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Fanzines e protagonismo LGBTI+ na formação da política penitenciária do Ceará

Fanzines and LGBTI+ protagonism in the formation of penitentiary policy in Ceará

Fanzines y protagonismo LGBTI + en la formación de la política penitenciaria en Ceará

Resumo:

Neste artigo, analisamos de que forma a organização das pessoas LGBTI+ resultou em políticas destinadas a essa população no interior dos presídios cearenses. A partir do trabalho de campo etnográfico e da análise dos fanzines produzidos no interior das prisões, abordamos a presença de “facções” disputando com o Estado a (co)gestão das prisões e as relações de poder e hierarquia entre presos mobilizados pelas noções correntes de virilidade, heterossexualidade e violência. Neste cenário de tensão, a produção de fanzines tornou-se uma importante materialidade histórica e política, marcando a emergência de um organismo de coalizão entre os LGBTI+ e configurando-se em um instrumento por meio do qual se reivindica um lugar de sujeito de direitos.

Palavras-chave:
Prisão; pessoas LGBTI+; direitos humanos; “facções”

Abstract:

This article analyzes how the organization of LGBTI+ people resulted in policies aimed at this population within the prisons of Ceará. From the ethnographic fieldwork and the analysis of fanzines produced inside the prisons, I approach the presence of “factions” disputing with the State the (co)management of prisons and the relations of power and hierarchy among prisoners mobilized by current notions of virility, heterosexuality and violence. In this tense scenario, the production of fanzines has become an important historical and political materiality, marking the emergence of a coalition body between the LGBTI+ and configuring an instrument through which a place as a subject of rights is claimed.

Keywords:
Prison; LGBTI+ people; human rights; “factions”

Resumen:

Este artículo analiza cómo la organización de personas LGBTI + resultó en políticas dirigidas a esta población dentro de las cárceles de Ceará. Desde el trabajo de campo etnográfico y el análisis de los fanzines producidos al interior de las cárceles, abordo la presencia de “facciones” que disputan con el Estado la (co)gestión de las cárceles y las relaciones de poder y jerarquía entre los presos movilizados por las nociones actuales de virilidad, heterosexualidad y violencia. En este tenso escenario, la producción de fanzines se ha convertido en una importante materialidad histórica y política, marcando el surgimiento de un organismo de coalición entre las LGBTI + y configurando un instrumento a través del cual se reivindica un lugar como sujeto de derechos.

Palabras llave:
Prisión; personas LGBTI +; derechos humanos; “Facciones”

Introdução

Quando eu não mais existir

Procure-me no céu, que serei uma estrela

“brilhante”.

Procure-me em si mesma que eu estarei em

“teus pensamentos”.

Procure-me numa flor, que serei o perfume

Daquelas que você “tocar”.

Procure-me nas noites frias, que serei

a brisa que beija seus “lábios”.

Procure-me no mar que serei a primeira

onda que vem ao teu

encontro só pra te dizer

Eu te amo!

Senhor tenha misericórdia de nós!

(Francisco F. Silveira, Só Babado, 2014SÓ BABADO. Mundo Gay, n. 1, 2014. Disponível em Disponível em https://issuu.com/camilavasconcelos51/docs/s__babado_2014 . Acesso em 10/06/2019.
https://issuu.com/camilavasconcelos51/do...
, p. 03).

A presença cada vez mais incisiva de “facções”1 1 “Facções” é um termo predominantemente utilizado por agentes de segurança, internos, gestores, entre outras pessoas que se relacionam com a prisão para se referir aos coletivos de presos atuantes dentro e fora de prisões do Ceará. Logicamente, esse é um termo êmico. Portanto, ao longo deste texto, ele será redigido entre aspas. no Ceará vem implicando mudanças nos modos organizacionais e em conflitualidades entre diferentes grupos habitantes das periferias e em prisões desde 2014. O caráter extensivo das dinâmicas e das mobilidades entre a prisão e a cidade é cada vez mais implicado nos debates recentes sobre prisões (Manuela CUNHA, 2008CUNHA, Manuela Ivone. “Prisão e sociedade: modalidades de uma conexão”. In: CUNHA, Manuela Ivone. Aquém e além da prisão: cruzamentos e perspectivas. Lisboa: 90 Graus, 2008. p. 7-32.; Rafael GODOI, 2015GODOI, Rafael. “Vasos comunicantes, fluxos penitenciários: entre o dentro e o fora das prisões de São Paulo”. Vivência: Revista de Antropologia, v. 1, n. 46, p. 131-142, 2015.; Francisco Elionardo de Melo NASCIMENTO; Roberto MARQUES, 2019NASCIMENTO, Francisco Elionardo de Melo; MARQUES, Roberto. “Políticas de aprisionamento de pessoas LGBT+ no Ceará: entre diretrizes do Estado e normas de presos faccionados ou não”. In: FERREIRA, Guilherme Gomes; KLEIN, Caio Cesar. Sexualidade e gênero na prisão: LGBTI+ e suas passagens na justiça criminal. Salvador: Devires, 2019. p. 24-48.), principalmente quando tratamos dos coletivos prisionais como agentes que jamais podem ser desconsiderados nas dinâmicas desses espaços.

Em meio aos constantes conflitos entre “facções”, presos “faccionados”, “não faccionados” e “facções” e Estado pela (co)gestão da política prisional, as insuficientes condições objetivas de vida proporcionadas nas prisões como política de Estado dão o tom do espaço ocupado por esses coletivos de presos num conjunto de ajudas mútuas e de moralidades frequentemente mobilizadas como universais nas prisões. Essas dinâmicas vêm impulsionando relações de hierarquia entre presos em que noções correntes de virilidade, heterossexualidade e violência ocupam lugar privilegiado. Neste intrincado conjunto de relações, os LGBTI+ passaram a não mais serem aceitos em espaços ocupados por presos “faccionados”, inaugurando, ainda em 2014, o primeiro reagrupamento dessa população no contexto prisional cearense.

A discussão interessada nas conexões entre o dentro e o fora das prisões, nos processos institucionais e nas dinâmicas políticas e de poder dos coletivos de presos, não pode ser propriamente analisada fora das relações de gênero e sexualidade. Antes, essas são estruturais para a compreensão das dinâmicas de poder que edificam as instituições prisionais (Angela DAVIS, 2020DAVIS, Angela. Estarão as prisões obsoletas? Rio de Janeiro: Difel, 2020.; Natália PADOVANI, 2017PADOVANI, Natália Corazza. “Tráfico de mulheres nas portarias das prisões ou dispositivos de segurança e gênero nos processos de produção das classes perigosas”. Cadernos Pagu, Campinas, n. 51, e175101, 2017a. Disponível em Disponível em http://www.scielo.br/pdf/cpa/n51/1809-4449-cpa-18094449201700510003.pdf . Acesso em 05/06/2019.
http://www.scielo.br/pdf/cpa/n51/1809-44...
a; Natália LAGO; Marcio ZAMBONI, 2017LAGO, Natália; ZAMBONI, Marcio. “Políticas sexuais e afetivas da prisão: gênero e sexualidade em tempos de encarceramento em massa”. In: MALLART, Fábio; GODOI, Rafael. BR 111: a rota das prisões brasileiras. São Paulo: Veneta/Le Monde Diplomatique, 2017. p. 71-86.; NASCIMENTO, 2018NASCIMENTO, Francisco Elionardo de Melo. Travestilidades Aprisionadas: narrativas de experiências de travestis em cumprimento de pena no Ceará. 2018. Mestrado (Programa de Pós-Graduação em Sociologia) - Universidade Estadual do Ceará, Fortaleza, CE, Brasil.). Essa literatura é amplamente marcada pela ruptura com a suposição da heterossexualidade da população prisional e tem somado esforços para não apenas visibilizar a presença da população LGBTI+ nos pavilhões de convívio das prisões, como também para complexificar as análises das relações e contextos que implicam jogos de identificação, violação de direitos, acusação e formas de violência específicas a partir de marcadores de gênero e sexualidade.

Com a presença cada vez mais incisiva das “facções” no Ceará, moralidades próprias de vivenciar a sexualidade e o gênero no interior das celas foram fixadas como norma entre presos em que o ideal de masculinidade, virilidade e heterossexualidade é imperante. Não se trata, aqui, de um modo especificado de vivenciar comportamentos, relações afetivas e sexuais apenas para membros das “facções”, mas de um modelo que se propõe universal para todos os presos, uma política de gestão dos corpos e condutas atuando incisivamente na prisão por meio do controle das expressões identitárias destoantes ao ideal de masculinidade e heterossexualidade.

A lógica da política expressa entre presos no interior das celas parece também ser moldada com parâmetros semelhantes aos da política do Estado que, em seu conjunto de normativas e na própria edificação processual das prisões, incluindo a atuação de seus agentes, implica a condição universalizante das prisões como espaços fundamentalmente ocupados por homens heterossexuais. Ora, não é novidade a violência de agentes do Estado contra pessoas marcadas por gênero e sexualidade dissidentes em função dos seus corpos e identidades, nem que as prisões são espaços que não foram pensados para pessoas trans (Cassiano Ricardo Martines BOVO, 2020BOVO, Cassiano Ricardo Martines. “Travestilidades versus agentes de segurança pública: A produção acadêmica brasileira com base em um levantamento bibliométrico”. Dilemas, v. 13, n. 2, p. 273-295, maio/ago. 2020.).

