Open-access Amor enquanto escola do comunismo: emancipação feminina e revolução sexual

Love as a School of Communism: Women’s Emancipation, and Sexual Revolution

El amor como escuela del comunismo: emancipación femenina y revolución sexual

BRONNIKOVA, Olga; RENAULT, Matthieu. . Kollontai: desfazer a família, refazer o amor. Trad. de Mei, Letícia. . São Paulo: Boitempo, 2025

Nascida em São Petersburgo, em 1872, Alexandra Mikhaylovna Kollontai foi uma das principais comunistas do século XX. Entusiasta da perspectiva política do populismo russo, descobriria o marxismo ainda no final do século XIX. A partir dele, vinculou-se aos mencheviques e, posteriormente, em meio à primeira guerra mundial, aliou-se aos bolcheviques, tornando-se parte da vanguarda do processo revolucionário que culminou na tomada do poder em outubro de 1917. Foi a única mulher a fazer parte do primeiro governo soviético, na condição de comissária do povo para a Assistência Pública. Além disso, junto a outras mulheres, criou a seção feminina do Comitê Central do partido bolchevique, denominada Jenotdel, da qual foi nomeada dirigente em 1920. Sua vasta produção teórica centrou-se, especialmente, na necessidade imperativa de conjugar a emancipação feminina e, de forma indissociável, uma nova moral sexual à construção de uma sociedade comunista. Embora tenha sido uma protagonista da primeira revolução marxista do mundo, a vida e a obra de Kollontai permanecem à margem do panteão revolucionário. No Brasil, por exemplo, ao longo do século XX, sua produção foi representada apenas por uma pequena coletânea intitulada A nova mulher e a moral sexual (Alexandra KOLLONTAI, 2000) 1. Em comparação com outras figuras da Revolução Russa, Kollontai segue, ainda hoje, relativamente desconhecida. A que se deve esse relativo ostracismo?

Movidos por essa questão, Olga Bronnikova (Universidade Bordeaux Montaigne) e Matthieu Renault (Universidade Toulouse Jean-Jaurès) escreveram uma biografia de Alexandra Kollontai. Diferente do modelo tradicional, centrado na cronologia e na intimidade, apresentam a biografia de um pensamento, focada na trajetória intelectual da revolucionária.

Concentrando-se no período de 1905 a 1923, a autora e o autor propõem a reconstrução do projeto político de Kollontai, distanciando-se de uma abordagem, tornada comum em biografias, que enfatiza pioneirismos individuais. Em outras palavras, recusam a leitura de Kollontai como uma mulher à frente de seu tempo. Ao contrário. Ao retomar os escritos teóricos da revolucionária, evidenciando, como se verá, a complexa heterogeneidade de seu pensamento, buscam apresentá-la, justamente, como filha de seu tempo.

Dividida em sete capítulos, além de um prólogo e um epílogo, a reconstrução da trajetória da revolucionária russa, levando em consideração sua imersão em um contexto histórico determinado, não os impediu de mensurar “a atualidade do pensamento e das lutas de Kollontai” (Olga BRONNIKOVA; Matthieu RENAULT, 2025, p. 17). Contudo, tornou-se importante, também, considerar sua inatualidade. Atentar-se a este aspecto é o ponto nevrálgico e principal mérito da publicação, constituindo sua originalidade e pertinência.

Ao indicar compromisso com a necessidade imperativa da emancipação feminina e da construção de uma outra sociedade, a autora e o autor compreendem a inatualidade do pensamento de Kollontai como resultado de uma dupla inadaptação ao tempo presente. Por um lado, diz respeito às “[...] ideias e perspectivas revolucionárias que a história apagou, que sofreram erosão ou foram sufocadas antes de poderem se concretizar” (BRONNIKOVA; RENAULT, 2025, p. 17). Neste sentido, mereceriam ser reatualizadas e rediscutidas. No entanto, por outro, sublinhar essa inatualidade é, também, lançar luz às zonas de sombra, ambivalências e contradições de um pensamento orientado por coordenadas históricas específicas que, invariavelmente, tornaram-se anacrônicas diante do desenvolvimento das teorias feminista e marxista.

