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Noções de família em políticas de 'inclusão social' no Brasil contemporâneo

Concepts of family within governmental programs for 'social inclusion' in Brazil

Resumos

O artigo resulta de três pesquisas interligadas realizadas na Grande Porto Alegre, Rio Grande do Sul, no período compreendido entre 2005 e 2010. A partir da perspectiva dos estudos culturais e de gênero pós-estruturalistas, e tomando gênero e vulnerabilidade como ferramentas teórico-metodológicas, examinamos três programas governamentais de 'inclusão social', perguntando-nos: as noções de família que são produzidas, veiculadas e modificadas neles contribuem para (re)produzir, diminuir ou manter a vulnerabilidade que se propõem a modificar ou romper? A partir desse exame, argumentamos que tais programas operam com uma gramática que institui 'a' família como alvo preferencial da 'inclusão social' e que eles interpelam determinados sujeitos e grupos sociais posicionando-os, ao mesmo tempo, tanto como responsáveis por problemas sociais complexos quanto por sua resolução.

políticas públicas de inclusão social; família; gênero; vulnerabilidade


This article has stemmed from three interconnected researches carried out in the metropolitan area of Porto Alegre/RS/Brazil from 2005 to 2010. From the perspective of post-structuralist Cultural and Gender Studies, and considering gender and vulnerability as theoretical and methodological tools, we investigated three governmental programs for "social inclusion". The investigation was based on the question: Do the notions of family produced, spread and modified within the programs contribute to the (re)production, reduction or maintenance of the very vulnerability the programs aim at reducing? Based on this analysis, we have argued that those programs operate with a framework that institutes 'the' family as the major target of 'social inclusion' and they focus on certain individuals and social groups, making them responsible for both complex social problems and their solution.

Public Policies for Social Inclusion; Family; Gender; Vulnerability


ARTIGOS

Noções de família em políticas de 'inclusão social' no Brasil contemporâneo

Concepts of family within governmental programs for 'social inclusion' in Brazil

Dagmar Estermann MeyerI; Carin KleinII; Letícia Prezzi FernandesIII

IUniversidade Federal do Rio Grande do Sul

IIUniversidade Federal do Rio Grande do Sul

IIIUniversidade Federal do Rio Grande do Sul

RESUMO

O artigo resulta de três pesquisas interligadas realizadas na Grande Porto Alegre, Rio Grande do Sul, no período compreendido entre 2005 e 2010. A partir da perspectiva dos estudos culturais e de gênero pós-estruturalistas, e tomando gênero e vulnerabilidade como ferramentas teórico-metodológicas, examinamos três programas governamentais de 'inclusão social', perguntando-nos: as noções de família que são produzidas, veiculadas e modificadas neles contribuem para (re)produzir, diminuir ou manter a vulnerabilidade que se propõem a modificar ou romper? A partir desse exame, argumentamos que tais programas operam com uma gramática que institui 'a' família como alvo preferencial da 'inclusão social' e que eles interpelam determinados sujeitos e grupos sociais posicionando-os, ao mesmo tempo, tanto como responsáveis por problemas sociais complexos quanto por sua resolução.

Palavras-chave: políticas públicas de inclusão social; família; gênero; vulnerabilidade.

ABSTRACT

This article has stemmed from three interconnected researches carried out in the metropolitan area of Porto Alegre/RS/Brazil from 2005 to 2010. From the perspective of post-structuralist Cultural and Gender Studies, and considering gender and vulnerability as theoretical and methodological tools, we investigated three governmental programs for "social inclusion". The investigation was based on the question: Do the notions of family produced, spread and modified within the programs contribute to the (re)production, reduction or maintenance of the very vulnerability the programs aim at reducing? Based on this analysis, we have argued that those programs operate with a framework that institutes 'the' family as the major target of 'social inclusion' and they focus on certain individuals and social groups, making them responsible for both complex social problems and their solution.

Key words: Public Policies for Social Inclusion; Family; Gender; Vulnerability.

O texto em contexto: circunscrevendo o tema, sua abordagem e o foco de análise

'A' família tem se constituído como o alvo preferencial de políticas e programas direcionados para a "inclusão social"; nesse contexto, ela tem sido posicionada tanto como "origem" quanto como instância de resolução de problemas sociais e econômicos de países pobres e em desenvolvimento.1 1 Versão ampliada e modificada de comunicação oral apresentada no Seminário Internacional Fazendo Gênero, no Simpósio Temático Feminismos e maternidade: diálogos (im)pertinentes, em Florianópolis, Santa Catarina, de 23 a 26 de agosto de 2010. E isso não constitui propriamente uma novidade do ponto de vista histórico. Pelo menos três movimentos sociais distintos e não coincidentes no tempo - a urbanização, a instauração e o fortalecimento do sistema capitalista de produção e a formação e consolidação dos Estados Nacionais que perpassaram a Europa nos séculos XVII, XVIII e XIX - contribuíram para que a família, e dentro dela a mulher como mãe, fosse colocada no centro das "políticas de gestão da vida" (da criança, em particular) nas sociedades ocidentais modernas que hoje habitamos.2 2 Dagmar Estermann MEYER, 2006.

É no âmbito dessas mudanças que foram sendo misturadas as noções de vida conjugal e filiação. Mas a família nuclear que conhecemos - e "naturalizamos" - hoje aparece apenas no final do século XIX e passa a ser posicionada como local de proteção e cuidado por excelência, desde então. É, pois, através da confluência de inúmeras produções discursivas que a posicionaram como sendo 'a' família que esse tipo particular de família foi adquirindo o significado - depois naturalizado e universalizado - de "centro de estruturação da sociedade".3 3 Stephane NADAUD, 2002; e Anna Paula UZIEL, 2002.

Cynthia Sarti4 4 Cynthia SARTI, 2003. enfatiza a importância da diferenciação entre sistema de parentesco e família elaborada por Lévi-Strauss.5 5 LÉVI-STRAUSS, 1972 e 1982. Na perspectiva do autor, o parentesco seria um sistema amplo, diversificado e complexo que joga com alguns elementos básicos, tais como relações de afinidade, relações de descendência e relações de consanguinidade (entre irmãos). A família seria apenas um grupo social concreto através do qual se realizam os vínculos de parentesco. Essa ideia, segundo Sarti,6 6 SARTI, 2003, p. 40. abre espaço para que a família seja vista na sua diversidade de arranjos. Os estudos de Lévi-Strauss sinalizam, assim, para uma mudança de foco do vínculo biológico mãe-filho para o vínculo social e para o vínculo conjugal, mas também, em sua teorização, a família continua sendo o "centro da estruturação da sociedade" e é valorizada e responsabilizada como tal.

