexuais ao exercício da escrita de identidades minoritárias, que buscam romper o silêncio que as tradições literárias nacionais impingiram aos seus escritores?

No romance argentino El beso de la mujer araña, de Manuel Puig,28 28 A primeira edição é de 1976. As citações feitas neste trabalho remontam à edição crítica, publicada em 2002 (PUIG, 2002). os essencialismos em torno da figura do "guerrillero" e do "maricón" são desmontados e questionados. As polêmicas notas de rodapé também suscitam interpretações divergentes, na medida em que desestabilizam a linearidade da narrativa, obrigando o leitor a saltar do texto 'de cima' ao texto 'de baixo' durante grande parte do romance. Por fim, a utilização do discurso direto elide a presença de um narrador tal como é definido tradicionalmente pela narratologia. Questões semelhantes podem ser levantadas a partir da leitura do romance brasileiro Onde andará Dulce Veiga?, de Caio Fernando Abreu.29 29 ABREU, 1990. Reconhecido pela crítica literária brasileira como exímio contista, seus dois romances, bem como sua produção teatral, aguardam adormecidos pela devida atenção. Ainda que Abreu não subverta as convenções formais da narrativa de maneira tão pungente quanto Puig, seu olhar singular sobre a existência sexual dialoga com El beso de la mujer araña, no sentido de desestabilizar as categorias identitárias polarizadas em torno dos termos 'homossexualidade' e 'heterossexualidade', negando uma 'gênese' ou uma 'origem' para o comportamento homossexual. O peruano Jaime Bayly, em seu primeiro romance, No se lo digas a nadie,30 30 A primeira edição é de 1993. As citações feitas neste trabalho remontam à edição de bolso, publicada em 1994 (BAYLY, 1994). narra a trajetória de Joaquín Camino em seu processo de constituição de uma identidade homossexual, problematizando a constituição da homossexualidade em contextos heteronormativos, bem como uma série de outras exclusões e silenciamentos na construção da nacionalidade peruana, em especial com relação aos indígenas e às classes subalternizadas.

Seria incorreto afirmar a inexistência de estudos problematizando a interface 'literatura e homossexualidade' no cenário da crítica literária latino-americana. Todavia, são poucos os estudos publicados, se comparados, por exemplo, à enorme produção acadêmica na área da crítica literária de cunho feminista e dos estudos de gênero. Assim, faz-se necessário um pequeno histórico do que vem sendo produzido e publicado, cabendo ressaltar, porém, que esses estudos estão mais alinhados às investigações intelectuais de outras áreas, como a História ou a Antropologia, do que à crítica literária stricto sensu.

João Silvério Trevisan publica, em 1986, Devassos no Paraíso,31 31 TREVISAN, 2000. dedicado a traçar a história silenciada da homossexualidade no Brasil, do período colonial até a contemporaneidade. Essa obra merece destaque não apenas pelo trabalho de reinscrever um discurso silenciado na historiografia brasileira; traz também uma das primeiras, senão a primeira, tentativa de resgate de uma literatura marcada pela homossexualidade no Brasil. O interesse pelo literário, contudo, está subordinado ao interesse histórico, motivo pelo qual as análises literárias de Trevisan são muito breves. Mais do que a análise ou a interpretação, é a preocupação com o estabelecimento de uma genealogia de autores gays na literatura brasileira através dos tempos que se vê retratada em sua obra. Há uma lacuna evidente no trabalho de Trevisan: a presença lésbica na história brasileira. Entretanto, ele mesmo justifica essa ausência na abertura de seu livro, lembrando que a história das lésbicas, por haver sido 'duplamente silenciada', é ainda mais difícil de ser resgatada, uma vez que sobre elas atuam tanto os mecanismos de exclusão heteronormativos quanto os mecanismos patriarcalistas. Essa lacuna deve-se, portanto, à ausência de registros documentais recuperáveis, ainda que o autor tenha, na medida do possível, se esforçado para contemplar a homossexualidade feminina em suas investigações.

Em 1987 é publicado O lesbianismo no Brasil,32 32 MOTT, 1987. de Luiz Mott. Como que uma resposta à lacuna do trabalho de Trevisan, o trabalho de Mott dedica-se exclusivamente ao rastreamento dessa história duplamente silenciada. O eixo que fundamenta o livro de Mott é a presença das lésbicas na história e na literatura brasileira. Mott preocupa-se tanto com a questão da representação da lésbica na literatura (elencando para tanto as representações lésbicas em textos já canonizados, como os de Gregório de Mattos, Aluísio Azevedo e Marques Rebelo), quanto com a emergência da autoria lésbica (incluindo aí nomes como os de Cassandra Rios e Leila Míccolis). Há certa hesitação por parte de Mott entre categorias literárias como autoria, representação e literatura nacional, pois suas análises não evidenciam discernimento entre a projeção de uma identidade lésbica no texto literário daquela presente em textos pornográficos de autoria masculina. Ao incluir uma série de referências a cantigas medievais e outros textos portugueses, dilui-se a preocupação com a 'literatura brasileira' proposta no título do capítulo, estendendo-se a atenção de Mott para uma preocupação de caráter lusófono que não leva em consideração as peculiaridades históricas diferenciadoras da produção literária brasileira e portuguesa. Isso não implica demérito, apenas uma ampliação da perspectiva crítica que dilui a reflexão específica com o contexto brasileiro, anunciada no título da referida obra.

O historiador estadunidense James Green publica, em 1999, Beyond Carnival,33 33 GREEN, 1999; 2000. sua tese de doutorado em história latino-americana. Trata-se de uma longa investigação acerca das vivências homossexuais no eixo Rio de Janeiro-São Paulo ao longo do século XX. Seu trabalho inclui algumas notas sobre literatura, mas como o interesse de Green é mais histórico e menos literário, poder-se-ia dizer que seu olhar sobre textos como Bom-Crioulo (de Adolfo Caminha) reduz o monumento a documento. Dito de outra maneira, a complexa textualidade do artefato cultural acaba reduzida ao caráter de registro, de depoimento histórico. Isso também fica evidente nos momentos em que Green analisa a presença de João do Rio no contexto histórico brasileiro: para suas análises, importa mais a trajetória do mulato homossexual até a Academia Brasileira de Letras do que os reflexos de sua obra na comunidade letrada brasileira da primeira metade do século XX.

