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A Injustiça Epistêmica na violência obstétrica

The Epistemic Injustice of Obstetric Violence

Resumo:

Temos como objetivo, no presente artigo, apontar aspectos epistêmicos presentes na violência obstétrica. Para isso, apresentaremos o conceito de injustiça epistêmica proposto por Miranda Fricker e como tem sido utilizado para reflexões sobre as práticas de saúde na literatura de epistemologia social. Posteriormente, nos deteremos em analisar relatos de casos de violência obstétrica bem como um caso de esterilização forçada, examinando o Relatório Final da CPMI acerca da incidência de esterilização em massa de mulheres no Brasil e artigos científicos que descrevem casos de violência obstétrica. Com isso, buscamos apontar que há um aspecto epistêmico em tais violações e que uma mudança na distribuição de credibilidade pode ser relevante para o enfrentamento à violência obstétrica.

Palavras-chave:
direitos reprodutivos; injustiça epistêmica; epistemologia feminista; violência obstétrica

Abstract:

This paper seeks to point the epistemic aspects of obstetric violence. In order to do so, we will introduce the concept of epistemic injustice, as developed by Miranda Fricker, and how it has been used by the social epistemology literature to think about health issues. Subsequently, we will examine reports of cases of obstetric violence as well as a case of forced sterilization, by reviewing the Final Report of the CPMI on the incidence of mass sterilization of women in Brazil, as well as papers that describe cases of obstetric violence. Thus, we aim to point out that there is an epistemic aspect to such violations and that a change in the distribution of credibility may be relevant to confront obstetric violence.

Keywords:
Reproductive rights; Epistemic Injustice; Feminist Epistemology; Obstetric Violence

Introdução

No presente artigo buscamos apontar os aspectos epistêmicos das violações dos direitos sexuais e reprodutivos de mulheres, tendo como foco de análise dois tipos de violações que se conectam: violência obstétrica e esterilização compulsória. Ambas ocorrem na interação entre profissionais de saúde e pacientes e estão marcadas, ao mesmo tempo, por uma estrutura hierárquica de prestígio do saber técnico-acadêmico e pelo sexismo. É importante salientar que uma vez que os cuidados com o parto no Brasil são geralmente monopolizados por profissionais da medicina, boa parte da crítica aqui esboçada se direciona a tais profissionais. Seguimos Sonia Correa e Rosalind Petchesky (1996CORREA, Sonia; PETCHESKY, Rosalind. “Direitos sexuais e reprodutivos: Uma perspectiva feminista”. Physis: Revista de Saúde Coletiva, v. 6, n. 1-2, p. 147-177, 1996.) no entendimento de que os direitos sexuais e reprodutivos são definidos pelo poder de tomar decisões autônomas com base em informações seguras sobre a própria fecundidade, sobre o processo de gravidez e vias de parto, sobre saúde ginecológica e atividade sexual. As autoras defendem que é preciso pensar os direitos reprodutivos no campo dos direitos sociais, lembrando que o conceito tem se expandido para englobar as necessidades sociais que impedem real escolha sexual e reprodutiva para boa parte das mulheres no mundo, notadamente as mais pobres.

Nossa proposta consiste em discutir como a violação de tais direitos, por meio dessas práticas, está marcada pelo que Miranda Fricker (2007FRICKER, Miranda. Epistemic Injustice: Power and the Ethics of Knowing. New York: Oxford University Press, 2007.) chamou de “injustiças epistêmicas” e que compreender os aspectos epistêmicos de tais violações é relevante para produzir práticas de atenção mais adequadas ao gestar e parir.

Para ilustrar a conexão pretendida entre a teoria de Fricker e as práticas de violação de direitos sexuais e reprodutivos, dividiremos o texto em duas partes: na primeira, apresentaremos os conceitos centrais da proposta de Fricker, discutiremos suas nuances e a aplicação que outras autoras fazem da noção de injustiça epistêmica, em especial nas diferentes interações entre profissionais da saúde e pacientes; na segunda parte, buscaremos aplicar o conceito apresentado à discussão dos direitos reprodutivos no Brasil, por meio da análise de relatos de experiências de violências obstétricas durante a assistência para o parto e de um relato de esterilização forçada. Para tal, teremos as seguintes fontes como fundamentais no nosso trabalho: os depoimentos colhidos no Relatório Final da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) destinada a examinar a incidência de esterilização em massa de mulheres no Brasil (BRASIL, 1993BRASIL. Congresso Nacional. “Comissão Parlamentar Mista de Inquérito destinada a examinar a incidência de esterilização em massa de mulheres no Brasil”. Relatório nº 2, de 1993 - CN: relatório final da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito destinada a examinar a incidência de esterilização em massa de mulheres no Brasil. Brasília: Congresso Nacional, 1993.),1 1 Tal documento será referido daqui em diante como Relatório da CPMI. e os artigos de Virgínia Oliveira e Cláudia Penna (2017OLIVEIRA, Virgínia Junqueira; PENNA, Cláudia Maria de Mattos. “O discurso da violência obstétrica na voz das mulheres e dos profissionais de saúde”. Texto Contexto - Enfermagem, Florianópolis, v. 26, n. 2, e06500015, 2017. Disponível em Disponível em http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-07072017000200331&lng=en&nrm=iso . Acesso em 22/06/2018.
http://www.scielo.br/scielo.php?script=s...
) e Luciana Barboza e Alessivânia Mota (2016BARBOZA, Luciana; MOTA, Alessivânia. “Violência Obstétrica: vivências de sofrimento entre gestantes no Brasil”. Revista Psicologia, Diversidade e Saúde, Salvador, v. 5, n. 1, p. 119-129, 2016.), que analisam relatos de profissionais de saúde e mulheres pacientes acerca de violências obstétricas.

Injustiças Epistêmicas

Fricker (2007FRICKER, Miranda. Epistemic Injustice: Power and the Ethics of Knowing. New York: Oxford University Press, 2007.; 2017FRICKER, Miranda. “Evolving Concepts of Epistemic Injustice”. In: KIDD, Ian et al. (Eds.). The Routledge Handbook of Epistemic Injustice . New York: Routledge, 2017.) propôs que uma atenção para a distribuição de poder político e social em nossa sociedade é importante para compreendermos como se estruturam as nossas práticas de conhecimento. De maneira a entender esse fenômeno, a autora cunhou o conceito de “injustiça epistêmica”.

Para Fricker, uma injustiça epistêmica é uma exclusão danosa da participação de uma pessoa, ou de um grupo de pessoas, na produção, disseminação e manutenção de conhecimento. Exclusões desse tipo são casos de injustiça, segundo ela, quando elas se originam em uma falha em atribuir autoridade epistêmica a uma pessoa por conta de um preconceito de identidade, que faz com que esta pessoa seja vista como menos capaz de contribuir para uma troca epistêmica. A autora discute pelo menos dois tipos centrais desse tipo de injustiça: a “injustiça testemunhal” e a “injustiça hermenêutica”. O tipo testemunhal acontece quando o preconceito incide na capacidade de um sujeito de comunicar conhecimento, por conta de uma atribuição deficitária de credibilidade por parte de outro sujeito, ou um grupo. Por conta do preconceito de identidade, tal pessoa é vista como digna de menos crédito ao expressar seus testemunhos.