Nesse sentido, poderíamos então cair na tentação de dizer que, historicamente, pouca coisa mudou; entretanto, devemos prestar atenção ao fato de que a novidade desses nossos tempos, sobretudo nos países pobres e em desenvolvimento, talvez seja o posicionamento da família, ao mesmo tempo, como alvo preferencial e como "parceira estratégica na implementação e [...] execução da política pública".7 7 Maria do Carmo Brant de CARVALHO, 2003, p. 7. Isso se torna ainda mais visível naquelas políticas e programas apoiados por organismos internacionais como a ONU, o Unicef, a Unesco, o Bird, a OMS etc., que estão direcionados para o que se convencionou chamar de "inclusão social" lato sensu. Para promovê-la, tomam como alvos o combate à fome, à pobreza e à morbimortalidade delas decorrente; a promoção da saúde e da educação; a qualificação para o trabalho; o enfrentamento do desemprego e o incremento da renda familiar; a diminuição da violência social e da drogadição entre grupos em situação "de risco" ou de "vulnerabilidade social", dentre outros.

Na perspectiva dos estudos de gênero e culturais pós-estruturalistas, na qual este trabalho se inscreve, compreendemos e abordamos tais políticas e programas como sendo artefatos centrais de organização social, uma vez que se pretende promover esses objetivos através da normatização e da administração de certas dimensões da vida cotidiana dos sujeitos aos quais se direcionam. Assim, podemos tomá-las como discursos que instituem e colocam em circulação uma "gramática" própria que reforça, ressignifica e introduz termos como família, maternidade, paternidade, infância, risco, vulnerabilidade, inclusão, cidadania, dentre outros. E essa gramática busca interpelar determinados sujeitos e grupos sociais, educando-os para pensar, sentir e agir de certos modos, e não de outros.

Conceber políticas e programas dessa forma nos autoriza, pois, a pensar que uma das formas de "avaliá-los" ou de conhecer alguns de seus efeitos passa pelo exame das relações de poder que são colocadas em funcionamento em duas de suas dimensões: a) nas proposições programáticas dos governos que as concebem e implementam, os quais, através de diversas instituições, propõem modos de administrar e conduzir a vida de sua população; b) nas ações assistenciais e educativas delas decorrentes, porque estas investem, concretamente e de muitas formas, sobre as famílias no sentido de instituir 'modos de viver a vida'8 8 Utilizamos aspas simples para colocar uma palavra em suspenso e aspas duplas no caso de citações. que devem promover saúde, educação, acesso a bens e serviços e ao trabalho, que, em seu conjunto, compõem o que, ali, se entende como inclusão social.

Para a discussão que vimos fazendo sobre essas questões em nosso grupo de pesquisa, temos operado com duas ferramentas teórico-metodológicas centrais, quais sejam, gênero e vulnerabilidade. Para nós, elas se inscrevem e fazem sentido a partir de um referencial teórico mais amplo que envolve os estudos de gênero e culturais pós-estruturalistas.

Nessa perspectiva, do ponto de vista da vulnerabilidade,9 9 José Ricardo de Carvalho Mesquita AYRES et al., 2003. o chamado componente institucional ou programático - que deveria conectar os componentes individual e social - é que se torna importante. Isso porque nossos estudos têm permitido visibilizar que, mesmo sob o advento da adoção oficial do viés de gênero e de vulnerabilidade, as práticas continuam operando com representações naturalizadas de família, homem e mulher, pai e mãe e sob o enfoque do "risco". Elas seguem priorizando, sobretudo, aspectos informativos e comportamentais constitutivos do componente individual da vulnerabilidade, e isso nos instigou a fazer a seguinte pergunta: políticas e programas de "inclusão social" - que integram o componente programático - não poderiam, com as noções de família nas quais se apoiam, estar contribuindo para produzir, aumentar ou manter a vulnerabilidade que se propõem a modificar ou romper?

De diferentes formas, essa questão atravessa três pesquisas interligadas,10 10 Trata-se da pesquisa A educação "da família" como estratégia governamental de inclusão social: um estudo situado na interface dos estudos culturais, de gênero e de vulnerabilidade, coordenada por Dagmar Estermann Meyer, que as outras duas autoras integraram como subprojetos. A pesquisa foi financiada pelo CNPq com bolsa de produtividade e com bolsa de pós-doutorado, nas suas diferentes etapas. Foi examinada e aprovada, com todos os seus desdobramentos, pelo Comitê de Ética da UFRGS, em junho de 2004, atendendo aos termos da Resolução 196/96, do Conselho Nacional de Saúde. A pesquisa Biopolíticas de inclusão social e produção de maternidades e paternidades para uma "Infância Melhor", realizada por Carin Klein, trata de analisar uma política voltada para a promoção do desenvolvimento da primeira infância (PIM/RS), para discutir como a política, ao atuar como uma instância pedagógica, se propõe a enunciar, educar e regular mulheres e homens como sujeitos de gênero, no sentido de governar e instituir formas mais "adequadas" de exercer a maternidade e a paternidade (KLEIN, 2010). A pesquisa Nas trilhas da família... como e o que um serviço de educação social de rua ensina sobre relações familiares foi produzida no âmbito do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul por Letícia Prezzi Fernandes, com financiamento do CNPq. Tal investigação se propôs a analisar o modo como meninos e meninas em situação de rua vivem suas relações familiares e como um serviço municipal específico para o atendimento deles/as entende e ensina formas de viver e de se relacionar com a família (FERNANDES, 2008). realizadas por nós na Grande Porto Alegre, Rio Grande do Sul, no período compreendido entre 2005 e 2010. Inscritas nesse referencial teórico, tais pesquisas aliaram o exame de documentos escritos e artefatos midiáticos à observação sistemática e intensiva do trabalho realizado pelos serviços e à realização de entrevistas semiestruturadas com gestores, técnicos e usuários para a produção de material empírico, organizado e analisado na perspectiva da análise do discurso foucaultiana,11 11 Esta abordagem teórica e metodológica, bem como os conceitos que dela se desdobram têm sido extensamente discutidos em estudos do campo da educação brasileira contemporânea, de modo que não vamos apresentá-los, mas operar com e dentro dela ao longo de nossa argumentação. Para um maior detalhamento, consultar MEYER, 2008. tomando como referência os Programas de Atenção Integral à Família (PAIF, federal), Primeira Infância Melhor (PIM, estadual) e Serviço de Educação Social de Rua (SESRUA/Ação Rua, municipal).12 12 O Serviço de Educação Social de Rua teve uma alteração em seu projeto em janeiro de 2007, quando passou a ser nomeado Ação Rua.

