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A CPMI da Violência contra a Mulher e a implementação da Lei Maria da Penha

The Joint Parliamentary Committee of Enquiry and the Implementation of the Maria da Penha Law

Resumos

Este artigo analisa as conclusões da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito da Violência contra a Mulher, criada pelo Congresso Nacional Brasileiro em 2012, no que tange à aplicação da Lei Maria da Penha. Após um ano e meio de trabalho, o relatório da CPMI apontou a fragilidade das políticas públicas de enfrentamento à violência contra mulheres e os obstáculos na implementação da Lei Maria da Penha, dentre os quais, destacam-se: a precariedade da rede de serviços e o reduzido número de juizados especializados em atendimento às mulheres em situação de violência doméstica e familiar; o descumprimento da decisão do Supremo Tribunal Federal que proíbe a aplicação da suspensão condicional do processo; a resistência de operadores/as do direito em entender a proposta da nova lei e romper com a lógica familista e o insuficiente orçamento para o desenvolvimento e a manutenção das políticas públicas de enfrentamento a essas situações de violência. A análise do relatório da CPMI permite concluir que os estados brasileiros investem muito pouco em políticas públicas específicas e que a implementação integral da Lei Maria da Penha depende de uma nova compreensão jurídica, da articulação entre os poderes públicos e de uma política orçamentária de gênero.

CPMI da Violência contra a Mulher; Lei Maria da Penha; violência contra a mulher.


This article aims to analyze the findings of the Joint Parliamentary Committee of Enquiry of Violence against Women created by the Brazilian National Congress in 2012 regarding the implementation of the Maria da Penha Law. After a year and a half of work, the report pointed the fragility of public policies to combat violence against women and the obstacles in the implementation of the Maria da Penha Law, among which: ) the fragile network of specialized services to women victims of violence; b) the small number of specialized courts for domestic and family violence against women; c) the failure of the decision of the Supreme Court to prohibit application of the conditional suspension of proceedings d) the resistance of jurists to understand the proposed new law and break with the family perspective; e) the insufficient budget for the development and maintenance of public policies to combat violence against women. The report concludes that the Brazilian states invest very little in specific public policy and that the full implementation of the Maria da Penha Law depends on a new legal understanding of the relationship between government and a budget policy of gender.

CPMI of Violence against Women; Maria da Penha Law; Violence against Women


Introdução

Passados seis anos da promulgação da Lei Maria da Penha e considerando o fato de que, ao longo das últimas décadas as taxas de mortes de mulheres no país não têm diminuído,( ) o Congresso Nacional decidiu investigar a situação de violência contra as mulheres através de uma Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI).( )

A CPMI da Violência contra a Mulher iniciou seus trabalhos em março de 2012 com a finalidade de investigar a situação da violência contra a mulher no Brasil e apurar denúncias de omissão por parte do poder público com relação à aplicação de instrumentos instituídos em lei para proteger as mulheres em situação de violência.( )

Ao longo de um ano e meio, a CPMI realizou 24 audiências públicas, visitou diversos equipamentos públicos, conversou com os movimentos de mulheres e analisou centenas de documentos enviados pelos estados. O resultado deste trabalho que contém um diagnóstico da situação de violência baseada no gênero está detalhado no Relatório Final( ) aprovado em julho de 2013, que contém, também, inúmeras recomendações aos diversos poderes constituídos.

No que tange à Lei 11.340/2006 (Lei Maria da Penha), a CPMI visitou juizados, promotorias, defensorias e delegacias especializadas da mulher, trançando um panorama da rede especializada de atendimento às mulheres em situação de violência.

Este artigo analisa as principais conclusões da CPMI no que se refere à implementação da lei e aos obstáculos que devem ser superados para a sua plena efetividade.