Um dos exemplos principais de Fricker para ilustrar um caso paradigmático de injustiça testemunhal é a rejeição do testemunho de Tom Robinson, um homem negro falsamente acusado de estuprar uma garota branca, Mayella Ewell, no sul de um Estados Unidos segregado racialmente. Tal exemplo é retirado do romance O Sol é para Todos, de Harper Lee (2006LEE, Harper. O sol é para todos. Rio de Janeiro: José Olympio, 2006.). No caso retratado no livro e reproduzido por Fricker, há evidência suficiente para que Tom Robinson, que é inocente, não seja condenado pelo júri. Seu advogado de defesa, Atticus Finch, apresenta uma dessas evidências fortes: por meio da análise dos machucados da vítima concluiu-se que o agressor teria utilizado a mão esquerda para golpear, porém Robinson tinha uma deficiência em seu braço esquerdo devido a um acidente na infância e, portanto, não poderia ser o autor das agressões. No entanto, ainda que na presença de evidências conclusivas como esta, o júri condena Tom, ignorando a força de seu testemunho e de um testemunho em sua defesa. Segundo a autora (FRICKER, 2007FRICKER, Miranda. Epistemic Injustice: Power and the Ethics of Knowing. New York: Oxford University Press, 2007., p. 23), este caso exibe claramente uma tensão entre o poder que uma evidência tem e o poder do preconceito racial da época. Afinal, o ano é 1935, no estado do Alabama, um estado fortemente segregado racialmente.

Na injustiça epistêmica de tipo testemunhal, o que fundamenta a injustiça é justamente uma economia epistêmica que atribui pouca ou nenhuma credibilidade a pessoas socialmente marginalizadas, fazendo com que sua participação nas práticas de conhecimento seja prejudicada ou até completamente impossibilitada. A economia epistêmica, que é a nossa prática coletiva de atribuir credibilidade e autoridade epistêmica a pessoas de uma comunidade, estaria mimetizando, então, a estrutura de poder político na sociedade.

Por trás da disparidade de acesso à analgesia no parto entre mulheres negras e brancas no Brasil poderia estar uma injustiça de tipo testemunhal? Com base em um preconceito, herdeiro do processo de escravização, que define mulheres negras como fortes e resistentes, ocorreria a recusa de seu testemunho de dor e seu pedido por analgesia.

Mas a injustiça testemunhal não é a única forma, segundo Fricker, pela qual as pessoas são excluídas do trabalho epistêmico cotidiano. Há casos também nos quais, por conta de uma participação desigual de um determinado grupo na construção e revisão de recursos epistêmicos centrais para nossa vida em comunidade, pessoas ficam impossibilitadas de testemunhar suas experiências de modo que esse testemunho seja inteligível para uma determinada audiência. Quando isso ocorre, estamos diante do que Fricker chama de uma “injustiça hermenêutica”.

O exemplo principal de Fricker, nesse caso, é o de Carmita Wood, uma funcionária da Universidade de Cornell, nos Estados Unidos, que foi vítima de um assédio sexual reiterado por parte de um superior, mas que, à época do assédio, não obteve sucesso em comunicar a situação de forma inteligível. Antes de 1975, não havia, em língua inglesa, um conceito que expressasse esse tipo de investida sexual unilateral indesejada (Alison BAILEY, 2014BAILEY, Alison. “The Unlevel Knowing Field: An Engagement with Kristie Dotson’s Third-Order Epistemic Oppression”. Social Epistemology Review and Reply Collective, v. 13, n. 10, p. 62-68, 2014., p. 64). Nessa época, havia uma lacuna conceitual para expressar experiências como essa. A criação do termo ‘assédio sexual’, por fim, preenchia uma lacuna interpretativa, ou uma lacuna hermenêutica, que fazia com que muitas das experiências pelas quais mulheres passavam (e ainda passam) fossem obscurecidas do entendimento público.

Para Fricker, esse é um caso claro de injustiça hermenêutica. Por conta da marginalização social e política e, por consequência, da participação historicamente desigual das mulheres na elaboração e na revisão de conceitos-chave para explicar experiências cotidianas, Carmita não tinha as ferramentas necessárias para explicar para as demais pessoas (inclusive aquelas que eram relevantes para os trâmites de seu seguro desemprego) como sua experiência fora degradante. Assim, havia, em um nível interpretativo ou hermenêutico naquela comunidade, uma situação em que um grupo marginalizado não poderia tornar suas experiências conhecidas, justamente por conta de sua marginalização. Quando há casos em que uma marginalização política e social obscurece a expressão das experiências desses grupos marginalizados, temos o que Fricker chama de uma injustiça hermenêutica. É importante salientar que, para Fricker, tal tipo de injustiça epistêmica é estrutural e não possui necessariamente um perpetrador. Fricker afirma ter se inspirado, para a elaboração dessa ideia, na discussão do conceito de “poder” de Michel Foucault, que atua como uma rede, um nexo de forças: as operações do poder seriam puramente estruturais e, portanto, sem sujeito (FRICKER, 2007FRICKER, Miranda. Epistemic Injustice: Power and the Ethics of Knowing. New York: Oxford University Press, 2007., p. 11). José Medina (2017MEDINA, José. “Varieties of Hermeneutical Injustice”. In: KIDD, Ian et al. (Eds.). The Routledge Handbook of Epistemic Injustice. New York: Routledge, 2017., p. 42), por sua vez, apresenta a injustiça hermenêutica de Fricker nos seguintes termos: um fenômeno estrutural em larga escala que engloba uma cultura por inteiro.

Podemos utilizar o conceito de injustiça hermenêutica, por exemplo, para apontar a dificuldade de reconhecer ou fazer ser reconhecido o aspecto brutal de condutas violentas no parto antes da cunhagem do termo “violência obstétrica”. Na ausência do conceito, várias práticas violentas durante o parto eram tidas por mulheres como normais ou como sofrimento necessário. Entretanto, é importante ressaltar que, mesmo após a definição do termo, dois outros problemas surgem. O primeiro se liga ao fato de que o acesso ao conhecimento do termo e seu significado é desigual em nossa sociedade; raça, classe, letramento são elementos que incidem diretamente no acesso a esse recurso e, portanto, na possibilidade de se reconhecer vítima de uma violação. O segundo problema se liga ao fato de que a aplicação, reconhecimento e legitimidade do termo “violência obstétrica” seguem em disputa, o que pode ser mais bem entendido à luz do conceito “dominação hermenêutica” de Amandine Catala (2015CATALA, Amandine. “Democracy, Trust, and Epistemic Justice”. The Monist, v. 98, p. 424-440, 2015. doi: 10.1093/monist/onv022
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). A autora inclui a dominação hermenêutica como um terceiro tipo de injustiça epistêmica, resultante de uma interseção entre os dois tipos propostos por Fricker. A abordagem de Catala parte de uma ontologia social assumidamente resumida, que identifica dois grupos, um minoritário, marginalizado do ponto de vista do político, e um majoritário, hegemônico. Para a autora, a dominação hermenêutica ocorre da seguinte forma: primeiro acontece uma injustiça testemunhal, na qual membros do grupo minoritário são vistos como menos dignos de credibilidade pelo grupo majoritário; depois, consequentemente, aqueles são privados da oportunidade de contribuir para os recursos epistêmicos da comunidade e acabam por ser marginalizados do ponto de vista hermenêutico, sofrendo o segundo tipo de injustiça descrito por Fricker (CATALA, 2015CATALA, Amandine. “Democracy, Trust, and Epistemic Justice”. The Monist, v. 98, p. 424-440, 2015. doi: 10.1093/monist/onv022
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, p. 427-428).