Ao alternar e integrar as análises teóricas de Kollontai - a partir de conferências, artigos, livros e contos - com sua militância política stricto sensu no movimento de mulheres e no Partido Social-Democrata da Rússia, Bronnikova e Renault retraçam criticamente os principais aspectos de seu pensamento, sempre cotejando as temáticas abordadas com elementos pertinentes de sua vida pessoal. Embora, por vezes, as análises se estendam excessivamente e os aspectos da vida pessoal pareçam escassos para quem espera uma biografia repleta de intimidades, a articulação entre as duas esferas da vida de Kollontai - a pública e a privada - revela-se satisfatória. Isso se torna ainda mais relevante diante das quatro biografias já publicadas sobre a revolucionária russa (três em inglês e uma em francês, nenhuma delas traduzida para o português), além da autobiografia escrita por ela própria em 1926, com as quais estão em diálogo.

O encontro com o marxismo, base fundacional de seu pensamento, deu-se a partir de três obras. Para além do Manifesto Comunista (Karl MARX; Friedrich ENGELS, 2010), foram importantes os livros A mulher e o socialismo (Auguste BEBEL, 1923) e A origem da família, da propriedade privada e do Estado (Friedrich ENGELS, 2019). Apropriando-se criticamente dessas produções, Kollontai edifica um corpo teórico original, centrado, em linhas gerais, em três questões principais interrelacionadas. Primo, a historicidade intrínseca do patriarcado - e, por consequência, da família -, indicativa da correspondência orgânica entre o papel da mulher na produção e sua situação social. Secundo, a indissociabilidade, apesar das particularidades, entre o movimento de mulheres (Kollontai recusava o termo feminista) e o movimento operário. Tertio, a conjugação imperativa entre revolução política e revolução sexual, tendo como eixo a criação de uma nova moral sexual que destruísse as estruturas familiares monogâmicas, refundando o amor e a maternidade em novas bases.

Sobre a historicidade do patriarcado, a autora e o autor recuperam diversas conferências de Kollontai para enfatizar seu esforço, ao analisar diversos períodos históricos, em demonstrar que a opressão das mulheres não é natural. Tampouco a estrutura familiar. Reconfigurada sobre o capitalismo, a família, centrada no casamento monogâmico, sedimentava-se a partir de três aspectos principais: interesses financeiros e materiais; a submissão econômica das mulheres à estrutura familiar e ao marido, em vez de ao coletivo; a responsabilidade pelo cuidado dos filhos, este último sendo, fundamentalmente, uma obrigação das mulheres.

A partir dessa constatação, Bronnikova e Renault mostram que, para Kollontai, as opressões de classe e gênero, embora conectadas, mantêm suas particularidades. Crítica ao feminismo burguês, que desconsiderava a relação inextricável entre o movimento operário e o movimento das mulheres, ela buscou operar uma difícil intersecção - sem que houvesse hierarquização - entre classe e gênero.

Frutos dessa intersecção, redes de sociabilidade femininas estabeleciam-se. Internacionalmente, ainda no contexto da II Internacional, Kollontai firmou laços com Clara Zetkin, considerada uma espécie de modelo de militância para a revolucionária russa, algo que não impediu discordâncias e embates. Nacionalmente, ainda em 1905, buscou criar o gabinete da mulher no Partido Social-Democrata russo, frustrado pela dominação masculina. Para além, em 1907, fundou a Sociedade de Ajuda Mútua para as mulheres trabalhadoras, baseada em uma perspectiva de autogestão.