1 Lei Maria da Penha: uma conquista das mulheres e da sociedade brasileira

A Lei 11.340, de 7 de agosto de 2006 (Lei Maria da Penha)( ) é sem dúvida, uma das mais importantes conquistas legais do feminismo, das mulheres e da sociedade brasileira. Conforme a ONU Mulheres, "a Lei Maria da Penha, que cria múltiplos mecanismos, incluindo tribunais especializados e assistência psicossocial para as vítimas, foi posteriormente adotada, em 2006, representando um dos exemplos mais avançados de legislação sobre violência doméstica".( )

Sem dúvida, a criação da Lei Maria da Penha (LMP) representou um avanço enorme na legislação de enfrentamento à violência doméstica e familiar no Brasil. Rompendo com a visão meramente punitivista, a LMP incorporou as perspectivas da prevenção, assistência e contenção da violência, além de criar medidas protetivas de urgência e juizados especializados para o julgamento dos crimes praticados com violência doméstica e familiar.

Por outro lado, como diversas pesquisas atestam,( ) há um amplo conhecimento da lei: 98% da população já ouviu falar da lei Maria da Penha. Embora se possa argumentar que esse conhecimento não se refere ao conteúdo integral da lei, é importante pontuar que a população sabe que se trata de uma legislação de proteção às mulheres. Assim, com esse significativo reconhecimento social pode-se afirmar que a Lei Maria da Penha é a lei mais "popular" do país.

Ademais, os debates e a divulgação na mídia contribuem para criar um novo imaginário social no qual a violência contra as mulheres é interditada.( ) Inobstante, a violência não diminuiu( ) e os registros de ocorrências aumentam anualmente, o que aponta para a necessidade de mudanças culturais profundas na sociedade brasileira bem como para o fortalecimento da perspectiva preventiva da lei.

2 O Relatório da CPMI: principais resultados

O Relatório Final da CPMI( ) destacou que o país tem avançado na criação de mecanismos institucionais para enfrentar as violências contra mulheres. No entanto, sublinhou também a necessidade de que o "Estado brasileiro leve a sério o enfrentamento à violência contra as mulheres, particularmente para reduzir os feminicídios praticados por parceiros íntimos e erradicar a tolerância estatal no procedimento e julgamento desses crimes".( )

Conforme destaca o Relatório, o enfrentamento à violência contra as mulheres adquiriu caráter nacional com a criação, em 2003, da Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência da República (SPM/PR),( ) o mais importante mecanismo para a elaboração, articulação e execução das políticas para as mulheres.

A política nacional de enfrentamento à violência contra as mulheres começa a se constituir em 2004 com a I Conferência Nacional e o I Plano Nacional de Políticas para as Mulheres. No entanto, será com a elaboração do Pacto Nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres (Pacto Nacional), em 2007, que ela se torna mais robusta.

O Pacto Nacional está sustentado em cinco eixos: 1) garantia da aplicabilidade da Lei Maria da Penha; 2) ampliação e fortalecimento da rede de serviços para mulheres em situação de violência; 3) garantia de segurança cidadã e acesso à justiça; 4) garantia dos direitos sexuais e reprodutivos, enfrentamento da exploração sexual e do tráfico de mulheres; 5) garantia da autonomia das mulheres em situação de violência e ampliação de seus direitos.( )

Assim, a Política Nacional e o Pacto Nacional traçam as diretrizes e as ações de enfrentamento às violências contra as mulheres.

Os eixos 1 (garantia da aplicabilidade da Lei Maria da Penha) e 2 (ampliação e fortalecimento da rede de serviços) serão analisados em detalhe neste artigo.

3 O orçamento para as políticas de enfrentamento à violência contra mulheres

A SPM/PR não é apenas a coordenadora das políticas, mas também é a principal repassadora de recursos através de convênios a estados e municípios para a elaboração e a execução de políticas de enfrentamento às violências contra mulheres.( )

Com o Pacto Nacional, a política estruturou-se orçamentária e estrategicamente.( ) No entanto, conforme apurou a CPMI

O valor médio da dotação atribuída ao conjunto de ações do Programa tem sido módico (25 milhões ao ano), quando se adota como indicador tanto a população-alvo (R$ 0,26 por mulher) quanto ao número de municípios a serem atendidos (R$ 4.637,00 por município). Tomando-se por base não o valor autorizado, mas o efetivamente realizado (pago), o financiamento das ações mostra-se ainda mais deficiente, com valor médio por município da ordem de R$ 2.100,00.( )