Gaile Pohlhaus Jr. (2012POHLAUS JR., Gaile. “Relational Knowing and Epistemic Injustice: Toward a Theory of Willful Hermeneutical Ignorance”. Hypatia, v. 27, n. 4, p. 715-735, 2012.) entende que os recursos epistêmicos são elementos que nos permitem formular e julgar proposições, fazer sentido de nossas experiências, descrever o mundo etc. Os recursos epistêmicos estão sempre disponíveis a uma comunidade e se relacionam necessariamente com a experiência vivida: para conhecer bem as coisas, devemos usar bons recursos epistêmicos; assim, poderemos entender melhor a experiência e usá-la para produzir melhores recursos epistêmicos. Pohlhaus Jr. (2015), como Catala (2012), chama atenção para a ideia de que, em uma sociedade estratificada, algumas pessoas se encontram numa posição que permite que suas experiências tenham mais peso na produção e circulação de recursos epistêmicos. Mas a insistência de Catala em nomear tal disparidade de dominação epistêmica reforça a ideia de que há responsáveis pelo fenômeno, diferentemente do que acontece na injustiça hermenêutica de Fricker.

A dominação hermenêutica resulta, portanto, da conjugação entre os tipos de injustiça descritos por Fricker, e assim, é o grupo majoritário que contribuirá para descrever os fenômenos de seu ponto de vista, fazendo um monopólio da prática epistêmica de compreender práticas e experiências sociais. Diferentemente da injustiça hermenêutica de Fricker, aqui não há lacuna conceitual; o que há é a recusa ativa da perspectiva minoritária. Catala usa essa ideia para falar de como práticas racistas são compreendidas como parte da cultura ou tradição de um país, sem qualquer tipo de impacto social ou individual negativo, mas podemos usá-la para pensar em que medida a percepção de mulheres submetidas à violência obstétrica é desmerecida e contestada por discursos que desconfiam de sua credibilidade e negam ativamente sua perspectiva. O termo “violência obstétrica” segue em disputa, com parte da comunidade médica recusando ativamente sua relevância.

Antes de apresentar as análises de relatos de experiência de violência obstétrica, parece-nos proveitoso apresentar uma discussão mais ampla sobre injustiças epistêmicas na relação médico-paciente. Havi Carel e Ian Kidd (2017CAREL, Havi; KIDD, Ian James. “Epistemic injustice in medicine and healthcare”. In: KIDD, Ian James et al. (Eds.). The Routledge Handbook of Epistemic Injustice. New York: Routledge, 2017a.a; 2017CAREL, Havi; KIDD, Ian James. “Epistemic Injustice and Illness”. Journal of Applied Philosophy, v. 34, n. 2, February 2017b.b) são dois autores que se destacam nesse debate. A partir de uma discussão sobre “fenomenologia da doença”, eles se depararam com a questão das injustiças epistêmicas. Para os autores, a injustiça epistêmica que acomete pessoas doentes tem aspectos participativos e informacionais, e o dano epistêmico pode ser causado a grupos de pessoas ou a indivíduos. O aspecto participativo ocorre quando um grupo de pessoas é excluído por não possuir as capacidades supostamente relevantes para a participação em uma atividade epistêmica coletiva. No caso de pacientes, supõe-se que elas ou eles não tenham o treinamento e a experiência necessária para serem incluídas(os) nos processos de decisão clínica - assim, sua opinião passa a ser vista como irrelevante. A paciente é, no máximo, uma informante pouco confiável, sendo tipicamente vista como objeto de estudo e não como sujeito participante nas práticas epistêmicas de tomada de decisão; sua prática é reduzida a “confirmar detalhes biográficos ou reportar sintomas” (CAREL; KIDD, 2017CAREL, Havi; KIDD, Ian James. “Epistemic injustice in medicine and healthcare”. In: KIDD, Ian James et al. (Eds.). The Routledge Handbook of Epistemic Injustice. New York: Routledge, 2017a.a, p. 340).

A literatura dedicada à medicina focada na paciente denuncia que na prática da anamnese2 2 Anamnese, aqui, não está sendo empregada no sentido filosófico, tal como discutido pela filosofia platônica. O uso, aqui, se refere à entrevista, realizada pelo profissional de saúde, que tem o paciente como seu objeto, com o objetivo de ser o primeiro passo para o diagnóstico de uma patologia, doença ou condição. profissionais de saúde tendem a interromper sistematicamente as pacientes em suas falas - o que poderia indicar a ausência de reconhecimento da paciente como um par na prática epistêmica, numa prática de silenciamento. Assim Carel e Kidd vão afirmar que esse preconceito participativo é a espinha dorsal da prática contemporânea de cuidados de saúde.

Soo Downe et al. (2018DOWNE, Soo et al. “What matters to women during childbirth: A systematic qualitative review”. PLoS ONE, v. 13, n. 4, p. 1-17, 2018.) apontam a influência desse preconceito participativo no campo da saúde materno-infantil. De acordo com a pesquisa, ser incluída nos processos de tomada de decisão sobre o que será feito em seu corpo, além de ser um direito básico à autonomia corporal, está associado à maior satisfação materna com a experiência do parto, o que tem impactos positivos de curto e longo prazo na saúde da mulher e de sua(seu) filha ou filho.

Alistair Wardrope (2015WARDROPE, Alistair. “Medicalization and epistemic injustice”. Medicine, Healthcare and Philosophy, v. 18, n. 3, p. 341-352, 2015.), por sua vez, discute as injustiças epistêmicas relacionadas ao fenômeno da medicalização. Segundo ele, o termo “medicalização” é empregado de maneira pejorativa e apontaria para uma extensão ilegítima da medicina enquanto um controle técnico sobre a vida e a experiência humana. A discussão sobre medicalização feita por Wardrope tem origem na crítica que as ciências humanas fazem ao avanço do saber médico que se apoia, amplamente, na discussão foucaultiana sobre a origem da clínica.

É importante notar, entretanto, que tal discussão se apresenta também na literatura médica. Wieteke Van Dijk et al. (2016VAN DIJK, Wieteke et al. “Medicalisation and overdiagnosis: what society does to medicine”. International Journal of Health Policy and Management, v. 5, n. 11, p. 619-622, 2016.) relacionam o conceito sociológico de medicalização ao conceito presente na discussão médica de overdiagnosis, ou superdiagnóstico, que é definido como a detecção de anomalias que, caso não fossem identificadas, não alterariam a vida do paciente, não causariam sequer sintomas. Neste quadro, a detecção se torna um problema, causando estresse físico e mental desnecessário. Os autores conectam tal perspectiva a uma tendência de tratar problemas de saúde como se fossem isolados de questões ambientais, culturais e até mesmo psicológicas - o que estaria na gênese desse olhar clínico. A larga utilização de testes e exames apontaria, segundo eles, nessa direção.

Lauren Freeman (2015FREEMAN, Lauren. “Confronting Diminished Epistemic Privilege and Epistemic Injustice in Pregnancy by Challenging a Panoptics of the Womb”. Journal of Medicine and Philosophy, n. 40, p. 44-68, 2015.), por sua vez, discute a questão no contexto pré-natal: para ela, o uso excessivo de ultrassonografias na gravidez indicaria um tipo de superdiagnóstico, que ela chama de “panóptica do útero” - uma obsessão por medir, examinar, auscultar e controlar a vida intrauterina. Os exames de ultrassonografia são celebrados por muitos como um avanço tecnológico positivo que permitiria a detecção de problemas de maneira precoce. No entanto, alguns obstetras usam a ultrassonografia como substituto de exames físicos mais simples, como a medição da altura uterina, que é um modo efetivo e não invasivo de acompanhar o desenvolvimento intrauterino. Vale salientar que, no bojo dessa discussão, já existem pesquisas, como a de Pierre Gressens e Pietra Hüppi (2007GRESSENS, Pierre; HÜPPI, Petra S. “Are prenatal ultrasounds safe for the developing brain?”. Pediatric Research, v. 61, n. 3, p. 265-266, 2007.), que apontam que o uso excessivo de ultrassom pode ser prejudicial ao desenvolvimento cerebral do feto.