O Programa de Atenção Integral à Família13 13 Referências diretas do material empírico desta pesquisa serão identificadas por PQ1. é um dos programas desenvolvidos sob tutela do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS). Ele integra a rede de atendimento do Sistema Único de Assistência Social (SUAS), na modalidade da Proteção Social Básica. O Programa é desenvolvido em Centros de Referência de Assistência Social (CRAS). Nele, desenvolvem-se ações e serviços básicos continuados para famílias em situação de 'vulnerabilidade social', objetivando o fortalecimento de vínculos familiares e comunitários, o direito à proteção social básica, a ampliação da capacidade de proteção social e de prevenção de situações de risco. Ele relaciona-se com o Programa Bolsa Família (PBF),14 14 O PBF alia o recebimento de seus benefícios ao cumprimento de determinadas exigências relativas à saúde e à educação. O não cumprimento dessas exigências pode levar a família a ser excluída do Programa. um grande "programa guarda-chuva" de transferência de renda também desenvolvido pelo MDS. Enquanto o PBF distribui dinheiro para as famílias, o PAIF tem caráter educativo e trabalha em três eixos: o de disseminar informações na perspectiva dos direitos da cidadania; o de conhecer serviços, recursos e agentes do território; e o de apoio a ações locais de interação cultural entre as famílias. Ele é, portanto, um programa que se poderia caracterizar como sendo de acolhimento e de escuta.

O Primeira Infância Melhor15 15 O PIM tornou-se política pública em 3 de julho de 2006. Referências diretas do material empírico desta pesquisa serão identificadas por PQ2. tem como objetivo central orientar "[...] as famílias para o desenvolvimento de atividades adequadas às necessidades e potencialidades de seus filhos no período mais importante da formação das competências familiares: da gestação até os seis anos de idade".16 16 RIO GRANDE DO SUL, 2006. Entre os critérios de seleção das áreas "beneficiadas" pelo PIM estão o número de famílias cadastradas no PBF, o menor número de crianças assistidas em escolas infantis, a maior taxa de mortalidade infantil e a maior vulnerabilidade social, estabelecendo-se, assim, pertencimento ou não.

O Serviço de Educação Social de Rua,17 17 Referências diretas do material empírico desta pesquisa serão identificadas por PQ3. atual Ação Rua, está ligado à Fundação de Assistência Social e Cidadania (FASC), de Porto Alegre, e tem como objetivo trabalhar com meninos e meninas em situação de rua, buscando promover a vontade nessas crianças de sair da rua, seja revinculando-as às suas famílias, seja oportunizando locais de proteção como abrigos, casas de passagem, entre outros. O trabalho compreende abordagens (processo de aproximação com os meninos e as meninas que tem o objetivo de estabelecer vínculos que facilitem a inserção nos serviços disponíveis, como serviço de atendimento socioeducativo, serviços de saúde, escola, abrigos etc.) realizadas por educadores/as, preenchimento de cadastros e articulação constante com o Ministério Público, o Juizado da Infância e da Juventude e o Conselho Tutelar. As famílias são contempladas nesse serviço uma vez que, na tentativa de reinserir as crianças nessas famílias, são feitas visitas domiciliares e encaminhamentos para os programas federais de transferência de renda como o PBF.

Tendo apresentado o tema, sua abordagem teórico-metodológica, bem como os programas examinados, passamos agora à discussão das noções de família que apoiam as ações programáticas a eles vinculadas.

De que família se fala em programas de inclusão social?

Para a Secretaria Nacional de Assistência Social (SNAS), a "família é um núcleo afetivo, cujos membros se vinculam por laços consangüíneos, de aliança ou de afinidade, onde os vínculos circunscrevem obrigações recíprocas e mútuas, organizadas em torno de relações de geração e de gênero".18 18 BRASIL, 2006a, p. 26. Esse alargamento do conceito de família, que rompe de várias formas com o conceito hegemônico de família nuclear com pai, mãe e filhos, também é assumido nas falas das/os técnicas/os. Uma delas entende que família "são pessoas que vivem da mesma renda, sob o mesmo teto e que vivem vínculos entre elas, vínculos afetivos, sejam vínculos consangüíneos ou não, que coabitam".19 19 Entrevista, PQ1, 10 de janeiro de 2007. O PAIF, por sua vez, define família como "todo núcleo de pessoas que convive em determinado lugar, durante um período de tempo, e que se acham unidas por laços consangüíneos, afetivos ou de solidariedade".20 20 BRASIL 2006b, p. 5.

Também no contexto do PIM e do SESRUA/Ação Rua defrontamo-nos com definições abertas e abrangentes de família. Dentre os conceitos apresentados pelo PIM, por exemplo, entende-se que a família configura-se "como grupo social [que] representa os valores da sociedade; pessoas com vínculos conjugais ou consangüíneos; pessoas que moram sob um mesmo teto, unidos por constantes espaços temporais; pessoas que têm um núcleo de relações afetivas estáveis".21 21 RIO GRANDE DO SUL, [s.d.]. Além disso, essa política agrega ao conceito a função de "agente socializador", o que supõe que ela seja capaz, ou torne-se capaz, de introduzir a criança no mundo social; possibilitar a aquisição de condutas, valores e conhecimentos básicos da sociedade em que vive; e somar sua ação "socializadora" à da instituição (escola ou centro infantil) e à comunidade.22 22 RIO GRANDE DO SUL, [s.d.].

