Resumo:
Esta Seção Especial, composta por cinco artigos, é uma pequena amostra das reflexões que tiveram lugar no Seminário Internacional Fazendo Gênero 13, realizado em Florianópolis, em 2024, edição comemorativa dos 30 anos do evento e que agora buscamos disseminar com o compromisso ético e político de pensar e agir em direção a outro mundo. O elo em comum dos artigos aqui reunidos é emblemático das históricas lutas feministas latino-americanas, sobretudo no Brasil: as persistentes violências de que são alvos as mulheres, cis e trans, as meninas e as pessoas dissidentes de gênero em suas diferentes dimensões e as formas de resistência.
Palavras-chave:
Fazendo Gênero 13; violências; gênero; justiça; resistências
Abstract:
This Special Section, composed of five articles, is a small sample of the reflections that took place at the International Seminar "Fazendo Gender 13," held in Florianópolis in 2024, a commemorative edition of the event's 30th anniversary. We now seek to disseminate this with the ethical and political commitment to thinking and acting toward a different world. The common thread of the articles gathered here is emblematic of the historic Latin American feminist struggles, especially in Brazil: the persistent violence suffered by cis and trans women, girls, and gender-dissident people in their different dimensions, and the forms of resistance.
Keywords:
Fazendo Gênero 13; Violence; Gender; Justice; Resistance
Resumen:
Esta Sección Especial, compuesta por cinco artículos, es una pequeña muestra de las reflexiones del Seminario Internacional "Fazendo Gênero 13", celebrado en Florianópolis en 2024, una edición conmemorativa del 30.º aniversario del evento. Buscamos difundirla con el compromiso ético y político de pensar y actuar por un mundo diferente. El hilo conductor de los artículos aquí reunidos es emblemático de las luchas feministas históricas latinoamericanas, especialmente en Brasil: la violencia persistente que sufren las mujeres, niñas y personas disidentes de género cis y trans en sus diferentes dimensiones, y las formas de resistencia.
Palabras clave:
violencia; género; justicia; resistencia
Após os tempos virtuais pandêmicos, o Fazendo Gênero 13 (FG13) reuniu mais de cinco mil pessoas nos seus seis dias de evento, no inverno chuvoso catarinense de 2024. Sob a insígnia “Contra o fim do mundo - antifascismo, anticolonialismo e justiça climática”, pesquisadoras, ativistas e artistas dos mais diferentes cantos do Brasil e do mundo produziram conhecimento, partilharam vivências e construíram redes para mudar o rumo do mundo.
Ao longo desses dias, O FG13 reafirmou sua importância como um dos maiores espaços de produção, circulação e resistência de saberes feministas na América Latina, convidando à reflexão sobre os modos de vida possíveis diante do colapso social, ambiental e político que marca nosso tempo. Esta Seção Especial, composta por cinco artigos, é uma pequena amostra das reflexões que lá tiveram lugar e que agora buscamos disseminar com o compromisso ético e político de pensar e agir em direção a outro mundo. O elo em comum dos artigos aqui reunidos é emblemático das históricas lutas feministas latino-americanas, sobretudo no Brasil: as persistentes violências de que são alvos as mulheres, cis e trans, as meninas e as pessoas dissidentes de gênero em suas diferentes dimensões e as formas de resistência.
E não poderia deixar de ser este o foco desta seção em sua dupla vocação de compartilhar um pouco do conhecimento que vem sendo produzido sobre o tema e que teve espaço no FG13, bem como celebrar o marco histórico dos trinta anos de existência do Seminário. O enfrentamento das violências de gênero pode ser considerado um dos maiores patrimônios políticos das lutas feministas, que tem angariado conquistas e, infelizmente, amargado alguns retrocessos nos mais de cinquenta anos de ininterruptas mobilizações na região. Tão bem-sucedido e disseminado no tecido social que tem sido capturado como moeda política e seus sentidos disputados em contextos permeados por ideologias familistas (Alinne Bonetti, 2021); um possível caminho a ser explorado para compreender a complexidade das persistências deste fenômeno.