Vinculados a essa tendência histórico-antropológica alinham-se outros estudos nos quais as homossexualidades são pensadas juntamente com a questão da epidemia de AIDS. Na esteira do pensamento que Susan Sontag dedicou à questão em AIDS e suas metáforas,34 34 SONTAG, 1989. e em Assim vivemos agora,35 35 SONTAG, 1995. Marcelo Secron Bessa escreve Histórias positivas: a literatura (des)construindo a AIDS.36 36 BESSA, 1997. A pesquisa de Bessa, originalmente uma dissertação de mestrado em torno da AIDS e da literatura e publicada em 1997, é um estudo representativo de um outro importante viés de pesquisa: a estigmatização e a discursivização decorrentes da vinculação entre literatura, AIDS e homossexualidade. Outros estudos importantes problematizam a construção da identidade homossexual a partir da epidemia: cabe mencionar Richard Parker, autor de Beneath the Equator: Cultures of Desire, Male Homosexuality and Emerging Gay Communities in Brazil37 37 PARKER, 1999. e Na contramão da AIDS: sexualidade, intervenção, política.38 38 PARKER, 2000. Esses ensaios giram em torno do impacto da doença no modus vivendi das comunidades homossexuais, dada a estreita ligação que amalgamava a estigmatização da homossexualidade ao anátema da soropositividade durante os primeiros tempos da epidemia. As reflexões desse discurso, no qual homossexualidade e AIDS emergem como as duas faces de uma mesma moeda, produziram efeitos tão fortes na produção de artefatos culturais que, ainda hoje, este é um viés que instiga os pesquisadores. Um dos mais recentes estudos nessa linha é o de Severino Albuquerque, de 2004: Tentative Transgressions39 39 ALBUQUERQUE, 2004. explora as mudanças provocadas pela epidemia no imaginário homossexual brasileiro, tomando o teatro como artefato cultural privilegiado em suas análises.

É apenas no final dos anos 90 que a academia brasileira começa a organizar encontros específicos sobre homossexualidade e literatura. O histórico desses encontros merece especial atenção. Em 1999 ocorre o seminário "Homoerotismo e Literatura: I Encontro de Pesquisadores Universitários", na Universidade Federal Fluminense, com a participação de 18 pesquisadores. Em 2000, na mesma instituição, acontece a segunda edição do evento. Nessa ocasião, 36 pesquisadores participaram das apresentações. Ao final do evento, a necessidade de uma abordagem que ultrapassasse os limites disciplinares dos estudos literários foi levantada e, em 2001, o evento passa então a ser chamado de "Homoerotismo e Cultura: III Encontro de Pesquisadores Universitários", sediado também na UFF. Essa abertura fez com que o número de participantes apresentando os resultados de suas pesquisas saltasse para 96. O encontro também foi importante para que a discussão marcasse definitivamente um território de investigação científica na academia brasileira. Foram esses três encontros anuais, sediados na UFF, o nascedouro da ABEH (Associação Brasileira de Estudos da Homocultura).

O primeiro congresso organizado sob a rubrica da ABEH ocorreu na Universidade Federal do Espírito Santo, em 2002, no qual 35 trabalhos em torno da questão "Homocultura e Cidadania" foram apresentados. Na mesma ocasião foi lançado o livro A escrita de Adé,40 40 Wilton GARCIA e Rick SANTOS, 2002. o qual traz os resultados dos três primeiros encontros, sediados na UFF. Em 2004, na Universidade Federal de Brasília, ocorre o II Encontro da ABEH, com 188 comunicações de pesquisadores brasileiros e estrangeiros. A partir desse encontro surgiu também o livro Imagem & diversidade sexual,41 41 Sérgio ABOUD; Berenice BENTO; Wilton GARCIA; Denilson LOPES, 2004. volume coletivo organizado a partir das comunicações realizadas por ocasião do II Congresso da ABEH. Esses dois encontros foram de suma importância para cristalizar a homocultura como um lugar reconhecido para o pensamento brasileiro em torno da homossexualidade, através da institucionalização de um espaço plural de tendências teóricas e metodológicas, o que colabora para a emergência de uma epistemologia queer, entendida como uma política do conhecimento.

João Silvério Trevisan, Denilson Lopes,42 42 LOPES, 2002. James Green43 43 GREEN, 2000. e (de certa forma) Marcelo Secron Bessa44 44 BESSA, 1997. tentaram sistematizar uma certa 'tradição', algo como uma espécie de 'linha evolutiva' que evidenciasse a organicidade de uma literatura de/sobre/para homossexuais no Brasil. Denilson Lopes desenvolve a noção de 'homotextualidade' partindo da tese de que não há apenas uma temática homoerótica nessa literatura, mas também uma certa 'especificidade textual', mesmo estrutural, comum a esses textos literários. Determinados elementos (o internato, as forças armadas, a solidão e a clandestinidade das vivências gays e lésbicas) são constantes nesses textos, sustentando assim um traço distintivo dos mesmos frente ao cânone, sempre declinado no masculino e na heterossexualidade. Aquilo que Denilson Lopes chama de homotextualidade poderia ser entendido como um conjunto de 'cronotopos'45 45 Mikhail BAKHTIN, 1998. (isto é, de unidades espaço-temporais representadas no texto) específicos de uma literatura gay, homoerótica ou homoafetiva, estratégia que pode ser um tanto perigosa, na medida em que apregoa um certo essencialismo no que diz respeito à concepção de uma identidade homossexual46 46 LOPES, 2002. projetada de maneira não historicizada no texto literário.

Se a autonomia do sujeito já havia sido questionada com o nascimento da psicanálise freudiana e o postulado de um sujeito do inconsciente, as releituras do marxismo pelos estruturalistas franceses (particularmente a de Louis Althusser)47 47 ALTHUSSER, 1974; 1978a, p. 15-51; 1978b, p. 66-71. afirmam a sobredeterminação do sujeito pela ideologia, entendida como a relação imaginária de um indivíduo com as suas condições reais de existência. O pensamento de Jacques Derrida, por sua vez, postula o deslocamento do centro e a inexistência de uma exterioridade à estrutura e, por extensão, de uma exterioridade textual.48 48 DERRIDA, 1971, p. 227-249. Esse deslocamento desestabiliza princípios consagrados da produção de conhecimento ao recolocar a questão da subjetividade e da impossibilidade de se situar fora da estrutura, do texto e do objeto de análise. As críticas ao sujeito como categoria de análise que vêm sendo realizadas nos últimos trinta anos no campo da crítica e da teoria literária, tal como afirma McGee,49 49 MCGEE, 1992, p. 13. serviram para perceber que o sujeito é, antes de tudo, uma categoria da qual não se pode abrir mão. A falência de um sujeito pleno, autônomo e centrado, contudo, é evidente. A manutenção da categoria no cenário contemporâneo da crítica cultural clama, pois, por um deslocamento reconceptualizador do sujeito, bem como um debate acerca da questão ética. O pensamento feminista, os estudos gays e lésbicos, a teoria queer e os estudos pós-coloniais possibilitaram a consolidação de uma nova articulação da noção de sujeito, ao se apropriarem dessas reflexões e teorizações.