O objetivo deste artigo é analisar de que forma a organização das pessoas LGBTI+ resultou em políticas destinadas a essa população no interior dos presídios cearenses. As reflexões desenvolvidas aqui decorrem de pesquisa etnográfica, realizada entre 2016 e 2018, em que discutimos o aprisionamento de travestis no Ceará (NASCIMENTO, 2018NASCIMENTO, Francisco Elionardo de Melo. Travestilidades Aprisionadas: narrativas de experiências de travestis em cumprimento de pena no Ceará. 2018. Mestrado (Programa de Pós-Graduação em Sociologia) - Universidade Estadual do Ceará, Fortaleza, CE, Brasil.). A partir do trabalho de campo imersivo e da análise dos fanzines2 2 Fanzines são revistas produzidas artesanalmente em que recortes de jornais e revista, desenhos, figuras coladas em folha de papel A4 são alternadas com histórias de vida escritas a mão. As folhas de papéis são dobradas e xerocadas, transformando-se em uma espécie de revista. Este artefato teve relativa circulação entre a própria população carcerária, funcionários, mas também fora da prisão. Seus números não seguem periodicidade específica, no entanto, a quantidade de páginas é sempre em torno de 15 a 20 em cada edição. Accioly (2020) fez um resgate histórico da produção destas revistas artesanais em Fortaleza e nas prisões cearenses, portanto, é uma referência a ser consultada para maiores informações neste sentido. produzidos pela população LGBTI+ privada de liberdade, abordamos práticas discursivas que produzem pessoas “vulneráveis” pela lógica da defesa dos direitos humanos e as alocam em espaços específicos em unidades prisionais como ações que expressam a ideia de cuidado. Para melhor perceber a narrativa a respeito da presença dos presos LGBTI+ nas prisões cearenses, analisaremos a produção do fanzine Só Babado nas dependências de unidades prisionais e suas circulações fora das prisões, bem como as falas públicas de representantes e especialistas do Governo do Estado do Ceará. O conjunto desses artefatos nos possibilita pensar como políticas criminais e estatais operantes nas prisões cearenses deram margem para que LGBTI+ pudessem se organizar politicamente e garantir algum êxito em suas demandas.

Em um trabalho recente, inauguramos o debate a respeito dos reagrupamentos de pessoas LGBTI+ aprisionados no Ceará, introduzindo a incisiva atuação das “facções” e a contextualização de um conjunto de violências institucionais investidas nas materialidades que compõem as identidades de LGBTI+, principalmente de travestis e mulheres transexuais (NASCIMENTO, 2020NASCIMENTO, Francisco Elionardo de Melo. “Agrupamentos de travestis e transexuais encarceradas no Ceará, Brasil”. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 28, n. 1, e57687, 2020.). Desta forma, ainda em 2014, o Ceará se junta a outros Estados brasileiros e cria a primeira ala destinada a este público na Casa de Privação Provisória de Liberdade Professor Jucá Neto (CPPL III). Analisamos os agrupamentos em momentos distintos a partir das próprias narrativas das interlocutoras travestis e transexuais em situação de encarceramento, argumentando que a separação de pessoas identificadas pelo Estado como “frágeis”, “vulneráveis”, “perigosas” e “menos perigosas” conduz uma teia de discursividades próprias do fazer do Estado no governo das pessoas que podem ou não serem acolhidas nas políticas prisionais que reconhecem algumas demandas dessa população.

Todo esse contexto é marcado por intrincado processo de gestão desses grupos pela identificação das pessoas LGBTI+ em função da mensuração de graus de periculosidade - “perigosa”, “menos perigosa” e “vulneráveis” - e sua consequente alocação em espaços distintos para o cumprimento da pena. No entanto, a definição de parte dessas pessoas como “frágeis” e “vulneráveis” pelo próprio Estado só foi reconhecida diante das insistentes investidas dos movimentos sociais que defendem os Direitos Humanos e LGBTI+, que pautaram atendimento diferenciado a esse público.

Se entendemos que as relações de gênero e sexualidade são essenciais para compreender as dinâmicas institucionais das prisões - (rea)firmadas enquanto masculinas e heterossexuais -, moralidades e ideais de masculinidade atuam persistentemente nas ações das “facções” e do Estado, afetando de modo direto as dinâmicas que foram difundidas como “política de humanização para LGBT”, pela criação de alas e unidade prisional específica para esse público a partir de 2014, bem como pela possibilidade de manutenção das materialidades que compõem a identidade feminina nos corpos de pessoas travestis e mulheres trans. Como veremos ao longo das sessões, a criação de uma ala denominada pela administração prisional como “Ala GBTT” na CPPL III e, posteriormente, a possibilidade de cumprir pena no presídio Irmã Imelda Lima Pontes, como políticas que reconhecem algumas demandas dessa população, só foram possíveis por conta das reivindicações dos movimentos sociais LGBTI+ e de Direitos Humanos junto à Secretaria da Justiça e Cidadania do Ceará, embasadas pelas narrativas de violência denunciadas nos fanzines que circularam amplamente entre o dentro e fora das prisões.

Como veremos ao longo das sessões, a partir da análise dos fanzines e das falas de agentes de Estado, podemos perceber um conjunto intrincado de relações que são próprias do modo de vida de LGBTI+ em prisões. A própria escritura e a circulação dos fanzines nos fazem perceber como as vozes dessas pessoas só passam a ser audíveis e se expandem para o fora da prisão por meio de mediações com o próprio Estado. O resultado disso pode ser percebido na forma despessoalizada e generalizante que as violências sofridas são descritas nos fanzines. O termo “facções” não aparece nas escrituras e os cabelos raspados de travestis e transexuais, entre outras materialidades incorporadas às identidades de LGBTI+, não são alçados como tortura praticada por agentes de Estado. Tais questões nos fazem perceber disputas, hierarquias e relações de poder que se apresentam como imponentes para pensar a complexidade do modo de vida dessa população nas prisões. Instiga-nos, ainda, a pensar como a política de reconhecimento de algumas demandas para LGBTI+ foi possível em um contexto em que políticas criminais e estatais se chocam e se embaralham, produzindo ainda mais violência nas prisões. É o percurso destas complexas conexões, mediações, sobreposições e produção discursiva que nos interessa neste texto.

Breve discussão sobre a criação de espaços para LGBTI+ nas prisões brasileiras

Na literatura aplicada sobre prisões, o tema encarceramento de pessoas LGBTI+ ganhou contornos a partir da segunda década dos anos 2000, em meio às denúncias dos movimentos sociais de graves violações de direitos humanos a essa população, quando privada de liberdade. De acordo com Luiz Mello, Rezende Bruno de Avelar e Daniela Maroja (2012MELLO, Luiz; AVELAR, Rezende Bruno de; MAROJA, Daniela. “Por onde andam as políticas públicas para LGBT no Brasil”. Soc. Estado, v. 27, n. 2, ago. 2012.), a criação do Conselho Nacional de Combate à Discriminação (CNCD), vinculado ao Ministério da Justiça, em 2001, é um marco na organização dos grupos ativistas LGBTI+, priorizando reivindicações de políticas públicas de cidadania e direitos humanos perante o Estado.3 3 Os autores apontam a criação do Brasil Sem Homofobia (BSH), em 2004; a I Conferência Nacional de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis e Transexuais, em 2008; o lançamento do Plano Nacional de Promoção da Cidadania e Direitos Humanos de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (PNDCDH-LGBT), em 2009; e a publicação do decreto que cria o Programa Nacional de Direitos Humanos 3 (PNDH-3), em 2009, como os quatro marcos principais das ações do Poder Executivo voltadas a essa população. Na esteira deste debate, somente em 2014 foi criado um conjunto de recomendações com parâmetros em âmbito nacional sobre o tratamento penal dessa população no Brasil, a Resolução Conjunta N. 1 do CNPCP e CNCD/LGBT (BRASIL, 2014BRASIL. Resolução conjunta nº.1, de 15 de maio de 2014. Dispõe sobre Estabelecer os parâmetros de acolhimento de LGBT em privação de liberdade no Brasil. Brasília, Diário Oficial da União, seção 1, n. 74, 2014. p. 1-2.).4 4 A Resolução Conjunta N. 1 foi formulada pelo Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP) e pelo Conselho Nacional de Combate à Discriminação (CNCD/LGBT). Entre os principais aspectos da Resolução, estão: a garantia do nome social para travestis e transexuais de acordo com seu gênero; ala específica em penitenciárias masculinas para gays e travestis a partir do interesse dos mesmos; tratamento isonômico entre as mulheres transexuais e as demais mulheres; facultados o uso de roupas femininas e masculinas e a manutenção dos cabelos compridos de acordo com o gênero das travestis e transexuais; garantia do direito à visita íntima; atenção integral à saúde de acordo com os parâmetros da Política Nacional de Saúde Integral de LGBT e da Política Nacional de Atenção Integral à Saúde das Pessoas Privadas de Liberdade no Sistema Prisional - PNAISP; igualdade de condições, acesso e continuidade de suas formações educacional e profissional, sob a responsabilidade do Estado. No entanto, embora se apresente como uma conquista na esfera dos direitos, ao longo dos anos, ativistas e acadêmicos têm denunciado fortemente as poucas iniciativas concernentes à Resolução, mostrando diversas iniciativas descentralizadas em vários estados brasileiros, mas em torno de uma estratégia que parece consensual: a criação de espaços específicos para pessoas LGBTI+ em prisões masculinas.

Pesquisadores e pesquisadoras, em diferentes regiões do país e a partir de perspectivas analíticas diversas, têm se debruçado na tessitura de análises sobre as ações embasadas na Resolução Conjunta N. 1, percebendo como a política de tratamento penal de criação de espaços específicos para o acolhimento de pessoas LGBTI+ vem reconhecendo direitos na medida em que desconhece outros, além de conflitos, relações de poder e violências recorrentes praticadas nestes espaços. Estas discussões são destacadas nas experiências localizadas em estados como o Rio Grande do Sul (Guilherme FERREIRA, 2014FERREIRA, Guilherme Gomes. Travestis e prisões: a experiência social e a materialidade do sexo e do gênero sob o lusco-fusco do cárcere. 2014. Mestrado (Mestrado em Serviço Social) - Pontifícia Universidade Católica, Rio Grande do Sul, RS, Brasil.), Paraíba (Cícero EUSTÁQUIO JÚNIOR et al., 2015EUSTÁQUIO JÚNIOR, Cicero Pereira; BREGALDA, Marília Mayer; SILVA, Bianca Rodrigues da. “Qualidade de vida de detentos(as) da Primeira Ala LGBT do Brasil”. Revista Bagoas, v. 9, n. 13, p. 253-276, 2015.), São Paulo (Guilherme BOLDRIN, 2017BOLDRIN, Guilherme Ramos. Desejo e separação: Monas, gays e envolvidos num presídio em São Paulo. 2017. Mestrado (Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social) - Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, SP, Brasil.), Minas Gerais (Gabriela LAMOUNIER, 2018LAMOUNIER, Gabriela Almeida Moreira. Gêneros encarcerados: uma análise transviada da política de alas LGBT no sistema prisional de Minas Gerais. 2018. Mestrado (Programa de Pós-Graduação em Psicologia) - Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG, Brasil.), Rio de Janeiro (Roberta CANHEO, 2018CANHEO, Roberta Olivato. “Puxa pro Evaristo”: produção e gestão da população LGBT presa na cidade do Rio de Janeiro. 2018. Mestrado (Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito) - Universidade Federal Fluminense, Rio de Janeiro, RJ, Brasil.), Ceará (NASCIMENTO, 2018NASCIMENTO, Francisco Elionardo de Melo. Travestilidades Aprisionadas: narrativas de experiências de travestis em cumprimento de pena no Ceará. 2018. Mestrado (Programa de Pós-Graduação em Sociologia) - Universidade Estadual do Ceará, Fortaleza, CE, Brasil.) e Mato Grosso (Marcio Neman do NASCIMENTO; Jefferson REIS, 2019NASCIMENTO, Márcio Neman do; REIS, Jefferson Adriã. “Projeto (Trans)ações entre deveres: análise da implementação de uma ala LGBT+ no interior mato-grossense”. In: FERREIRA, Guilherme Gomes; KLEIN, Caio Cesar. Sexualidade e gênero na prisão: LGBTI+ e suas passagens na justiça criminal. Salvador: Devires, 2019. p. 328-337.), mas que se conectam por uma discussão mais ampla em nível nacional (FERREIRA, 2019).