Como se nota, um dos aspectos centrais para a elaboração das políticas e ações refere-se ao orçamento. Se o orçamento da SPM/PR, que é o organismo repassador de recursos para estados e municípios é baixo, a criação e a ampliação da rede de serviços fica prejudicada, já que não há recursos suficientes para a demanda. Além disso, os estados e os municípios investem muito pouco, ficam à espera dos recursos federais, e muitos não conseguem executar as políticas porque não dispõem de equipe para tanto. A não execução dos convênios por parte dos entes federados tem impacto no desempenho orçamentário da Secretaria.( ) Por exemplo, em 2009 a execução do orçamento não ultrapassou os 22%.( ) Para superar esse problema, a CPMI propôs um projeto de lei que cria um Fundo Nacional de Enfrentamento à Violência contra a Mulher, visando facilitar o repasse direto aos estados e municípios.

Observa-se ainda que, no período analisado pela CPMI - de 2004 a 2011 - o orçamento médio do programa de violência foi de R$ 25 milhões, valor considerado absolutamente insuficiente.( ) Deve-se considerar que os recursos não foram distribuídos uniformemente entre os estados. O repasse foi condicionado à adesão ao Pacto, à existência de um Plano Integral Básico (PIB) de um organismo de mulheres e a projetos submetidos e aprovados.

Destaca-se que a existência de organismos de mulheres (secretarias e coordenadorias) tem sido fundamental para o repasse de recursos e a execução das políticas. Notou-se que quando há uma Secretaria de Mulheres estruturada, há o fortalecimento dos investimentos e da articulação das políticas estaduais.

Desta forma, a baixa execução orçamentária é um obstáculo a mais para a ampliação da rede e para a destinação dos recursos aos estados e municípios. Somando-se a escassez de recursos à amplitude geográfica e à concentração populacional têm-se uma centralização de repasses para as capitais e regiões metropolitanas.

Conforme a CPMI, "Se por um lado esta concentração espelha a densidade demográfica da população feminina, por outro, revela a dificuldade de acesso das mulheres que vivem em regiões distantes ou de difícil acesso".( )

4 A insuficiência da rede especializada de serviços

Segundo o Relatório da CPMI, a rede especializada é deficiente, há falta de profissionais capacitados/as, os serviços estão concentrados nas capitais ou regiões metropolitanas e não chegam a todas as mulheres. Dentre os principais serviços da rede destaca-se a análise dos juizados, das promotorias e defensorias especializadas, das delegacias da mulher e casas-abrigo.

Conforme a CPMI, existem no país 965 serviços especializados de atendimento às mulheres, dentre os quais 408 Delegacias da Mulher (DEAMs), 103 núcleos especializados em delegacias comuns, 202 Centros de Referência de Atendimento à Mulher, 71 casas-abrigo, 66 juizados especializados, 27 varas adaptadas, 64 promotorias especializadas e 36 núcleos ou defensorias especializadas.( ) Esses serviços constituem a rede especializada em atendimento e são fundamentais para as políticas de prevenção e assistência à violência doméstica e familiar, previstas na Lei Maria da Penha. Apesar do aumento significativo do número de serviços observado nas últimas décadas, o crescimento não acompanhou a demanda.

A seguir, são examinados os serviços que compõem a rede vinculada de assistência prevista na lei Maria da Penha.

Varas e juizados especializados em violência doméstica e familiar

A Lei Maria da Penha dispôs sobre a criação de juizados especializados para que o julgamento dos crimes envolvendo violência doméstica e familiar tivesse um tratamento único e especializado. A característica da especialização relaciona-se não apenas à complexidade do fenômeno, mas também se refere à competência híbrida do juizado, cujo objetivo é evitar que as mulheres tenham que recorrer a mais de uma instância judicial. No entanto, conforme constatou a CPMI, o número de juizados e varas especializadas no país é insignificante diante da demanda existente. A maioria situa-se em capitais, não tem equipe multidisciplinar adequada e completa, não possui servidores/as em número suficiente e tem excesso de processos em tramitação, levando à prescrição de muitos feitos.( )

A competência civil e criminal é exceção nos Juizados Especializados de Violência Doméstica e Familiar.( ) Segundo diagnosticou a CPMI, a maioria deles atua apenas na esfera criminal, obrigando as mulheres a ingressarem nas varas de família para os procedimentos de natureza não criminal. Com isso, inviabiliza-se a dupla jurisdição e rompe-se com a lógica da lei de cortar a peregrinação das mulheres e facilitar o acesso à justiça.

