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Os casos e o gênero: acontecimentos da moralidade camponesa

The Affairs and the Gender: Passions and the Others Events of Peasant Morality

Resumo:

Este artigo trata das experiências afetivas de homens e mulheres, mais especificamente, as relações extraconjugais vividas pelos moradores da Terceira Margem, localidade rural situada no estado de Minas Gerais. Denominadas como “casos”, essas relações não mexem apenas com a vida conjugal; também afetam as dinâmicas da família e do parentesco. Por sua vez, o aporte sobre essas vivências remete ao universo do gênero e estas estão associadas às expectativas e experiências que tecem as condições femininas e masculinas na comunidade. O interesse, aqui, é reconstruir a trama de relações que são afetadas pelos “casos” e os rearranjos que sofrem os vínculos quando as pessoas se envolvem com outro par. É a partir dessa chave analítica que os “casos” nos falam sobre casamento, paixão, descontrole, fofocas e evitações.

Palavras-chave:
Camponeses; Conjugalidade; Família; Caso; Gêneros

Abstract:

This article is about men and women´s affective experiences, specifically, about the extramarital relations as they are lived in the rural community called Terceira Margem, located in the state of Minas Gerais, Brasil. Denominated “affairs”, those relationships have implications not just on conjugal life but also on the wider dynamics of family and parenthood. To the extent that the “affairs” are related to the experiences of men and women, this work is about gender, field on which this work pretends make a contribution. The purpose here is to reconstruct the web of relationships and his rearrangements motivated by the “affairs”. From the analytic perspective adopted here, “affairs”, say not only about marriage and love but as well about passion, decontrol, gossip and avoidance.

Key Words:
Peasants; Life conjugal; Affairs; Family; Gender

Este artigo trata das experiências afetivas dos moradores da Terceira Margem, localidade rural situada no estado de Minas Gerais, mais precisamente na região do Alto Paranaíba. O lugar é habitado por cerca de cem pessoas. Os margeenses se ocupam com as atividades agrícolas ali desenvolvidas (produção de leite, grãos e café), seja como proprietários da terra, seja como trabalhadores ocasionais e/ou permanentes nas terras dos seus vizinhos.1 1 Cabe informar que o município é moradia de 30.000 pessoas, sendo que a densidade populacional se concentra nas dezenove localidades rurais ali existentes. Vizinhas ao núcleo urbano (vizinhança esta que compreende uma distância de 5 até 70 km, a exemplo da comunidade Tijucas, a mais longínqua), nessas localidades, seus moradores se dedicam a atividades diversas, principalmente à produção de leite e derivados (queijo), grãos (feijão, milho) e frutas para subsistência. Em algumas delas também se encontra a produção de café, embora esse cultivo (dado à proporção de investimentos financeiros necessários) seja atividade predominante entre os grandes produtores, que, em sua maioria, residem no núcleo urbano e não nas localidades. Nesse contexto, realizei a pesquisa de campo por nove meses, a qual compreendeu distintos momentos dos anos de 2008 a 2009. Na ocasião, frequentei tanto o núcleo urbano quanto as localidades rurais, porém minha convivência se deu, em boa parte, entre os margeenses. Para um conhecimento mais detalhado da configuração social e econômica desse município e da Terceira Margem, indico minha tese de doutorado (Graziele DAINESE, 2011); trabalho esse que foi elaborado a partir dessa pesquisa de campo e do qual derivam as considerações tecidas neste texto. A fim de preservar os margeenses, optei por usar denominações geográficas e pessoais fictícias, à exceção das designações regionais e estaduais.

Parte das experiências aqui descritas diz respeito aos intercursos extraconjugais, vividos entre homens e mulheres casados, os chamados ‘casos’. Essas são relações que geram assunto na localidade: a proximidade constante entre pessoas compromissadas frequentemente é alvo de comentários, no entanto, quando essa proximidade não dá margem às dúvidas é que os ‘casos’ parecem repercutir de forma mais potente no cotidiano dos moradores. Tal repercussão não se limita às fofocas que movimentam a localidade, ou, pelo menos, não se refere apenas ao ‘disse-me-disse’ interessado na impostura dos casados e em cogitar casamentos ameaçados. Os ‘casos’ geram falação, que, por sua vez, podem gerar desentendimentos e brigas, e, assim, desencadear uma série de acontecimentos que envolve amantes, cônjuges, vizinhos, parentes e conhecidos.

Dada a importância das relações de família e parentesco entre os margeenses, se reconhece que quem sucumbe à ‘tentação’ de viver um caso se encontra numa condição pessoal depreciada: está vivendo no ‘descontrole’, é alguém que ‘perdeu a cabeça’. Tais considerações problematizam os desarranjos criados ao experimentar o afeto fora de casa, cujos efeitos mexem com as dinâmicas familiares assim como com as expectativas associadas aos pais e mães de família; de sorte que essas vivências afetivo-sexuais e suas influências nas dinâmicas familiares reportam-se às relações entre homens e mulheres e ao modo como se pensam os acontecimentos do gênero na comunidade.2 2 Chamo a atenção para os usos que faço do termo gênero, homem e mulher. Estou falando a partir de um contexto no qual o binarismo sexual é um vetor importante para dada definição de gênero enquanto masculino e feminino, tendo em vista que a associação mulher-feminino e homem-masculino pressupõe uma ideia de sexo baseada em atributos naturalizados e discerníveis entre homem e mulher. Por sua vez, veremos que as diferentes experiências que marcam as trajetórias de homens e mulheres na Terceira Margem (principalmente os casos e outros acontecimentos descritos ao longo desse artigo) indicam a proliferação de sentidos e princípios que compõem essa associação sexo/gênero e particularizam um modo de conceber as condições masculinas e femininas como produzidas ou inventadas por este e neste lugar. Sendo assim, os usos dos termos homem e mulher indicam uma aproximação à sinonímia que os margeenses estabelecem entre sexo e gênero. No que concerne ao termo analítico do gênero, portanto, essa opção se faz quando quero destacar tal proliferação de sentidos e princípios relacionais que participam dessa sinonímia nativa.