Ferreira (2019FERREIRA, Guilherme Gomes. “Políticas de tratamento penal para LGBTI+ no mundo”. In: FERREIRA, Guilherme Gomes; KLEIN, Caio Cesar. Sexualidade e gênero na prisão: LGBTI+ e suas passagens na justiça criminal. Salvador: Devires, 2019. p. 24-48.) afirma que a primeira experiência brasileira sobre a criação de espaços específicos para LGBTI+ surgiu em Minas Gerais, antes mesmo da Resolução Conjunta N. 1 do CNPCP e CNCD/LGBT, datando de 2009. Em sua análise sobre o tratamento de pessoas LGBTI+ no cenário mundial, resguardadas as diferenças socioculturais e políticas de cada país, conclui que algumas respostas ganharam contornos universais. Isso implica dizer que, assim como no caso brasileiro, a criação de espaços segregados para pessoas LGBTI+ é a política mais imediata no que diz respeito ao tratamento penal específico. Essa medida não se dá em consonância com a possibilidade de que sejam respeitadas as questões relativas ao gênero e sexualidade dessa população, mas estão diretamente ligadas ao risco iminente de morte por que essas pessoas passam quando dividindo celas com presos ligados a “facções criminosas”.

Em mapeamento realizado pelo projeto “Passagens”,5 5 O projeto Passagens é uma rede de apoio às pessoas LGBTI+ presas, executada pela organização não governamental Somos - Comunicação, Saúde e Sexualidade, e financiada pelo Fundo Brasil de Direitos Humanos entre 2018 e 2019. Com o objetivo de mapear o encarceramento de pessoas LGBTI+ no Brasil, o Projeto visitou diferentes instituições de privação de liberdade em diversos estados do país. Ferreira et al. (2019FERREIRA, Guilherme Gomes; KLEIN, Caio Cesar; NOVAIS, Flavia Luciana Magalhães; GOULART, Vincent Pereira. “Mapeamento do encarceramento LGBTI+ no Brasil: projeto Passagens”. In: FERREIRA, Guilherme Gomes; KLEIN, Caio Cesar. Sexualidade e gênero na prisão: LGBTI+ e suas passagens na justiça criminal. Salvador: Devires, 2019. p. 126-149.) argumentam que a criação do primeiro espaço específico, em 2009, fissurou duas regras básicas das prisões: a primeira, de orientação “biologicista”, incide em alocar pessoas com pênis em unidades prisionais masculinas e pessoas com vagina em estabelecimentos femininos; e a segunda versa sobre a tradição de destinar gays, travestis e mulheres trans para os mesmos espaços em que cumprem pena presos por crimes sexuais (crimes repudiados pela população carcerária). Nota-se, seguindo o argumento dos autores, que a criação desse espaço provocou debate público e demanda que foi pleiteada pelas representações da sociedade civil que compunham o Conselho Nacional de Combate à Discriminação (CNCD/LGBT) e a Diretoria de Promoção dos Direitos de LGBT, articulados ao Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP), resultando na Resolução Conjunta N. 1, de 15 de abril de 2014, estabelecendo, pela primeira vez, recomendações de tratamento penal específico para essa população quando privada de liberdade.

Ainda de acordo com o Mapeamento, os autores apontam que pelo menos cinco Estados6 6 São Paulo, Rio de Janeiro, Alagoas, Mato Grosso, Minas Gerais. e Distrito Federal expediram documentos oficiais sobre o tratamento de LGBTI+ encarcerados, seguindo alguns parâmetros especificados na Resolução Conjunta N. 1. São documentos que versam sobre a possibilidade do uso de nome social, cumprimento de pena em celas de acordo com a identidade de gênero e acesso a política de alas específicas, uso de roupas, acessórios femininos e outras materialidades que compõem suas identidades, tratamentos de saúde específicos, oportunidade de qualificação educacional, profissional e laboral igualmente possibilitados às demais pessoas presas.

Desde a primeira experiência em Minas Gerais, em 2009, foram criadas alas ou galerias específicas em prisões masculinas no Mato Grosso, em 2011, Rio Grande do Sul, em 2012, Paraíba, em 2013, Pernambuco e Ceará, em 2014. Estados como Bahia, Santa Catarina, São Paulo e Rio de Janeiro publicaram normativa própria prevendo a transferência de travestis e mulheres trans para espaço reservado em presídios femininos ou unidades mistas (FERREIRA et al., 2019FERREIRA, Guilherme Gomes; KLEIN, Caio Cesar; NOVAIS, Flavia Luciana Magalhães; GOULART, Vincent Pereira. “Mapeamento do encarceramento LGBTI+ no Brasil: projeto Passagens”. In: FERREIRA, Guilherme Gomes; KLEIN, Caio Cesar. Sexualidade e gênero na prisão: LGBTI+ e suas passagens na justiça criminal. Salvador: Devires, 2019. p. 126-149.). Os apontamentos da política de alas, em geral, demonstram a incapacidade dessa política no atendimento de todas as pessoas que se identificam com gêneros e sexualidades dissidentes, bem como a heterogeneidade nas perspectivas de acolhimento previstas entre os Estados que implementaram essa política. Os relatos das pessoas LGBTI+ participantes do conjunto de pesquisas aqui referenciadas apontam violências, preconceito, transfobia, castigos em decorrência da orientação sexual e identidade de gênero, mesmo nos espaços de aprisionamento que dizem respeitar a diversidade.

Sobre a criação dos espaços específicos (alas ou galerias) para LGBTI+ como política de tratamento penal, o mapeamento realizado pelo projeto “Passagens” (FERREIRA et al., 2019FERREIRA, Guilherme Gomes; KLEIN, Caio Cesar; NOVAIS, Flavia Luciana Magalhães; GOULART, Vincent Pereira. “Mapeamento do encarceramento LGBTI+ no Brasil: projeto Passagens”. In: FERREIRA, Guilherme Gomes; KLEIN, Caio Cesar. Sexualidade e gênero na prisão: LGBTI+ e suas passagens na justiça criminal. Salvador: Devires, 2019. p. 126-149.) identificou que os Estados que implementaram essa política partiram de iniciativas como a formulação de projetos escritos por organizações não governamentais, universidades, movimentos sociais e secretarias de governos estaduais que defendem os direitos humanos. Estas entidades transformaram essa população como “problema” que deve ser alvo prioritário de intervenção do Estado - os “vulneráveis” da prisão -, baseando-se nos recorrentes relatos de violências que esses sujeitos sofrem quando encarcerados. Trata-se de gramática afeita à noção de direitos humanos, que produziu certo ideal de unidade e genericidade, supondo a existência de sujeitos relativamente homogêneos e desencarnados, mobilizada pelo termo “vulneráveis”, este bem distante de dar conta das diferentes identificações, dos diferentes sujeitos e papéis assumidos em seus usos e menções cotidianas. Essas iniciativas/mobilizações que identificaram o aprisionamento de LGBTI+ como um “problema” a ser resolvido pelo Estado também interpelaram agentes e formas adequadas para realizar tais intervenções. Nesse processo, a evocação das obrigações do Estado como ente por excelência para a intervenção, “longe de servir com precisão para descrever o que ocorre, delineia a linguagem fundamental exigida nessas disputas e arranjos” (Adriana VIANNA, 2013VIANNA, Adriana. “Introdução: fazendo e desfazendo inquietudes no mundo dos direitos”. In: VIANNA, Adriana (Org.). O fazer e o desfazer direitos: Experiências etnográficas sobre política, administração e moralidades. Rio de Janeiro: E-papers, 2013. p. 14-35., p. 20).

Fernando Seffner e Amilton Passos (2016SEFFNER, Fernando; PASSOS, Amilton Gustavo da Silva. “Uma galeria para travestis, gays e seus maridos: Forças discursivas na geração de um acontecimento prisional”. Sexualidad, Salud y Sociedad: Revista Latinoamericana, n. 23, p. 140-160, maio/ago. 2016.) analisam a criação de uma galeria para travestis, gays e seus maridos em um presídio do Rio Grande do Sul como um “acontecimento”. No argumento dos autores, as violências pelas quais passam as travestis na sociedade e na prisão situam essas pessoas como vítimas, sendo a criação de espaço necessária para a preservação de suas vidas e para o funcionamento do dispositivo prisional. Para eles, as histórias de vida de travestis e mulheres trans são marcadas por suas sexualidades e identidades de gênero não normativas, que as aproximam da violência em casa, na rua, na escola e na prisão. Desta forma, a vulnerabilidade a que estas pessoas estão sujeitas no contexto social as produz como vítimas e, consequentemente, produz visibilidade estratégica que legitima a urgência da intervenção do Estado. É a dupla situação de violência, na prisão e fora dela, que dá legitimidade à criação da galeria.