É importante destacar, entretanto, que tal fenômeno tem classe e cor. Para mulheres brancas e de classe média, panóptica do útero para mulheres negras e pobres, pré-natal precário. Maria do Carmo Leal (2017LEAL, Maria do Carmo et al. “A cor da dor: iniquidades raciais na atenção pré-natal e ao parto no Brasil”. Cad. Saúde Pública, v. 33, suppl. 1, e00078816, 2017. Disponível em Disponível em http://dx.doi.org/10.1590/0102-311x00078816 . Acesso em 25/09/2018. ISSN 1678-4464
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) aponta para a maior incidência de mortalidade materna entre mulheres negras no Brasil, associada a piores indicadores de atenção no pré-natal e a níveis diferenciados de violência obstétrica:

Foram verificados piores indicadores de atenção pré-natal e parto nas mulheres de cor preta e parda, em comparação às brancas. Mulheres pardas e pretas sofreram menos intervenções obstétricas no parto que as brancas; no entanto as pretas receberam menos anestesia local quando submetidas à episiotomia [...] As pretas também receberam menos orientação durante o pré-natal sobre o início do trabalho de parto e sobre possíveis complicações na gravidez (p. 5).

Dessa forma, podemos compreender que a violência obstétrica tem que ser entendida em um pano de fundo interseccional, que leve em conta não apenas a subordinação de gênero, ou o privilégio do saber médico, mas também raça e classe. Tais elementos modulam a maneira segundo a qual o controle médico sobre o parto incide.

Podemos afirmar que tal controle passa por uma distribuição desigual da credibilidade? Wardrope (2015WARDROPE, Alistair. “Medicalization and epistemic injustice”. Medicine, Healthcare and Philosophy, v. 18, n. 3, p. 341-352, 2015.) afirma que a medicalização é um fenômeno de injustiça hermenêutica, uma vez que distorce os recursos hermenêuticos coletivos por meio dos quais poderíamos interpretar e partilhar nossas experiências: a “autoridade epistêmica” do discurso médico eclipsa todas as demais formas de se abordar um problema, tornando aquilo que não é confirmado pela leitura médica inexprimível. A partir dessa provocação, poderíamos pensar na dinâmica que potencialmente estrutura a distribuição de credibilidade epistêmica em interações cotidianas: seria o caso que o aumento da credibilidade de um indivíduo ou grupo de indivíduos - ou seja, uma atribuição exagerada de autoridade epistêmica para determinada pessoa ou grupo - implica “déficits” de credibilidade de um outro grupo ou indivíduo que do primeiro se afasta (ou é afastado). Medina (2011MEDINA, José. “The Relevance of Credibility Excess in a Proportional View of Epistemic Injustice: Differential Epistemic Authority and the Social Imaginary”. Social Epistemology, v. 25, n. 1, p. 15-35, 2011.) discute como o excesso de credibilidade atribuído a um agente implica prejuízos àqueles com quem interage: ele pode ficar arrogante, dogmático, superconfiante e, justamente por isso, seus interlocutores tendem a ficar intimidados, inibidos de formular uma objeção etc. O quadro teórico pintado por Medina pode ser exemplificado pela prática médica: à medida que o saber médico se constrói como saber apropriado, científico, privilegiado para abordar questões da saúde humana, saberes e vozes que se afastam desse modelo são recebidos com desconfiança. Evidentemente, é necessário fazer coro com Wardrope no sentido de conceder que existe um privilégio epistêmico justificado na prática médica. Afinal, médicas(os) são profissionais que se especializam para tratar das enfermidades e das condições clínicas que encontram. Mas o que queremos propor aqui, seguindo Wardrope, é que pode haver um desequilíbrio de credibilidade que vai além da mera credibilidade profissional de médico(a). Há, sob essa ótica, aquilo que consistirá em injustiça epistêmica - quando o(a) agente privilegiado(a) abusa de sua credibilidade.

No que segue, discutiremos como as práticas de violências obstétricas exibem em sua estrutura privilégios epistêmicos permeados justamente por abusos de credibilidade: sejam por meio de intervenções não consentidas, ou até mesmo da indução de pacientes leigas a procedimentos desnecessários e perigosos.

Injustiças epistêmicas e violência obstétrica

Em 1992, uma Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) foi instaurada no Congresso Federal Brasileiro para apurar diversas denúncias acerca da incidência de esterilização em massa de mulheres no Brasil. Esta CPMI, presidida pela então deputada federal Benedita da Silva, ouviu diversos atores sociais no intuito de compreender o fenômeno. No Requerimento da Comissão, afirma-se que 45% das mulheres em idade fértil no Brasil se encontravam esterilizadas cirurgicamente, número muito superior ao de países como Itália ou Inglaterra - com 1% e 8%, respectivamente. O texto também aponta para uma maior incidência de esterilização nos estados da região nordeste e centro-oeste do Brasil - regiões que concentram um maior contingente de pessoas pobres e negras do país. Isto, segundo os autores do Requerimento, evidenciaria o caráter racista e o recorte de classe presentes na prática da esterilização (BRASIL, 1993).

É com base nos relatos presentes no Relatório Final da CPMI que pretendemos aplicar o debate acerca das injustiças epistêmicas na relação médico-paciente. A CPMI foi instaurada em um momento em que o movimento de mulheres e o movimento negro no Brasil apontavam para violações recorrentes nos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres, especialmente as mulheres pobres e negras: estas, acusavam os movimentos, estariam sendo esterilizadas em procedimentos de laqueadura,3 3 Também chamada de ligação de tubas uterinas, trata-se de um procedimento de corte e ligamento cirúrgico das tubas que fazem o caminho do ovário até o útero. O caminho da oócito (a célula sexual feminina) é bloqueado, o que impede seu possível encontro com espermatozoides e, portanto, sua fertilização. No Brasil, desde 1996, a prática cirúrgica é regulamentada pela Lei 9.263. sem seu consentimento. É importante apontar que, àquela altura, o Brasil tinha índices de esterilização muito superiores aos apontados como a média pela OMS - uma vez que a esterilização era tida como o principal método contraceptivo usado no país4 4 Importante notar que o Brasil é um dos poucos países que compreendiam esterilização como método contraceptivo. - e que especialistas ouvidos pela CPMI apontam que isso se deve a problemas anteriores, como a ausência de informação e a dificuldade de acesso a outros métodos contraceptivos. A partir da CPMI, que denunciava, dentre outras coisas, a troca de votos por laqueadura no interior do estado do Estado de Goiás, foi se delineando a necessidade de uma política pública efetiva, centralizada, de planejamento familiar. Tal proposta toma forma na Lei nº 9.263, sancionada em 12 de janeiro de 1996, que regula o § 7º do art. 226 da Constituição Federal regulamentando, assim, uma política de planejamento familiar (BRASIL, 1996BRASIL. Lei nº 9263, de 12 de janeiro de 1996. Regula o § 7º do art. 226 da Constituição Federal, que trata do planejamento familiar, estabelece penalidades e dá outras providências. Brasília, 1996. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L9263.htm.
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).