Ao conjugar amantes, casais, parentes e conhecidos, as tramas relacionais criadas pelos ‘casos’ atualizam questões da vivência familiar e de gênero, repercutindo uma conexão particular entre vida conjugal, familiar e comunitária. Tema muito recorrente em abordagens que tratam da convivência entre próximos, a influência da comunidade sobre as experiências do casal e da família se destaca, aqui, como ponto significativo no diálogo com a literatura, principalmente nos estudos versados nos acontecimentos da intimidade camponesa. Dos trabalhos realizados por Martine SEGALEN (1990SEGALEN, Martine. Mari et femme dans la société paysanne. Paris: Falamarion, 1990. ), Karin WALL (1998WALL, Karin. Famílias no campo: passado e presente em duas freguesias do baixo Minho. Lisboa: Dom Quixote, 1998.), Ellen WOORTMANN & Klaas WOORTMANN (1990______. “Amor e celibato no universo camponês”. Textos Nepo, n. 17, 1990., 1997), Beatriz HEREDIA (1979HEREDIA, Beatriz. A morada da vida: trabalho familiar de pequenos produtores do nordeste do Brasil. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.), sabemos que as relações do casal se configuram nas dinâmicas da produção/reprodução do grupo doméstico, de modo que casar, ter filhos e viver de acordo com as expectativas de uma conjugalidade marcada pelos imperativos da casa e do roçado são parâmetros fundamentais na determinação dos papéis e relações de homens e mulheres. Das determinações mais significativas se destacam a questão da complementaridade, da dependência e da subsunção das atividades e condição feminina (e de outros membros do coletivo familiar) ao pai de família. Também se reconhece a moralidade dos afetos conjugais, cujo traço hegemônico se refere ao matrimônio e à reprodução familiar.3 3 Outros trabalhos (Rosineide CORDEIRO, 2012; Marilda MENEZES e Marcelo SILVA, 2010; Valmir STROPASOLAS, 2004; Renata MENASCHE & Leila SCHMITZ, 2007) abordam essas questões à luz das transformações socioeconômicas, à medida que estão preocupados em discutir como o investimento em anos de estudo, a participação política (militância em movimentos sociais, principalmente), as transformações no acesso a terra e nos modos de reprodução do campesinato afetam as relações entre os gêneros. Trazem esse cenário de mudança social para destacar as transformações de percepções e experiências que vinculam homens e mulheres, bem como as tensões que se criam a partir da vivência desses acontecimentos em seu confronto com as expectativas sobre ser homem e mulher no meio rural.

Neste estudo dos ‘casos’ sigo as pistas indicadas por essa literatura, principalmente quando trata das determinações que orientam as relações entre pais e mães de família, a exemplo da importância do casamento, do parentesco e das dinâmicas da casa na organização das relações entre homens e mulheres, bem como entre homens e entre mulheres. No entanto, para além dos constrangimentos morais que essas determinações efetuam sobre as relações e os afetos, me interessa, também, olhar a vivência familiar e o parentesco tanto nas avaliações que eles criam sobre as relações extraconjugais quanto no modo como são atingidos por essas relações. Uma das propostas analíticas é reconstruir a trama de relações que são afetadas pelos ‘casos’ e os rearranjos que sofrem os vínculos e as expectativas quando as pessoas se envolvem com outro par.

Partindo desse pressuposto, este estudo propõe uma reflexão sobre a moralidade criada nos arranjos conjugais e familiares, tendo como foco uma série de afetos e relações que geralmente se encontra subsumida nas análises mais referidas aos enquadres do binômio casa/roçado, descrito a partir do tema da reprodução do patrimônio e de suas determinações na vida de homens e mulheres. Ao elaborar essa perspectiva, argumento que os ‘casos’ nos falam não apenas sobre casamento, amor, mas sobre ‘paixão’, descontrole, fofocas, evitações. Também se destacam as aproximações, as ameaças e atrações que participam das problematizações margeenses sobre as relações entre homens e mulheres e as considerações sobre o sortilégio que marca significativamente as experiências afetivas.

No tempo em que Otacília perdeu a cabeça

O menino Ari corria pelas ruas da localidade enquanto Joanim o procurava de casa em casa: era hora do banho; logo, teriam que ir à novena na capela. A cena corriqueira me fez indagar à Quirina se Joanim era parente de Otacília, a mãe de Ari e pessoa muito próxima de Quirina. “É como se fosse, porque ele gosta e cuida muito de Ari: leva pra escola, dá banho, dá comida. Cuida desde o tempo em que Otacília perdeu a cabeça e esses meninos todos ficaram por aí...”

O tempo em que Otacília perdeu a cabeça ganharia outras descrições ao longo do trabalho de campo, em conversas que falavam de seu ‘caso’ com José, também morador da comunidade, e, assim como Otacília, casado com outra pessoa. Envolvendo-se com o vizinho que fora seu primeiro namorado, essa moradora viveu uma história que movimentou a comunidade seja por meio das fofocas, seja pelas brigas e desentendimentos protagonizados entre os envolvidos, principalmente entre as mulheres, tal como se viu nas mútuas provocações entre ela e a então esposa de José, nas brigas de Otacília com a mãe do seu então esposo e com suas irmãs.

Esta não seria a primeira ou a última ocasião em que o interesse margeense se voltava para uma relação afetiva dessa natureza, no entanto, é notável que os rumos desse afeto chamaram mais a atenção. “Ficavam no rodeio, feito animais”, comentou a vizinha Nena sobre o comportamento de Otacília e José, quando, ainda casados, já não dosavam a intensidade e publicidade dos encontros. “Os filhos ficavam por aí, ao léu”, consideravam outras mulheres ao falar sobre os meninos daquela que amava José, os quais cresciam longe do amparo da mãe tão dedicada ao amante.