Ferreira (2019FERREIRA, Guilherme Gomes. “Políticas de tratamento penal para LGBTI+ no mundo”. In: FERREIRA, Guilherme Gomes; KLEIN, Caio Cesar. Sexualidade e gênero na prisão: LGBTI+ e suas passagens na justiça criminal. Salvador: Devires, 2019. p. 24-48.) destaca que, embora alguns dados sobre a presença de pessoas LGBTI+ nas prisões sejam divulgados, não há estatísticas confiáveis sobre o número de pessoas LGBTI+ presas no Brasil em decorrência da ausência de parâmetros institucionais normatizados em âmbito nacional. A ausência desses dados, de acordo com Ferreira et al. (2019), dificulta a elaboração de políticas públicas que versem sobre o tratamento penal adequado a essas pessoas. No entanto, a meu ver, este é um argumento equivocado: ao não incluir os LGBTI+ em suas planilhas, o Estado o faz, pois a ausência de dados sobre determinada população é também um ato produtivo. Este é o fazer do fazer do Estado por meio de seus processos, consequentemente, das políticas prisionais. Desta forma, o não fazer deve ser entendido como algo inerente aos processos de Estado e não externo a ele. Não conhecer uma determinada população tem efeitos deletérios no seu reconhecimento enquanto sujeitos de direito, uma vez que o saber é, sem dúvida, um componente indispensável e indissociável das disputas de poder.

Tratando dos processos de formação do Estado, Philip Abrams (1988ABRAMS, Philip. “Notes on the difficulty of studying the State”. Journal of Historical Sociology, v. 1. n. 1, p. 58-89, 1988.) discute Estado para além de um ente político-institucional, buscando perceber relações entre Estado e pessoas em toda sua complexidade, que não se resume às questões do trato institucional. Tomando o Estado como um objeto complexo e multifacetado, o autor critica a ideia do Estado enquanto “entidade asséptica”, livre das complexas práticas político-sociais existentes no cotidiano. Para ele, a tendência interpretativa que segmenta sociedade e Estado como entidades separadas se configura como efeito do próprio Estado. Essa separação é operada pelo próprio Estado no que tange, principalmente, à sua função ideológica e de funcionamento, que produz efeitos ilusionistas sobre sua dimensão política dos conflitos e das lutas que são inerentes ao processo de formação do Estado. Abrams defende que o Estado não pode ser tomado como algo fixo e estável, ou reproduzível em um padrão institucional constante em contextos históricos e geográficos diversos. Pelo contrário, para analisar o Estado, é preciso levar em consideração as relações políticas existentes entre atores em determinado contexto de análise.

Em diálogo com as proposições de Abrams (1988ABRAMS, Philip. “Notes on the difficulty of studying the State”. Journal of Historical Sociology, v. 1. n. 1, p. 58-89, 1988.), podemos perceber as prisões, consequentemente, o Estado, por meio dos seus processos que são edificados por proposições político-ideológicas que identificam sujeitos afeitos ou não a determinadas políticas de acolhimento nas instituições estatais. E, num contexto mais amplo de violências e violações de direitos, podemos especificar que pessoas marcadas por gênero e sexualidade dissidentes como LGBTI+ têm marcas de violência intensificadas pela experiência do aprisionamento. Portanto, não basta dizer que as prisões masculinas são violentas para pessoas LGBTI+, mas é imprescindível dizer que são as próprias instituições - por meio dos seus processos, modos de atuação e práticas performadas por seus agentes - que incentivam a violência para com esse público.

Ademais, é importante ressaltar que já existem dados atualizados sobre a população LGBTI+ em prisões brasileiras, constados no relatório “LGBT nas prisões do Brasil: diagnóstico dos procedimentos institucionais e experiências de encarceramento”,7 7 O Relatório é fruto de uma pesquisa realizada por um consultor contratado com financiamento do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), por meio de um edital publicado em novembro de 2018. O documento aborda detalhadamente o aprisionamento LGBTI+ em todas as regiões do País. O diagnóstico contempla a quantificação das pessoas LGBTI+ em situação de privação de liberdade, bem como a avaliação dos espaços destinados a essa população (alas e celas), levantamento da implementação da Resolução Conjunta N. 1 (CNCD/LGBT e CNPCP), e proposta de um protocolo de boas práticas para o tratamento penal digno de pessoas LGBT nas prisões do Brasil (BRASIL, 2020). de iniciativa do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH) (BRASIL, 2020BRASIL. MINISTÉRIO DA MULHER, FAMÍLIA E DIREITOS HUMANOS. LGBT nas prisões no Brasil: diagnóstico dos procedimentos institucionais e experiências de encarceramento no Brasil. Brasília, 2020.), que fundamentaram marcos jurisprudenciais com efeitos normativos robustos em vigor atualmente como, por exemplo, a decisão do Supremo Tribunal Federal sobre os espaços em que travestis e mulheres trans cumprirão pena (ADF 527) e a regulamentação dessas orientações aos magistrados pelo Conselho Nacional de Justiça (Resolução 366), ambas de 2021. O relatório faz um diagnóstico cuidadoso sobre a situação das pessoas LGBTI+ privadas de liberdade, relata denúncias de torturas e violações de direitos humanos, além de apresentar ressalvas em relação à compulsoriedade da alocação dessa população em espaços segregados.

Em torno da política de tratamento penal para a população LGBTI+, ou seja, em torno da “luta por direitos” (VIANNA, 2013VIANNA, Adriana. “Introdução: fazendo e desfazendo inquietudes no mundo dos direitos”. In: VIANNA, Adriana (Org.). O fazer e o desfazer direitos: Experiências etnográficas sobre política, administração e moralidades. Rio de Janeiro: E-papers, 2013. p. 14-35.), apresentam-se contextos em disputa desde a complexidade das práticas e dinâmicas do cotidiano nas celas, implicando aparatos institucionais, mobilizações políticas, estratégias coletivas e dramas morais que geram sofrimentos pessoalizados. Essas questões são apontadas pela literatura aplicada, desde os relatos de pessoas LGBTI+ presas em várias instituições carcerárias do Brasil, podendo ser detalhadas em âmbito localizado, como os efeitos dessa política no Ceará. Para essa empreitada, escolhemos os fanzines produzidos pela população LGBTI+, em espaços e momentos diversos dessa política de tratamento penal, como artefatos que podem nos ajudar a pensar essa política.

A produção de fanzines e da política de alas para LGBTI+ no Ceará

O primeiro agrupamento de pessoas LGBTI+ no sistema prisional do Ceará foi iniciado na ala E da CPPL III. Esta iniciativa não foi uma demanda própria dessa população, que até 2014 convivia junto aos demais presos no interior das celas, mas é produto da política de controle da sexualidade e dos corpos implementada pelas “facções”. Neste momento, a política do “crime”, afinada no controle do gênero e da sexualidade no interior das celas, se choca com a política estatal, formando o primeiro agrupamento dessa população no sistema prisional do Ceará.

As “facções” exigiram a retirada de todas as pessoas LGBTI+ de seu convívio, sendo a separação e a alocação em espaço específico a saída imediata encontrada pelo Estado para a preservação das vidas das “bichas”.8 8 “Bichas” é a forma como presos e presas - inclusive - gays, bissexuais, travestis e transexuais aglomeram em um só termo todas as pessoas que mantêm relações sexuais ou afetivas com pessoas do mesmo sexo. O termo assinala ainda sujeitos com corpos masculinos que mantêm características, posturas e gestos considerados femininos. Essa ação não teve qualquer ligação com o reconhecimento das identidades de gênero e sexual das internas LGBTI+ pelo Estado. Pelo contrário, o Estado e seus agentes agem de forma incisiva na normatização dos corpos, principalmente de travestis e transexuais, retirando deles as materialidades que compõem suas identidades, de modo que tais corpos expressem correspondência à prisão masculina. No entanto, em decorrência deste primeiro agrupamento, travestis e transexuais se unem por meio de um abaixo-assinado exigindo o reconhecimento de uma demanda específica: o fim do corte dos cabelos das internas.

Esse abaixo-assinado marca o início de uma série de reivindicações e conquistas marcadas pelo reconhecimento de algumas demandas específicas das pessoas LGBTI+, principalmente no que versa sobre materialidades que compõem suas identidades e atendimentos de saúde. O abaixo-assinado entregue à direção da unidade prisional ressoou, em um primeiro momento, na aproximação de Aline Cabral, dentista e coordenadora do setor de saúde da unidade prisional, e da assistente social Josefa Feitosa, com esse público. Esta última passou a trabalhar as demandas e vivências dessa população por meio da escrita de fanzines com edições publicadas entre 2014 e 2016.9 9 A produção de fanzines junto à população carcerária cearense já era uma prática da assistente social, pelo menos desde 2002, no presídio feminino Auri Moura Costa. A produção destes artefatos é utilizada como recurso terapêutico e como estratégia de arte-educação no trabalho psicossocial junto às pessoas em privação de liberdade. O fanzine produzido pelas pessoas LGBTI+ em várias unidades prisionais da região metropolitana de Fortaleza foi nomeado Só Babado, tendo sua primeira edição intitulada “Mundo Gay”.10 10 Nove edições do fanzine Só Babado, produzidas entre maio de 2014 e outubro de 2016, foram analisadas neste texto. As oficinas de produção do material foram realizadas na CPPL III, presídio Irmã Imelda Lima Pontes, no Centro de Execução Penal e Integração Social Vasco Damasceno Weyne (CEPIS) e Casa de Privação Provisória de Liberdade IV (CPPL IV). Estas duas últimas unidades prisionais estavam ainda em construção no momento das oficinas.

Ao abrir o primeiro editorial do fanzine Só Babado, Clayton Menezes,11 11 Ao longo deste artigo, os nomes de LGBTI+ e dos demais interlocutores são escritos tal como aparecem no material analisado. homem gay, faz um breve diagnóstico da situação dos LGBTI+ privados de liberdade no Ceará. Em suas palavras, “O machismo dominante entre os internos torna a população LGBTT vítima de opressão. São os excluídos dentro dos excluídos” (SÓ BABADO, 2014, p. 02). O escritor segue seu diagnóstico afirmando a incapacidade do Estado em desenvolver políticas públicas de prevenção às Infecções Sexualmente Transmissíveis - ISTs, de proteção aos direitos humanos e contra a violação da liberdade de gênero que travestis e transexuais atravessam no sistema prisional. Aquele era um chamamento claro ao debate. Uma edição marcada pela revolta em torno de uma série de violências e violações frequentemente sofridas por essa população, tanto pela via institucional como pelos internos “faccionados” e “não faccionados”.