O termo queer possui, em inglês, uma saturada carga política, intraduzível para o português ou o castelhano. Queer, em inglês, significa bizarro, estranho, anormal. É também um potente vocábulo mobilizado pelo hate speech (o "discurso do ódio"), no sentido de agredir verbalmente gays, lésbicas, bissexuais e travestis. 'Sapatão', 'puto', 'bicha' e 'viado' seriam traduções aproximadas para esse sentido do termo em português, assim como 'rosquete','maricón' e 'marimacha' seriam alguns de seus correspondentes em castelhano. O estratagema retórico mobilizado pelos teóricos queer na academia estadunidense, nesse sentido, é o de 'reapropriar-se' de um termo cujo uso corrente é da ordem do pejorativo, em um gesto que recupera a possibilidade de uma 'autodesignação' para estes sujeitos sociais, ao mesmo tempo em que 'desarma' o discurso homofóbico e heteronormativo através do desmantelamento da carga semântica negativa de seus itens lexicais fundamentais. Ilustra-se, por extensão, a necessidade reiterada de se falar em 'subversão' quando se fala em estudos queer.50 50 No contexto da academia brasileira, já há um considerável corpus, ainda que recente, discutindo os influxos dos estudos queer. No campo da educação, cabe destacar os trabalhos de Guacira Lopes Louro, em especial seu livro Um corpo estranho: ensaios sobre sexualidade e teoria queer (2004a) e o artigo intitulado "Os estudos feministas, os estudos gays e lésbicos e a teoria queer como políticas do conhecimento" (2004b, p. 23-28). Outra importante contribuição foi realizada pelos Cadernos Pagu, no número 28 (janeiro-junho de 2007), no qual foi publicado um importante dossiê intitulado "Sexualidades Disparatadas", o qual inclui a tradução para o português do artigo de Eve Kosofsky Sedgwick "The Epistemology of The Closet" (SEDGWICK, 2007, p. 19-54). No entremeio dos estudos queer e do feminismo lésbico, cabe ainda destacar a importante iniciativa da professora Tania Navarro Swain que, em parceria com Margareth Rago e Marie France-Dépêche, desde 2002, edita a revista digital Labrys (disponível em: < http://vsites.unb.br/ih/his/gefem/labrys1_2/index.html>), dedicada a questões de gênero e sexualidade, dando atenção substancial para as discussões envolvendo as identidades lésbicas e a homossexualidade feminina. De acordo com Annamarie Jagose:

Enquanto a mobilização do termo

queer

em seu mais recente sentido não pode ser datada com precisão, é consenso admitir que se tornou popular nos inícios da década de 90 [do século XX]. O

queer

é um produto específico das pressões culturais e políticas que vem ganhando espaço nos debates (dentro e fora da academia) sobre questões em torno das identidades gay e lésbica. Talvez o mais significativo nesta virada tenha sido a problematização pós-estruturalista da liberação gay e do feminismo lésbico com relação à identidade e às operações de poder. [...] A deslegitimação de noções de identidade liberais, libertárias, étnicas e mesmo separatistas gerou a emergência do termo "queer"; a sua não-especificidade previne-o das críticas recentes feitas contra tendências exclusionistas das identidades "gay" e "lésbica".

51 51 JAGOSE, 1996, p. 76, tradução minha.

Uma das mais incisivas subversões alicerçadas nos estudos queer é a de definir a identidade não como um todo acabado, mas sim como um processo de 'fazer-se' eternamente reiterado. A identidade (e, em alguns sentidos, o próprio sujeito) é concebida como um efeito dos discursos, isto é, como 'performatividade'. Pensar o sujeito como resultante de processos performativos não implica pensar na morte da política ou na impossibilidade de intervenção no contexto social; implica, sim, uma reavaliação das noções de 'política' e de 'intervenção'. Implica pensar que o sujeito, quando fala, fala a partir de interesses construídos no âmbito da vida social. Implica, finalmente, questionar a legitimidade da universalidade como lugar de uma suposta 'neutralidade' política e reinvindicar uma outra universalidade, constituída como um horizonte performativamente projetado, no qual diferentes sujeitos possam estabelecer coalizões embasadas em princípios solidários: "pensamos no sujeito não como uma categoria formal de identidade, mas como a construção de um interesse".52 52 MCGEE, 1992, p. 13, tradução minha. O sujeito é a marca de um interesse socialmente construído e inserido no corpo, entendendo aqui 'corpo' não como pura imanência, mas como a instância material que possibilita a ação simbólica no contexto social mais amplo. "O sujeito nunca é puro, mas sempre-já constituído por interesses".53 53 MCGEE, 1992, p. 14, tradução minha.

Assim como 'eu', o 'outro' não pode completar-se por si mesmo. 'Eu' necessito do 'outro' para me realizar e vice-versa. É nessa lacuna, entre o 'eu' e o 'outro', que se instaura a impossibilidade da plenitude para o sujeito. Essa lacuna é o que entendo como 'diferença radical', a qual possibilita a singularidade dos sujeitos e invoca a ética como domínio necessário para a construção de uma política da diferença. Se há alguma possibilidade de definir o humano nessa política radical da diferença, esta definição gira ao redor da absoluta 'necessidade do outro' para que o humano se configure como tal. Importa, contudo, sublinhar o 'outro' como o termo privilegiado, e não como mero suplemento da 'necessidade' característica do humano. Subordinar o 'outro' à 'necessidade' é o mesmo que subordinar o 'outro' à 'necessidade do mesmo'. Tal ação reinstaura o primado do mesmo e não colabora para o estabelecimento da ética como princípio regulador de uma política da alteridade. É necessário repensar o estatuto do 'eu' fora dos domínios do mesmo, compreender o sujeito como a construção de interesse(s) e, finalmente, aceitar que o 'eu' que fala é desde sempre um 'outro' marcado pela alteridade, isto é, pela impossibilidade da completude: "a identidade é estruturada como uma linguagem: pode-se reconhecer a chamada plenitude de uma identidade particular apenas na medida em que ela diferencia-se a si mesma da ostensiva não plenitude da diferença".54 54 NEALON, 1998, p. 4, tradução minha.