Experimentar um afeto como esse, tão comprometedor da relação esposo e esposa, é comportamento moralmente reprovável entre os margeenses. Nesse contexto, a vivência do amor contém a família como projeto e/ou se expressa privilegiadamente através desse vínculo, fato que dialoga com o que foi observado em outros coletivos camponeses. A literatura sócio-antropológica sobre o amor camponês (SEGALEN, 1990SEGALEN, Martine. Mari et femme dans la société paysanne. Paris: Falamarion, 1990. ; WOORTMANN & WOORTMANN, 1990______. “Amor e celibato no universo camponês”. Textos Nepo, n. 17, 1990.; Renata MENASCHE, 2000MENASCHE, Renata. “O Quatrilho: casamento, amor e estratégias de reprodução social camponesa”. Estudos Sociedade e Agricultura, n. 15, p. 179-193, out. 2000. ) trata dos constrangimentos sociais que marcam a vivência desse sentimento e como tais constrangimentos se orientam pela importância da família na reprodução da condição coletiva. Em contextos nos quais a condição de vida é marcada por certa relação com a terra e que esta depende dos esforços e das necessidades dos parentes e familiares, constituir família é uma questão existencial premente, e, sendo assim, é assunto de atenção e de considerações significativas. Dessas considerações não se excluem os afetos, tanto aqueles que devem ser cultivados quanto os que devem ser evitados, a fim de se criar uma convivência conjugal propícia a esses enredos coletivos.

Entre os moradores da Terceira Margem, meninos e meninas experimentam os arrebatamentos afetivos dos namoros e dos encontros furtivos, mas consideram que amor é sentimento que se constitui ao passo que se reforçam os laços com uma única pessoa. Por sua vez, a consagração desse vínculo também depende de fatores como o casamento, a constituição de uma casa para o casal (de preferência formada nas proximidades das casas dos pais do noivo ou da noiva) e a criação dos futuros filhos. Nesse sentido, casar é um passo importante na vida de homens e mulheres, tal como descreve Maya MAYBLIN (2010MAYBLIN, Maya. Gender, Catholicism and Morality in Brazil. Virtuous Husbands, Powerful Wives. Palgrave: Macmillan, 2010.) para as localidades do Ceará, em que a própria condição de adulto e de pessoa plena está associada ao matrimônio, assim como ao enfrentamento dos dilemas e dificuldades que se vive quando casados. Na Terceira Margem, os comentários sobre os casamentos nem sempre são animadores, principalmente quando se ouve homens e mulheres mais velhos, casados ou viúvos, que não deixam de considerar como seria a vida se o casamento não ocorresse. Mesmo assim, ser ‘mulher casada’ e ‘homem casado’ ainda é um projeto dos jovens, de modo que podemos concordar com o que foi dito para os meninos e meninas de Mossâmedes (Goiás) a partir das palavras de Silvana NASCIMENTO (2008NASCIMENTO, Silvana. Faculdades femininas e saberes rurais. Uma etnografia sobre gênero e sociabilidade no interior de Goiás. 2008. Tese (Doutorado) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Antropologia Social, USP, São Paulo.): “o casamento ainda é pensado como a melhor forma de união de homens e mulheres e como uma passagem necessária para a vida adulta” (p. 65).

A valorização do matrimônio e da vida em família na Terceira Margem influi na administração dos desejos experimentados fora dessa relação. Mas isso não significa que eles nunca serão vividos. Se a moral margeense constrange esses afetos, ela não deixa de supor modos possíveis de vivê-los, assim como não desconsidera a perene possibilidade de subversão de todos esses modos e a entrega desregrada ao proibido. Como se espera das moças da localidade, Otacília não se envolveu com muitos parceiros antes de casar e de ter filhos. Foi após o término com o primeiro namorado (o José) que ela se aproximou de Alfredo, também filho de moradores da localidade, e com ele se casou. Tiveram três filhos, trabalhavam na própria localidade e frequentavam a igreja constantemente. A vida do casal seguia os rumos mais valorizados pela vida local, até que Otacília se reaproximou de José e, aos poucos, passou a não esconder essa reaproximação. Os encontros eram vividos no boteco da localidade, gerido por José, ou em lugares mais ou menos ermos. As portas trancadas do boteco e o rastro noturno dos amantes eram indícios potentes do ‘caso’ em questão.

A constância desses encontros somou-se ao desamparo dos filhos, que ficaram à mercê dos cuidados de vizinhos, os quais se compadeciam da situação dos meninos, embora nem sempre recriminassem diretamente a mãe pelo que vinha acontecendo. A inexistência dessa recriminação não continha, por sua vez, os percursos da fofoca que levaram aos ouvidos da esposa de José os encontros furtivos do seu então marido. As conversas também alcançaram as casas da sogra, da mãe e das irmãs de Otacília. Passando a maior parte do tempo dentro de casa, recebendo, mesmo sem querer, pessoas que chegavam com essas notícias, foram essas moradoras que reagiram à situação, sendo quase inexistentes os relatos sobre contendas protagonizadas entre José e o esposo de Otacília. Num primeiro momento, foi a esposa de José que reagiu às fofocas, dizendo que trataria do assunto diretamente com Otacília, enunciando a ameaça de encontros mais violentos. A mãe do esposo de Otacília tampouco se conteve ao ver a imagem do filho e o amparo dos netos desafiados pelo comportamento da nora. No entanto, foi a irmã mais nova de Otacília que não se limitou às promessas ao lhe dar uma surra na frente de vários moradores.

“E daí pra frente foi só descontrole”, reconheciam aqueles que me contavam o causo desse caso. As características que marcam a ligação de José e Otacília indicam que parte do problema dos envolvimentos extraconjugais se deve ao ‘descontrole’, cujo efeito alcança não apenas os amantes, mas seus esposos, filhos, irmãos, pais e conhecidos. Os descaminhos sugeridos pelo ‘descontrole’ se referem aos comportamentos desregrados dos amantes, principalmente quando esquecem a discrição tão necessária à vivência desses afetos, assim como aos arroubos de seus parentes e conhecidos, atordoados pelas atitudes dos amantes e pelo efeito das fofocas. Nesse sentido, esses acontecimentos, ao incidirem sobre a vida conjugal, influem na vida familiar, cuja configuração excede não apenas o casal e seus parentes mais próximos, pois também pode envolver vizinhos, conhecidos e afins. Os ‘casos’ geram fofocas, as quais suscitam os desentendimentos e as brigas, que, por sua vez, criam mais falação. A circulação desses assuntos pelas casas envolve os moradores, distantes e próximos dos amantes, e transforma os acontecimentos da paixão amorosa em acontecimentos de toda a comunidade.