Ao identificar a população LGBTI+ como “excluídos dentro dos excluídos”, o interlocutor está se referindo ao contexto de insuficientes possibilidades materiais de subsistência e a violência institucional a que são submetidas todas as pessoas encarceradas. Mas, para além, identifica pessoas marcadas por gênero e sexualidade dissidentes ao padrão masculino e heterossexual como alvos de outras violências por agentes de Estado e por outros internos em função dos seus corpos e das suas identidades.

Os relatos de violações à identidade de gênero das travestis e mulheres trans ganham espaço no avançar da escrita dos fanzines. Ao denunciar regras que ela considera “bobas”, uma das internas relatou sua experiência ao ingressar na instituição - “Quando entrei neste presídio cortaram meu cabelo e passei por um grande trauma psicológico em ter que se vestir como homem à força por uma questão de preconceito” (SÓ BABADO, 2014, p. 06). A descaracterização identitária das travestis e mulheres trans ao ingressar nas instituições prisionais cearenses é recorrentemente relatada em várias edições dos fanzines. Essa descaracterização investida pelo Estado na identidade feminina de travestis e mulheres trans se dá imediatamente pelo corte dos cabelos e o confisco de materialidades incorporadas a seus corpos. As regras “bobas” às quais a interlocutora se refere nada mais são do que um forte aparato institucional baseado no binarismo de gênero, masculino e feminino, em que pessoas são identificadas, normatizadas e alocadas nas prisões, tendo como parâmetro as suas genitálias. Esse procedimento se dá especificamente para as pessoas que, de algum modo, não atendem às expectativas de atributos de gênero e sexualidade especificados por esses binários. Neste caso, especificado para habitar a prisão masculina.

Rafaela, travesti, expõe sua inadaptação diante das regras impostas na prisão, mas afirma também que, junto aos gays e às outras travestis e transexuais, ela se sente acolhida. Em sua página, também reivindica que a instituição promova momentos de educação sexual e prevenção às Infecções Sexualmente Transmissíveis - ISTs. Assim como Rafaela, Fernanda, também travesti, reitera a defesa dos direitos humanos dela e de seus companheiros e companheiras de cela. Pede atendimento jurídico, psicológico e médico, ou seja, as interlocutoras clamam pela assistência à saúde, jurídica, material e tratamento digno como direitos previstos na Lei de Execução Penal (LEP), lei 7.210, de 1984, mas não garantidos no cotidiano do aprisionamento.

A circulação da primeira edição do fanzine entre os presos, profissionais e entre movimentos LGBTI+ e de direitos humanos, dentro e fora da prisão, ressoou efetivamente em algumas iniciativas que são relatadas pelas internas na segunda, terceira e, principalmente, na edição Extra, de maio de 2015, em comemoração a um ano de criação da “Ala GBTT”. Na edição Extra (SÓ BABADO, 2015SÓ BABADO. CPPL 3, n. 4, 2015c. Disponível em Disponível em https://issuu.com/camilavasconcelos51/docs . Acesso em 05/05/2020.
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c), Clayton Menezes afirma que a “população LGBTT” da CPPL III passou a ter visibilidade após a circulação dos fanzines e, por conta das frequentes denúncias entoadas nas escrituras, essas pessoas passaram a ser visitadas por órgãos governamentais e não governamentais, a exemplo da Coordenadoria LGBT do Estado e da Prefeitura Municipal de Fortaleza, Pastoral Carcerária e Associação de Travestis do Ceará (ATRAC).

Nas muitas passagens dos escritos, os relatos descritos sobre a atuação da assistente social Josefa Feitosa são reiterados em forma de agradecimento. Nas palavras de Natália - “[Ela] tem ajudado humildemente” (SÓ BABADO, 2015SÓ BABADO (EXTRA). De movimento e visibilidade homossexual na CPPL III, n. 6, 2015d. Disponível em Disponível em https://issuu.com/camilavasconcelos51/docs/so_babado_6-2015 . Acesso em 10/06/2019.
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d, p. 04). De acordo com Clayton, o apoio dela foi fundamental, mas a real dimensão disso é que os próprios “LGBTT” foram protagonistas destas conquistas. Já na quarta edição, publicada em março de 2015, os participantes dos fanzines expressam seus agradecimentos a diversos profissionais, organizações governamentais e movimento social: ex-diretor Marcos Aurélio, atual diretor Paulo Martins, diretor adjunto Edmar Oliveira, assistente social Jô Feitosa, atriz Silvia Moura, dentista Aline, enfermeiras Raquel e Romana, professores Ricardo e Ariadna Santiago, terapeuta Nathália, psicólogo Cássio, coordenadoria LGBTT Andréia Rosati, presidente da ATRAC Thina Rodrigues, delegada titular Renna e outros mais (SÓ BABADO, 2015d, p. 11). Estas foram as parcerias formadas a partir da divulgação do trabalho produzido pelas internas e internos da “Ala GBTT”.

Clayton Menezes é enfático ao relacionar o sistema carcerário brasileiro a uma prisão para além dos muros, grades e celas. Em sua crítica, relata que a maior prisão é a de que, quando encarcerados, aos presos só é possibilitado expressar a sexualidade heterossexual, sendo as demais expressões da sexualidade suprimidas pela violência institucional e pelo machismo. Reafirma que a experiência da “Ala GBTT” foi fruto da coragem de ousar - “Um grito por liberdade”.

Onde não era permitido expressar nenhuma outra orientação sexual que não fosse a heterossexualidade, rompemos o silêncio e a mordaça do preconceito, para [que] hoje, gays, travestis e transexuais explorassem espaços, antes dominados pelo medo cultural tão enraizado no sistema prisional brasileiro (SÓ BABADO, 2015SÓ BABADO. LGBTT, n. 2, 2015a. Disponível em Disponível em https://issuu.com/camilavasconcelos51/docs . Acesso em 05/05/2020.
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a, p. 03).

A partir da primeira edição do Só Babado, algumas demandas específicas para a população da “Ala GBTT” foram atendidas, dentre elas, atendimentos de saúde, atividades lúdicas e o fim do corte de cabelo das travestis e transexuais. Natália Ferraz, mulher trans, afirma que o início das atividades de teatro e dança pelo projeto “Meninas que Encantam”12 12 Criado em 2014, o projeto “Meninas que Encantam” é voltado para homens gays, travestis e transexuais com atividades artísticas de teatro, dança e poesia com a finalidade do combate à discriminação em empoderamento das pessoas LGBTI+ em cumprimento de pena. Os espetáculos realizados pelas/os participantes do projeto envolviam a participação de público externo, principalmente os familiares das pessoas presas. e a escrita dos fanzines têm ajudado a passar o tempo na prisão. Mas, ela e outras internas reconhecem que a principal conquista em torno da escrita dos fanzines foi a organização e formação política das internas. Destacam que, a partir do início das oficinas, as rodas de conversa e desabafos coletivos, organizados pelos profissionais da assistência psicossocial e com a participação das internas e internos LGBTI+, funcionam como terapia e aprendizado. Estes momentos tiveram o apoio da direção da unidade prisional. Ainda na segunda edição (SÓ BABADO, 2014), Natália aproveita seu espaço para reivindicar algumas demandas importantes, como a possibilidade de ser tratada pelo nome social, a hormonoterapia13 13 A hormonoterapia consiste na aplicação de hormônios com a finalidade de modificações corporais de acordo com sua identidade de gênero. No caso das pessoas travestis e mulheres trans, a aplicação de hormônios femininos é um meio importante para a formação da sua identidade corporal feminina, principalmente pela aquisição dos seios e inibição dos pelos corporais. e a permissão do uso de roupas, maquiagens e acessórios femininos para as internas.

Na edição Extra, as internas relembram que 14 de maio de 2014 é a data em que fizeram o abaixo-assinado exigindo que não mais fossem cortados os cabelos de travestis e transexuais. A data é comemorada como o marco da organização política das internas da “Ala GBTT”. Com isso, uma retrospectiva das conquistas foi feita.

FELICIDADE!

Ouvir que elas não ficam mais nuas no sol quente nas vistorias por serem travestis;

Que não recebiam mais spray de pimenta no rosto por estarem de calcinha;

Que seus cabelos não são mais cortados ao chegarem na cadeia;

Respeito ao nome social;

Que suas maquiagens e suas calcinhas não foram para o lixo depois da vistoria. Travestis: direitos garantidos! (SÓ BABADO, 2015d, p. 11).

O projeto “Meninas que Encantam” parece ser o ponto alto do que travestis e transexuais chamam de “visibilidade”. Relatam que a dança, cultura e arte protagonizadas nos três espetáculos que fizeram durante o ano de 2014 em que o projeto funcionou fizeram com que as conquistas citadas acima fossem possíveis. Clayton Menezes destaca as inúmeras mobilizações e atividades que foram realizadas na unidade prisional por intermédio do setor de saúde, serviço social e com apoio da direção. Para ele, as atividades realizadas a partir da criação da “Ala GBTT” têm papel importante na ressignificação do sofrimento pelo qual passam os LGBTI+ nas prisões. As reuniões, os espetáculos, o abaixo-assinado, entre outras mobilizações, desencadearam conquistas tal como maior acesso à saúde - “Ganhamos visibilidade. Afinal, quem não é visto não é lembrado” (SÓ BABADO, 2015d, p. 11). Por outro lado, neste balanço de um ano de existência da Ala, também constam relatos de disputas e desavenças entre os próprios internos/as em torno das paqueras e dos relacionamentos constituídos. Tais conflitos impactam a organização política das pessoas LGBTI+ e eram considerados inadmissíveis na opinião de alguns.