Alguns elementos presentes na discussão da CPMI aparecem repaginados no contexto atual por meio da discussão crescente acerca da violência obstétrica e do ativismo pela humanização do parto.5 5 A discussão sobre esterilização compulsória reacendeu no Brasil nos últimos meses devido ao caso de Janaína Aparecida Querino, mulher em situação de rua, que a partir de uma decisão judicial foi submetida à laqueadura tubária sem seu consentimento no estado de São Paulo. Na última década, várias definições de violência obstétrica têm sido propostas. A primeira legislação latino-americana a tipificar tal tipo de violação foi aprovada na Venezuela em 2007 e apresenta a seguinte definição:

Qualquer conduta, ato ou omissão por profissional de saúde, tanto em público como privado, que direta ou indiretamente leva à apropriação indevida dos processos corporais e reprodutivos das mulheres, e se expressa em tratamento desumano, no abuso da medicalização e na patologização dos processos naturais, levando à perda da autonomia e da capacidade de decidir livremente sobre seu corpo e sexualidade, impactando negativamente a qualidade de vida de mulheres (VENEZUELA apud Charles TESSER et al., 2015TESSER, Charles et al. “Violência obstétrica e prevenção quaternária: o que é e o que fazer”. Rev. Bras. Med. Fam. Comunidade, v. 10, n. 35, p. 1-12, 2015. Disponível em http://dx.doi.org/10.5712/rbmfc10(35)1013.
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).

A partir da definição acima é possível pensarmos em esterilização compulsória como um caso extremo de violência obstétrica: acontecendo logo após a retirada do bebê em uma cesariana - que é muitas vezes induzida justamente com esse fim - e causando perda da autonomia e capacidade das mulheres de decidirem livremente sobre seus corpos. Pode-se argumentar ainda que a definição já aponta para o caráter epistêmico da questão ao propor como central a autonomia e a capacidade decisória das mulheres. Seguiremos, portanto, aproximando a discussão sobre injustiça epistêmica aos casos de violências obstétricas relatados.

O Relatório da CPMI apresenta o relato de uma mulher submetida à esterilização compulsória (BRASIL, 1993) e nele é possível identificar a estrutura de uma injustiça epistêmica como entendido tanto por Fricker quanto por grande parte das autoras e autores que exploram esse fenômeno. Trata-se da Sra. Sônia Beltrão, arquiteta carioca, que denunciou o Dr. Dionísio Cavaleiro de Andrade por prática de esterilização não consentida. Sônia se submeteu a uma cesariana para dar à luz seu quarto filho no Hospital-Maternidade Praça XV, uma maternidade-escola no centro do Rio de Janeiro que atendia (aos fins da década de 1980) majoritariamente população de baixa-renda. Sônia, ainda internada na maternidade, recebeu uma visita médica com a presença de estudantes e residentes e, ao ouvir os comentários de um dos médicos, percebeu que fora esterilizada durante a cirurgia. Sônia recorda que o obstetra, Dr. Dionísio, havia perguntado a ela se tinha interesse em fazer a laqueadura, ao que respondeu negativamente, por discordar de uma medida definitiva. Portanto, tratava-se não apenas de uma cirurgia sem consentimento e sem informação da paciente: tratava-se de uma cirurgia negada ativamente pela paciente.

Na busca de compreender o que havia acontecido, Sônia conseguiu acesso ao seu prontuário e confirmou a esterilização não apenas não consentida, mas também sem justificativa. Decidiu, então, denunciar o fato e um processo de denúncia foi formulado junto ao Conselho Regional de Medicina do Rio de Janeiro. Durante o processo, o relato aponta que:

Disseram-lhe que não poderiam saber que ela era uma arquiteta. Deduziu que, se o soubessem, não teriam ligado suas trompas. [Sônia acha] importante ter provado o que houve porque se não soubesse o que era laqueadura, ela iria sair sem saber, como devem ter saído de lá muitas outras mulheres ignorando o que lhes fora feito (BRASIL, 1993, p. 111).

Sônia conheceu pelo menos mais uma mulher com número similar de filhos que se descobriu esterilizada sem consentimento na mesma maternidade. Era uma pessoa descrita como bastante simples e que foi convencida a desistir de ser coautora no processo de denúncia “sob o argumento [dos médicos ou representantes do hospital] de que tinham feito por ela uma boa coisa” (BRASIL, 1993).

No caso de Sônia, não havia justificativas médicas para a laqueadura em um primeiro momento, quando acessou seu prontuário. No entanto, depois do processo instaurado, algumas justificativas surgiram: o fato de a paciente ter 36 anos, ser RH negativo, ter tido debilidade na gravidez anterior e ter produzido muitos líquidos. Sônia afirmou que a debilidade apontava não para a última, mas para a penúltima gravidez e que as demais explicações não eram suficientes para justificar a intervenção cirúrgica. O relato dela segue afirmando que:

O fato de não ser médica foi, durante todo processo, muito utilizado. O advogado dos médicos dizia que ela não entendia nada e que, sendo leiga, não poderia julgar o ato médico (BRASIL, 1993, p. 112).

O relato de Sônia Beltrão apresenta pelo menos duas violações a direitos básicos (a esterilização compulsória e a recusa do acesso à informação presente no prontuário), e pelo menos dois momentos diferentes em que uma injustiça epistêmica parece acontecer: logo antes da cirurgia, quando a paciente é consultada sobre seu desejo de se esterilizar, e durante o processo de apuração.

No primeiro momento, o obstetra consulta a paciente a respeito da laqueadura. Sônia, apesar de recusar, não é ouvida de fato, não tem sua escolha respeitada. Poderíamos supor o cenário em que o obstetra acredita que seu julgamento se sobrepõe ao julgamento da paciente acerca do seu corpo. Se somarmos isso à afirmação de que “se soubessem [que ela era arquiteta], não teriam ligado as trompas” e à presença de uma outra paciente esterilizada compulsoriamente, com o perfil similar ao de Sônia, podemos supor com mais fundamento que a recusa do obstetra em levar em consideração a negativa de Sônia se dá com base em um preconceito de identidade. Acreditando que Sônia era uma mulher pobre e sem estudo, como a maioria de suas pacientes,6 6 Existe uma crença presente no senso comum de que as mulheres pobres seriam menos pobres caso tivessem menos filhos e de que, portanto, elas estariam melhor se não pudessem mais gerar. A suposição presente aqui é de que essa crença de senso comum orientou a prática do Dr. Dionísio de violar o direito das pacientes e de ignorar sua capacidade de escolha. Dr. Dionísio agiu como se a paciente não pudesse fazer escolhas por si mesma, como se sua contribuição para a prática epistêmica em que se engajaram não fosse relevante. Sexo, pobreza e falta de instrução agiriam como elementos que minaram de maneira não justificada a credibilidade da paciente enquanto agente epistêmica: ela supostamente não seria capaz de compreender o que estaria em jogo e, portanto, não seria capaz de decidir. Com base em uma visão elitista da prática epistêmica, Dr. Dionísio pode ter violado o direito sexual e reprodutivo, um direito humano básico, dessa e de algumas outras mulheres.

É importante notar, entretanto, que parte dos elementos que constituem tal preconceito de identidade não condiz com a realidade: Dr. Dionísio acreditaria falsamente que Sônia é uma mulher pobre, com muitos filhos, incapaz de dar a eles uma vida confortável. No entanto, nos parece que mesmo que Sônia não seja uma mulher pobre, ela foi tratada como se fosse e, portanto, a injustiça epistêmica foi perpetrada tendo como base esse conjunto de características atribuídas.

No caso de Sônia, a injustiça epistêmica é anterior a uma violação de seus direitos reprodutivos. A prática do obstetra é injustificável em qualquer cenário - até mesmo num cenário em que a vida da paciente pudesse estar em risco, caso engravidasse novamente -, sendo que o consentimento da paciente é condição indispensável para a cirurgia de esterilização.