A ideia de que o amor e a paixão são sentimentos cujo valor reflete a organização social camponesa encontra, aqui, uma dimensão importante no que concerne à atenção da comunidade sobre a vida conjugal. Para os camponeses da França do século XIX, Segalen (1990SEGALEN, Martine. Mari et femme dans la société paysanne. Paris: Falamarion, 1990. ) traça as conexões entre vida conjugal e vida comunitária a partir da análise de provérbios e de uma série de rituais que explicitam como a vida particular conjugal existe em relação a uma série de outros vínculos, envolvendo familiares, parentes, assim como os vizinhos. Baseando-se no pressuposto de que casamentos e vida conjugal interessam aos camponeses à medida que mexem com as dinâmicas do patrimônio da terra e da casa, a autora investe na tese dos constrangimentos sociais sobre a vivência dos afetos e salienta o controle moral da coletividade sobre o casal.

A existência de um controle coletivo sobre a vida particular de seus membros é um pressuposto que ecoa em outros trabalhos sobre contextos marcados por relações próximas, sendo comuns as considerações sobre a gestão da sexualidade das pessoas, em geral, das mulheres. Seja entre os povos do Mediterrâneo (John CAMPBELL, 1974CAMPBELL, John. Honour, Family and Patronage. New York: Oxford University Press, 1974.; Michael HERZFELD, 1988HERZFELD, Michael. The Poetics of Manhood: Contest and Identity in a Cretan Mountain Village. Princeton: Princeton University Press, 1988.) ou no Nordeste Brasileiro (CORDEIRO, 2012CORDEIRO, Rosineide. “Gênero em contextos rurais: a liberdade de ir e vir e o controle da sexualidade das mulheres no sertão de Pernambuco”. In: JACÓ-VILELA, Ana Maria; SATO, Leny (Orgs.). Diálogos em psicologia social. Rio de Janeiro: Centro Edelstein de Pesquisas Sociais, 2012. p. 135-146.), encontramos descrições sobre como a moralidade se inscreve nos corpos e regulamenta atitudes. Na Terceira Margem, a fofoca atualiza as expectativas associadas às relações afetivas, no entanto, a ênfase na ideia de repressão e controle não deve reduzir a inter-relação entre vida comunitária e vida conjugal às tendências exclusivamente moralizantes, principalmente quando consideramos outros aspectos suscitados nas narrativas dos moradores da Terceira Margem sobre os (dis)sabores do enlevo amoroso.

Se, por um lado, a comunidade se envolve com os ‘casos’ por meio do controle das fofocas, outros envolvimentos também foram destacados ao considerarem que quem faz a fofoca dos encontros furtivos não deixa de ser repreendido, justamente pelo que essas conversas podem motivar, pois não são raras as reações intempestivas de quem se vê vítima desses comentários. É reconhecida como legítima a reação dos casados (mulheres e homens) que buscam “defender a família” quando sabem que seus parceiros andam à baila com outras pessoas. O desejo dedicado ao outro faz sofrer, no entanto, o sofrimento é mais agudo quando a suspeita torna-se boato e este adentra a própria casa. Não é à toa que, por vezes, é mais fácil perdoar os amantes do que aquele que trouxe a fofoca aos seus próprios ouvidos: “Eu não moro na Terceira Margem, mas toda vez que vou lá me perguntam do meu marido, como vai meu casamento, é gente que gosta de mexer com as paixões”. A fala de Olívia explicita o incômodo de visitar a localidade onde nasceu e morou por tantos anos. Residindo atualmente no núcleo urbano, ela evita até mesmo as visitas aos seus irmãos que lá permanecem.

Anos atrás, Olívia desconfiou do marido, cujas viagens para vender queijo o levavam para longe de casa, mas não distante das observações do povo da Terceira Margem. Só descobriu a suspeita quando uma moradora da localidade contou-lhe o que o povo dizia: o marido, quando viajava, se encontrava com outras mulheres e, naquele momento, mantinha um caso com uma amiga de Olívia. “Eu não pude ficar quieta, eu não fiquei, porque quando a falação entra assim na casa da gente, a gente perde a cabeça”.

A discrição do esposo de Olívia não foi suficiente para evitar que as conversas alcançassem seus ouvidos. E foram essas palavras que a fizeram ‘perder a cabeça’ e, assim, criar outros ‘descontroles’, tão particulares aos acontecimentos desse enlevo. Olívia separou-se (ainda que momentaneamente) do marido e, ao encontrar a amiga, agarrou-a pelos cabelos quando a mesma não negou o intercurso. A briga das duas correu a Terceira Margem e é pra lá que Olívia evita ir logo após viver o dissídio, dosando a frequência com que visita seus parentes e conhecidos, a fim de não ter que ouvir mais sobre o que prefere não saber.

As reações das mulheres frente ao que ouvem sobre as relações extraconjugais de seus esposos chamam a atenção e ganham destaque nas narrativas, cujo enredo não deixa de salientar as reações de conhecidos, filhos e outras pessoas. Quando a falação entrou na casa de Quirina, comentando a aproximação de sua amiga Josefa com Aurélio, seu esposo, Quirina, pessoa pacata, se descontrolou. Saiu no passo apressado, seguida pela filha mais nova e por suas coleguinhas. Seu movimento não escapou às vizinhas, pois a batida nervosa anunciava o embate, o que provocou a saída de outras moradoras à rua: muitas para observar e as mais conhecidas para se solidarizar e acompanhar (quiçá, evitar ou administrar) o encontro de Quirina e Josefa. Chegando à casa de Josefa, foi direta ao lhe perguntar sobre o ‘caso’, uma objetividade que não escapou à ouvinte, que confirmou aquilo que Aurélio teria negado veementemente. Apesar de não ter estranhado a afirmativa (afinal, sabia que “Josefa era mulher tentada”), a confirmação precipitou a fúria de Quirina, cuja atitude seguinte foi pegar Josefa pelos cabelos e apenas soltá-la quando Osvaldinho (o esposo da rival) e Aurélio apartaram a briga. Pouco tempo depois, Quirina não teria mais notícia da suposta amante do seu esposo, dada a mudança de Josefa e Osvaldinho para a cidade.