A Lei estabeleceu a competência híbrida (civil e criminal) para evitar que as mulheres tivessem que percorrer duas instâncias judiciais diferentes quando a origem do problema é a mesma: a violência doméstica e familiar.( ) A alegação para o descumprimento da lei é a de que os juizados e as varas não possuem estrutura para atender a essa dupla demanda, já que as medidas protetivas são inúmeras e abarrotam os juizados.

Sabe-se que com a criação da Lei Maria da Penha a violência doméstica, antes julgada nos juizados criminais, nas varas criminais ou mesmo nas varas de família, deslocou-se para os juizados ou varas especializadas diminuindo substancialmente a atividade processual e cartorária dessas varas e sobrecarregando os juizados especializados. Desta forma, um único juizado de violência doméstica pode ter mais de 20 mil procedimentos. Tal situação é absurda quando comparada ao número de varas de família e criminais com no máximo dois mil processos cada uma.( )

No entanto, mesmo com a diminuição dos processos nas varas criminais e de família em decorrência de seu deslocamento para os juizados especializados de violência doméstica, o Poder Judiciário não se adequou a esta nova realidade, mantendo varas criminais comuns com pouca movimentação e juizados especializados sobrecarregados.

Essa nova realidade de demanda de acesso à justiça nos casos de violência doméstica não encontra paralelo no sistema de justiça. Por isso, os Tribunais de Justiça necessitam reavaliar as prioridades e reorganizar a distribuição da justiça segundo a necessidade real e em consonância com o número de processos existentes e não conforme a tradição que prioriza as varas de família e criminais. Assim, romper com a lógica que norteou a organização judiciária até o advento da Lei Maria da Penha requer destinar recursos e privilegiar a organização do sistema para beneficiar as mulheres que recorrem ao Poder Judiciário.

Observa-se, no entanto, uma lógica invertida na prestação jurisdicional. É como se a realidade da violência devesse se adequar ao Poder Judiciário e não este à realidade social. A prestação jurisdicional apresenta-se não como um dever do Estado e um direito das mulheres, mas como um "direito capenga", um "meio direito". Assim, as mulheres têm direito, mas nem tanto.

Desta forma, a ausência de preferência na criação dos juizados especializados de violência doméstica e familiar denota que a violência doméstica não é um assunto juridicamente relevante para os tribunais de justiça para merecer prioridade orçamentária.

Além do mais, a CPMI constatou a precariedade do registro de informações sobre violência contra mulheres no Poder Judiciário. Alguns estados não puderam informar o número de processos relacionados à lei Maria da Penha em virtude da ausência de um sistema informatizado. Não bastasse isso, mesmo quando o sistema é informatizado, o registro da informação não é coletado de modo igual entre os tribunais, impossibilitando uma análise comparativa entre eles.

Não sem razão, a criação de um sistema nacional de informação sobre violência de gênero foi uma das recomendações da CPMI à Secretaria de Políticas para as Mulheres e aos tribunais de justiça.( )

4.2 Delegacias da Mulher (DEAMs)

Em 1985 foi criada a primeira Delegacia de Defesa da Mulher (DDM) em São Paulo.( ) Em 1992, o país possuía 125 Delegacias da Mulher e, em 2012, já eram 443, registrando-se em 20 anos, um aumento quantitativo de 307 delegacias e núcleos. Observa-se, então, um crescimento significativo no número de delegacias da mulher no período equivalente a 345,6%.( ) O crescimento revela, por um lado, a forte atuação dos movimentos de mulheres na reivindicação e por outro, o esforço da SPM/PR na ampliação dos serviços.