A teoria queer possibilita uma ruptura epistemológica que desloca as noções tradicionais do sujeito como único, substituindo o conceito de um 'eu' singular e unívoco pelo de um 'eu' concebido performativamente através de um processo no qual são mobilizados atos repetitivos e estilizados. Ao invés de privilegiar a origem, a autonomia e o centramento, a concepção queer do sujeito privilegia a dispersão, a improvisação e a descontinuidade. O pertencimento nacional, racial ou de gênero implica diferentes experimentações da existência, irredutíveis umas às outras. O recurso à ideia de uma, ou várias, 'subjetividade(s)' torna-se inevitável nesse contexto. É necessário pensar no sujeito como a construção de um interesse a dar coerência a um corpo, como o efeito de inúmeras relações sociais. Entretanto, mesmo sendo o sujeito sobredeterminado por relações sociais, isso não implica abrir mão da ética e da responsabilidade:

eu tenho que tomar decisões eticamente responsáveis baseando-me na minha relação 'vivida' com o mundo dos interesses. Seria uma falta de responsabilidade, contudo, imaginar que esta relação 'vivida' é o limite final da minha responsabilidade ou mesmo da própria responsabilidade da crítica.

55 55 MCGEE, 1992, p. 14, tradução minha.

A literatura pensada como instituição não apenas possibilita a representação dos sujeitos; ela funciona também como uma das relações sociais que os produz. É importante percebê-la não apenas como elaboração estética, mas como artefato cultural, como veículo de representações simbólicas e valores sociais:

As obras literárias não são frutos de uma inspiração misteriosa nem são explicáveis simplesmente em função da psicologia dos seus autores. São formas de percepção, maneiras determinadas de ver o mundo, e como tais têm relações com a forma dominante de ver o mundo que é a "mentalidade social" ou ideologia de uma época. Essa ideologia é, por sua vez, produto das relações sociais concretas que os homens estabelecem entre si num tempo e lugar determinados; é o modo como essas relações de classe são sentidas, legitimadas e perpetuadas.

56 56 EAGLETON, 1978, p. 118.

Assim, muito mais do que a voz singular de um artista, o artefato literário é a expressão de uma determinada perspectiva, de um determinado conjunto de interesses. As tensões geradas pelas premissas das teorizações gays, lésbicas e feministas são extremamente produtivas para o desenvolvimento de novas estratégias textuais e intertextuais, de forma a minar as bases dos estereótipos sexuais cristalizados na cultura. Gênero e sexualidade, embora categorias distintas, não devem ser completamente desarticulados, visto que se corre o risco do completo apagamento das relações de poder estabelecidas sob o signo da diferença de gênero. Se por um lado gays e lésbicas sofrem os efeitos do discurso heteronormativo, por outro a pertença ao gênero feminino transforma radicalmente a experiência das lésbicas, diferenciando assim a socialização e, consequentemente, a textualização dos significantes 'gay' e 'lésbica' na literatura.57 57 Judith BUTLER, 1999, p. 11-20.

Neste novo tipo de relação intersubjetiva, a partir do reconhecimento do outro não como um 'a menos' (logo, hierarquicamente inferior), mas como um sujeito 'igual' em seu estatuto de sujeito (ainda que 'diferente' nas suas especificidades), um novo tipo de relação ética é estabelecida. Os sujeitos 'ex-cêntricos' são, desse modo, colocados 'ao lado de', e não 'sob' a lógica do mesmo. Um dos vetores ideológicos em questão, essencial para a compreensão dos sentidos produzidos pelos textos literários, é aquele que aponta para uma nova possibilidade de se vivenciar a relação com o outro e com o diferente.

Questionar a autonomia do sujeito, instituindo-o como uma posicionalidade, ou ainda como a construção de um interesse, abre espaço para um debate problematizador das identidades nacionais. Benedict Anderson, em Nação e consciência nacional,58 58 ANDERSON, 1989. define as nações como 'comunidades imaginadas', ou seja, não são elas apenas definidas pelos limites territoriais: elas são também 'imaginadas' e 'narrativizadas', no sentido de constituir a ideia do pluribus unum, a pertença de todos os cidadãos sob a égide de uma identidade partilhada. A literatura, e em especial o gênero romanesco, tem um importante papel nos processos de 'imaginação narrativa' das nacionalidades. Edward Said,59 59 SAID, 1995. por sua vez, afirma que este processo de narrativização - via de regra - institui a identidade nacional como unitária e monolítica, sem que se dê espaço para as diferenças de classe, de raça, de gênero e de orientação sexual, entre outras. Tais diferenças, existentes entre os diferentes sujeitos abrigados sob a égide de uma identidade nacional, quando transformadas em capital cultural através da representação literária, abrem fissuras no interior da comunidade imaginada, expondo o que Homi Bhabha identifica como as 'fronteiras internas da nação'.60 60 BHABHA, 1998. Em tempos de nascimento de um imaginário global, transnacional, ou ainda, planetário,61 61 O alcance da substituição da categoria 'global' por 'planetário', bem como suas implicações políticas no campo das discussões sobre a literatura comparada, é realizado por Gayatri C. Spivak em seu livro Death of a Discipline (SPIVAK, 2003). cabe destacar que muitos são os desterrados, os exilados, os estrangeiros. Alguns fatos poderiam soar como curiosidade de almanaque, tais como a possibilidade de asilo político por discriminação sexual oferecidos por nações como a Alemanha, a Dinamarca, a Holanda, a Suécia e a Noruega,62 62 JORNAL do Nuances, 1998, p. 8. ao mesmo tempo em que outras condenam legalmente comportamentos homossexuais com a pena de morte ou a prisão perpétua.63 63 Guiana e Uganda são dois dos países que condenam participantes de 'atos homossexuais' à prisão perpétua. Entre aqueles que condenam homossexuais à pena de morte estão Paquistão, Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos, Iêmen, Irã, Chechênia, Sudão, Afeganistão, Nigéria e Mauritânia. De acordo com levantamento da Anistia Internacional, aproximadamente 70 países possuem legislações nas quais a homossexualidade é considerada delito grave, com previsão de penas de cinco a dez anos de reclusão. Cabe ainda destacar que a ênfase da criminalização se dá, na maioria desses países, sobre a homossexualidade masculina: o processo de objetificação das mulheres pelo patriarcado faz com que seus comportamentos homossexuais sejam mais tolerados do que os dos homens. Todavia, ao se pensar na heterogeneidade de tratamentos dada aos homossexuais nos mais diversos contextos nacionais, cabe perguntar: qual o lugar reservado para os outsiders sexuais nesse imaginário planetário? De que maneira é representado, no texto literário, o confronto entre as pertenças 'nacionais' e as pertenças 'sexuais'?

