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A evolução do feminismo: subsídios para sua história

RESENHAS

História(s) do feminismo ou o feminismo na história?

Rita Maria Xavier Machado

Universidade Federal de Santa Catarina

A evolução do feminismo: subsídios para sua história.

COELHO, Mariana.

Curitiba: Imprensa Oficial do Paraná, 2002. 2. ed. 392 p.

De acordo com as informações da organizadora do livro, Zahidé Muzart, há controvérsias quanto a alguns dados sobre a autora Mariana Coelho. Sabemos que ela é portuguesa de nascimento e que veio para o Brasil definitivamente em 1892, radicando-se em Curitiba, Paraná. Já quanto aos registros de seu nascimento, diferentes dicionários biográficos indicam datas distintas, apontando os anos de 1857, 1858 e 1872.

Mariana Coelho trabalhou como educadora, fundou e dirigiu o Colégio Santos Dumont, para o sexo feminino, e a Escola Profissional República Argentina, que dirigiu até aposentar-se. Ela faleceu em Curitiba em 1954.

Como escritora, circulou pela poesia, livros de contos, de estudos de história da literatura, traduções e artigos em periódicos. Seu livro Paraná mental, que trata da história literária do Paraná, recebeu a medalha de prata na Exposição Nacional de 1908, no Rio de Janeiro. Entretanto, de acordo com Zahidé Muzart, foi "no ensaio polêmico que sempre se distinguiu Mariana Coelho, gênero em que as mulheres deixaram poucas páginas no séc. XIX" (p. 13). O ensaio, considerado um gênero de escrita masculino porque expressa e defende idéias, só foi mais utilizado pelas mulheres a partir do séc. XX.

Mariana foi uma defensora aguerrida do feminismo e, segundo Zahidé Muzart, expôs entusiasticamente seu ponto de vista em várias obras, entre as quais se encaixa perfeitamente o livro A evolução do feminismo. Nele, a autora se propôs a fazer, e fez, uma coletânea de informações sobre fatos, dados científicos e pessoas que, de alguma forma, seja com suas ações, produções literárias, projetos de lei e atitudes, puderam subsidiar a defesa da tese feminista, da igualdade intelectual e de direitos entre homens e mulheres.

Nesse exaustivo 'inventário', ela registrou a presença e as ações das mulheres nas mais variadas épocas, locais e circunstâncias. Em sua intenção de contribuir para a emancipação feminina, Mariana descreve, em tom apaixonado, feitos gloriosos, corajosos, íntegros ou generosos perpetrados por mulheres, demonstrando assim a freqüente 'superioridade' feminina em várias instâncias. Ela investigou a presença das mulheres na religião, na guerra, na política, na administração, nas ciências, nas artes, nas letras, na imprensa e no amor, em diferentes épocas e regiões do globo.

A cada capítulo, além de enumerar os feitos das mulheres e citar personagens que, com suas propostas, falas ou obras literárias, corroborassem suas idéias, Mariana Coelho também divulgou posições contrárias às suas, ora reservando um tom irônico ou, no mínimo, jocoso aos seus desafetos, ora optando, com altivez, por nem sequer dar propaganda a seus nomes, o que torna a leitura da obra muito mais divertida. A autora demonstrou não se enganar com palavras doces de certos personagens da história, registrando, com grande diversão, os escorregões machistas desses mesmos personagens em outras ocasiões.

A obra é interessante, ilustrativa e de leitura leve, constituindo-se a meu ver em referência básica, principalmente, para historiadoras/es. Entretanto, mesmo em se tratando de obra acessível ao público em geral, recomendo uma leitura cuidadosa. A evolução do feminismo, embora com o mérito de compilar uma quantidade respeitável de informações sobre o tema, não é um clássico. Mariana, obviamente, é um produto de seu tempo e como tal deve ser lida. Trata-se, portanto, de obra, pelo menos em certos aspectos, datada, e a autora, em sua ânsia por subsídios científicos que contribuíssem para a implantação das idéias feministas, recorreu a teorias diversas, algumas próprias de seu tempo mas atualmente descartadas e outras, como a eugenia, por exemplo, que se mantém perigosamente circulante.

Algumas das observações feitas ao longo da leitura do livro apontaram para um otimismo ingênuo por parte da autora, tendo em vista a sua crença de que a evolução da mulher levaria fatalmente à evolução da humanidade. Mariana foi também essencialista, pois todo o tempo falou n'A Mulher, e em muitas ocasiões defendeu a superioridade da mulher em relação ao homem. No capítulo sobre o civismo da mulher na guerra, surpreendeu-me citando inúmeros exemplos de batalhões de combatentes mulheres, de vários países da Europa, que foram "mais corajosas" ou "mais patriotas" do que seus colegas de sexo masculino. Usou a teoria nunca comprovada do matriarcado original para demonstrar que a mulher pode ser igual ao homem, porque outrora fora superior, e acreditava que uma sociedade liderada pela mulher seria uma sociedade voltada para a evolução espiritual, física e moral da humanidade (segundo os valores da época em que ela escreveu o livro).

Paradoxalmente, na enfática defesa da tese da igualdade, por várias vezes Mariana demonstrou acreditar na inferioridade intelectual da mulher. Apenas não acreditava que essa inferioridade fosse biológica, irrevogável, e sim de origem social, portanto, perfeitamente suprimível. Para defender seu ponto de vista, Mariana citou Lamarck e Lombroso. Lamarck, que era, de acordo com a autora, o "cientista do transformismo" (p. 39), opinou a favor da igualdade entre os sexos quando postulou que "a função cria o órgão", pressuposto da descartada teoria da lei hereditária do uso e do desuso.

Lombroso, entre outros antropologistas, afirmou que nada havia na natureza que justificasse a inferioridade do sexo feminino. Muitas fêmeas seriam até 'superiores' aos machos. Lombroso era um antropólogo físico que usava a antropometria para detectar tendências criminosas nos indivíduos. Acreditava que pelas medidas do cérebro e das orelhas poderia prever a índole criminosa dos sujeitos, antes mesmo de terem cometido algum crime!

A partir das posições desses dois cientistas, Mariana concluiu que a inferioridade intelectual da mulher se dava pela falta de uso do cérebro, tendo em vista que as funções que o desenvolveriam, o estudo e o trabalho, estavam vedadas às mulheres. Em vista disso, defende vigorosamente o acesso das mulheres à instrução e ao trabalho, o que lhes garantiria meios de sobrevivência independentes de família e casamento.

A listagem de personagens e fatos históricos, a seriedade e o vigor que emprega na obra são dignos de nota. A procura exaustiva por subsídios científicos e a preocupação em instrumentalizar a militância também.

Por ter sido o livro escrito no pós-guerra, os efeitos e conseqüências do conflito transparecem nas preocupações da autora no correr do texto. A sua análise da participação feminina no confronto, conclui, com espanto, que a guerra fez mais pelo feminismo do que anos de luta e reivindicações das mulheres. Entretanto, mesmo tendo sido escrito no pós-guerra, a atualidade da obra transparece quando percebemos que muitas das reivindicações das mulheres daquela época ainda não foram contempladas.

Resumindo, considero A evolução do feminismo uma obra significativa, na qual a autora buscou, com os meios disponíveis na época, fazer o que se propôs: fornecer subsídios para a história do feminismo. E o fez com muito bom humor e estilo.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Out 2003
  • Data do Fascículo
    Jun 2003
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