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Gênero, corpo e enfermagem

RESENHAS

Gênero, corpo e enfermagem: uma experiência pedagógica e política

Rosana Heringer

Universidade Candido Mendes

Gênero, corpo e enfermagem.

PITANGUY, Jacqueline; MESQUITA, Ruth (Orgs.).

Rio de Janeiro: CEPIA, 2002. 108 p.

(Cadernos CEPIA, n. 5).

As diferentes formas através das quais o corpo feminino foi analisado e interpretado ao longo da história das ciências médicas e biológicas ainda hoje influenciam o modo pelo qual profissionais de saúde de diversas áreas atuam em relação aos seus pacientes. A fim de promover a reflexão sobre esses temas junto aos profissionais de enfermagem, a Cepia - Cidadania, Estudo, Pesquisa, Informação e Ação, uma organização não-governamental sediada no Rio de Janeiro, promove desde 1999 o curso de extensão "Gênero, corpo e enfermagem", em parceria com a Escola de Enfermagem da Uerj - Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Parte das conferências que integraram a terceira edição do curso estão reunidas, sob o mesmo título, no Cadernos Cepia nº. 5.

O caderno "Gênero, corpo e enfermagem" reúne artigos de seis pesqui-sadoras que atuam como professoras no curso, além de uma introdução geral feita pelas diretoras das duas organizações envolvidas. Trata-se de artigos que abordam as principais temáticas desenvolvidas no programa, a partir de perspectivas disciplinares diversas, que vão da antropologia ao direito, passando pela bioética e, é claro, pela enfermagem. Essa variedade de olhares permitiu aos estudantes que freqüentaram o curso - e permite agora aos leitores - refletir sobre os processos sociais que permeiam as práticas do profissional de enfermagem, influenciam políticas de saúde e respondem a lógicas que se desenvolvem fora dos muros hospitalares, como afirma Jacqueline Pitanguy, diretora da Cepia, em seu artigo "Saúde, mulher e sociedade: uma introdução ao debate".

A autora relembra que essa tarefa de sensibilização dos profissionais de saúde para as questões de gênero e direitos humanos vem sendo desenvolvida pela Cepia desde 1996, quanda essa organização deu início ao curso de extensão "Saber médico, corpo e sociedade", em parceria com a Faculdade de Medicina da UFRJ - Universidade Federal do Rio de Janeiro. O curso agora faz parte do quadro de disciplinas eletivas oferecidas naquela faculdade e representa, ao longo destes anos, um esforço em trazer questões novas para a formação dos profissionais de saúde. Experiências desse tipo têm como agente fundamental o movimento de mulheres, cujo poder de articulação e construção de um novo imaginário sobre as relações de gênero no Brasil e no mundo permite a identificação e intervenção em contextos tão concretos e necessários como este, da formação desses futuros profissionais.

Ieda de Alencar Barreira, professora do Departamento de Enfermagem Fundamental da UFRJ, em seu artigo "Os discursos sobre a enfermagem brasileira e as questões de gênero", nos traz um panorama significativo sobre a construção da identidade da enfermeira no Brasil, tendo como pano de fundo a história dos discursos médicos vigentes, bem como a trajetória dessa ocupação no país, invariavelmente associada ao universo profissional feminino. A autora nos lembra a importância do fortalecimento da identidade profissional das enfermeiras, como forma de romper com a violência simbólica que marcou e ainda marca sua presença no campo dos profissionais de saúde.

Seguindo o panorama dos principais temas abordados no curso de extensão, a enfermeira e sanitarista Laura Tavares Soares nos brinda com uma reflexão sobre o impacto das reformas neoliberais nas políticas de saúde. Este é um tema que perpassa toda a prática profissional da enfermagem e da saúde em geral, revelando as implicações diretas para o cotidiano dos serviços de saúde, resultantes de escolhas e políticas definidas no plano macro, sem levar em conta as especificidades dos serviços e dos públicos aos quais são oferecidos. Vale destacar aqui os pontos observados pela autora, como a questão da privatização e as chamadas inovações gerenciais; o impacto no financiamento do setor saúde; a des-centralização e o apelo à municipalização a qualquer custo; e uma crítia aos "modelos assistenciais" em saúde, tais como os programas federais de agentes comunitários de saúde e saúde da família.