A estratégia política que está sendo mobilizada na presente proposta de análise de narrativas literárias configura-se também como um ato performativo desestabilizador. Textos literários são artefatos culturais, tecnologias discursivas que produzem e disseminam crenças e valores no espaço social. Na medida em que subjetividades e corpos relegados à condição de abjetos usurpam o lugar de autoria, o lugar da produção de capital simbólico e produzem, através de personagens e narradores, percepções de mundo alternativas nas quais as possibilidades eróticas são exploradas, analisadas e redimensionadas, tais corpos interferem performativamente no espaço social. Afinal, se tanto os atos quanto os atributos de gêneros são sempre performativos, "então não há identidade preexistente pela qual um ato ou atributo possa ser medido; não haveria atos de gênero verdadeiros ou falsos, reais ou distorcidos, e a postulação de uma identidade de gênero verdadeira se revelaria uma ficção reguladora".64 64 BUTLER, 2003, p. 201. As formulações em torno da performatividade do gênero foram inicialmente feitas por Judith Butler em Gender Trouble (1990). Em seu livro seguinte, Bodies That Matter (1993), Butler reformula alguns de seus postulados assinalando particularmente algumas leituras equivocadas acerca da questão da performatividade da linguagem e da abjeção. Em Excitable Speech (1997), Butler faz um exercício analítico seminal em um dos capítulos, ao analisar as consequências do outing de militares nas forças armadas estadunidenses à luz da performatividade da identidade de gênero. Em seus trabalhos mais recentes, especialmente em Undoing Gender (2004a), Precarious Life (2004b) e Giving an Account of Oneself (2005), ela amplia o escopo de suas reflexões rumo a uma discussão mais ampla sobre a ética e a política. Se a enunciação literária contribuiu em larga escala para a produção performativa das identidades nacionais em variados contextos históricos e geográficos com sucesso, poderia a enunciação literária produzir performativamente novas possibilidades e estratégias políticas para se vivenciar o corpo, o gênero e a sexualidade?

A enunciação de um artefato cultural é também o lugar no qual um sujeito se projeta textualmente como significante, como princípio articulador de valores. O sujeito da enunciação, enfim, configura-se como articulador de um ideologema, tal como o define Kristeva: uma função intertextual que pode ser lida a partir de sua materialização nos diferentes níveis da estrutura de cada texto, e que se estende ao longo de seu trajeto dando-lhe as suas coordenadas históricas e sociais.65 65 KRISTEVA, 1978.

É pertinente que se lembre da sugestão feita por Homi K. Bhabha, no sentido de procurar um 'entrelugar' fundador de um local subjetivo próprio, a dar origem a "novos signos de identidade":

O que é teoricamente inovador e politicamente crucial

é a necessidade de passar além das narrativas de subjetividades originárias e iniciais e de focalizar aqueles momentos ou processos que são produzidos na articulação de diferenças culturais

. Esses "entre-lugares" fornecem o terreno para a elaboração de estratégias de subjetivação - singular ou coletiva - que dão início a novos signos de identidade e postos inovadores de colaboração e contestação, no ato de definir a própria ideia de sociedade.

66 66 BHABHA, 1998, p. 19-20, grifo meu.

Considerações finais

Dada a necessidade de se reformular gêneros e sexualidades, torna-se possível enunciar a hipótese de que é a partir da 'performatividade', entendida como política de resistência, que se dá a 'narrativização de um imaginário homossexual subversivo' neste campo simbólico e cultural que é constituído pela literatura romanesca. Trata-se uma escrita que, ao mesmo tempo em que nomeia, cria a identidade nomeada. Logo, as pesquisas em torno dos romances que problematizam as identidades sexuais são importantes e representativas na medida em que ficcionalizam uma realidade social ao mesmo tempo em que a constroem. Afirma Julia Kristeva, em Estrangeiros para nós mesmos, que "todo nativo sente-se mais ou menos 'estrangeiro' em seu 'próprio' lugar. Esse valor metafórico do termo 'estrangeiro' primeiramente conduz o cidadão a um embaraço referente à sua identidade sexual, nacional, política, profissional".67 67 KRISTEVA, 1994, p. 27, grifo meu. Importa avaliar, a partir de uma poética queer, de que modos os binarismos de gênero e de sexualidade são denunciados como ficções reguladoras da identidade humana. Dessa maneira, parece de extrema pertinência a proposição de uma poética que cruze, a partir da leitura de textos literários, uma reflexão a problematizar a homologia entre a constituição performativa do gênero e das identidades sexuais com a simultânea constituição, também performativa, do sentimento de pertencimento a uma comunidade nacional.

A espinha dorsal desta proposta pode ser sintetizada na seguinte sentença: a desesabilização do imaginário (hetero)sexual através da literatura subverte e reorganiza o imaginário cultural de uma nação. Uma vez que a premissa heterossexual é posta em xeque, noções cristalizadas como as de família, amor e parentalidade mostram suas fragilidades e limitações. Uma vez que isso ocorre, metáforas baseadas em tais noções, tais como 'pátria-mãe', necessitam ser reavaliadas. Pais e mães, via de regra, costumam expurgar, repreender e castigar seus filhos e filhas que se revelam com tendências homossexuais, ou que são 'pegos em flagrante', isto é, exercendo formas subversivas de performativização do seu gênero. Será que a 'pátria-mãe' não faz o mesmo com alguns dos seus 'filhos e filhas' em nome de uma noção heternormativa de 'cidadania' bastante questionável? Não estaria a 'pátria-mãe' condenando tais cidadã(o)s a um exílio que não ousa dizer seu nome?68 68 Uma discussão seminal e recente sobre a questão da performatividade na constituição do Estado-Nação é apresentada por Judith Butler e Gayatri C. Spivak em Who Sings The Nation-State? (BUTLER e SPIVAK, 2007).

É de suma importância, para os estudiosos que se dedicam a questões de pesquisa envolvendo literatura e subversão sexual, uma reflexão sobre como a questão dos limites entre o masculino e o feminino, no âmbito dos estudos de gênero, no sentido de dar conta das masculinidades e das feminilidades homossexuais, bem como da questão do travestimento. Ao articular a questão da 'performatividade do gênero' com os estudos sobre a narrativa, será possível a formulação de pressupostos basilares para a compreensão dessa 'poética sexual', ou ainda, desta 'poética queer'. Sendo o gênero performativo (isto é, constituído como um ato de linguagem), a grande aposta realizada pelos escritores queer está centrada na voz narrativa e na focalização, uma vez que o espaço de enunciação configura-se como o lugar de articulação de valores narrativos, sejam tais valores consonantes ou dissonantes do establishment cultural.