O SESRUA/Ação Rua não define explicitamente o que se entende por família ali. Porém, a pesquisa desenvolvida permite dizer que essa envolve o conjunto de pessoas que se responsabiliza pela criação e pela educação das crianças. Ao mesmo tempo que se abre o conceito, também se vincula essa responsabilidade a laços consanguíneos e se pressupõe que a organização familiar está apoiada na figura materna, uma vez que o pai, na maior parte das vezes, não estaria presente. Esses entendimentos se operacionalizam no momento de encontro com as crianças e os jovens, quando lhes é perguntado sobre o paradeiro da mãe, onde ela mora e qual o seu nome. No cotidiano das práticas o Serviço trabalha, também, com a noção de família desestruturada como sendo aquela que não dá possibilidades de desenvolvimento saudável para as crianças (local de proteção). Essa desestruturação ocorre, na visão do Serviço, por separação do casal, recasamento, violência doméstica, morte e/ou prisão do pai e pobreza.

Falando sobre os problemas de retorno e reinserção das crianças nas famílias, Henrique, um educador social, comenta: "Mesmo que a gente queira arrancar aquele menino da rua - ele tem que voltar pra família -, se a gente analisar que família ele tem? Que família a gente pode chamar de família? Às vezes tu chega lá no espaço é um barraco que não tem nem espaço pra ele ficar".23 23 Entrevista, PQ3, 19 de junho de 2007. A técnica do PAIF fala sobre uma situação diferente do que chama de modelo ideal de família sem, no entanto, problematizar esse suposto modelo:

eu acho que na realidade não existe um modelo ideal de família. [...] Mas acredito que o elo entre pai e filho, entre mãe e filho é o ideal, mas hoje tu tens que ver, por exemplo, tu chega numa casa hoje, vai atender, a maioria não é estruturada em pai, mãe e filhos. Tu vais e é a mãe e sete filhos de pais diferentes.

24 24 Entrevista, PQ1, 3 de janeiro de 2007.

Os excertos de falas citados indicam que, mesmo fugindo "ao modelo ideal", esse segue, de certo modo, sendo referência para a ação dos/as técnicos/as nesses programas; indicam também que não é toda organização de pessoas morando numa mesma unidade doméstica que pode ser chamada de família. Aliás, o lugar onde se mora importa muito na hora de denominar um grupo de pessoas como família. Mas, então, que famílias podem ser chamadas de famílias?

Lendo-se os documentos, pode-se dizer que, do ponto de vista programático, tais programas, todos direcionados para famílias situadas abaixo do que se chama "linha de pobreza" e, também, para grupos que usualmente se definiam como sendo constituídos por "famílias desestruturadas", com diferenças sutis, vêm então adotando conceitos de família bastante abrangentes e produtivos, tendo em vista que incluem noções como gênero e raça/cor, pressupõem a presença de homens e mulheres não necessariamente vinculados por laços consanguíneos ou conjugais, e pessoas de diferentes gerações em uma mesma estrutura familiar. Além disso, a referência a "obrigações recíprocas e mútuas", aliada à perspectiva de gênero, poderia estar remetendo ao deslocamento de funções usualmente atribuídas a homens e mulheres nessas relações.

Ao mesmo tempo, o que é (ou pode ser) considerado família no cotidiano dos serviços pelos agentes que os implementam e seus/suas usuários/as varia muito em relação não só às diferentes situações encontradas, mas também às diferentes vivências e aprendizagens desses sujeitos sobre família e suas relações, como sugerem as entrevistas realizadas.

A incorporação de noções de família, como essas, para substituir, pelo menos no plano formal das políticas, a noção de família nuclear é tanto decorrência de estudos que apontam a fragilidade e os efeitos de poder dessa noção quanto, sobretudo, uma resposta às críticas de movimentos sociais como os movimentos feministas. E sua adequação é, em parte, reiterada por nossas pesquisas, que revelam, por exemplo, uma grande instabilidade dos vínculos conjugais nesses núcleos familiares.

Nessa direção, Claudia Fonseca25 25 Claudia FONSECA, 2004. aponta que, nos últimos anos, cientistas europeus e norte-americanos, questionando a hegemonia da família moderna, têm rejeitado a obviedade de um sistema ocidental de parentesco e, ainda mais, de uma grande convergência em que todos os modelos estariam evoluindo na mesma direção, ou seja, esses estudos apontam que não existe uma espécie de 'caminho evolutivo', das vivências familiares em diferentes instâncias sociais até a tradicional família moderna. A autora acrescenta ainda que, no Brasil, se testemunha uma evolução paralela no pensamento científico social. Pesquisas no campo da história social sugerem que, há muito tempo, as camadas populares no Brasil conhecem uma tradição familiar diferente do modelo conjugal estável. Até o século XX, em certas regiões, os casamentos legais eram limitados a apenas um terço da população adulta.

Assim, nos contextos em que desenvolvemos nossas pesquisas, para além das famílias nucleares que conhecemos, também a família monoparental, centrada na figura materna, aparece como uma formação familiar típica. Em segundo lugar, aparecem a família composta de mães, filhos de vários pais e "padrastos rotativos" e a família alargada, que conta com a presença e a colaboração de outros parentes, muitas vezes consanguíneos e vinculados à mãe. De forma importante, nossas observações apontaram a recorrência de "famílias de mulheres". E, nessas famílias, as redes de solidariedade se configuram repetidamente entre mães e filhas, sogras, irmãs etc.

Uma das técnicas do PAIF descreve assim os integrantes das famílias usuárias do Programa: "Mães, filhos e padrastos. Sempre assim, nunca é pai e mãe biológicos... Sempre são filhos de vários pais, agregados";26 26 Entrevista, PQ1, 11 de janeiro de 2007. outra se refere ao grande número de filhos dessas famílias: "Eu diria assim que a média [de filhos por família] é em torno de seis, mas eu tenho famílias até com quatorze, dezesseis, dezessete filhos".27 27 Entrevista, PQ1, 21 de dezembro de 2006.

As pesquisas ainda indicaram, de forma importante, que as crianças circulam entre diferentes núcleos familiares e são, também, muito disputadas entre membros da família extensa, sem que isso seja significado e vivido como abandono. O caso de Fábio de algum modo nos indica isso.28 28 Diário de campo, PQ3, 5 de dezembro de 2006. Ele vivia com o pai em Alvorada (município da Grande Porto Alegre) e fugiu por apanhar demais. Veio morar com a mãe em Porto Alegre. Após a primeira abordagem, Fábio foi encontrado de novo na rua e abordado novamente. Ele estava com uma menina e morando na casa de um casal que o acolheu. A decisão tomada pelos educadores que fizeram a abordagem foi de levar o menino de volta para a casa de sua mãe.