O segundo momento em que a injustiça epistêmica ocorre é durante o processo jurídico, quando os advogados do hospital apontaram a incapacidade de Sônia de entender os atos do obstetra, uma vez que era leiga. Como notado acima, não é despropositado conceder que os médicos terão acesso a recursos epistêmicos sofisticados para a compreensão de questões de saúde e que tais recursos não são partilhados por diferentes agentes epistêmicos, de modo que a respeito de questões de saúde e compreensão dos fenômenos relevantes, o obstetra seja visto como alguém que possui autoridade epistêmica. No entanto, o caso de Sônia nos parece claramente um abuso desse privilégio: o obstetra não poderia decidir por ela e muito menos desrespeitar a sua escolha, uma vez feita. O abuso do privilégio segue quando os advogados afirmam que a ação do obstetra estaria pautada numa escolha bem informada e justificada, e a paciente apenas não seria capaz de compreendê-la. Como no exemplo de Tom Robinson, no qual o racismo pesa mais do que a evidência de sua inocência, no caso de Sônia, o preconceito de identidade (de ser mulher e “pobre”) pesa mais do que a evidência de que Sônia fora esterilizada sem justificativa médica adequada.

Além dos casos de esterilização não consentida, a violência obstétrica de um modo geral é uma violência institucionalizada, porém pouco visível, uma vez que acomete as mulheres em uma situação privada, vulnerável e na qual estão submetidas a uma hierarquia de poder e, também, de saber. No entanto, com o crescimento do movimento de humanização do parto, a visibilidade para essas questões tem crescido no Brasil.

Podemos utilizar os relatos colhidos por Oliveira e Penna (2017OLIVEIRA, Virgínia Junqueira; PENNA, Cláudia Maria de Mattos. “O discurso da violência obstétrica na voz das mulheres e dos profissionais de saúde”. Texto Contexto - Enfermagem, Florianópolis, v. 26, n. 2, e06500015, 2017. Disponível em Disponível em http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-07072017000200331&lng=en&nrm=iso . Acesso em 22/06/2018.
http://www.scielo.br/scielo.php?script=s...
) e Barboza e Mota (2016BARBOZA, Luciana; MOTA, Alessivânia. “Violência Obstétrica: vivências de sofrimento entre gestantes no Brasil”. Revista Psicologia, Diversidade e Saúde, Salvador, v. 5, n. 1, p. 119-129, 2016.) - autoras que discutem a violência obstétrica por meio da fala de médicos, enfermeiras e pacientes - para identificar casos de injustiça epistêmica. No relato abaixo, uma enfermeira narra um episódio de violência obstétrica:

[Ela] estava gritando e o médico começou a fazer pressão no fundo do útero dela, e ela não queria, sabia o que era Kristeller, episio. Ela gritava: ‘Eu não quero esta mão aí’, se posicionava, e o médico gritou com ela, várias vezes. E o marido junto, um casal jovem, que tinham programado um parto maravilhoso, e tiveram um parque de horrores ali na sala de parto e todo mundo começou meio que perder a paciência com ela (OLIVEIRA; PENNA, 2017OLIVEIRA, Virgínia Junqueira; PENNA, Cláudia Maria de Mattos. “O discurso da violência obstétrica na voz das mulheres e dos profissionais de saúde”. Texto Contexto - Enfermagem, Florianópolis, v. 26, n. 2, e06500015, 2017. Disponível em Disponível em http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-07072017000200331&lng=en&nrm=iso . Acesso em 22/06/2018.
http://www.scielo.br/scielo.php?script=s...
, p. 5).

No caso relatado, o médico executa uma manobra de Kristeller que a paciente não deseja. A manobra de pressão no fundo do útero é usada com a intenção de acelerar o processo do parto. Entretanto, de acordo com a Diretriz Nacional de Assistência ao Parto Normal (BRASIL, 2017BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos. Departamento de Gestão e Incorporação de Tecnologias em Saúde. Diretrizes nacionais de assistência ao parto normal: versão resumida. Brasília: Ministério da Saúde, 2017.), documento do Ministério da Saúde que resulta de uma revisão sistemática de mais de quatrocentos artigos científicos nacionais e internacionais sobre questões relacionadas ao parto normal, não existem evidências de sua eficácia. Pelo contrário, existem evidências que apontam que a prática pode ser prejudicial à mãe e ao bebê (BRASIL, 2017). No entanto, obstetras seguem utilizando a manobra, colocando em risco suas pacientes. No caso relatado, não se trata apenas de má prática médica; parece-nos que há uma injustiça epistêmica de tipo testemunhal presente, uma vez que o profissional age a despeito da negativa da paciente, demonstrando que sua capacidade para escolha não será reconhecida. Nesse caso não há que se falar em autoridade epistêmica efetiva do profissional ou, ainda, numa oposição entre o conhecimento do obstetra versus a opinião da paciente, já que a crença do profissional na eficácia da manobra não apenas não é verdadeira, como não é justificada - uma vez que há uma ampla literatura de medicina baseada em evidências que a condena.

Oliveira e Penna (2017OLIVEIRA, Virgínia Junqueira; PENNA, Cláudia Maria de Mattos. “O discurso da violência obstétrica na voz das mulheres e dos profissionais de saúde”. Texto Contexto - Enfermagem, Florianópolis, v. 26, n. 2, e06500015, 2017. Disponível em Disponível em http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-07072017000200331&lng=en&nrm=iso . Acesso em 22/06/2018.
http://www.scielo.br/scielo.php?script=s...
) também apresentam relatos de obstetras:

A mulher não vem preparada para o que vai enfrentar. A maioria vem com uma carência de informação e acaba tendo um desencontro entre o que a gente propõe e o que a mulher espera. A obstetrícia é a segunda classe médica com mais processo (sic), e isso cria uma posição de defesa do médico perante a paciente, e acaba atrapalhando a relação médico/paciente (OLIVEIRA; PENNA, 2017OLIVEIRA, Virgínia Junqueira; PENNA, Cláudia Maria de Mattos. “O discurso da violência obstétrica na voz das mulheres e dos profissionais de saúde”. Texto Contexto - Enfermagem, Florianópolis, v. 26, n. 2, e06500015, 2017. Disponível em Disponível em http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-07072017000200331&lng=en&nrm=iso . Acesso em 22/06/2018.
http://www.scielo.br/scielo.php?script=s...
, p. 6).

No relato acima, o profissional aponta a carência de informações como o elemento que desencadeia problemas na relação médico/paciente. Sem conhecimento, a parturiente criaria esperanças falsas quanto a seu parto e, não correspondendo com a realidade (do que “vai enfrentar”), acreditaria na falsa noção de que foi submetida a uma experiência violenta e, com base em tal crença, abriria um processo judicial. Aqui, podemos perceber com mais clareza o discurso hegemônico e o aspecto de dominação epistêmica diagnosticado por Catala: um grupo politicamente minoritário, as mulheres, denuncia a violência à qual foram expostas e o grupo politicamente majoritário, os médicos, nega que tal representação da realidade faça sentido. Dando peso à afirmação deles está a estrutura desigual de distribuição de credibilidade.

Se pensarmos que fazem parte do rol dos direitos humanos os direitos sexuais e reprodutivos, que incluem o direito de toda gestante a ser acompanhada por um atendimento pré-natal,7 7 Planejamento familiar é matéria constitucional, constando no artigo no 226, que é regulamentado pela lei no 9.263, de 12 de janeiro de 1996. No artigo 3º da referida lei consta a obrigatoriedade de garantir, por intermédio do Sistema Único de Saúde, o acesso ao atendimento pré-natal e à assistência ao parto. Cabe salientar, para os fins do presente texto, que o artigo 5º versa sobre o dever do Estado de prover recursos informativos e educacionais que assegurem o livre exercício do planejamento familiar. essa questão levantada pelo profissional acima toma outras dimensões. Encontra-se entre as diretrizes de atendimento pré-natal - recomendado pelo Ministério da Saúde em seu Manual Técnico de Atenção Qualificada e Humanizada no Pré-Natal e Puerpério - a seguinte recomendação:

3. Desenvolvimento das seguintes atividades ou procedimentos durante a atenção pré-natal:

3.1 Escuta ativa da mulher e de seus(suas) acompanhantes, esclarecendo dúvidas e informando sobre o que vai ser feito durante a consulta e as condutas a serem adotadas;

3.2 Atividades educativas a serem realizadas em grupo ou individualmente, com linguagem clara e compreensível, proporcionando respostas às indagações da mulher ou da família e as informações necessárias (BRASIL, 2005BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Ações Programáticas Estratégicas. Área Técnica de Saúde da Mulher. Pré-natal e Puerpério: atenção qualificada e humanizada - manual técnico. Brasília: Ministério da Saúde, 2005., p. 10 [destaques nossos]).