Se o corpo e o gênero são ficções políticas a serviço da heteronormatividade e por ela reguladas, em que sentido é possível 'politizar a ficção', ou seja, fazer do 'texto literário' e do 'discurso crítico' lugares de confronto e questionamento dessa matriz heterossexual? A proposição de uma poética queer, através da práxis comparatista, então, não colabora apenas para se compreender um corpus de romances que versam sobre a homossexualidade e os respectivos deslocamentos por ela provocados nas maneiras de se pensar a literatura e a cultura; ela também instiga a reordenação dos modelos através dos quais é pautada a inserção do indivíduo no social, reconfigurando não apenas o desejo pessoal, mas o desejo de participação em uma comunidade imaginada. Por que não pensar, ainda que como uma utópica ficção política, em identidades nacionais e em tradições literárias transnacionais delineadas a partir de uma poética queer?

Cabe ainda perguntar, contudo, se o investimento político em representações sociais subversivas (as quais desnudam as opressões sofridas pelos outsiders sexuais, bem como as ambivalências com as quais tais sujeitos se deparam) poderia funcionar como mecanismo de intervenção cultural. Conseguiria a literatura redimensionar as estruturas de pensamento mobilizadas para a interpretação desses sujeitos sociais na literatura representados? Fredric Jameson pergunta-se: "o texto é um objeto autônomo ou 'reflete' um contexto ou campo e, neste segundo caso, apenas repete ideologicamente esse contexto ou campo, ou possui um acerta força autônoma graças à qual poderia ser visto como uma negação desse contexto?"69 69 JAMESON, 1992, p. 34.

Uma vez que os artefatos culturais são aqui compreendidos, tal como sugere Jameson, como atos socialmente simbólicos, e que a literatura pode ser vista como um artefato cultural de caráter pedagógico (no sentido em que interpela os sujeitos ideologicamente, mobilizando o 'aprendizado' de posicionamentos políticos), é legítimo e procedente afirmar que as representações subversivas da sexualidade na literatura não funcionam apenas como a negação de um contexto social heteronormativo. Mais do que simplesmente negar esse contexto, elas assumem o caráter de intervenção, já que narrativizam o mundo, as vivências e as maneiras pelas quais os indivíduos se organizam coletivamente, 'construindo novos sentidos' para condutas humanas socialmente relegadas ao plano da abjeção.

[Recebido em setembro de 2009 e aceito para publicação em março de 2010]