Nesse sentido, o campo de estudos para o enfrentamento das violências de gênero traduz o significado do feminismo enquanto uma ideologia política em sua dupla manifestação: movimentalista e epistemológica. É, portanto, na inseparabilidade entre experiências e reflexão para a ação que o feminismo se reinventa e pluraliza, reafirmando a indissociabilidade entre universidade e sociedade na qual o Seminário Internacional Fazendo Gênero encontra sua razão de ser em seus trinta anos de existência. A cada nova edição ele reafirma o compromisso feminista na democratização científica da produção de conhecimentos engajados e da pluralização dos saberes, como aponta Linda Alcoff (2016, p. 142):
O mais importante legado dos chamados novos movimentos sociais para a academia foi uma onda de demanda por diversidade. Frente a isso, a libertação não mais poderia ser formulada em nome de uma simples e homogênea classe. Dentro da academia, esses movimentos assumiram a forma de demandas por uma agenda de pesquisa libertadora que poderia ser produzida mediante a criação e a institucionalização de programas de investigação em estudos feministas e de gênero, estudos lésbicos, gays, bissexuais e transgêneros, estudos étnico-raciais, estudos pós-coloniais e, mais recentemente, estudos sobre deficiência.
A riqueza das perspectivas teórico-analíticas que compõem o repertório das epistemologias feministas é ilustrada nesta amostra de textos aqui reunidos, que analisam diferentes formas de violência de gênero, articulando suas manifestações institucionais, políticas e culturais, e os múltiplos modos de resistência feminista. Perspectivas interseccionais, antirracistas (Patricia Hill Collins; Sirma Bilge, 2021), decoloniais críticas (María Lugones, 2020; 2018) e etnográficas feministas (Carmen Gregorio Gil, 2019) são acionadas de modo a dar conta da complexidade do fenômeno das violências persistentes no cenário necropolítico contemporâneo (Achille Mbembe, 2018), atentas às articulações entre racismo, patriarcado, capitalismo e colonialidade no sistema de gênero em âmbito global (Raewyn Connell; Rebecca Pearse, 2015).
Desse modo, as perspectivas feministas têm respondido criticamente à ascensão de discursos reacionários, à banalização da violência e ao silenciamento das experiências de mulheres cis e trans e das pessoas dissidentes de gênero, como reflete Patricia McFadden (2019), ao falar que
o feminismo criou epistemologias alternativas que centralizam e visibilizam as ideias e visões das mulheres, e que insistem que as mulheres podem e devem ser intelectuais por si só, dentro e fora da academia. Devemos, portanto, debater os impactos e [as] influências do anti-intelectualismo, bem como a tendência ao elitismo, e imaginar novas formas de colaboração e construção de alianças através da celebração e aplicação de nosso conhecimento coletivo.
Associada à pluralidade das abordagens, encontramos uma diversidade de temas e objetos de análise no conjunto de artigos reunidos. Num mergulho crítico, os dois artigos que iniciam a seção escrutinam analiticamente as políticas adotadas no enfrentamento das violências de gênero de diferentes maneiras. O artigo “Mortes de mulheres, justiça criminal e o enfrentamento às violências de gênero”, escrito por Rochele Fellini Fachinetto, propõe uma reflexão sobre o enfrentamento às violências letais por razões de gênero, analisando as principais políticas adotadas no Brasil desde a década de 1980 até a mais recente tipificação do feminicídio como um crime autônomo, em 2024. Para além das medidas que têm como foco o sistema de justiça criminal, seu argumento é que as estratégias de prevenção e de proteção às mulheres necessitam ser priorizadas para que possam efetivamente avançar na redução dos índices de violência por razões de gênero no país.
Já em “Violências de gênero em SC: barbárie, naturalização e desmonte da política social”, Teresa Kleba Lisboa analisa os efeitos do desmonte das políticas públicas. A autora denuncia o silenciamento institucional diante da barbárie cotidiana e propõe ações efetivas de enfrentamento, articulando dados do Observatório da Violência contra a Mulher (OVM/SC) e experiências concretas de resistência feminista.
O terceiro artigo, “Abolicionismos feministas e redes de cuidado: os ativismos e suas práticas insurgentes”, de Alessandra Teixeira, enfoca a violência institucional retratada na articulação entre racismo e punitivismo do sistema de justiça brasileiro. A autora apresenta a emergência de ativismos feministas desencarceradores que têm tensionado a gramática e o repertório de ação do humanitarismo das organizações de direitos humanos nos últimos 15 anos, por meio da denúncia contundente do racismo do sistema punitivo, reivindicando sua abolição. A partir de levantamento documental, observação participante e entrevistas com as fundadoras de três coletivos - Amparar, Libertas e Por Nós -, busca-se retratar o modo como as ativistas, sobreviventes da prisão e mães de filhos vitimados pela violência do Estado, se articulam e mobilizam uma rede de cuidados em torno das mulheres e pessoas dissidentes de gênero encarceradas, na cena das saídas temporárias (as saidinhas), denunciando e subvertendo a lógica própria da divisão sexual do trabalho que relega essas mulheres ao abandono nas prisões, e para além delas.