Em vista das diversas participações nesses acontecimentos, percebe-se que o envolvimento da comunidade nos casos conjugais não se limita a uma administração que visa evitar ou condenar aqueles que vivem esses afetos. Os ‘casos’ envolvem pessoas motivadas por fofocas, pelos desentendimentos e pelas brigas e, também, pelos silêncios de quem acha melhor evitar qualquer comentário a fim de não acrescentar mais lenha à fogueira. Além disso, a diversidade dos modos de agir e de reagir frente aos enlaces dos amantes indica não apenas formas diversas de efetuação do olhar da comunidade sobre a conjugalidade, mas, também, traz à cena o modo como os ‘casos’ criam rearranjos relacionais significativos à vida dos parentes e conhecidos.

Não estou me referindo apenas às mudanças, separações e novos casamentos ou à incorporação de filhos dos seus parceiros à nova dinâmica doméstico-familiar, afinal, são notáveis tanto os afastamentos de parentes e conhecidos suscitados pelos desentendimentos e fofocas quanto as diversas afinidades e reaproximações geradas em meio aos desarranjos afetivos. O passar dos dias dirimiu os desafetos e permitiu que Otacília fizesse as pazes com a sua ex-sogra e avó dos seus filhos. Atualmente, a casa da ex-sogra é um ponto de chegada para ela, quando permanece na comunidade, ajudando o atual marido, que segue como proprietário do boteco. A separação do primeiro marido e o enlace com José também permitiram uma reaproximação de Otacília com seus próprios filhos, ainda que um deles optasse por residir com a avó na Terceira Margem, após a mudança de Otacília e José para o núcleo urbano. Embora Otacília tenha que dosar as vezes que frequenta a casa da mãe, tendo em vista a perenidade do dissídio com suas irmãs, as reaproximações com seus filhos incorporaram a avó Liduína e o vizinho Joanin, pois, se Ari permaneceu junto à mãe, ele não se afastou de Joanin. É a casa dele a que o menino se dirige, em constantes visitas realizadas após as aulas no ensino primário, quando segue com o ônibus escolar rumo à localidade.

Por fim, essas e outras redefinições familiares refletem variações mais particulares à vida conjugal. O afeto e a vivência de uma sexualidade que orienta a conjugalidade mais afeita aos valores locais (a exemplo do amor e do intercurso sexual exclusivo com o par heterossexual) podem ser desafiados pelos acontecimentos do arrebatamento, que conduz os esposos e esposas a experimentar outros desejos. No entanto, não se desconsidera que esses afetos e desejos possam motivar relações e a formação de novos casais. Com o passar do tempo, ainda que alguns moradores afirmassem que José não era ‘marido legítimo’ de Otacília (reconhecendo como legítima apenas a primeira união, vivida com Alfredo), tampouco José era desconsiderado como marido daquela que fora sua amante.

As pessoas, principalmente, as mais jovens, diziam que o que fez com que os dois se reaproximassem teria sido o amor que sentiam um pelo outro na juventude. Os mais velhos não falam em amor, mas, ainda assim, o reconhecem como casal, escolhendo Otacília e José como festeiros para os eventos religiosos da capela local. Por mais que o ‘caso’ tenha ensejado separações de esposos e esposas e redefinido famílias, sua vivência apontou outras possibilidades conjugais. Tais possibilidades são consideradas entre aqueles que viram no afeto dos amantes o amor que projetaria a família e entre as opiniões, que, apesar de não mencionar o amor, tampouco desconsideram a família que se formou a partir do desejo vivido fora de casa.

A história do casal José e Otacília repercute numa localidade que não esquece as vicissitudes do amor e da paixão vividos por eles. São essas vicissitudes que fazem com que homens e mulheres da Terceira Margem reflitam sobre aspectos existenciais e relacionais, os quais, embora devam condizer às suas condições de pais e mães de família, muitas vezes excedem e escapam a essas condições. No próximo tópico, discutirei como as expectativas da vida conjugal e da família convivem com certos afetos e potências, cujas atualizações marcam outros acontecimentos das pessoas.

Paixões que desconhecem corpos e gêneros

As reações de esposos e esposas, sogras, irmãs, pais e filhos dos amantes não deixam de conjugar sentimentos e comportamentos que a literatura sobre os coletivos camponeses frequentemente descreve sob os termos da honra e da vergonha. Das interpretações que tratam de casamento, sexualidade e vida conjugal são conhecidos os comentários de Campbell (1974CAMPBELL, John. Honour, Family and Patronage. New York: Oxford University Press, 1974.) sobre o contexto mediterrâneo, no qual o resguardo da virgindade e controle da sexualidade feminina são protagonizados por pais e irmãos que reagem ostensivamente tanto às seduções quanto às fugas, práticas que atacam matrimônios e alianças mais afeitas à família. No que se refere ao contexto brasileiro, a fuga camponesa foi tema da análise de Woortmann & Woortmann (1991WOORTMANN, Ellen. “Da complementaridade à dependência: a mulher e o ambiente em comunidades ‘pesqueiras’ do Nordeste”. Brasília: EDUnB, 1991. (Série Antropologia)), em interpretação que assinala essa prática como um jogo de honra, onde são encenadas tanto as condições possíveis para a realização da aliança quanto as reações e sentimentos de quem se vê envolvido na trama. Honra e vergonha são partes desses sentimentos, afinal, a potência desse jogo em efetuar casamentos não anula o fato de que, ao fugir, os pares confrontam tanto os princípios da relação entre os gêneros quanto da moral familiar.

Ao falar sobre os afetos e desejos que mobilizam os ‘casos’, os margeenses, embora não mencionem a honra, não se esquecem do desrespeito e da vergonha que se vive quando a família é atingida pelo descontrole. As experiências desregradas dos amantes conduzem ao imperativo de defender (ou, até mesmo, em corresponder a) uma reputação pessoal e familiar tensionada por essas situações.4 4 Como argumenta Frederick BAILEY (1971), o problema da reputação não é necessariamente se ela é boa ou má, à medida que o que importa é ter reputação. Na Terceira Margem, não é incomum que ‘famílias descontroladas’ correspondam a essa fama, criando ainda mais brigas e desentendimentos – seja na situação dos ‘casos’ ou por outras motivações. As ações extremadas podem criar reações em cadeia, envolvendo outros parentes e conhecidos que chegam para acalmar os ânimos da casa, mas também para expressar sentimentos feridos.