Ao questionar os educadores acerca desse caso, um deles comentou que o grande problema era com as drogas e que isso não permitia que o menino ficasse em casa. Outros três disseram que, provavelmente, Fábio tinha encontrado situações melhores nessa nova família do que na casa de sua mãe e que, por isso, seria interessante fazer uma avaliação para, quem sabe, iniciar o processo de adoção. Entretanto, um dos educadores comentou que, dificilmente, essa família adotaria legalmente Fábio. Outro educador afirmou que esse processo legal era necessário e que esse era, justamente, o maior problema: as famílias que acolhem não querem se responsabilizar legalmente pelo cuidado dessas crianças e pelos seus atos. Não se mencionou, nessa conversa, que muitas vezes os pais dessas crianças não querem 'se desfazer' delas para sempre e que, em muitos casos, a situação de rua, ou da inserção em outras famílias, é apenas temporária, provisória.

Assim, a provisoriedade dos laços, a mobilidade dos sujeitos e a multiplicidade de casos e formas de organização tornam-se difíceis de serem atendidas pelas políticas públicas, que devem pensar no todo e numa homogeneidade; o grande problema reside no fato de que os sujeitos aos quais elas se dirigem não são homogêneos, estáveis, unívocos. A circulação de crianças e a insistência na "volta pra casa", por exemplo, nos levam a refletir sobre determinada ênfase dada à relação mãe-filho nas práticas observadas, ao que se define como cuidado materno nesse contexto e, no que se refere às disputas, ao "valor" simbólico e material que as crianças acabam por adquirir nesses grupos familiares, considerando-se sua centralidade para que esses grupos tenham acesso a, e sejam incluídos nas, políticas públicas.

As pesquisas nos mostram, também, que as configurações familiares com que nos defrontamos são intercambiáveis: as mesmas mulheres-mães e/ou seus/suas filhos/as podem viver, em diferentes tempos e contextos, diversos arranjos familiares, e isso incide fortemente sobre suas condições de vida. É certo, também, que arranjos familiares como esses não se constituem como prerrogativa de grupos pobres nos países em desenvolvimento, estando hoje disseminados por diferentes classes sociais e contextos culturais. Eles, entretanto, têm impactos diferenciados em contextos de pobreza e de privação de direitos sociais básicos e, nesse sentido, o pressuposto de família como núcleo afetivo e protetor, incorporado nessas definições, precisaria ser problematizado, pois essas famílias em particular, e independentemente de sua configuração, "carece[m] de proteção para processar proteção".29 29 CARVALHO, 2003, p. 19.

Nessa direção, uma situação vivenciada no PIM pode ser um exemplo emblemático. Ele é um programa que prevê, em sua metodologia, o acompanhamento semanal das famílias, com crianças entre 0 a 3 anos, por meio do trabalho de visitadoras. Porém, ao longo da pesquisa, essa ação deixou de ser realizada devido à falta de contratação e as ações educativas para a estimulação "adequada" das crianças passaram a ser realizadas pelos/as técnicos/as, através de encontros semanais. Em vários encontros, Elena, que tinha sete filhos/as e participava assiduamente das reuniões, solicitou o trabalho de uma visitadora indagando: "Já tem uma visitadora para mim?".30 30 Diário de campo, PQ2, 29 de junho de 2007. E a resposta sempre negativa significava admitir que o PIM, de acordo com a sua metodologia, se mantinha desativado, fazendo-nos refletir acerca da dimensão programática da vulnerabilidade. Elena não só demonstrava seu desejo em vincular-se à política, como também explicitava a necessidade concreta de obter apoio de uma rede social mais ampla. Nesse caso, fica difícil refletir sobre como diminuir a vulnerabilidade das crianças, o que é extensamente preconizado por essa política, sem levar em conta a responsabilização do Estado, que não está provendo o acesso qualificado a esses serviços públicos. Podemos pensar, então, que a vulnerabilidade dessas crianças é precedida de "múltiplos abandonos" daquela família (e daquela mulher), raciocínio geralmente esquecido diante das propostas governamentais com foco na responsabilização das famílias.31 31 FONSECA, 2009.

O ideal de família como local de proteção subjacente a essas políticas está embasado na Doutrina da Proteção Integral, da Convenção sobre os Direitos da Criança, e se reflete, no Brasil, na Constituição Federal e no Estatuto da Criança e do Adolescente. A noção de família como núcleo protetor também é ampla e fortemente reforçada por teorizações "psi" que são ativadas na implementação desses programas; uma consequência disso é que, nas práticas educativo-assistenciais que deles decorrem, o termo "família" segue sendo traduzido como mulher/mãe e esta continua sendo posicionada como responsável e capaz de resolver todos os problemas e conflitos familiares ou como culpada quando não consegue fazê-lo.

Assim, o desenvolvimento "integral" das crianças, formulado e preconizado no âmbito do PIM, por exemplo, pressupõe o envolvimento efetivo das mulheres-mães com a saúde e a educação, exigindo delas atenção (também integral), treinamento e monitoramento constantes. Os enunciados expressos nas orientações dirigidas às famílias, seja nos documentos, seja na prática das visitadoras e dos/as técnicos/as, indicam a existência e a necessidade de uma mulher-mãe em casa, dotada de tranquilidade, sensibilidade, criatividade, cuidados, atenção e, fundamentalmente, vontade de aprender. Produz-se, de um lado, a responsabilidade governamental, que parece cumprir-se através da formulação de políticas públicas localizadas e residuais que, na maioria das vezes, não alcançam todos/as que dela necessitam, e, de outro lado, a ampla veiculação de um discurso que visa atingir todos os indivíduos e ensiná-los a dirigir as suas próprias vidas (e as de suas famílias) procura tornar isso possível através da produção de mudanças de comportamento, de adaptação a regras e normas, de controle social e de formação para utilizar adequadamente o que ali se define como suas aptidões e competências.