Os relatos sobre as violências causadas em decorrência de seus corpos, gêneros e sexualidade e os apelos pelo fim do preconceito às pessoas LGBTI+ atravessam todas as edições do fanzine Só Babado. Bicuda, “moradora de rua” (é assim como ela se identifica), relata que recebeu alvará de soltura, mas como não tem endereço fixo, nem família que a acolha, permanece presa. Ela fala da sua história de vida: “Quando cheguei na cadeia fui estuprada na temida ‘tranca’.14 14 Espaço destinado para triagem e castigo. Me torturaram e me deixaram sem comida. No outro dia, acordei com meu corpo pegando fogo” (SÓ BABADO, 2015SÓ BABADO. Orgulho, n. 3, 2015b. Disponível em Disponível em https://issuu.com/camilavasconcelos51/docs . Acesso em 05/05/2020.
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b, p. 05). Paulinha Mel, mulher trans, diz que “ser transexual é renunciar a uma sociedade totalmente preconceituosa e conservadora, renunciar é preciso pra ser feliz” (SÓ BABADO, 2015d, p. 11). Em um trecho sem assinatura, alguém clama: “Por um mundo onde sejamos socialmente iguais, humanamente diferentes e totalmente livres” (SÓ BABADO, 2015b, p. 12).

Os relatos caminham ainda pelo amor. Assim como no poema que abre esse texto, muitas outras páginas dos fanzines são destinadas a falar do amor. De se sentir amada. Da solidão de amar sem poder ver, sentir e tocar o seu próprio amor. Falam sobre a possibilidade de se ter alguém convivendo quando em privação de liberdade, mas também da impossibilidade de ser visitada por companheiros “da liberdade”. Os relatos abordam o sofrimento imputado aos corpos e amores que não atendem a qualquer expectativa dos atributos de gênero e sexualidade permitidos na prisão, possibilitando-nos pensar a sexualidade/gênero como dispositivo de gestão dessa população (PADOVANI, 2017PADOVANI, Natália Corazza. “Luana Barbosa dos Reis, presente! Entrelaçamentos entre dispositivos de gênero e feminismos ocidentais humanitários diante da violência do Estado”. In: MALLART, Fábio; GODOI, Rafael. BR 111: a rota das prisões brasileiras. São Paulo: Veneta/Le Monde Diplomatique, 2017b. p. 99-116.b). Ao contrário dos presos heterossexuais que podem ser visitados por suas esposas toda semana, presos LGBTI+ não podiam receber visita de pessoas identificadas como companheiros e nem manter relações sexuais,15 15 Sobre a visitação de companheiros de LGBTI+ “da liberdade” nas prisões cearenses, Nascimento, Marques e Osterne (2020) relatam o não reconhecimento dessa possibilidade de visitação, apesar de que ela ocorre se justificada pelo setor de serviço social na condição de “única visita”. Essa modalidade de visita só é possível quando nenhum parente comparece na prisão. Mesmo diante da possiblidade da entrada na prisão, o contato íntimo não ocorre. Esse encontro é fortemente controlado e vigiado pelos demais companheiros de cela, que não permitem que o ato carnal se configure, nem mesmo carícias e afagos por considerarem desrespeito aos demais visitantes. Os autores argumentam que esse bloqueio se dá pelos mesmos internos que mantêm relações sexuais e de afetos com LGBTI+ nos dias que não são os de visitação. apesar de a legislação abrir precedentes, como consta na decisão de 06 de maio de 2011 do Supremo Tribunal Federal sobre a ADI nº 4277 e a ADPF nº 132, que reconheceu as uniões estáveis civis homossexuais como “igualitárias” juridicamente às uniões civis heterossexuais.

Figura 1
Arco-íris da diversidade

Figura 2
Poesia da liberdade

As conquistas dos LGBTI+ após a criação da ala foram interrompidas com as rebeliões de maio de 2016.16 16 As rebeliões de maio de 2016 provocaram destruição das unidades prisionais da região metropolitana de Fortaleza, inclusive da CPPL III. Os eventos ocorreram em represália à paralisação dos agentes penitenciários que reivindicavam melhores condições de trabalho e aumento salarial. Por conta disso, as visitações de parentes de internos foram suspensas. Os limites deste artigo não me permitem tratar das rebeliões de maio de 2016. Sobre o assunto, sugiro fortemente o texto de Francisco Elionardo de Melo Nascimento e Geovani Jacó FREITAS, intitulado “Facções, rebeliões, violência e gestão do aprisionamento do Ceará” (O público e o privado, n. 33, p. 143-166, 2019). Desta forma, um fanzine produzido logo após as rebeliões é carregado de incertezas, inclusive apontando como um sonho tudo que foi vivenciado na “Ala GBTT”, que passou a não mais existir após as rebeliões e provocou desencantamento, como diz o trecho que as nomeia como “Meninas Desencantadas”, em referência ao projeto “Meninas que Encantam”. Foi durante as rebeliões que os presos “faccionados” exigiram a retirada de todos os presos LGBTI+ da CPPLIII e também das demais unidades prisionais em que presos filiados às “facções” estivessem cumprindo pena. O momento aterrorizante da rebelião é relatado na edição produzida logo após o ocorrido.

Achamos que naquele momento seria o fim de tudo. Tudo foi destruído. Tudo foi ao chão. O medo assustou, o fogo queimou. Achamos, naquele momento, que iríamos morrer, foi a hora de lutar pela vida. Não sabíamos o que estava acontecendo, porque tanto fogo, porque tanta violência. Ouvíamos gritos de socorro, o pânico tomou conta de todas. A fuga? Tentamos fugir pela porta, mas o fogo tomou conta de tudo. Tentamos fugir pelo combobó, o teto desabou e quase morremos soterradas. Outros presos nos ajudaram a fugir daquele local, fugimos ao meio do mato (SÓ BABADO, 2016SÓ BABADO. [Sem título], n. 7, 2016a. Disponível em Disponível em https://issuu.com/camilavasconcelos51/docs . Acesso em 05/05/2020.
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a, p. 04).

Após as rebeliões, os LGBTI+ foram transferidos para a CPIS e CPPL IV, duas unidades prisionais que ainda estavam em construção naquele momento. Os relatos informam as precárias condições existentes no local, em meio ao amontoado de pessoas que disputavam espaço no chão para dormir. Naqueles espaços, os LGBTI+ da “Ala GBTT” se juntaram a outros que chegaram das demais unidades prisionais. A CPPL III ficou totalmente destruída. A confecção dessa edição do fanzine foi carregada de emoções, com vários pedidos de ajuda e uma súplica ganhou espaço no folheto - “Não fizemos desordem, não quebramos a cadeia, não incendiamos a enfermaria, não destruímos a escola, então porque (sic) estamos aqui ainda?” (SÓ BABADO, 2016a, p. 13).

Os LGBTI+ reafirmavam também o medo de retornar para a CPPL III e serem vítimas dos presos “faccionados”. Como segue no relato:

Outro dia uma bicha foi para uma audiência no fórum e um cara chegou pra ela e disse que avisasse para todas nós que se a gente voltasse para a CPPL III nós íamos todas morrer [e] que as nossas cabeças iam ser arrancadas e colocadas na quentinha,17 17 Reservatório em que é servida a refeição. pra quem quisesse ver. Eu acredito que isso pode acontecer porque homofobia é o que não falta neste mundo (SÓ BABADO, 2016a, p. 17).

Relatam também precariedade do espaço provisório, uma quadra esportiva, em que foram alocadas junto aos “artigos errados”.18 18 São os presos que respondem à pena privativa de liberdade por crimes sexuais, prescritos na Lei Maria da Penha, homicídio de mulheres e outras pessoas tidas como indefesas na lógica do “crime”.

A circulação deste fanzine fora da prisão, entre organizações governamentais e não governamentais que defendem os direitos humanos e LGBTI+, como a Coordenadoria LGBT do Estado do Ceará e da Prefeitura de Fortaleza, bem como a preocupação de Aline Cabral, responsável pelo setor de saúde, foram decisivas para que LGBTI+ fossem transferidos para a ala “GBT” no presídio Irmã Imelda Lima Pontes, inaugurado em julho de 2016.

Ao relatar todo o percurso do trabalho desenvolvido junto aos LGBTI+ aprisionados, Lúcia Bertini, assessora da Secretaria da Justiça e Cidadania (SEJUS) de fevereiro de 2015 a dezembro de 2018, afirmou em conversa pessoal que a ideia de criar um presídio para “frágeis” e “vulneráveis” partiu do então secretário da Justiça e Cidadania, Hélio Leitão. A intenção era que presos deficientes, idosos e que cumpriam pena pela Lei Maria da Penha fossem transferidos para essa unidade, que foi pensada por ele para servir de modelo de atendimento humanizado. No entanto, as pessoas LGBTI+ só foram cogitadas a cumprir pena neste espaço após intensas negociações com representantes das entidades acima, e não seriam todas que teriam essa possibilidade de tratamento diferenciado, uma vez que a alocação de LGBTI+ que cometeram crimes com grave ameaça e com histórico de indisciplina desvirtuaria a proposta do presídio, que foi pensado para “frágeis” e “vulneráveis”. A interlocutora afirma que, por pressão das entidades em defesa dos LGBTI+, fez com que ocorresse a alocação de parte dessa população no Imelda - “uma decisão política”.

Ferreira et al. (2019FERREIRA, Guilherme Gomes; KLEIN, Caio Cesar; NOVAIS, Flavia Luciana Magalhães; GOULART, Vincent Pereira. “Mapeamento do encarceramento LGBTI+ no Brasil: projeto Passagens”. In: FERREIRA, Guilherme Gomes; KLEIN, Caio Cesar. Sexualidade e gênero na prisão: LGBTI+ e suas passagens na justiça criminal. Salvador: Devires, 2019. p. 126-149.) identificam o Ceará como o estado com maior diferença no tratamento penal de pessoas LGBTI+, seja por quem é beneficiado ou não com a política de espaços específicos. Destaca que lésbicas e homens trans não são beneficiados com nenhuma política oficial de diversidade sexual e questões específicas como nome social e atendimentos de saúde específicos, a exemplo da hormonização, sequer são de conhecimento da direção do Presídio feminino Auri Moura Costa. No que tange à política da ala LGBTI+ no Irmã Imelda, ela só pode ser acessada se observados alguns critérios específicos, como autodeclaração, baixa periculosidade e histórico de bom comportamento. A pequena abrangência da política também possibilita a hipervigilância dos comportamentos sexuais e trocas de parceiros dos LGBTI+ pelos agentes penitenciários. Os relatos dão conta, ainda, da impossibilidade da hormonoterapia, dificuldade de acesso a preservativos e a recorrências de transfobia por parte dos profissionais.