A partir de então, começaram a surgir críticas às suas ideias e práticas políticas. Homens do partido, incluindo Lenin, caracterizavam-na como diversionista, por defender as particularidades da luta feminina no seio do movimento operário. Evidenciando as limitações do contexto histórico, a autora e o autor apontam que mesmo mulheres como Vera Zassúlitch - que gozava de imenso prestígio por sua trajetória militante - criticavam a perspectiva de Alexandra Kollontai, por considerá-la supérflua. O marxismo “original”, “autêntico”, não deveria operar nenhuma distinção entre homens e mulheres. Segundo a Bronnikova e Renault, para Kollontai, no entanto, recusar a distinção seria recusar o status de sujeito revolucionário às mulheres.

Nenhuma de suas ideias, no entanto, sofreria tantas críticas como suas proposições a respeito do imperativo de criação de uma nova moral sexual. Com o sucesso da revolução em outubro de 1917, Kollontai decide centrar esforços no debate sobre a moral sexual. Embora a revolução tenha, logo de início, estabelecido uma legislação que facilitava o divórcio às mulheres, assim como o aborto, apontava para a insuficiência dessas medidas na emancipação das mulheres e na construção da sociedade comunista. Assim como Wilhelm Reich em A revolução sexual, publicada anos depois, em 1936, a revolucionária russa aponta para a indissociabilidade entre a luta proletária e a luta contra as estruturas familiares e conjugais. Como a família baseada no casamento monogâmico serve à manutenção da propriedade privada e, consequentemente, ao sistema capitalista, a sociedade comunista não se estabeleceria apenas com a tomada do poder. Assim como o capitalismo havia ressignificado a função social da família, seria necessário refundar a moral sexual sobre novas perspectivas, centralizando esforços para a ressignificação do núcleo do casamento e da família. Seria necessário, portanto, refundar o amor.

Ao contrário do amor monogâmico, individualista - que confinava a vida das mulheres à órbita dos maridos e ao cuidado dos filhos, reforçando, assim, os valores capitalistas - Kollontai propunha o amor-jogo. Relações afetivo-sexuais que, desprendidas da noção de pertencer e ser proprietário de outrem, servissem como uma espécie de liga construtora de uma solidariedade coletivista. Funcionando como escola do comunismo, laboratório microcósmico de uma nova sociedade, o amor como ponta de lança de uma ética comunista e camarada. O amor-camaradagem. Um movimento afetivo que, em oposição à estreiteza do âmbito familiar, libertaria, a um só tempo, os amantes e, mais especificamente, as mulheres. Assim, e somente assim, o comunismo poderia atingir, plenamente, uma relação de igualdade entre homens e mulheres.

Ressignificando o amor, transformando a moral sexual, a família seria desfeita. Com seu fim, ressignificar-se-ia, também, a maternidade. E na intersecção entre a nova moral sexual e a maternidade vislumbra-se, com nitidez, as zonas de sombra e ambivalências do pensamento da revolucionária russa.

O último capítulo é reservado a essas ambivalências, ao que a autora e o autor nomeiam como “bioprodutivismo” (BRONNIKOVA; RENAULT, 2025, p. 171). Ao unir uma perspectiva moral - segundo a qual os interesses coletivos devem se sobrepor, e até mesmo legitimar a submissão dos interesses individuais - a uma perspectiva higienista e eugenista, centrada na preservação da raça e do corpo são, a maternidade deixava de ser apenas algo natural às mulheres: tornava-se um dever perante o coletivo. Obrigação inevitável. O corpo feminino a “[...] serviço da coletividade” (BRONNIKOVA; RENAULT, 2025, p. 193), produzindo um novo membro para a república comunista.

Como filha de seu tempo, suas ideias também são registro das limitações, preconceitos e estreitezas do pensamento comunista do início do século XX. O exame da vida e obra de Kollontai não resiste às análises binárias. Para além de lançar luz ao pensamento de uma comunista pouco conhecida no Brasil, a importância do livro reside no destaque à complexidade de uma vida. Neste sentido, o livro não é apenas uma contribuição importante às historiografias feminista e marxista brasileiras, mas também à historiografia a respeito de biografias, esse “modo particular de escrever a história” (Jacques LE GOFF, 1999, p. 20), sem ceder à escrita hagiográfica.