Para além desses, outro aspecto a ser problematizado, ainda, é a ênfase que, em especial, o conceito de família explicitado no PAIF atribui à convivência em um mesmo lugar. Considerando que esse aspecto é um dos critérios de admissão ao Programa, pode-se dizer que ele reduz a amplitude que o conceito produz em outras de suas dimensões, na medida em que iguala família a grupo doméstico e deixa de considerar a importância do grupo de parentes em duas situações: no apoio financeiro gerado pela migração e na circulação de crianças.32 32 Elisabete Dória BILAC, 2003, p. 36. Como critério de admissão, essa exigência do lugar comum de habitação coloca dificuldades práticas aos técnicos/as e gestores do Programa, uma vez que tanto se tem núcleos diversos convivendo debaixo do mesmo teto e compartilhando o mesmo banheiro (cada "família" em um cômodo, pagando ou não aluguel por isso e responsabilizando-se pelo seu próprio sustento) quanto se tem moradias (precárias) individuais situadas em um mesmo terreno, cujos moradores pertencem ao mesmo grande núcleo e compartilham o mesmo banheiro, o mesmo bico de água, as crianças e a mesma renda (quem tem trabalho ou acesso a outros tipos de benefícios no momento divide isso com os demais) nas comunidades estudadas.

Assim, se o conceito utilizado nesse programa amplia a definição de família ao considerar laços consanguíneos e, também, laços afetivos, ao mesmo tempo restringe essa definição a um "núcleo de pessoas que convivem em determinado lugar", igualando a noção de família ao que Claudia Fonseca chama de "grupo doméstico".33 33 FONSECA, 2004, p. 61. Baseada em seus estudos, ela afirma que análises calcadas na unidade residencial se adaptam particularmente mal às populações pobres urbanas, em que o grupo residencial chega a se transformar várias vezes num mesmo ano.

Essa transformação implica os modos pelos quais um sujeito ou grupo de pessoas que estabelecem relações afetivas e redes de solidariedade organiza sua vida cotidiana, ou seja, como essas redes funcionam e operam na cotidianidade de suas relações. Assim, a desorganização ocorre quando um indivíduo morre, sai de casa, separa-se, perde o emprego etc. Ela é momentânea, pois se consegue reorganizar a vida após o percalço. E essas famílias colocam-se, ou são colocadas, em processos de organização-desorganização-reorganização incessantes, em função das dificuldades econômicas e sociais pelas quais passam. Então, essa ênfase na convivência em um mesmo espaço, ao igualar família a grupo doméstico, colide com formas de organização da vida nesses contextos, ao mesmo tempo que fixa uma forma de organização familiar que funciona como referência. Ao fazê-lo, isso reduz enormemente a abertura e a plasticidade que as demais dimensões do mesmo conceito pretendem considerar.

Limites e desafios das noções de família subjacentes à inclusão social: para terminar

Fazendo uma espécie de síntese, aspectos como ciclo de vida, expansão ou retração familiar, mobilidade, provisoriedade e fluidez, que são muito característicos desses grupos sociais, parecem ainda ter pouco espaço nas definições de família desses programas, sobretudo quando se trata de sua operacionalização. Para além disso, é importante dar-se conta, também, de que os grupos sociais tanto resistem a essas definições transformadas em critérios quanto inventam formas de subvertê-las em seu próprio benefício. A circulação de crianças pode funcionar como uma dessas formas de subversão e, mais recentemente, alguns estudos vêm mostrando que esses grupos se dão conta de que "ter crianças e jovens" em seu meio é tanto uma necessidade quanto uma garantia de acesso a esses benefícios. Uma das educadoras do SESRUA/Ação Rua expressa isso de forma muito clara quando refere que a existência de programas de atenção às crianças e aos jovens que vivem nessa condição nem sempre contribui para facilitar sua reinserção no núcleo familiar, na medida em que esses programas contribuiriam para facilitar e tornar menos árdua a vida nas ruas.

Um aspecto importante que temos destacado é que um dos efeitos de poder (não esperado) da incorporação (reivindicada e desejada) de noções mais abertas e flexíveis de família, nesses programas, parece ser a "naturalização" da ausência de um homem-pai nos núcleos familiares mais pobres e, sobretudo, sua "desresponsabilização" pela vida das crianças que o integram. Isso tem se traduzido, por um lado, no posicionamento do Estado no lugar de autoridade conferido ao pai na família mononuclear moderna e, por outro, na sobreposição de uma parte significativa dos deveres até então definidos como "paternos" (sobretudo aqueles vinculados ao provimento do lar) aos já consagrados "deveres maternos".

Carla tinha 17 anos e uma filha recém-nascida quando foi atendida pelo Serviço.34 34 Diário de campo, PQ3, 12 de dezembro de 2006. Perguntou-se a ela onde estava morando e ela respondeu que morava numa vila com sua tia. Perguntou-se ainda se o pai da criança estava com ela. Ela disse que sim, porém nenhuma pergunta foi feita, na sequência, sobre a participação dele no cuidado da filha. Nem mesmo a ideia do 'pai provedor' foi acionada. Essa relação com a paternidade implica desresponsabilizá-la das atribuições de cuidado com os filhos, uma vez que não se questiona que tipo de 'estar com ela' é esse. Passados cinco meses, encontramos Carla, que insistiu que fôssemos até sua casa ver sua filha. O pai não estava lá, apenas a tia, que tem cuidado da menina.35 35 Diário de campo, PQ3, 17 de maio de 2007. Parece produzir-se, aí, determinada forma de monoparentalidade que não supõe a ausência física de um pai, mas que o posiciona como incapaz ou inapto a cuidar e educar as crianças. Isso acaba diferenciando homens e mulheres nas relações de parentalidade. Mesmo que haja pai e mãe, é a mulher-mãe que será chamada, acionada e legitimada a educar os/as filhos/as do casal.

Nessa relação, produz-se uma naturalização do feminino vinculado ao cuidado que passa a ser incorporada não apenas ao cotidiano das visitadoras e dos/as técnicos/as, mas também às mulheres-mães. Ao perguntar à Elena, que frequentava os encontros do PIM, sobre as responsabilidades maternas, ela respondeu: "Ah, é cuidar deles na hora certa, dar comida, dar banhinho, roupinha limpinha na hora de ir para o colégio, que é uma briga para estar pronto às 7 horas, acordar e ir para o colégio".36 36 Entrevista, PQ2, 21 de novembro de 2007. Na mesma direção, ao ser indagada acerca das responsabilidades paternas, completa:

É trabalhar fora, botar comida dentro de casa. E ele [referindo-se ao seu companheiro] faz as coisas da mulher, ele faz comida, lava a louça, faz tudo, mas as coisas que são dever do pai, trabalhar e botar comida para dentro de casa, ele não faz, quem tem que fazer para botar as coisas dentro de casa é eu e o João.