O expressivo número de DEAMs comparativamente aos outros serviços demonstra que a política concentrou-se na esfera policial. Isso se explica, em parte, porque estas foram o primeiro serviço e a primeira política de segurança pública dirigida às mulheres. ( )

A concentração da atuação feminista na esfera da segurança pública iniciada na década de 1980 deveu-se à constatação de que as mortes de mulheres ficavam impunes. Nesse período, o feminismo denunciou a absolvição dos chamados "crimes da honra" (legítima defesa da honra masculina) ou "crimes da paixão" e a visão privatista/familista do direito que se recusava a punir os homicidas de mulheres e a violência doméstica.( ) A ação feminista focalizava no sistema de justiça e segurança e objetivava romper com a lógica da impunidade. A forte atuação das feministas durante quase duas décadas foi responsável pela revogação da tese da legítima defesa da honra masculina e pelo fortalecimento das pesquisas na área de violência. Com isso, consolidou-se um campo de atuação política e acadêmica, com resultados significativos para as mulheres.( )

Paralelamente ao fortalecimento do polo repressivo, foram sendo criados novos serviços, como casas-abrigo e centros de referência, com atendimento psicológico e social, bem como foi trabalhada a reforma da legislação penal. Esses novos serviços atendiam à perspectiva complexa do fenômeno da violência contra as mulheres, constatando que em alguns casos a punição não era o desejo das mulheres ou nem sempre a medida mais eficaz.

Embora seja representativo o crescimento, as delegacias em todo o país estão em processo de sucateamento, conforme constatou a CPMI nas diligências realizadas.( ) A situação de abandono vivida pelas DEAMs não é privilégio destas, pois se estende a todo o sistema de segurança pública.( )

A falta de estrutura das DEAMs reflete-se na ausência de servidores, na estrutura física inadequada, na ausência de plantões 24 horas, nas licenças médicas em excesso, na existência de profissionais desmotivados/as, dentre outros problemas.

Não bastasse isso, foi identificado que, em alguns estados, os boletins de ocorrência não possuem campo específico para crimes da lei Maria da Penha e, em outros, praticam o "agendamento", isto é, a oitiva completa do depoimento da vítima, em outro momento. A inexistência de campo específico compromete a obtenção de dados estatísticos confiáveis. No entanto, esse não é o único problema. A CPMI também constatou que nem todos os estados possuem um sistema informatizado, especialmente no interior, onde o registro é feito manualmente.

Assim, as ausências de um campo específico no boletim de ocorrência e de um sistema de segurança informatizado não apenas comprometem a obtenção de dados estatísticos confiáveis, como prejudicam o atendimento às mulheres.

Da mesma forma, a precariedade material e de recursos humanos têm impacto direto no atendimento prestado às mulheres.

Segundo diagnosticou a CPMI:

O agendamento tem sido um obstáculo ao andamento dos inquéritos, pois nem sempre as mulheres retornam. Além disso, não há informação ou controle sobre o número de mulheres que desistem ou não retornam na data aprazada em razão do adiamento ou de fato mais grave que possa ter acontecido em decorrência do agendamento. Essa situação foi constada nas DEAMs de Maceió, Manaus, Curitiba, Florianópolis, Vila Velha, Boa Vista e Salvador.( )

Além disto, observou-se demora na investigação policial devido a despachos burocráticos nos inquéritos policiais que não atendem aos requisitos de uma ágil investigação. Na DEAM de Manaus, a CPMI constatou a existência de 4.500 inquéritos parados desde 2006, fato que estava sendo apurado pela Corregedoria da Polícia.

4.3 Ministério Público: promotorias especializadas da mulher

Não apenas há um reduzido número de juizados especializados como também de promotorias especializadas da mulher. Embora nem todos os estados tenham informado a existência dessas promotorias, elas geralmente existem nos juizados. Assim, a existência do juizado leva à criação da promotoria e da defensoria especializadas.

Além do pequeno número existente no país, a CPMI constatou que grande parte dos Ministérios Públicos estaduais não possui o cadastro dos crimes de violência doméstica e familiar, conforme previsto na lei Maria da Penha.( ) A ausência desse cadastro impede que se conheça a atuação do Ministério Público nos casos de violência doméstica e familiar, o número de denúncias oferecidas, etc.