  • ABOUD, Sérgio; BENTO, Berenice; GARCIA, Wilton; LOPES, Denilson. (Orgs.). Imagem & diversidade sexual: estudos da homocultura. São Paulo: Nojosa, 2004.
  • ABREU, Caio Fernando. Onde andará Dulce Veiga? São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
  • ACHUGAR, Hugo. Planetas sem boca: escritos efêmeros sobre arte, literatura e cultura. Trad. Lisley Nascimento. Belo Horizonte: UFMG, 2006.
  • ALBUQUERQUE, Severino J. Tentative Transgressions: Homosexuality, AIDS and Theater in Brazil. Madison: The University of Wiscosin Press, 2004.
  • ALTHUSSER, Louis. Ideologia e aparelhos ideológicos do Estado Trad. J. J. Moura Ramos. Lisboa: Presença; Martins Fontes, 1974.
  • ______ . "Resposta a John Lewis". In: ______ . Posições-1 Rio de Janeiro: Graal, 1978a. p. 15-51.
  • ______ . "Observação sobre uma categoria: 'processo sem sujeito nem fim(s)'". In: ______ . Posições-1 Rio de Janeiro: Graal, 1978b. p. 66-71.
  • ANDERSON, Benedict. Nação e consciência nacional. São Paulo: Ática, 1989.
  • BAKHTIN, Mikhail. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. São Paulo: UNESP; HUCITEC, 1998.
  • BAL, Mieke. Narratology 2nd Edition. Buffalo: The University of Toronto Press, 1997.
  • ______ . "Poetics, Today". Poetics Today, v. 21, n. 3, 2000. p. 479-502.
  • BAYLY, Jaime. No se lo digas a nadie. Barcelona: Planeta, 1994.
  • BHABHA, Homi K. O local da cultura Belo Horizonte: UFMG, 1998.
  • BELSEY, Catherine. A prática crítica Lisboa: Edições 70, [s.d.
  • BESSA, Marcelo Secron. Histórias positivas: a literatura (des)construindo a AIDS. Rio de Janeiro: Record, 1997.
  • BUTLER, Judith. Gender Trouble London: Routledge, 1990.
  • ______ . Bodies that Matter London: Routledge, 1993.
  • ______ . Excitable Speech: A Politics of the Performative. London: Routledge, 1997.
  • ______ . "Revisiting Bodies and Pleasures". Theory, Culture & Society, SAGE: London, Thousand Oaks and New Dheli, v. 16, n. 2, 1999. p. 11-20.
  • ______ . Problemas de gênero. Trad. Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.
  • ______ . Undoing Gender London: Routledge, 2004a.
  • ______ . Precarious Life London: Routledge, 2004b.
  • ______ . Giving an Account of Oneself. New York: Fordham University Press, 2005.
  • BUTLER, Judith, and SPIVAK, Gayatri C. Who Sings The Nation-State? Calcutta, New York, Oxford: Seagull Books, 2007.
  • CULLER, Jonathan. Structuralist Poetics. London: Routledge, 1975.
  • DE LAURETIS, Teresa. Alice Doesn't: Feminism, Semiotics, Cinema. Bloomington and Indianapolis: Indiana University Press, 1984.
  • DERRIDA, Jacques. "A estrutura, o signo e o jogo nas ciências humanas". In: ______ . A escritura e a diferença. São Paulo: Perspectiva, 1971. p. 227-249.
  • EAGLETON, Terry. Marxismo e crítica literária. Trad. Antonio Sousa Ribeiro. Porto: Afrontamento, 1978.
  • ______ . Teoria da literatura. Trad. Waltensir Dutra. São Paulo: Martins Fontes, 1983.
  • GARCIA, Wilton; SANTOS, Rick (Org.). A escrita de Adé: perspectivas teóricas dos estudos gays e lésbic@s no Brasil. São Paulo: Xamã, 2002.
  • GENETTE, Gérard. Figures III. Paris: Seuil, 1972.
  • GLISSANT, Edouard. Introduction à une poétique du divers. Paris: Gallimard, 1996.
  • GREEN, James. Beyond Carnival. London: Routledge, 1999.
  • ______ . Além do carnaval: A homossexualidade masculina no Brasil do século XX Trad. Cristina Fino e Cássio Arantes Leite. São Paulo: UNESP, 2000.
  • HUTCHEON, Linda. Poética do pós-modernismo: história, teoria, ficção. Rio de Janeiro: Imago, 1991.
  • JAGOSE, Annamarie. Queer Theory. New York: New York University Press, 1996.
  • JAMESON, Fredric. "A interpretação: a literatura como ato socialmente simbólico". In: ______ .O Inconsciente Político Trad. Valter Lellis Siqueira. São Paulo: Ática, 1992. p. 15-103.
  • JENNY, Laurent. "A estratégia da forma". In: JENNY, Laurent et al. Intertextualidades Coimbra: Almedina, 1979.
  • JORNAL do Nuances Porto Alegre, Ano 1, n. 1, p. 8, jan. 1998.
  • KRISTEVA, Julia. Sèméotiquè Paris: Seuil, 1969.
  • ______ . Semiótica do romance 2 ed. Trad. Fernando Cabral Martins. Lisboa: Arcádia, 1978.
  • ______ . Revolution in the Poetic Language. New York: Columbia University Press, 1984.
  • ______ . Estrangeiros para nós mesmos. Trad. Maria Carlota Carvalho Gomes. Rio de Janeiro: Rocco, 1994.
  • LANSER, Susan. The Narrative Act: Point of View in Prose Fiction. Princeton: Princeton University Press, 1986.
  • LOPES, Denilson. O homem que amava rapazes e outros ensaios. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2002.
  • LOURO, Guacira. Um corpo estranho: ensaios sobre sexualidade e teoria queer. Belo Horizonte: Autêntica, 2004a.
  • ______ . "Os estudos feministas, os estudos gays e lésbicos e a teoria queer como políticas do conhecimento". In: ABOUD, Sérgio; BENTO, Berenice; GARCIA, Wilton; LOPES, Denilson. (Orgs.). Imagem & diversidade sexual: estudos da homocultura. São Paulo: Nojosa, 2004b. p. 23-28.
  • MCGEE, Patrik. Telling the Other: The Question of Value in Modern and Post-Colonial Writing Ithaca: Cornell University Press, 1992.
  • MINER, Earl. Poética Comparada. Trad. Angela Gasparin. Brasília: Editora da UnB, 1996.
  • MOTT, Luiz. O lesbianismo no Brasil. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1987.
  • NEALON, Jeffrey T. Alterity Politics: Ethics and Performative Subjectivity. Durham; London: Duke University Press, 1998.
  • PARKER, Richard. Beneath the Equator London: Routledge, 1999.
  • ______ . Na contramão da AIDS: sexualidade, intervenção, política São Paulo: Editora 34, 2000.
  • PUIG, Manuel. El beso de la mujer araña. Edición crítica coordenada por José Amícola y Jorge Panesi. México: ALLCA XX, 2002.
  • SAID, Edward W. Cultura e imperialismo. Trad. Denise Bottman. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
  • SEDGWICK, Eve Kosofsky. "A epistemologia do armário". Trad. Plínio Dentzien. Revisão: Richard Miskolci e Júlio Assis Simões. Cadernos Pagu, Campinas, n. 28, p. 19-54, jan./jun. 2007.
  • SONTAG, Susan. AIDS e suas metáforas. Trad. Paulo Henriques Brito. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
  • ______ . Assim vivemos agora. Trad. Caio Fernando Abreu. Porto Alegre: Globo, 1995.
  • SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Death of a Discipline. New York: Columbia University Press, 2003.
  • TODOROV, Tzvetan. "Poética e crítica". In: ______ . As estruturas narrativas. 4 ed. São Paulo: Perspectiva, 2004. p. 65-78.
  • TREVISAN, João Silvério. Devassos no paraíso: a homossexualidade no Brasil, da Colônia à atualidade. 3. ed. Revista e ampliada. Rio de Janeiro: Record, 2000.
  • TYNIANOV, Jury. "Da evolução literária". In: BRIK, Óssip et al. Teoria da literatura: formalistas russos. Trad. Ana Maria Ribeiro, Maria Aparecida Pereira, Regina Zilberman e Antônio Carlos Hohlfeldt. Revisão: Rebeca Peixoto da Silva. Organização, apresentação e apêndice de Dionísio de Oliveira Toledo. Prefácio de Boris Schnaiderman. Porto Alegre: Globo, 1971. p. 105-118.
  • 1
    BELSEY, [s.d.].
  • 2
    TODOROV, 2004, p. 11-38.
  • 3
    EAGLETON, 1983, p. 209-210, grifo meu.
  • 4
    KRISTEVA, 1969, p. 146, tradução minha.
  • 5
    KRISTEVA, 1984.
  • 6
    TYNIANOV, 1971, p. 105-118.
  • 7
    JENNY, 1979, p. 10, grifo meu.
  • 8
    JENNY, 1979, p. 21.
  • 9
    TODOROV, 2004, p. 65-78.
  • 10
    CULLER, 1975.
  • 11
    BAL, 2000, p. 484, tradução minha.
  • 12
    HUTCHEON, 1991.
  • 13
    GLISSANT, 1996.