37 37 Ela se refere ao recebimento do PBF e do salário do filho que é deficiente.

Ele bota o dinheiro fora, ao invés de comprar umas frutinhas para eles.

38 38 Entrevista, PQ2, 21 de novembro de 2007.

Elena se apoia em representações hegemônicas de gênero para indicar a importância da mulher em ocupar uma posição específica no espaço doméstico, enquanto a paternidade é acionada relacionada à responsabilidade de prover economicamente a família. Essas representações convergem com os conhecimentos e os conteúdos instituídos através de políticas de inclusão social, como o PIM.

Com esses exemplos, pode-se argumentar que não somente a maternidade tem sido significada, instituída e regulada pelo Estado, mas também a paternidade, até mesmo quando é pouco visibilizada. Contudo, a fala de Elena também sinaliza que, na ausência desse sujeito pai (e companheiro) como provedor, ela, como mãe, passa a incorporar novas dimensões - da provisão -, enquanto o masculino assume o doméstico. Esse movimento tanto desarranja as feminilidades e as maternidades restritas ao âmbito doméstico quanto tensiona as masculinidades representadas através do PIM. Maria Simone Schwengber39 39 Maria Simone SCHWENGBER, 2006. afirma que, desde a gravidez, a mulher é posicionada, em diversos artefatos culturais, como o sujeito que gere e despende cuidados e carinho e, crescentemente, também, como aquela que provê as condições necessárias para que o cuidado aconteça. Assim, essas mulheres-mães são ensinadas por muitas instâncias, e constantemente, a responsabilizar-se pelos/as seus/suas filhos/as.

Pode-se dizer, dessa forma, que se produz dado tipo de matrifocalidade nesse contexto, ao colocar as mulheres-mães num lugar central dentro das famílias. Claudia Fonseca, apoiada na ideia de sistema matrifocal de Smith, entende a matrifocalidade como um modelo em que a mulher-mãe torna-se o centro das relações sociais no qual a autoridade materna "cresce com a idade dos filhos" e em que há uma ênfase "nas relações entre mulheres por serem os elos principais da rede familiar".40 40 FONSECA, 2004, p. 64. Aqui, o que estamos chamando de matrifocalidade não tem relação direta com essa noção de sistema matrifocal. Com o termo estamos nos referindo a essa centralidade que tanto as usuárias/os e os técnicos dos serviços quanto as políticas públicas e os discursos psicológicos tendem a produzir quando posicionam mulheres-mães como sendo o elo principal entre as políticas de inclusão social e a melhoria de condições de vida de determinados segmentos da população. Além disso, em alguma medida, a necessidade da presença masculina parece não ser tão forte, nessa discursividade, já que, no caso das famílias inseridas nesses programas, as mulheres-mães têm tentado sozinhas - e conseguido, ainda que de forma precária - garantir a subsistência da família com a coleta de lixo reciclável, com auxílios governamentais, com a venda de pequenos objetos, com a mendicância e até mesmo com o tráfico de drogas. Nessa direção, parece ser possível tomar algumas dessas famílias como matrifocais.

O mais importante, porém, é o movimento que as políticas públicas têm feito quando adotam o termo "família" como sendo o foco de suas ações, mas convocam, efetivamente, as mulheres-mães para serem suas parceiras, ou seja, as políticas públicas são atravessadas, entre outros, por um discurso matrifocal na medida em que posicionam a mulher que desempenha as funções culturalmente atribuídas como maternas no centro da família e da sua gerência.41 41 FERNANDES, 2008; KLEIN, 2010; e MEYER, 2006 e 2008. Assim, paradoxalmente, o mesmo Estado que reduz seu papel de provedor de bens e serviços precisa educar e qualificar mulheres dos grupos sociais menos favorecidos para que elas possam, então, assumir com a competência esperada essa posição de produtoras de "inclusão social" das crianças e dos jovens que integram seus núcleos familiares.

Dessa forma, as ações educativas desenvolvidas nesses programas visam, fundamentalmente, reeducar essas mulheres focando de forma bem importante o que se chama, ali, de "autoestima". Eles funcionam, em grande medida, como espaços terapêuticos grupais nos quais o exercício da fala e da escuta deve multiplicar experiências e formas de lidar com as dificuldades enfrentadas nas relações familiares e na luta para garantir a sobrevivência diária, sobretudo daquelas mulheres que convivem com homens (não necessariamente maridos ou companheiros) violentos e alcoolistas; com filhos/as que "fracassam" na escola, que se envolvem com traficantes, que se drogam; e que, ao mesmo tempo, também precisam contribuir com recursos financeiros para o sustento da casa e do núcleo familiar.

Em decorrência disso, talvez seja, também, interessante destacar que, se a frequência às reuniões torna-se quase um imperativo, nesses programas, os horários dessas reuniões deveriam ser adequados ao que se espera que sejam, "naturalmente", os tempos disponíveis dessas mulheres, o que nos leva a problematizá-los. No caso do PAIF, elas aconteciam entre 11 e 12 horas, horário que, em núcleos familiares mais pobres, é reservado para preparar o almoço, buscar filhos na escola ou prepará-los para ir à escola. A quem esses horários mais se adéquam e a quais necessidades respondem são perguntas a serem feitas no contexto de programas com essas configurações.

Para finalizar esta discussão, pode-se dizer, então, que as noções de família incorporadas aos programas brasileiros de inclusão social e, sobretudo, aquelas que estão implícitas ou explícitas nos documentos norteadores dos organismos internacionais continuam tomando como referência uma matriz de organização social e familiar das sociedades ocidentais industriais e pós-industriais, a qual é insuficiente para dar conta da enorme variabilidade de configurações familiares possíveis. E essa variabilidade histórica, social e cultural desafia qualquer conceito geral de família.