No Imelda, a política que reconhecia algumas demandas dos LGBTI+ seguiu ainda com mais vigor do que na CPPL III, impulsionada por muitas parcerias firmadas. A última edição do fanzine Só Babado (2016b) a que tive acesso foi realizada pelos LGBTI+ neste novo espaço, em setembro de 2016. Estes descrevem a unidade como lugar adequado para as necessidades dessa população - “Um local em que podemos ser nós mesmas, nos cuidar, usar roupas femininas, maquiagens, etc. Depois de muita luta a cada dia ganhamos mais visibilidade” (SÓ BABADO, 2016SÓ BABADO. A vida leva você para todos os lugares, n. 9, 2016b. Disponível em Disponível em https://issuu.com/camilavasconcelos51/docs . Acesso em 05/05/2020.
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b, p. 02). Na unidade, também são ofertados cursos profissionalizantes de cabeleireiro e costura, além de aulas de grafite, violão e rodas de conversa sobre temáticas de saúde, gênero e sexualidade, entre outras ações.

Já os LGBTI+ que não corresponderam aos parâmetros de acesso à política desenvolvida no Imelda permaneceram na CEPIS, inaugurada em novembro de 2016, ou em outras unidades prisionais localizadas em cidades do interior do Ceará com situação com tratamento bastante diferente da proporcionada no Imelda. Com o discurso já conhecido das normas de unidades prisionais masculinas, essas instituições impedem a entrada de roupas femininas e outras materialidades incorporadas às identidades LGBTI+. A continuidade do tratamento hormonal é proibida, assim como a visitação dos companheiros “da liberdade” e utilização do nome social pela via institucional. Tratamento este que corresponde ao padrão heterossexual nos sistemas punitivos (NASCIMENTO; MARQUES; Maria do Socorro Ferreira OSTERNE, 2020NASCIMENTO, Francisco Elionardo de Melo; MARQUES, Roberto; OSTERNE, Maria Socorro Ferreira. “Relações e relacionamentos de pessoas LGBT em prisão masculina: Entre normas e limites do dentro e fora da prisão”. Dilemas, v. 13, n. 2, p. 297-316, maio/ago. 2020.; NASCIMENTO; MARQUES, 2019).

Considerações finais

Em torno da criação do Imelda e da alocação de LGBTI+, falas públicas de agentes de Estado realçam a iniciativa como inovadora e pioneira no Brasil, tomando a política para propagar o discurso do Ceará como um “Estado moderno”, com tratamento penal adequado para essa população. Como já afirmei, a transferência de LGBTI+ se deu por intensas negociações das entidades que defendem os direitos humanos e LGBTI+ com Hélio Leitão,19 19 O Secretário comandou a SEJUS de janeiro de 2015 a janeiro de 2017. no entanto, em entrevista concedida ao G1 (2016G1. “Sejus destina presídio para detentos LGBT, idosos e deficientes no Ceará”. G1, Fortaleza, 20/09/2016. Disponível em Disponível em https://g1.globo.com/ceara/noticia/2016/08/ceara-destina-unidade-prisional-presos-gays-bissexuais-e-travestis.html . Acesso em 10/06/2020.
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), o Secretário não se furta em fazer propaganda da política, identificando-a como humanizada, mais ainda, dizendo que - “a implementação da nova unidade tem o papel de humanizar o sistema prisional do Ceará”. Fala do papel do presídio na responsabilidade com a dignidade dos presos, afirmando, ainda, que a unidade é modelo no tratamento ao interno “homossexual” - “sabemos que esse público merece um olhar diferente, para que não se tornem vítimas (sic) de violência por parte dos outros internos. Como Estado, precisamos garantir a integridade física desses internos e buscamos a humanização do sistema prisional”, afirma Hélio Leitão.

O discurso da política de tratamento penal para LGBTI+ como reflexo da política de humanização que o sistema prisional cearense tem promovido parece ter repercutido ainda com mais força quando, em 2017, agora na gestão da então secretária da SEJUS Socorro França,20 20 Socorro França comandou a SEJUS de janeiro de 2017 a dezembro de 2019. o projeto “Meninas que Encantam”, criado ainda na CPPL III, foi escolhido como destaque na 14ª edição do Prêmio Innovare21 21 Como informa a reportagem da premiação no site oficial do Governo do Estado do Ceará, o Prêmio Innovare é a mais importante premiação da Justiça brasileira e procura valorizar iniciativas que buscam soluções para os desafios enfrentados no sistema de Justiça. No ano de 2017, o concurso recebeu 710 inscrições, 12 das quais foram selecionadas finalistas. como a prática que melhor representa os esforços para o aprimoramento do sistema penitenciário. Na página do Governo do Estado, a reportagem frisa que o Projeto foi criado para “combater a discriminação a internos transgêneros, estimulando o respeito, aceitação e dignidade a gays, bissexuais e transexuais dentro e fora dos muros”. Em outro trecho da reportagem, a Secretária destaca que a escolha do projeto no Prêmio mostra o resultado do caminho que o Ceará tem trilhado rumo à humanização - “Fomos o primeiro Estado a ter um presídio voltado para a população LGBT, onde voltamos atividades e projetos para o empoderamento dessa população, em que eles possam se reconhecer e se orgulhar de suas identidades” (GOVERNO DO ESTADO DO CEARÁ, 2017GOVERNO DO ESTADO DO CEARÁ. SEJUS. Projeto cearense é escolhido como destaque no Prêmio Innovare, 25/10/2017. Disponível em Disponível em https://www.ceara.gov.br/2017/10/25/projeto-cearense-e-escolhido-como-destaque-do-premio-innovare/ . Acesso em 10/06/2020.
https://www.ceara.gov.br/2017/10/25/proj...
).

Os discursos dos gestores reiteram a política desenvolvida no Imelda como humanizada, humanizadora e com tratamento adequado aos presos LGBTI+ como se as ações lá desenvolvidas representassem abrangência não apenas à parte dessa população, mas a todas as pessoas encarceradas. Como podemos perceber ao longo deste texto, essa política é fruto de intensas mobilizações das internas, dos profissionais da saúde, assistência social e de organizações governamentais e não governamentais que tiveram como efeito ações que sequer são abrangentes a todos os LGBTI+, quiçá às demais pessoas em cumprimento de pena. O próprio agrupamento na CPPL III se deu em função da política de controle de corpos, gêneros e sexualidades das pessoas presas pelas “facções”, afirmando que o “crime” não se mistura com quem dá o cu (NASCIMENTO; MARQUES; OSTERNE, 2020NASCIMENTO, Francisco Elionardo de Melo; MARQUES, Roberto; OSTERNE, Maria Socorro Ferreira. “Relações e relacionamentos de pessoas LGBT em prisão masculina: Entre normas e limites do dentro e fora da prisão”. Dilemas, v. 13, n. 2, p. 297-316, maio/ago. 2020.), uma política marcada pelo controle da sexualidade e do gênero de todos os internos, baseando-se em atributos de masculinidade, virilidade e heterossexualidade.

Ao longo das narrativas dos LGBTI+ dispostas nos fanzines, as denúncias de violências das “facções” são frequentemente relatadas, embora, em nenhum momento, qualquer referência seja feita a estes coletivos. Não é tão difícil entender essa ausência. Se as mediações entre diferentes atores podem ocorrer junto ao Estado, com as “facções”, essa é uma missão praticamente impossível. Pessoas LGBTI+ vivem aterrorizadas com a possibilidade de serem levadas a cumprir pena nos mesmos espaços destes coletivos prisionais. O relato que narra a ameaça de cabeças de LGBTI+ que seriam expostas em “quentinhas” é mais uma das múltiplas possibilidades de violência psicológica e de tortura para com esta população.

No que tange ao papel dos fanzines na organização política das pessoas LGBTI+, podemos percebê-los como dispositivo estratégico (Maria Izabel ACCIOLY, 2020ACCIOLY, Maria Izabel. Catatau, fanzine e poesia: escrita nas prisões cearenses. 2020. Mestrado (Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social) - Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, SP, Brasil.) que possibilitou a conexão entre reivindicações e ações políticas das internas com movimento LGBTI+, Direitos Humanos e outras entidades governamentais e não governamentais na garantia de algumas demandas. Este artefato fissurou a clausura e se espalhou no fora da prisão, produzindo efeitos nos modos de vida dessa população, tendo em vista que as escrituras abordam um conjunto de violências, apelos e súplicas à tomada de providências para o fim do sofrimento a que essas pessoas são submetidas no cárcere. A narrativa de violência e sofrimento foi apropriada pelas instituições que defendem os direitos humanos na produção dessa população como “vulnerável” e, assim, alçou, junto ao Estado, ações que expressam noção de cuidado para com essa população. Gramática também apropriada pelo Estado e seus agentes no discurso que propaga a humanização do sistema prisional cearense como foco da política prisional.

No que tange às políticas de Estado, nota-se que o lastro de violências às pessoas LGBTI+ se dá pelo próprio aparato de Estado, que fundamenta as prisões masculinas como instituições destinadas a presos homens heterossexuais. Não são incomuns os relatos de travestis e mulheres trans que têm seus cabelos raspados logo no ingresso da instituição prisional ou que são obrigadas a “se vestir como homem”, como relatou uma das interlocutoras. Estas práticas são normatizadas como procedimentos de rotina nas prisões e não como práticas de tortura, tal como são. O fato é que tanto as políticas estatais como as criminais são estruturadas centralmente por atributos de gênero e sexualidade. Nota-se que a organização e a reformulação contínua dessas duas políticas, enquanto processo ideológico, representacional, operacional e de relações de poder, não podem ser desincorporadas e afastadas dos significados e dos sentidos do gênero (VIANNA; Laura LOWENKRON, 2017VIANNA, Adriana; LOWENKRON, Laura. “O duplo fazer do gênero e do Estado: interconexões, materialidades e linguagens”. Cadernos Pagu, Campinas, n. 51, e175101, 2017.). Portanto, relações de gênero e sexualidade não são tangenciais para a compreensão das dinâmicas de poder que edificam as prisões, mas centrais e implicadas na própria formação dessas instituições.