É fato que essas mesmas atitudes motivem ainda mais vergonha, tendo em vista que protagonizar brigas e desentendimentos em público são vivências marcadas pela dubiedade. A vida na Terceira Margem prima pela contenção das atitudes quando se vive desentendimentos e outros desacordos mais ou menos explícitos, mas a avaliação desses comportamentos depende, sempre, do contexto e de quem avalia, tanto que uma atitude contida e pacificadora pode ser vista como a falta de gana em “defender a família”. É esperado que esposos e que esposas (e as pessoas próximas aos amantes) se posicionem frente a acontecimentos que ameaçam a vida conjugal e familiar.

De certo modo, são a dignidade e a reputação que levam às atitudes mais intempestivas, reações possíveis frente ao barulho que as experiências dos amantes criam na localidade. No entanto, a moralidade que os ‘casos’ põem em causa reconhece estados emotivos tão ou mais significativos do que a vergonha, à medida que outras motivações ganham a cena quando se trata dessas reações. Mais do que vergonha, o que abala os margeenses são as ‘paixões’. Num contexto social no qual a discrição e o controle são modos de ser valorizados da pessoa, os problemas se complexificam quando se reconhece que as pessoas são constituídas por forças cuja agência faz manifestar o ‘lado não tão bom’ de cada um, e, assim, geram brigas, provocações e desentendimentos. Diante disso, resta saber que, ao falarem de paixões, não falam apenas de reputação: essas forças revelam outras condições da pessoa que não se resumem ao peso do olhar dos outros sobre si mesmo.

Pode-se dizer que o aspecto mais genérico (e notável) dessa potência são as expressões e comportamentos pouco contidos, pois, mais do que sentir, ela conduz às ações exacerbadas. Assim como é a paixão que faz com que duas pessoas casadas não apenas sintam algo especial por alguém, mas assumam de modo intenso esse afeto ao viverem uma relação fora de casa; também é a condição de apaixonado que caracteriza aqueles que se envolvem nas brigas e desentendimentos (criados pelo caso, mas, também, por outras situações orientadas pela raiva). Expressões do tipo “fulano tá triste, tá apaixonado” ou “fulano ficou naquela paixão” são referências para os arrebatamentos amorosos, mas não se limitam a eles, pois podem traduzir os estados de tristeza assim como de ira. Esses são estados marcados por demasiada intensidade, seja através da permanência amuada e depressiva por certo tempo ou através de brigas e violências que atingem outras pessoas.

Por serem potências que arrebatam, o termo diz respeito mais à afecção do que ao sentimento, pois supõe uma agência específica (faz fazer coisas) associada a um estado alterado da pessoa. Desse modo, a intensidade observada nas atitudes pode estar associada a diferentes sentimentos, tal como alegria, tristeza, ira, raiva, amor, ódio. É nesse sentido que a tradução dos sentimentos que a ‘paixão’ mobiliza depende do contexto. Por outro lado, há uma gama de disposições emocionais que são sinônimos para essa potência, a exemplo dos ciúmes e da inveja, afetos que, frequentemente, são designados como ‘paixões’. Seja porque são bastante recorrentes ou devido à intensidade característica desses sentimentos, os margeenses veem nos ciúmes, e, sobretudo, na inveja, uma das expressões privilegiadas da ‘paixão’.

Do mesmo modo, outros nomes podem particularizar a ‘paixão’, tal como se diz da ‘tentação’ que conduz homens e mulheres a viver os ‘casos’. A particularidade da ‘tentação’ (como uma das paixões possíveis que habitam cada um) se caracteriza por esta ser uma força que emerge na aproximação entre homens e mulheres e encontra um lastro poderoso quando essa aproximação resulta no intercurso erótico. Ou seja, sua manifestação pode tanto conduzir aos casos quanto aos modos mais intensos de vivenciá-los.

Entende-se que cada pessoa pode sucumbir à ‘tentação’ e isso inclui formas mais ou menos controladas. Talvez, por isso mesmo, não deixam de serem respeitados pelos outros moradores aqueles que conseguem viver em tentação e ainda manter o comedimento dessa paixão. Como vimos, os casos do esposo de Olívia, ainda que comentados, foram vividos por muito tempo sem chamar tanta atenção. É fato que esses comportamentos criam a suspeita, gerando rumores e boatos, mas não são suficientes para acirrar a falação. O significado da discrição na vivência da paixão amorosa é considerado quando falam de Maurílio e Maria José, ambos casados e moradores da Terceira Margem. A frequência com que iam à capela e participavam das atividades não escapou aos olhos de todos, principalmente a dedicação dos dois à organização do coral religioso. Os ensaios aproximavam e criavam momentos para a conversa, a ponto de alguém (nunca se sabe quem) sugerir que viu Maurílio entregando um agrado à Maria José. A proximidade, assim cultivada, criou a suspeita, fala-se desses encontros, porém os limites e intensidade do convívio do suposto casal seriam tão tênues que algumas pessoas preferem comentar a ânsia dos fofoqueiros em vez de dar enredo a um envolvimento tão introspectivo como esse.

A discrição é uma possibilidade aventada para a vivência das relações extraconjugais, mas, ao mesmo tempo, é das tendências que mais escapam a essas relações. Isto acontece não apenas porque a vida na Terceira Margem é marcada por uma proximidade social e geográfica tão considerável que as pessoas podem conhecer tudo o que se passa nas casas e, assim, transformar o comedimento dos outros em fofoca. A discrição escapa porque se sabe que o problema de experimentar o desejo fora de casa é que dificilmente se experimenta pouco; não é à toa que, vivendo essas relações, as pessoas ‘perdem a cabeça’. Essa designação para certos comportamentos e atitudes chama a atenção pelo que acrescenta de extraordinário às condutas observadas, geralmente, ações e reações que sugerem pouco domínio de si mesmo. Mais uma vez, o caso de José e Otacília é exemplar, por vivenciar a relação arriscando várias outras através das brigas e desentendimentos. A situação de Otacília era ainda mais notável à medida que renunciou aos cuidados dos filhos, o que, aos olhos dos margeenses, significa renunciar à própria condição de mãe de família. Vivendo os ‘casos’, as pessoas correm o risco dos desequilíbrios existenciais significativos, pois, ao ameaçar tantas outras relações, não deixam de perder-se de si mesmos.