Do mesmo modo, verificou-se que nem todos os/as promotores/as de justiça que atuam nos juizados e nos casos de violência contra a mulher recebem capacitação, especialmente os/as que trabalham no interior.

Ademais, a CPMI constatou que alguns/algumas promotores/as de justiça aplicavam, ainda, o instituto da suspensão condicional do processo vedado pela Lei Maria da Penha e pela decisão do Supremo Tribunal Federal. Esse aspecto será analisado separadamente logo a seguir.

4.4 Defensoria Pública: núcleos de defesa da mulher

Se o número de juizados e promotorias da mulher é pequeno, menor ainda é o número dos núcleos de defesa da mulher (Nudem), que segundo a CPMI não passam de 36.( ) Em alguns estados, como em Santa Catarina e Goiás, sequer havia defensoria estruturada de modo a atender a demanda da população.( )

A estrutura deficiente de grande parte das defensorias públicas estaduais é um sério obstáculo ao acesso à justiça da população mais carente e das mulheres. No elo do sistema de justiça, a defensoria pública é o vetor mais frágil, embora a Constituição Federal estabeleça que sua função é essencial à justiça.( )

A fragilidade das defensorias públicas traduz-se em deficiência na prestação jurisdicional dos mais necessitados. No âmbito da lei Maria da Penha, na incapacidade de cumprir com o artigo 27.( )

4.5 Casas-abrigo: necessidade de uma nova política de abrigamento

As casas-abrigo durante muito tempo constituíram a principal política de abrigamento das mulheres em situação de risco de morte. No entanto, o conceito de abrigamento e a política foram sendo ampliados para incluir outras possibilidades de acolhimento de mulheres em situação de risco de morte.

A SPM/PR no documento Diretrizes nacionais para o abrigamento de mulheres em situação de risco e violência ( ) entende o conceito de abrigamento de forma ampla, incluindo várias possibilidades (serviços, programas e benefícios) de acolhimento provisório destinados a mulheres em situação de risco e violência (doméstica, familiar, tráfico) que se encontrem sob ameaça e necessitem de um lugar seguro e acolhedor.( )

Conforme o documento:

O abrigamento, portanto, não se refere somente aos serviços propriamente ditos (albergues, casas-abrigo, casas-de-passagem, casas de acolhimento provisório de curta duração, etc.), mas também inclui outras medidas de acolhimento que podem constituir-se em programas e benefícios (benefício eventual para os casos de vulnerabilidade temporária) que assegurem o bem-estar físico, psicológico e social das mulheres em situação de violência, assim como sua segurança pessoal e familiar.( )

A nova conceituação da política de abrigamento pretende dar conta da complexidade cada vez maior da sociedade brasileira e da vida das mulheres. O documento destaca que as casas-abrigo devem ser lugares seguros que ofereçam abrigo protegido e atendimento integral. O abrigamento tem natureza temporária e caráter sigiloso, onde as mulheres permanecem por um determinado período (mínimo três meses), para que possam posteriormente retomar a normalidade de suas vidas.( )

Apesar dessa nova concepção de abrigamento, a CPMI pontuou que as casas-abrigo ainda se constituem na principal política para acolhimento de mulheres em situação de risco. No entanto, é o serviço menos procurado pelas mulheres.

Segundo a CPMI

Inúmeras razões contribuem para isso, dentre as quais a concepção de confinamento e disciplinamento que norteia as casas-abrigo; o rompimento, mesmo que temporário, dos vínculos; o não oferecimento de atividades educativas, culturais e laborais que fujam do tradicional 'artesanato'; a falta de privacidade, o rompimento da atividade escolar dos filhos e filhas, dentre outros, fazem com que as mulheres prefiram correr riscos a ficarem na casa-abrigo.( )