Reconhecendo que não é plausível que todas as mulheres tenham acesso a priori a informações relevantes e de qualidade sobre gravidez e parto, torna-se indispensável para o exercício pleno de seus direitos sexuais e reprodutivos que a profissional ou equipe profissional que atue no pré-natal desempenhe esse papel de educadoras. Portanto, se a paciente chega mal informada à sala de parto, como descrito na fala supracitada, isso pode ser o resultado de ausência de pré-natal, ou de um pré-natal que não cumpriu as diretrizes acima citadas. De qualquer forma, isso sinaliza uma violação a um direito básico anterior ao trabalho de parto que muitas vezes é reforçada por um quadro de violência obstétrica. Barboza e Mota (2016BARBOZA, Luciana; MOTA, Alessivânia. “Violência Obstétrica: vivências de sofrimento entre gestantes no Brasil”. Revista Psicologia, Diversidade e Saúde, Salvador, v. 5, n. 1, p. 119-129, 2016.) incluem a restrição ao acesso à informação como um tipo de violência obstétrica:

Outra prática de violência identificada é a negação das informações às pacientes sobre o que está acontecendo com o seu corpo e sobre os procedimentos que serão realizados. A não informação, a informação negada e a informação fragmentada são faces diversas do mesmo fenômeno (p. 124).

As autoras seguem distinguindo os três aspectos do fenômeno que poderiam facilmente compor um quadro de “injustiça epistêmica” da seguinte forma: a) o aspecto de não informação aconteceria quando propositalmente informações fossem omitidas pelo profissional de saúde, devido a um preconceito de identidade. Nas palavras das autoras, ele acontece

por considerar a usuária inferior e incapaz de entender o que está sendo decidido, reproduzindo valores de discriminação de classe e raça e as relações de poder simbólico (BARBOZA; MOTA, 2016BARBOZA, Luciana; MOTA, Alessivânia. “Violência Obstétrica: vivências de sofrimento entre gestantes no Brasil”. Revista Psicologia, Diversidade e Saúde, Salvador, v. 5, n. 1, p. 119-129, 2016., p. 125).

Já b) o aspecto de informação negada supõe um quadro em que a paciente demanda informação, mas é deliberadamente ignorada; enquanto c) o aspecto de informação fragmentada se dá quando a comunicação não é efetiva, uma vez que o profissional de saúde abusa de jargões médicos e de uma linguagem inacessível à paciente. Assim, temos elementos que nos levam a crer que não apenas algumas mulheres não têm acesso à informação relevante e de qualidade durante o pré-natal, como estão submetidas a um processo de desinformação deliberada, com base no fato de elas serem mulheres e, muitas vezes, pobres e com pouco acesso à instrução formal acerca da questão.

Lembremos que, para Fricker, uma injustiça epistêmica é uma exclusão danosa da participação de uma pessoa, ou de um grupo de pessoas na aquisição, produção e transmissão de conhecimento, por conta de um preconceito estrutural de identidade. Nos casos de injustiça epistêmica, recordemos, indivíduos ou grupos são lesados primeiro em sua capacidade enquanto sujeito epistêmicos, mas são também, com frequência, lesados em sua vida prática. Os casos descritos acima parecem apontar para cenários muito próximos dos que Fricker descreve em seu trabalho. Cenários nos quais participação igualitária nas tarefas epistêmicas é negada a determinadas pessoas, seja pela rejeição de seus testemunhos, seja pela participação desigual na construção e revisão dos recursos epistêmicos em uma comunidade. Poderíamos estar de frente a um novo tipo de injustiça hermenêutica? A negação à informação de qualidade, ao lesar um grupo de pessoas na aquisição de conhecimento, acaba por desencadear futuras injustiças de tipo testemunhal.

As mulheres que são vítimas dos procedimentos descritos neste artigo parecem estar oscilando entre uma vitimização testemunhal, por não terem suas vontades ouvidas ou levadas em consideração, e uma vitimização hermenêutica, por terem sua participação no entendimento das suas experiências menosprezada. Se essa descrição estiver correta, o debate acerca das injustiças epistêmicas parece apresentar ferramentas importantes para uma compreensão mais ampla das questões que dizem respeito a violações de direitos reprodutivos.

Nesse sentido, pode nos ser proveitosa e ilustrativa a discussão sobre as taxas de cesariana8 8 Cesariana, também chamada de parto cesáreo ou abdominal, é uma cirurgia obstétrica que consiste em extrair o feto do útero materno por meio de uma incisão nas paredes abdominais e uterina. Trata-se de uma técnica importante para partos difíceis e, muitas vezes, é utilizada para salvar a vida da parturiente e do feto. Por ser uma cirurgia que implica riscos, a OMS recomenda que as taxas de cesarianas fiquem entre 10% e 15% de todos os partos realizados. O Brasil e o Chipre lideram o ranking de cesarianas, que superam, nesses países, a taxa dos partos normais realizados. no país:

O Brasil é o 2o lugar no mundo em percentual de cesarianas. Enquanto a Organização Mundial da Saúde (OMS) estabelece em até 15% a proporção de partos por cesariana, no Brasil, esse percentual é de 57%. Eles representam 40% dos partos realizados na rede pública de saúde. Já na rede particular, chegam a 84% dos partos [...] nos últimos 40 anos, o percentual de cesarianas quase quadruplicou no País, passando de 15% para os atuais 57%. [...] Sabe-se que, em uma situação de alto risco, a cesariana pode salvar a vida da mulher, do bebê ou de ambos. No entanto, utilizar a cesariana de forma eletiva - como regra, não exceção - é inaceitável do ponto de vista das evidências científicas (UNICEF, 2016UNICEF. Quem espera, espera, 2016. Disponível em Disponível em https://www.unicef.org/brazil/pt/quem_espera_espera.pdf . Acesso em 18/11/2017.
https://www.unicef.org/brazil/pt/quem_es...
, p. 5).

João Paulo Souza e Cynthia Pileggi-Castro (2014SOUZA, João Paulo; PILEGGI-CASTRO, Cynthia. “Sobre o parto e o nascer: a importância da prevenção quaternária”. Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 30, supl. 1, p. S11-S13, 2014. Disponível em Disponível em http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-311X2014001300003&lng=en&nrm=iso . Acesso em 22/08/2018.
http://www.scielo.br/scielo.php?script=s...
) explicam que o Brasil apresenta uma das maiores taxas de incidência de parto cesáreo no mundo e isso indica o grau de “hipermedicalização” da maternidade em nosso país. Os(as) autores(as) afirmam que se trata de um problema com várias causas, como, por exemplo: o protagonismo de médicos obstetras na assistência ao parto, em detrimento a outros profissionais de saúde, a percepção bastante comum entre a população sobre uma possível superioridade dessa via de parto e o fato de boa parte dos profissionais de saúde considerá-la mais conveniente.