Por fim, voltemos à questão inicial. A que se deve o ostracismo da vida e obra da revolucionária russa? O percurso da obra mostra que as razões são múltiplas. Suas posições sobre a moral sexual e sua atuação na Oposição Operária, contrária à burocratização da revolução, levaram-na a um exílio velado, com funções diplomáticas fora da URSS. Para além, é inegável que a sorte de sua trajetória também diz respeito à perspectiva androcêntrica que permeou a cultura comunista no século XX. No panteão revolucionário, as “[...] figuras heroicas e públicas, os modelos de força e coragem e, portanto, os objetos privilegiados de admiração são, majoritariamente, masculinos.” (Florence JOSHUA, 2015, p. 180).

No entanto, como explicar, por exemplo, a divergência de tratamento com a vida e obra de outras revolucionárias comunistas como Rosa Luxemburgo? Aqui, portanto, reside um segundo aspecto. Seu ostracismo não diz respeito à relevância das ambivalências e limitações de seu pensamento. Ao contrário. O esquecimento de Kollontai, em vida ou após a morte, diz respeito à intransigência contra a burocratização da revolução e, especialmente, ao seu coração teórico. Ao imperativo dialético de transformar a sociedade e, ao mesmo tempo, transformar a vida. De pensar a dialética entre amor e revolução. Sobre ela e seu pensamento foram impostas a pecha de pequeno-burgueses. As mulheres, o amor, o sexo e a família considerados como questões secundárias, menos importantes.

A biografia, somada às publicações em português de suas Obras Escolhidas (KOLLONTAI, 2021) e da coletânea Kollontai e a revolução: escritos sobre amor e luta (Annabelle BONNET; Renata MOREIRA; Maísa AMARAL, 2023), evidencia que essas questões - e sua trajetória - estão longe de ser secundárias. Ao contrário. Contribuindo às discussões a respeito das relações entre gênero, política e subjetividades, o esforço conjunto e complementar das casas editoriais brasileiras sublinha, com Kollontai, a pertinência, atualidade e urgência de pensarmos, simultaneamente, a revolução na produção e a revolução na reprodução.

Referências

  • BEBEL, August. Woman under socialism New York: New York Press, 1923[1879].
  • BONNET, Annabelle; MOREIRA, Renata; AMARAL, Maísa (org.). Kollontai e a revolução: escritos sobre amor e luta São Paulo: Expressão Popular, 2023.
  • BRONNIKOVA, Olga; RENAULT, Matthieu. Kollontai: desfazer a. família, refazer o amor Trad. de Letícia Mei. São Paulo: Boitempo, 2025.
  • ENGELS, Friedrich. A origem da família, da propriedade privada e do Estado Trad. de Nélio Schneider. São Paulo: Boitempo, 2019 [1884].
  • JOSHUA, Florence. Anticapitalistes. Une sociologie historique de l’engagement Paris: La Découverte, 2015.
  • KOLLONTAI, Alexandra. Obras escolhidas 2v. São Paulo: Lavrapalavra, 2021.
  • KOLLONTAI, Alexandra. A nova mulher e a moral sexual São Paulo: Expressão Popular, 2000.
  • LE GOFF, Jacques. São Luís Rio de Janeiro: Record, 1999.
  • MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Manifesto Comunista São Paulo: Boitempo, 2010 [1848].
  • 1
    A primeira edição desta obra, reeditada posteriormente, remonta aos anos 1930.
  • Como citar esse artigo de acordo com as normas da revista:
    CODARIN, Higor. “Amor enquanto escola do comunismo: emancipação feminina e revolução sexual”. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 33, n. 3, e107013, 2025.
  • Financiamento:
    Pesquisa financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Processo nº 2023/14002-7).
  • Consentimento de uso de imagem:
    Não se aplica.
  • Aprovação de comitê de ética em pesquisa:
    Não se aplica.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Ago 2025
  • Data do Fascículo
    2025

Histórico

  • Recebido
    15 Maio 2025
  • Revisado
    28 Jun 2025
  • Aceito
    03 Jul 2025
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