Esse diagnóstico merece uma reflexão profunda sobre as condições atuais das casas-abrigo.( ) Não bastasse a visão de disciplinamento, em muitas delas as atividades laborais oferecidas pouco têm a ver com as reais necessidades de trabalho e profissionalização das mulheres. Ademais, as condições materiais de algumas casas visitadas pela CPMI eram péssimas (sem pintura, camas amontoadas, sem privacidade, algumas rachaduras, etc). Até mesmo a concepção de segurança ficava prejudica, pois as mulheres chegavam de táxi e havia alta rotatividade dos/das profissionais de segurança, fato observado na casa-abrigo de Boa Vista em Roraima.( )

Verifica-se a necessidade de viabilizar imediatamente novas formas de abrigamento emergencial às mulheres. Há que se pensar se, de fato, manter uma casa-abrigo nas atuais condições é a alternativa mais eficaz, inclusive na relação custo-benefício. Isso não significa que não haja necessidade de existir um espaço destinado ao abrigamento emergencial tal qual uma casa-abrigo. No entanto, a concepção deve ser repensada, pois o esvaziamento dessas casas revela que as mulheres preferem correr o risco de morte a ter seus laços sociais cortados.

Além disso, mulheres vítimas de tráfico ou mesmo com parceiros com envolvimento com o tráfico de drogas começam a solicitar abrigo e os/as profissionais não estão capacitadas/os para essa nova realidade ou temem colocar em risco as outras mulheres abrigadas. Essa nova realidade exige uma revisão profunda da concepção que norteou essa política até recentemente, tal como propõe a SPM em sua nova perspectiva de abrigamento.

5 A decisão do Supremo Tribunal Federal e a suspensão condicional do processo

Em 9 de fevereiro de 2012, o Supremo Tribunal Federal (STF) ao julgar a Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC) 19( ) decidiu, por unanimidade, que a Lei Maria da Penha é constitucional e que a ela não se aplica nenhum dos institutos despenalizadores previstos na Lei 9.099/95 (Lei dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais),( ) tais como a conciliação, a transação penal e a suspensão condicional do processo. Ainda, no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4424, decidiu que o crime de lesão corporal de natureza leve é de ação pública incondicionada, isto é, independe de representação ou manifestação de vontade da vítima.

A decisão do Supremo Tribunal Federal na ADC 19 finalizou um árduo debate em torno da constitucionalidade da lei, fundamentalmente sobre a aplicação da tutela penal exclusiva das mulheres e da não aplicação dos institutos previstos na lei 9.099/1995. Alguns Tribunais de Justiça (Mato Grosso do Sul, Rio de Janeiro, Minas Gerais e Rio Grande do Sul) entendiam que a Lei Maria da Penha era inconstitucional porque violava os princípios da igualdade (entre homens e mulheres) e da proporcionalidade (aplicação de pena mais gravosa quando os crimes de violência doméstica e familiar forem cometidos contra mulheres). Além disso, encaminhavam os processos de violência doméstica aos juizados especiais criminais (Lei 9.099/1995) para a aplicação dos institutos despenalizantes.

Em 31 de março de 2014, o STF reafirmou essa decisão( ) dizendo que não se admite a aplicação do benefício da suspensão condicional do processo previsto no art. 89 da Lei 9.099/1995 em nenhum tipo de comportamento que envolva violência doméstica (crime ou contravenção penal).

Essas duas decisões do Supremo Tribunal deveriam ter posto fim à aplicação da suspensão condicional do processo nos casos de violência doméstica e familiar no âmbito da lei Maria da Penha. Entretanto, não foi essa a situação que a CPMI encontrou em diversos estados.

Conforme apontou a Comissão, em alguns estados brasileiros persiste a aplicação desse instituto, violando expressamente a lei e as decisões do Supremo Tribunal. Promotores/as de justiça do Distrito Federal apareceram como os/as mais renitentes em cumprir com a decisão do Supremo Tribunal Federal. Tal postura ensejou recomendação da CPMI à Corregedoria do Ministério Público para averiguar o comportamento dos/das promotores de justiça e para que o Ministério Público capacite seus/suas integrantes para que cumpram a decisão do STF e não ofereçam a suspensão condicional do processo.