As paixões, de um modo geral, não distinguem corpos, tampouco distinguem homens e mulheres. No entanto, a ‘tentação’ não deixa de ser uma afecção associada às criações da diferenciação de gênero, à medida que sua emergência no mundo diz respeito às elaborações margeenses sobre as relações entre masculino e feminino. Ao retomar outras variáveis das vivências afetivas, podemos entender o que elas falam sobre os acontecimentos do gênero.

Medo das mulheres sozinhas e outras tentações: as relações com os homens e seus sortilégios

Se a proximidade homem-mulher pode suscitar a tentação, uma das possibilidades de contê-la é justamente manter certo distanciamento, de sorte que a gestão dessa paixão supõe certas práticas de convivência entre os gêneros masculino e feminino baseadas nas modulações do contato. A associação entre frequência e qualidade do vínculo social é outro tópico importante na vida margeense - um aspecto das relações que é constantemente problematizado em suas práticas de circulação e de chegadas às casas uns dos outros. Nesses trânsitos e paradas, a presença e a permanência das pessoas são consideradas e avaliadas a partir de elementos como o tempo de permanência num lugar, a constância do contato e das chegadas domésticas.

A atenção ao movimento vivido nas casas pressupõe certos parâmetros. Frequentemente, o ‘conhecido’ chega a uma casa chamando pelo seu morador; o anúncio, por vezes, se faz acompanhado da presença, cuja intimidade permite a chegada pela porta da cozinha. Nas particularidades das chegadas também se percebe a importância das modulações da proximidade e da distância nas relações entre homens e mulheres, visto que os moradores devem tomar os cuidados necessários para não entrar e/ou permanecer por muito tempo numa casa onde apenas se encontra a esposa ou o esposo. Mesmo entre conhecidos, a ausência constante de um homem numa casa preconiza que haja um intervalo (mesmo que tênue) entre o anúncio e a aproximação. Esta é atitude observada pelo chegante quando o pai de família está ausente, situação que o conduz a chamar pelo anfitrião e aguardar para aparecer na cozinha, aproximando-se aos poucos dali.

Os distanciamentos assim cultivados competem, do mesmo modo, à relação entre homens e mulheres de diferentes gerações, visto que uma menina sempre é orientada pelos pais a não receber homens em casa, caso esteja sozinha. Por sua vez, a fórmula “em casa de mulher sozinha, homem não entra”, sugerida por Dona Liduína quando eu mesma passei a morar numa casa da localidade, enuncia os cuidados que se devem ter quando se trata de mulher solteira que recebe os chegantes homens. Nessas situações, os conselhos sugerem que os contatos devem respeitar não apenas os intervalos das chegadas anunciadas, mas também a modulação criada pela soleira da porta. É importante destacar que todas essas observações se apresentam como medidas relacionais propriamente ditas quando a constância do contato parece pouco familiar ao movimento de uma casa ou de uma pessoa, ou seja, principalmente nas situações em que o chegante pouco chegado faz-se presente com mais constância.

Ao indicar as dinâmicas da convivência entre homens e mulheres, os modos de aproximar e distanciar remetem ao problema de como são tecidas essas relações em contextos como a Terceira Margem. Certo distanciamento se destaca como medida significativa à vivência do intercurso afetivo, tanto no sentido de evitar os descaminhos que conduzem à tentação quanto na vivência de relações mais aceitas. É nesse sentido que ainda hoje os namoros de meninas e meninos são acompanhados de perto pelos pais, que administram o contato do jovem casal, seja a partir do controle dos encontros (gerindo os horários e dias para namorar), seja indicando a companhia de irmãos, vizinhos ou pessoas próximas. De modo que o jovem casal dificilmente se distancia por muito tempo da casa dos pais da moça ou do moço sem ser seguido por alguém. O cotidiano das festas religiosas movimenta essa procura por quem pode acompanhar os namorados nesses eventos, assim como é constante o olhar da mãe e/ou do pai nos momentos em que o moço visita a moça em sua casa. Nesses momentos, o receio da aproximação se deve à gravidez antes do casamento, situação que já não efetua, necessariamente, um escândalo, mas, ainda assim, não é algo esperado pelos margeenses, a tal ponto que, quando ocorre, sempre recai sobre os pais (mais comumente à mãe) o olhar reprovador dos vizinhos que lhes cobram indiretamente a responsabilidade por não ter observado o contato dos jovens.

As situações afetivas explicitam variações mais ou menos adequadas às aproximações entre homem e mulher, no entanto, sabemos que as medidas da proximidade e do distanciamento são ensinadas aos meninos e meninas muito antes de começarem a pensar em namoros. Homem com homem, mulher com mulher é a fórmula pedagógica que as pessoas ouvem quando crianças, conselho que se reforça como modo relacional com o passar dos anos. Nascimento (2008NASCIMENTO, Silvana. Faculdades femininas e saberes rurais. Uma etnografia sobre gênero e sociabilidade no interior de Goiás. 2008. Tese (Doutorado) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Antropologia Social, USP, São Paulo.) vê nessa fórmula uma maneira de relacionar masculino e feminino, cuja dinâmica, antes de explicitar um antagonismo sexual, indica a importância da homossociabilidade à constituição e diferenciação das pessoas. É entre mulheres que se aprende a ser mulher nessas pequenas localidades, assim como ser homem depende de estar entre homens.

Assim como na Mossâmedes retratada por Nascimento (2008NASCIMENTO, Silvana. Faculdades femininas e saberes rurais. Uma etnografia sobre gênero e sociabilidade no interior de Goiás. 2008. Tese (Doutorado) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Antropologia Social, USP, São Paulo.), na Terceira Margem, a imagem de espaços frequentados por homens e por mulheres se destaca na observação das cozinhas repletas de conhecidas; e das roças, cujo ritmo das atividades segue os passos do pai de família. Porém, se a autora percebe nas festas um momento privilegiado para discutir essa separação, podemos dizer, para o caso margeense, que essa separação torna-se nebulosa justamente nessas situações, e não apenas nas festas religiosas, mas, também, na colheita do café, quando a mexida impõe ritmos diversos e faz com que homens e mulheres se encontrem e se aproximem.