Alex Souza, Melania Amorim e Ana Porto (2010SOUZA, Alex; AMORIM, Melania; PORTO, Ana. “Condições frequentemente associadas com cesariana, sem respaldo científico”. FEMINA, v. 38, n. 10, p. 505-516, setembro 2010.) têm pensado a taxa de cesarianas no país, analisando condições frequentemente associadas à cesariana, contrapondo-as a revisões de literatura sobre as melhores evidências para indicação deste procedimento. A conclusão das(o) autoras(or) é de que várias indicações comuns para cesárea não possuem respaldo na literatura, implicando risco desnecessário para as pacientes. Tendo em vista os riscos de uma cesárea desnecessária, as(o) autoras(or) recomendam a seguinte prática:

Assim, a decisão para a realização de uma cesariana deve ser criteriosa e discutida com a paciente. É necessário prover informações com base em evidências para as gestantes durante o período pré-natal de forma acessível, levando em conta cultura, língua, de ciência mental e dificuldade de aprendizado [...] devem ser incluídas informações sobre as indicações, os procedimentos envolvidos, os riscos e benefícios associados, implicações para futuras gestações e partos após uma cesariana (SOUZA; AMORIM; PORTO, 2010SOUZA, Alex; AMORIM, Melania; PORTO, Ana. “Condições frequentemente associadas com cesariana, sem respaldo científico”. FEMINA, v. 38, n. 10, p. 505-516, setembro 2010., p. 506 [grifos nossos]).

Existe uma relação causal entre desinformação e escolha da cesariana? Será que devidamente informadas dos riscos (para si e para seu(sua) filho(a)) de uma cesariana, e em um ambiente epistêmico que não corroborasse falsas crenças quanto ao parto normal, as mulheres ainda assim optariam por cesarianas? Em que medida a ausência de informação, aliada à informação fragmentada ou inacessível contribuem, no Brasil, para índices altíssimos de cesarianas?

Considerações finais

No presente artigo tentamos usar o conceito de “injustiça epistêmica” proposto por Miranda Fricker para analisar relatos de experiência de violências obstétricas. Trata-se, naturalmente, de uma discussão que foge do escopo puro da filosofia e se mostra interdisciplinar, podendo contribuir não apenas para o campo da epistemologia social, mas também para a reflexão acerca de melhores práticas na assistência ao parto. É fundamental, no âmbito da produção filosófica, reconhecer que conceitos não existem no vácuo. Antes, se relacionam intimamente com as práticas sociais e cotidianas.

Dessa forma, buscamos na literatura casos de violência obstétrica, apontando que tais violações se sustentam numa economia epistêmica desigual. Com isso, apontamos que uma mudança na distribuição de credibilidade pode ser relevante para o enfrentamento à violência obstétrica.

Identificamos nos relatos apresentados casos de injustiças epistêmicas. O relato de Sônia Beltrão é um dos exemplos de injustiça testemunhal, fundamentada em uma economia epistêmica desigual: agindo com base em um preconceito de identidade, em falsas crenças sobre a pobreza no Brasil e ignorando os direitos das mulheres à autonomia sobre seus corpos, o obstetra ignora também a afirmação de Sônia de que não deseja ser esterilizada e performa a cirurgia. Também o é o exemplo da paciente que recusa a manobra de Kristeller. Ao fazê-lo, ela não está apenas apontando sua escolha, ela está afirmando que sabe o que é Kristeller e os riscos que a manobra implica. Novamente o desequilíbrio na economia epistêmica - fundada não apenas no sexismo, mas no excesso de credibilidade atribuído ao médico - faz com que seu lugar como sujeito de conhecimento não seja reconhecido e a violação de seus direitos aconteça.

Mas também identificamos um tipo de injustiça epistêmica que, na relação do cuidado à saúde é, muitas vezes, anterior à testemunhal ou a ela coextensivo: a negação à informação de qualidade.

Discutir violência obstétrica segue sendo de fundamental importância hoje, no Brasil, uma vez que, apesar de descritos em leis e princípios, os direitos reprodutivos de mulheres e meninas não estão consolidados. Consideramos que o debate que travamos aqui foi capaz de demonstrar minimamente tal afirmação. Nossa proposta é que o presente texto possa contribuir para identificar que tipo de crenças de base e preconceitos de identidade fundamenta tais violações e como uma economia epistêmica que distribui de maneira desigual a credibilidade a diferentes agentes epistêmicos não apenas produz as condições de possibilidade da violência, como são violentas em si.

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  • 1
    Tal documento será referido daqui em diante como Relatório da CPMI.
  • 2
    Anamnese, aqui, não está sendo empregada no sentido filosófico, tal como discutido pela filosofia platônica. O uso, aqui, se refere à entrevista, realizada pelo profissional de saúde, que tem o paciente como seu objeto, com o objetivo de ser o primeiro passo para o diagnóstico de uma patologia, doença ou condição.
  • 3
    Também chamada de ligação de tubas uterinas, trata-se de um procedimento de corte e ligamento cirúrgico das tubas que fazem o caminho do ovário até o útero. O caminho da oócito (a célula sexual feminina) é bloqueado, o que impede seu possível encontro com espermatozoides e, portanto, sua fertilização. No Brasil, desde 1996, a prática cirúrgica é regulamentada pela Lei 9.263.
  • 4
    Importante notar que o Brasil é um dos poucos países que compreendiam esterilização como método contraceptivo.
  • 5
    A discussão sobre esterilização compulsória reacendeu no Brasil nos últimos meses devido ao caso de Janaína Aparecida Querino, mulher em situação de rua, que a partir de uma decisão judicial foi submetida à laqueadura tubária sem seu consentimento no estado de São Paulo.
  • 6
    Existe uma crença presente no senso comum de que as mulheres pobres seriam menos pobres caso tivessem menos filhos e de que, portanto, elas estariam melhor se não pudessem mais gerar. A suposição presente aqui é de que essa crença de senso comum orientou a prática do Dr. Dionísio de violar o direito das pacientes e de ignorar sua capacidade de escolha.
  • 7
    Planejamento familiar é matéria constitucional, constando no artigo no 226, que é regulamentado pela lei no 9.263, de 12 de janeiro de 1996. No artigo 3º da referida lei consta a obrigatoriedade de garantir, por intermédio do Sistema Único de Saúde, o acesso ao atendimento pré-natal e à assistência ao parto. Cabe salientar, para os fins do presente texto, que o artigo 5º versa sobre o dever do Estado de prover recursos informativos e educacionais que assegurem o livre exercício do planejamento familiar.
  • 8
    Cesariana, também chamada de parto cesáreo ou abdominal, é uma cirurgia obstétrica que consiste em extrair o feto do útero materno por meio de uma incisão nas paredes abdominais e uterina. Trata-se de uma técnica importante para partos difíceis e, muitas vezes, é utilizada para salvar a vida da parturiente e do feto. Por ser uma cirurgia que implica riscos, a OMS recomenda que as taxas de cesarianas fiquem entre 10% e 15% de todos os partos realizados. O Brasil e o Chipre lideram o ranking de cesarianas, que superam, nesses países, a taxa dos partos normais realizados.
  • Como citar esse artigo de acordo com as normas da revista:

    GABRIEL, Alice de Barros; SANTOS, Breno Ricardo Guimarães. “A Injustiça Epistêmica na violência obstétrica”. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 28, n. 2, e60012, 2020.
  • Financiamento:

    Não se aplica
  • Consentimento de uso de imagem:

    Não se aplica
  • Aprovação de comitê de ética em pesquisa:

    Não se aplica

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    31 Ago 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    31 Out 2018
  • Revisado
    18 Set 2019
  • Aceito
    18 Dez 2019
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