  • 14
    KRISTEVA, 1978, p. 38.
  • 15
    BAL, 1997, p. 4, tradução minha.
  • 16
    Utilizo 'fábula' no mesmo sentido que Mieke Bal dá ao termo em inglês (
    fabula), em oposição a
    text e
    story. O termo fábula, em português, pode causar certa confusão, dado que ele é normalmente utilizado para designar um gênero narrativo muito específico (como, por exemplo, as
    Fábulas de Esopo). Bal utiliza o termo para pensar o cerne da narrativa, o núcleo de eventos e agentes organizado a partir de uma lógica causal e cronológica.
  • 17
    BAL, 1997, p. 5, tradução minha.
  • 18
    BAL, 1997, p. 5, tradução minha.
  • 19
    Mieke Bal inspira-se nos trabalhos de Jonathan CULLER, 19775, e de Gérard GENETTE, 1972, para fazer essas formulações, que são uma espécie de 'síntese' dos dois autores, embora tal síntese não coincida exatamente nem com a proposta de Genette, nem com a de Culler, apresentando significativas inovações.
  • 20
    BAL, 1997, p. 9, tradução minha.
  • 21
    BAL, 1997, p. 142, tradução minha.
  • 22
    BAL, 1997, p. 143, tradução minha.
  • 23
    BAL, 1997, p. 148, tradução minha.
  • 24
    BAL, 1997, p. 149.
  • 25
    Importa aqui não confundir, então, a focalização com o 'ponto de vista narrativo', uma vez que este muitas vezes é descrito como atrelado exclusivamente ao autor, outras exclusivamente ao narrador, e nunca a um personagem (à exceção das narrativas autodiegéticas). Ver, por exemplo, as considerações de Susan LANSER, 1986.
  • 26
    A não ser, é claro, no caso de um personagem vidente, ou com o poder de ler as mentes alheias. Neste caso, e somente em um caso desse tipo, o personagem-foca-lizador poderia 'ver' objetos perceptíveis e não perceptíveis a outros personagens. Para um personagem 'vidente', os pensamentos mais íntimos de um outro personagem configurar-se-iam como objetos perceptíveis, pois a capacidade de ler mentes transforma os pensamentos dos outros personagens - dentro deste universo diegético - em objetos perceptíveis ao focalizador.
  • 27
    BAL, 1997, p. 158, tradução minha.
  • 28
    A primeira edição é de 1976. As citações feitas neste trabalho remontam à edição crítica, publicada em 2002 (PUIG, 2002).
  • 29
    ABREU, 1990.
  • 30
    A primeira edição é de 1993. As citações feitas neste trabalho remontam à edição de bolso, publicada em 1994 (BAYLY, 1994).
  • 31
    TREVISAN, 2000.
  • 32
    MOTT, 1987.
  • 33
    GREEN, 1999; 2000.
  • 34
    SONTAG, 1989.
  • 35
    SONTAG, 1995.
  • 36
    BESSA, 1997.
  • 37
    PARKER, 1999.
  • 38
    PARKER, 2000.
  • 39
    ALBUQUERQUE, 2004.
  • 40
    Wilton GARCIA e Rick SANTOS, 2002.
  • 41
    Sérgio ABOUD; Berenice BENTO; Wilton GARCIA; Denilson LOPES, 2004.
  • 42
    LOPES, 2002.
  • 43
    GREEN, 2000.
  • 44
    BESSA, 1997.
  • 45
    Mikhail BAKHTIN, 1998.
  • 46
    LOPES, 2002.
  • 47
    ALTHUSSER, 1974; 1978a, p. 15-51; 1978b, p. 66-71.
  • 48
    DERRIDA, 1971, p. 227-249.
  • 49
    MCGEE, 1992, p. 13.
  • 50
    No contexto da academia brasileira, já há um considerável
    corpus, ainda que recente, discutindo os influxos dos estudos
    queer. No campo da educação, cabe destacar os trabalhos de Guacira Lopes Louro, em especial seu livro
    Um corpo estranho: ensaios sobre sexualidade e teoria queer (2004a) e o artigo intitulado "Os estudos feministas, os estudos gays e lésbicos e a teoria
    queer como políticas do conhecimento" (2004b, p. 23-28). Outra importante contribuição foi realizada pelos
    Cadernos Pagu, no número 28 (janeiro-junho de 2007), no qual foi publicado um importante dossiê intitulado "Sexualidades Disparatadas", o qual inclui a tradução para o português do artigo de Eve Kosofsky Sedgwick "The Epistemology of The Closet" (SEDGWICK, 2007, p. 19-54). No entremeio dos estudos
    queer e do feminismo lésbico, cabe ainda destacar a importante iniciativa da professora Tania Navarro Swain que, em parceria com Margareth Rago e Marie France-Dépêche, desde 2002, edita a revista digital
    Labrys (disponível em: <
    http://vsites.unb.br/ih/his/gefem/labrys1_2/index.html>), dedicada a questões de gênero e sexualidade, dando atenção substancial para as discussões envolvendo as identidades lésbicas e a homossexualidade feminina.
  • 51
    JAGOSE, 1996, p. 76, tradução minha.
  • 52
    MCGEE, 1992, p. 13, tradução minha.
  • 53
    MCGEE, 1992, p. 14, tradução minha.
  • 54
    NEALON, 1998, p. 4, tradução minha.
  • 55
    MCGEE, 1992, p. 14, tradução minha.
  • 56
    EAGLETON, 1978, p. 118.
  • 57
    Judith BUTLER, 1999, p. 11-20.
  • 58
    ANDERSON, 1989.
  • 59
    SAID, 1995.
  • 60
    BHABHA, 1998.
  • 61
    O alcance da substituição da categoria 'global' por 'planetário', bem como suas implicações políticas no campo das discussões sobre a literatura comparada, é realizado por Gayatri C. Spivak em seu livro
    Death of a Discipline (SPIVAK, 2003).
  • 62
    JORNAL do Nuances, 1998, p. 8.
  • 63
    Guiana e Uganda são dois dos países que condenam participantes de 'atos homossexuais' à prisão perpétua. Entre aqueles que condenam homossexuais à pena de morte estão Paquistão, Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos, Iêmen, Irã, Chechênia, Sudão, Afeganistão, Nigéria e Mauritânia. De acordo com levantamento da Anistia Internacional, aproximadamente 70 países possuem legislações nas quais a homossexualidade é considerada delito grave, com previsão de penas de cinco a dez anos de reclusão. Cabe ainda destacar que a ênfase da criminalização se dá, na maioria desses países, sobre a homossexualidade masculina: o processo de objetificação das mulheres pelo patriarcado faz com que seus comportamentos homossexuais sejam mais tolerados do que os dos homens.
  • 64
    BUTLER, 2003, p. 201. As formulações em torno da performatividade do gênero foram inicialmente feitas por Judith Butler em
    Gender Trouble (1990). Em seu livro seguinte,
    Bodies That Matter (1993), Butler reformula alguns de seus postulados assinalando particularmente algumas leituras equivocadas acerca da questão da performatividade da linguagem e da abjeção. Em
    Excitable Speech (1997), Butler faz um exercício analítico seminal em um dos capítulos, ao analisar as consequências do
    outing de militares nas forças armadas estadunidenses à luz da performatividade da identidade de gênero. Em seus trabalhos mais recentes, especialmente em
    Undoing Gender (2004a),
    Precarious Life (2004b) e
    Giving an Account of Oneself (2005), ela amplia o escopo de suas reflexões rumo a uma discussão mais ampla sobre a ética e a política.
  • 65
    KRISTEVA, 1978.
  • 66
    BHABHA, 1998, p. 19-20, grifo meu.
  • 67
    KRISTEVA, 1994, p. 27, grifo meu.
  • 68
    Uma discussão seminal e recente sobre a questão da performatividade na constituição do Estado-Nação é apresentada por Judith Butler e Gayatri C. Spivak em
    Who Sings The Nation-State? (BUTLER e SPIVAK, 2007).
  • 69
    JAMESON, 1992, p. 34.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      21 Jan 2011
    • Data do Fascículo
      Dez 2010

    Histórico

    • Recebido
      Set 2009
    • Aceito
      Mar 2010
    Centro de Filosofia e Ciências Humanas e Centro de Comunicação e Expressão da Universidade Federal de Santa Catarina Campus Universitário - Trindade, 88040-970 Florianópolis SC - Brasil, Tel. (55 48) 3331-8211, Fax: (55 48) 3331-9751 - Florianópolis - SC - Brazil
    E-mail: ref@cfh.ufsc.br