Alejandra Rotania, professora de bioética e coordenadora executiva da organização não-governamental Ser Mulher, apresenta-nos uma reflexão sobre a importância do ensino dessa disciplina nos cursos de enfermagem, tanto mais necessária quanto se ampliam as possibilidades de intervenção das ciências da vida e o desenvolvimento científico e tecnológico como um todo. Em "Bioética aplicada à enfermagem: aproximação aos desafios do ensino", é apresentado um leque de questões que estão no centro do debate sobre os avanços e limites das ciências biológicas. Também são abordados aspectos relacionados à ética profissional propriamente dita, como um campo de pesquisa e ensino em expansão no caso da enfermagem, associada principalmente ao consentimento informado dos usuários dos serviços, no âmbito das práticas da enfermagem. Finalmente, a autora nos lembra que o campo temático da bioética alarga-se constantemente, levando a uma necessidade permanente de reflexão sobre o assunto, tendo como referência a interdis-ciplinaridade que lhe é constitutiva.

Esse esforço interdisciplinar parece ser a tônica de todo o livro e está presente de maneira enfática no trabalho que vem a seguir: "Fronteiras simbólicas: gênero, corpo e sexualidade", de Maria Luiza Heilborn. "É fundamental desconstruir a idéia de um corpo natural". Essa é a principal mensagem do artigo, que se apresenta como uma reflexão rica e um amplo painel sobre os estudos de sexualidade, contextualizando os marcos gerais e as teorias utilizadas nos mesmos.

O texto visa a trazer para as alunas do curso e para o público leitor um olhar antropológico sobre os temas do corpo e da sexualidade. A autora, doutora em antropologia e professora do Instituto de Medicina Social da Uerj, parte da constatação de que "o campo da saúde ainda opera com uma concepção essencialista e biologizante da condição humana" (p.74), para nos apresentar uma visão sobre corpo e sexualidade como construções sociais. Esses termos, aparentemente 'objetivos', ganham assim uma abordagem histórica e cultural. Destaca-se nessa análise a referência aos roteiros sexuais, "que conformam as trajetórias afetivo-sexuais-reprodutivas dos sujeitos" (p.79), espelhando as suas múltiplas e diferentes socializações.

Os impactos dessa desconstrução sobre a prática dos profissionais de enfermagem são facilmente perceptíveis: estimulam a reflexão e a mudança nas práticas dessa 'função de intervenção autorizada nos corpos', própria do exercício da enfermagem. É nesse sentido que Heilborn nos faz um importante alerta: idéias e concepções sobre pessoas, conduta, corpo, sexualidade e gênero são extremamente variadas e não devem ser generalizadas para o conjunto da sociedade, pois variam de grupo para grupo. E nem devem ser tomadas como verdades imutáveis.

Leila Linhares Barsted, advogada e diretora da Cepia, faz em seu artigo uma contex-tualização internacional da legitimidade e do progressivo reconhecimento dos direitos das mulheres como direitos humanos, com ênfase para os direitos sexuais e reprodutivos e a garantia de mecanismos de prevenção e punição da violência de gênero. A autora destaca a importância da visibilidade da violência contra a mulher, principalmente como estímulo à criação de serviços públicos específicos voltados para o atendimento das vítimas desse tipo de violência. Mais importante ainda, e uma das mensagens centrais deste livro, é a importância de se reconhecer os profundos impactos da violência de gênero sobre a saúde, apontando que "o tema da violência pode e deve ser incorporado tanto na capacitação dos agentes comunitários de saúde como na equipe de profissionais de saúde, em todos os seus níveis" (p. 104).

A partir desse amplo panorama de questões que transcendem os horizontes das ciências biomédicas, mas que nem por isso deixam de estar extremamente relacionadas ao cotidiano do profissional de saúde, tais como cidadania, sexualidade, violência, as reformas da política de saúde no Brasil, construção da identidade profissional da enfermeira e bioética, este livro, juntamente com o curso que o gerou, é a concretização da tarefa de sensibilização estratégica dos profissionais de saúde, já recomendada pela OPAS Organização Pan-Americana de Saúde - em documentos recentes.

Finalmente, o livro traz uma bibliografia selecionada sobre os temas abordados, bem como informações adicionais sobre o curso propriamente dito. Ao fazer essa síntese de uma parceria tão bem-sucedida, Gênero, corpo e enfermagem apresenta-se como um registro de uma experiência ímpar, que associa a inovação pedagógica no ensino superior e o compromisso político de profissionais que acreditam ser possível construir novas abordagens e olhares sobre suas práticas.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Out 2003
  • Data do Fascículo
    Jun 2003
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