Ao mesmo tempo, "a generalização do termo família [...] termina por ocultar as diferenças nas relações entre a reprodução e as demais esferas da vida social".42 42 BILAC, 2003, p. 31. Como diz Carvalho,43 43 CARVALHO, 2003, p. 15. "É preciso olhar a família em seu movimento. Este movimento de organização-reorganização torna visível a conversão de arranjos familiares entre si, bem como reforça a necessidade de se acabar com qualquer estigma sobre as formas familiares diferenciadas". E é exatamente essa variabilidade que se coloca como um dos maiores obstáculos e, ao mesmo tempo, como um dos maiores desafios para a formulação e a implementação de políticas públicas que posicionam a família como seu foco prioritário, ao mesmo tempo que a responsabilizam pela promoção da "inclusão social".

[Recebido em 25 de abril de 2011 e aceito para publicação em 8 de março de 2012]

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  • UZIEL, Anna Paula. Família e homossexualidade: velhas questões, novos problemas Tese (Doutorado em Ciências Sociais) - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2002.
  • 1
    Versão ampliada e modificada de comunicação oral apresentada no Seminário Internacional Fazendo Gênero, no Simpósio Temático Feminismos e maternidade: diálogos (im)pertinentes, em Florianópolis, Santa Catarina, de 23 a 26 de agosto de 2010.
  • 2
    Dagmar Estermann MEYER, 2006.
  • 3
    Stephane NADAUD, 2002; e Anna Paula UZIEL, 2002.
  • 4
    Cynthia SARTI, 2003.
  • 5
    LÉVI-STRAUSS, 1972 e 1982.
  • 6
    SARTI, 2003, p. 40.
  • 7
    Maria do Carmo Brant de CARVALHO, 2003, p. 7.
  • 8
    Utilizamos aspas simples para colocar uma palavra em suspenso e aspas duplas no caso de citações.
  • 9
    José Ricardo de Carvalho Mesquita AYRES et al., 2003.
  • 10
    Trata-se da pesquisa
    A educação "da família" como estratégia governamental de inclusão social: um estudo situado na interface dos estudos culturais, de gênero e de vulnerabilidade, coordenada por Dagmar Estermann Meyer, que as outras duas autoras integraram como subprojetos. A pesquisa foi financiada pelo CNPq com bolsa de produtividade e com bolsa de pós-doutorado, nas suas diferentes etapas. Foi examinada e aprovada, com todos os seus desdobramentos, pelo Comitê de Ética da UFRGS, em junho de 2004, atendendo aos termos da Resolução 196/96, do Conselho Nacional de Saúde. A pesquisa
    Biopolíticas de inclusão social e produção de maternidades e paternidades para uma "Infância Melhor", realizada por Carin Klein, trata de analisar uma política voltada para a promoção do desenvolvimento da primeira infância (PIM/RS), para discutir como a política, ao atuar como uma instância pedagógica, se propõe a enunciar, educar e regular mulheres e homens como sujeitos de gênero, no sentido de governar e instituir formas mais "adequadas" de exercer a maternidade e a paternidade (KLEIN, 2010). A pesquisa
    Nas trilhas da família... como e o que um serviço de educação social de rua ensina sobre relações familiares foi produzida no âmbito do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul por Letícia Prezzi Fernandes, com financiamento do CNPq. Tal investigação se propôs a analisar o modo como meninos e meninas em situação de rua vivem suas relações familiares e como um serviço municipal específico para o atendimento deles/as entende e ensina formas de viver e de se relacionar com a família (FERNANDES, 2008).
  • 11
    Esta abordagem teórica e metodológica, bem como os conceitos que dela se desdobram têm sido extensamente discutidos em estudos do campo da educação brasileira contemporânea, de modo que não vamos apresentá-los, mas operar com e dentro dela ao longo de nossa argumentação. Para um maior detalhamento, consultar MEYER, 2008.
  • 12
    O Serviço de Educação Social de Rua teve uma alteração em seu projeto em janeiro de 2007, quando passou a ser nomeado Ação Rua.
  • 13
    Referências diretas do material empírico desta pesquisa serão identificadas por PQ1.
  • 14
    O PBF alia o recebimento de seus benefícios ao cumprimento de determinadas exigências relativas à saúde e à educação. O não cumprimento dessas exigências pode levar a família a ser excluída do Programa.
  • 15
    O PIM tornou-se política pública em 3 de julho de 2006. Referências diretas do material empírico desta pesquisa serão identificadas por PQ2.
  • 16
    RIO GRANDE DO SUL, 2006.
  • 17
    Referências diretas do material empírico desta pesquisa serão identificadas por PQ3.
  • 18
    BRASIL, 2006a, p. 26.
  • 19
    Entrevista, PQ1, 10 de janeiro de 2007.
  • 20
    BRASIL 2006b, p. 5.
  • 21
    RIO GRANDE DO SUL, [s.d.].
  • 22
    RIO GRANDE DO SUL, [s.d.].
  • 23
    Entrevista, PQ3, 19 de junho de 2007.
  • 24
    Entrevista, PQ1, 3 de janeiro de 2007.
  • 25
    Claudia FONSECA, 2004.
  • 26
    Entrevista, PQ1, 11 de janeiro de 2007.
  • 27
    Entrevista, PQ1, 21 de dezembro de 2006.
  • 28
    Diário de campo, PQ3, 5 de dezembro de 2006.
  • 29
    CARVALHO, 2003, p. 19.
  • 30
    Diário de campo, PQ2, 29 de junho de 2007.
  • 31
    FONSECA, 2009.
  • 32
    Elisabete Dória BILAC, 2003, p. 36.
  • 33
    FONSECA, 2004, p. 61.
  • 34
    Diário de campo, PQ3, 12 de dezembro de 2006.
  • 35
    Diário de campo, PQ3, 17 de maio de 2007.
  • 36
    Entrevista, PQ2, 21 de novembro de 2007.
  • 37
    Ela se refere ao recebimento do PBF e do salário do filho que é deficiente.
  • 38
    Entrevista, PQ2, 21 de novembro de 2007.
  • 39
    Maria Simone SCHWENGBER, 2006.
  • 40
    FONSECA, 2004, p. 64.
  • 41
    FERNANDES, 2008; KLEIN, 2010; e MEYER, 2006 e 2008.
  • 42
    BILAC, 2003, p. 31.
  • 43
    CARVALHO, 2003, p. 15.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      16 Ago 2012
    • Data do Fascículo
      Ago 2012

    Histórico

    • Recebido
      25 Abr 2011
    • Aceito
      08 Mar 2012
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