Outro aspecto que pode ser percebido com a análise dos fanzines se dá pela circulação dos fanzines no fora das prisões. Isso ocorre por meio da própria permeabilidade da prisão como instituição porosa fissurada por meios diversos que conectam o prisional e o urbano. A circulação dos fanzines entre organizações governamentais e não governamentais que defendem os direitos humanos no fora da prisão é um exemplo claro dessas fissuras. Porém, essa conexão nos fez perceber, ainda, outra questão: a incapacidade do Estado, ou seja, da política prisional em ouvir as próprias pessoas que serão os alvos de suas intervenções - os presos. Desta forma, os frequentes testemunhos de violência por que passam as pessoas LGBT no cotidiano das prisões masculinas não são levados em consideração se não forem mediados por instituições de fora das prisões, a exemplo das instituições que defendem os direitos humanos. E, quando atendidas algumas demandas, não sem luta, são produzidas pelo Estado como propaganda na forma mais torpe de se promover como uma instituição moderna, humanizada e humanizadora. Estamos falando, aqui, das complexas configurações que se instituíram junto à política de tratamento penal para LGBTI+ no Ceará, que não abrange sequer a população que se diz assistir. Política esta que produz pessoas afeitas a se beneficiar com as ações em detrimento da exclusão de outras que não se enquadram nos parâmetros definidos pelo próprio Estado.

Referências

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  • VIANNA, Adriana; LOWENKRON, Laura. “O duplo fazer do gênero e do Estado: interconexões, materialidades e linguagens”. Cadernos Pagu, Campinas, n. 51, e175101, 2017.
  • 1
    “Facções” é um termo predominantemente utilizado por agentes de segurança, internos, gestores, entre outras pessoas que se relacionam com a prisão para se referir aos coletivos de presos atuantes dentro e fora de prisões do Ceará. Logicamente, esse é um termo êmico. Portanto, ao longo deste texto, ele será redigido entre aspas.
  • 2
    Fanzines são revistas produzidas artesanalmente em que recortes de jornais e revista, desenhos, figuras coladas em folha de papel A4 são alternadas com histórias de vida escritas a mão. As folhas de papéis são dobradas e xerocadas, transformando-se em uma espécie de revista. Este artefato teve relativa circulação entre a própria população carcerária, funcionários, mas também fora da prisão. Seus números não seguem periodicidade específica, no entanto, a quantidade de páginas é sempre em torno de 15 a 20 em cada edição. Accioly (2020) fez um resgate histórico da produção destas revistas artesanais em Fortaleza e nas prisões cearenses, portanto, é uma referência a ser consultada para maiores informações neste sentido.
  • 3
    Os autores apontam a criação do Brasil Sem Homofobia (BSH), em 2004; a I Conferência Nacional de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis e Transexuais, em 2008; o lançamento do Plano Nacional de Promoção da Cidadania e Direitos Humanos de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (PNDCDH-LGBT), em 2009; e a publicação do decreto que cria o Programa Nacional de Direitos Humanos 3 (PNDH-3), em 2009, como os quatro marcos principais das ações do Poder Executivo voltadas a essa população.
  • 4
    A Resolução Conjunta N. 1 foi formulada pelo Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP) e pelo Conselho Nacional de Combate à Discriminação (CNCD/LGBT). Entre os principais aspectos da Resolução, estão: a garantia do nome social para travestis e transexuais de acordo com seu gênero; ala específica em penitenciárias masculinas para gays e travestis a partir do interesse dos mesmos; tratamento isonômico entre as mulheres transexuais e as demais mulheres; facultados o uso de roupas femininas e masculinas e a manutenção dos cabelos compridos de acordo com o gênero das travestis e transexuais; garantia do direito à visita íntima; atenção integral à saúde de acordo com os parâmetros da Política Nacional de Saúde Integral de LGBT e da Política Nacional de Atenção Integral à Saúde das Pessoas Privadas de Liberdade no Sistema Prisional - PNAISP; igualdade de condições, acesso e continuidade de suas formações educacional e profissional, sob a responsabilidade do Estado.
  • 5
    O projeto Passagens é uma rede de apoio às pessoas LGBTI+ presas, executada pela organização não governamental Somos - Comunicação, Saúde e Sexualidade, e financiada pelo Fundo Brasil de Direitos Humanos entre 2018 e 2019. Com o objetivo de mapear o encarceramento de pessoas LGBTI+ no Brasil, o Projeto visitou diferentes instituições de privação de liberdade em diversos estados do país.
  • 6
    São Paulo, Rio de Janeiro, Alagoas, Mato Grosso, Minas Gerais.
  • 7
    O Relatório é fruto de uma pesquisa realizada por um consultor contratado com financiamento do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), por meio de um edital publicado em novembro de 2018. O documento aborda detalhadamente o aprisionamento LGBTI+ em todas as regiões do País. O diagnóstico contempla a quantificação das pessoas LGBTI+ em situação de privação de liberdade, bem como a avaliação dos espaços destinados a essa população (alas e celas), levantamento da implementação da Resolução Conjunta N. 1 (CNCD/LGBT e CNPCP), e proposta de um protocolo de boas práticas para o tratamento penal digno de pessoas LGBT nas prisões do Brasil (BRASIL, 2020).
  • 8
    “Bichas” é a forma como presos e presas - inclusive - gays, bissexuais, travestis e transexuais aglomeram em um só termo todas as pessoas que mantêm relações sexuais ou afetivas com pessoas do mesmo sexo. O termo assinala ainda sujeitos com corpos masculinos que mantêm características, posturas e gestos considerados femininos.
  • 9
    A produção de fanzines junto à população carcerária cearense já era uma prática da assistente social, pelo menos desde 2002, no presídio feminino Auri Moura Costa. A produção destes artefatos é utilizada como recurso terapêutico e como estratégia de arte-educação no trabalho psicossocial junto às pessoas em privação de liberdade.
  • 10
    Nove edições do fanzine Só Babado, produzidas entre maio de 2014 e outubro de 2016, foram analisadas neste texto. As oficinas de produção do material foram realizadas na CPPL III, presídio Irmã Imelda Lima Pontes, no Centro de Execução Penal e Integração Social Vasco Damasceno Weyne (CEPIS) e Casa de Privação Provisória de Liberdade IV (CPPL IV). Estas duas últimas unidades prisionais estavam ainda em construção no momento das oficinas.
  • 11
    Ao longo deste artigo, os nomes de LGBTI+ e dos demais interlocutores são escritos tal como aparecem no material analisado.
  • 12
    Criado em 2014, o projeto “Meninas que Encantam” é voltado para homens gays, travestis e transexuais com atividades artísticas de teatro, dança e poesia com a finalidade do combate à discriminação em empoderamento das pessoas LGBTI+ em cumprimento de pena. Os espetáculos realizados pelas/os participantes do projeto envolviam a participação de público externo, principalmente os familiares das pessoas presas.
  • 13
    A hormonoterapia consiste na aplicação de hormônios com a finalidade de modificações corporais de acordo com sua identidade de gênero. No caso das pessoas travestis e mulheres trans, a aplicação de hormônios femininos é um meio importante para a formação da sua identidade corporal feminina, principalmente pela aquisição dos seios e inibição dos pelos corporais.
  • 14
    Espaço destinado para triagem e castigo.
  • 15
    Sobre a visitação de companheiros de LGBTI+ “da liberdade” nas prisões cearenses, Nascimento, Marques e Osterne (2020) relatam o não reconhecimento dessa possibilidade de visitação, apesar de que ela ocorre se justificada pelo setor de serviço social na condição de “única visita”. Essa modalidade de visita só é possível quando nenhum parente comparece na prisão. Mesmo diante da possiblidade da entrada na prisão, o contato íntimo não ocorre. Esse encontro é fortemente controlado e vigiado pelos demais companheiros de cela, que não permitem que o ato carnal se configure, nem mesmo carícias e afagos por considerarem desrespeito aos demais visitantes. Os autores argumentam que esse bloqueio se dá pelos mesmos internos que mantêm relações sexuais e de afetos com LGBTI+ nos dias que não são os de visitação.
  • 16
    As rebeliões de maio de 2016 provocaram destruição das unidades prisionais da região metropolitana de Fortaleza, inclusive da CPPL III. Os eventos ocorreram em represália à paralisação dos agentes penitenciários que reivindicavam melhores condições de trabalho e aumento salarial. Por conta disso, as visitações de parentes de internos foram suspensas. Os limites deste artigo não me permitem tratar das rebeliões de maio de 2016. Sobre o assunto, sugiro fortemente o texto de Francisco Elionardo de Melo Nascimento e Geovani Jacó FREITAS, intitulado “Facções, rebeliões, violência e gestão do aprisionamento do Ceará” (O público e o privado, n. 33, p. 143-166, 2019).
  • 17
    Reservatório em que é servida a refeição.
  • 18
    São os presos que respondem à pena privativa de liberdade por crimes sexuais, prescritos na Lei Maria da Penha, homicídio de mulheres e outras pessoas tidas como indefesas na lógica do “crime”.
  • 19
    O Secretário comandou a SEJUS de janeiro de 2015 a janeiro de 2017.
  • 20
    Socorro França comandou a SEJUS de janeiro de 2017 a dezembro de 2019.
  • 21
    Como informa a reportagem da premiação no site oficial do Governo do Estado do Ceará, o Prêmio Innovare é a mais importante premiação da Justiça brasileira e procura valorizar iniciativas que buscam soluções para os desafios enfrentados no sistema de Justiça. No ano de 2017, o concurso recebeu 710 inscrições, 12 das quais foram selecionadas finalistas.
  • Como citar esse artigo de acordo com as normas da revista:

    NASCIMENTO, Francisco Elionardo de Melo. “Fanzines e protagonismo LGBTI+ na formação da política penitenciária do Ceará”. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 30, n. 3, e80427, 2022
  • Financiamento:

    A pesquisa contou com o financiamento de bolsa de pesquisa da Fundação Cearense de Apoio ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico - FUNCAP
  • Consentimento de uso de imagem:

    Não se aplica
  • Aprovação de comitê de ética em pesquisa:

    Não se aplica

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Set 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    31 Mar 2021
  • Revisado
    14 Dez 2021
  • Aceito
    07 Fev 2022
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