Os dois últimos textos analisam resistências feministas a violências baseadas em tecnologias de gênero (Teresa de Lauretis, 2019) propagadas em discursos e práticas que visam conter as possibilidades da inteligibilidade de gênero. Em “Jornalismo feminista: estratégias e desafios diante dos conservadorismos”, Daiane Bertasso, Jimena Massa e Cláudia Lago escrutinam a perspectiva androcêntrica do jornalismo como um potente (re)produtor de estereótipos e de modos de conduta. Como resistência, as autoras defendem um jornalismo feminista interseccional e decolonial, apontando suas estratégias antifascistas, antirracistas e sua relação com teorias decoloniais. Ao apoiar-se, especialmente, em experiências argentinas e brasileiras, o artigo identifica jornalismos que colaboram para resistir aos ataques de ultraconservadores, construir alianças e outras pedagogias e epistemologias que possibilitem transformações na realidade social.
Por fim, Julia Burton, em “Acompañar abortos y prefigurar nuevas sensibilidades, una mirada sobre el activismo cultural de Socorristas en Red (Argentina)”, descreve a atuação das Socorristas en Red, uma organização que, desde 2012, reúne 40 coletivos feministas que oferecem informação e acompanhamento sobre abortos na Argentina, contribuindo nas históricas lutas pelo direito ao abortamento no país. Além de acompanhar abortos, as Socorristas têm um interesse político na prefiguração de novas sensibilidades com respeito ao aborto. Nesse sentido, mediante diversas estratégias, as Socorristas se envolvem nas disputas culturais e afetivas vinculadas ao aborto, pontuando uma importante transformação no modo de perceber e atuar em torno desta bandeira: a ação direta e o ativismo cultural.
Como se pode notar, a diversidade temática, teórica e analítica em torno do fenômeno das violências de gênero e suas formas de resistência conecta-se como conhecimentos coletivos oriundos da interdisciplinaridade que demarca as epistemologias feministas, alimentadas do ativismo, da arte, da memória, dos corpos e dos afetos que emergem como territórios de luta, ressignificação e denúncia. Este conjunto contribui para o aprofundamento da investigação científica e para o debate sobre justiça de gênero, reafirmando a centralidade de vozes feministas nas disputas por vida digna, autonomia e transformação social.
A potência emanada deste conjunto de reflexões aqui reunidas nos leva a propor o título “Mudar o rumo do mundo”, pois esta Seção Especial evoca o desejo de ruptura com as estruturas de morte e opressão que caracterizam nossos tempos. Os artigos aqui reunidos reafirmam que a práxis feminista é uma luta pelo presente e pelo futuro: uma luta anticolonial, antifascista e pela justiça climática, que recusa a normalização da destruição e afirma outras formas de existência.
Se para combater o fim do mundo é preciso fazer adiar o colapso (Ailton Krenak, 2019), os feminismos, em sua pluralidade, seguem sendo potência criadora de outros mundos possíveis, “com experiência prática de embate com um mundo que nos permite inventar novas ideias” (Sara Ahmed, 2018, p. 36). Nesse movimento de criação, Ahmed sonha que “se todas nos colocarmos no mesmo espaço, que grande será nosso conhecimento! Não é de estranhar que o feminismo cause medo; juntas, somos perigosas!” (Idem).
Referências
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-
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» https://doi.org/10.3989/dra.2019.01.002.01» https://dra.revistas.csic.es/index.php/dra/article/view/595 - KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo São Paulo: Companhia das Letras, 2019.
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- MBEMBE, Achille. Necropolítica São Paulo: n-1 edições, 2018.
- McFADDEN, Patricia. Feminismo/s Africanos: construindo alternativas para as mulheres e o mundo através de um corredor de saberes que cuida e resiste Comunicação Oral de Lançamento da Conferência Mundial da Mulher em Maputo, dezembro de 2019.
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Como citar esse artigo de acordo com as normas da revista:
BONETTI, Alinne de Lima; FIGUEIREDO, Débora de Carvalho; GASPARETTO, Vera Fátima. “Mudar o rumo do mundo: Violências persistentes, resistências e justiça de gênero”. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 33, n. 3, e108015, 2025.
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Financiamento:
Não se aplica.
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Consentimento de uso de imagem:
Não se aplica.
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Não se aplica.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
24 Out 2025 -
Data do Fascículo
2025
Histórico
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Recebido
20 Jul 2025 -
Aceito
21 Jul 2025