Defensores/as da aplicação desse instituto argumentam que a concessão do benefício da suspensão condicional do processo permite a resolução mais rápida do conflito, evitando o prolongamento do processo e, talvez, sua prescrição. Mesmo que isso possa ocorrer, não cabe ao Ministério Público descumprir decisão erga omnes (válida para todos) do órgão máximo do país. A aplicação do instituto demanda alteração legislativa( ) e desde a decisão do STF não pode ser mais ofertada pelo Ministério Público.

Além disso, a possível prescrição resulta do excesso de processos em tramitação nos juizados, o que leva a refletir sobre a estrutura dos juizados especializados, comparativamente às demais varas. Nesse sentido, a atuação do Ministério Público deveria ser na fiscalização da rede de serviços, como prevê a Lei Maria da Penha.

Ademais, a suspensão condicional do processo nos termos da Lei 9.099/1995 objetiva beneficiar o autor do fato e não a vítima, pois essa é a lógica da legislação. Dessa forma, a proposta da suspensão pode ser aceita ou não pelo autor do fato (agressor), independentemente do desejo da vítima. Portanto, a suspensão condicional ora existente não foi prevista para solucionar casos de violência doméstica e, por isso, considera-se inadequada a sua aplicação.

6 Resistência jurídica ao novo paradigma legal

Embora a decisão do Supremo Tribunal Federal tenha consagrado a posição das feministas quanto à constitucionalidade e não aplicação dos institutos despenalizadores, ainda encontram-se resistências na sua aplicação. Conforme mencionado, o oferecimento da suspensão condicional do processo por alguns/algumas promotores/as de justiça revela uma resistência em aceitar o novo paradigma legal. Da mesma forma, o reduzido número de juizados e varas especializadas demonstra a resistência do Poder Judiciário em implementar a lei.

Entende-se que essas resistências revelam a persistência de uma disputa ideológica entre o feminismo e o tradicionalismo jurídico sobre a violência contra as mulheres. Como já foi antes afirmado,( ) para o feminismo, a violência contra as mulheres é um problema público (de segurança, cidadania e direitos fundamentais) e para os juristas tradicionais, um mero problema legal. A lei Maria da Penha deu voz às mulheres e ao feminismo, disse o que deveria ser considerado violência doméstica e familiar e como deveria ser o tratamento jurídico dispensado às mulheres.

O tradicionalismo jurídico resiste, insistindo em aplicar institutos proibidos pela lei (suspensão condicional do processo) e minando a implementação dos juizados e varas especializadas.

Romper com a tradição jurídica no tratamento da violência contra as mulheres tem sido um desafio persistente ao feminismo. A lei Maria da Penha é um convite aos/às operadores/as do direito para uma ruptura dogmática com um passado que não pode mais conviver com o Estado Democrático de Direito e com a negação do direito fundamental de uma vida sem violência.

Conclusão

O Relatório da CPMI trouxe importantes elementos que permitem uma reflexão profunda sobre a execução das políticas de enfrentamento às violências contra mulheres.

Nas últimas décadas houve avanços significativos nas políticas de enfrentamento às violências, especialmente a partir da criação da Secretaria de Políticas para as Mulheres.

A criação da Lei Maria da Penha foi um momento importante de avanço legal e sua popularidade demonstra o acerto de sua edição. No entanto, permanecem alguns obstáculos para a sua plena efetivação. Estamos em um momento privilegiado para a consolidação da Política Nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres, do Pacto Nacional e da Lei Maria da Penha. A contribuição da CPMI nesse sentido foi relevante, pois não apenas forneceu subsídios para uma avaliação profunda das políticas mas também propôs medidas legislativas, como a criação do Fundo Nacional para a sua consolidação política.

A efetividade da lei depende, em parte, da solidificação dessa política, e também da superação de velhos paradigmas jurídicos que nortearam, por séculos, a doutrina e a jurisprudência brasileiras. As recomendações da CPMI aos diversos poderes, se cumpridas, poderão facilitar o caminho para a máxima efetividade da lei e dos direitos das mulheres.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Ago 2015

Histórico

  • Recebido
    10 Out 2014
  • Aceito
    05 Fev 2015
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