As festas de santo que marcam o calendário religioso de localidades como a Terceira Margem são os momentos mais propícios ao namoro dos solteiros e aos contatos dos diferentes casais. Mas se as festas são situações nas quais a circulação e o movimento da meninada são significativos, de modo a criar possibilidades de fazer casamentos, os constantes relatos dos ciúmes e das brigas entre maridos e esposas indicam que o que ocorre na colheita do café pode ser mais pernicioso à fidelidade conjugal. São dias e dias inteiros nos quais a atividade na lavoura segue o ritmo da conversa e permite o conhecimento de gente que se encontra apenas ali. A distância dos maridos e esposas, por sua vez, é um elemento a mais nas considerações de quem usufrui da aproximação para fazer brincadeiras e tocar a prosa enquanto segue a toada do trabalho.

Esse contato, no entanto, não é significativo apenas para quem observa e comenta os comportamentos nada meritórios daqueles que usufruem da ocasião. Ele também é alvo da reflexão dos margeenses devido aos acontecimentos que pode suscitar, e suscitando o modo como se pode controlá-los. Foi no ir e vir de casa para o trabalho que Idalina passou a conviver com um homem que parecia lhe acompanhar toda vez que saía da escola onde trabalhava como merendeira. A princípio, a presença do estranho na estrada assustou, mas a permanência da presença seguida geralmente de um bom dia ou boa tarde modulou a estranheza e fez surgir outro receio à moradora. “Eu comecei a rezar, toda vez que o via, porque rezar é a melhor coisa pra tentação”, argumentava Idalina ao considerar como a aproximação inusitada com este senhor durante seu percurso diário poderia suscitar antes uma potência, um desejo do que a ameaça protagonizada pelo desconhecido. Com o contato, parecia vir a ‘tentação’, como vimos, essa força que provoca uma atração poderosa entre as pessoas.

Os problemas criados pela proximidade excessiva entre homens e mulheres preocupam não somente quando se trata das vivências dos adultos à medida que se recomenda certo distanciamento entre pessoas de qualquer geração. Ainda que não se fale em ‘tentação’, foi nessa mesma conversa que Idalina comentou como não gostava de manter sua filha Matilde junto aos seus filhos homens (e demais coleguinhas que os seguiam nas brincadeiras cotidianas) durante o período em que não estava em casa. Ao sair, carregava consigo Matilde, mesmo na situação em que seu esposo permanecia em casa. Quando não podia levá-la, deixava a menina na vizinha. “Esses descontroles que a gente vê por aí, de filha com pai, irmã com irmão é tudo porque as crianças crescem emboladas, como se fosse animal”. Com esse argumento, Idalina sugeria que o incesto era prática que se evitava não apenas com proibição, mas, também, com exercícios importantes de distanciamento, nos quais as meninas deveriam permanecer distantes de pais e irmãos quando não estavam sob o olhar atento da mãe.

As narrativas descritas também sugerem um risco iminente às aproximações excessivas entre homem e mulher. Por vezes, esse risco ganha ares de ameaça, tal como se nota nas falas de mulheres que permanecem em suas casas quando os maridos saem para trabalhar e veem na presença dos filhos, mesmo quando crianças, uma companhia e, ao mesmo tempo, uma defesa contra a chegada e a ação de estranhos. Matilde, a filha de Idalina, quando se casou, teve que se mudar para outra localidade, próxima à família do seu esposo, mas não o suficiente para não se sentir sozinha quando este saía para o roçado. A sensação de solidão que acompanha o estar sozinha em casa geralmente é seguida pelo medo das aproximações de outros homens, principalmente em localidades nas quais as casas dos vizinhos ficam a certa distância. Medo e solidão foram dosados com a chegada do primeiro filho, e, atualmente, quando o menino vai para a escola, a apreensão de Matilde só diminui quando ele retorna. Nesses momentos, pode usufruir da companhia da criança de seis anos e da proteção que um filho pode trazer à casa de uma mãe de família que ali permanece o dia todo.

O acento sobre as ameaças que marcam as relações entre homens e mulheres se destaca em conversas que tratam da situação das moradoras. No entanto, diferente de outros contextos sociais, nos quais essas relações são marcadas pela ameaça dos maridos à vida de suas esposas, tal como notou Mayblin (2010MAYBLIN, Maya. Gender, Catholicism and Morality in Brazil. Virtuous Husbands, Powerful Wives. Palgrave: Macmillan, 2010.) para as localidades rurais nordestinas ou como descreveu Krista Van VLEET (2002VAN VLEET, Krista. “The Intimacies of Power: Rethinking Violence and Affinity in Bolivian Andes”. American Ethnologist, v. 29, n. 3, p. 567-601, 2002.) para o contexto dos Andes Boliviano, na Terceira Margem, as agressões físicas protagonizadas entre maridos e esposas são bastante raras. O medo que as mulheres associam à presença masculina não se refere àqueles com os quais estão relacionadas através do casamento, mas, sim, aos homens ‘de fora’ e aos seus conhecidos. Tanto que, frequentemente, esses são sentimentos que acometem ‘mulheres sozinhas’. Sendo assim, é preciso considerar que as características dessa situação tematizam tanto a condição de uma mãe de família que permanece ‘sozinha’ num momento transitório quanto as condições das mulheres que, solteiras, residem sozinhas numa casa.

O medo conjuga sentimentos difusos que assinalam as possibilidades de malefícios de diversas ordens (roubos, violência, violência sexual), mas que não descartam outras disposições advindas desses encontros. Foi durante a festa da padroeira que Paulínia voltou para casa sozinha, visto que o marido e os filhos quiseram aproveitar os festejos por mais tempo. No seu rastro, seguiu seu cunhado, esposo da irmã de seu marido, que por ali chegou e não se demorou, pois dizem que Paulínia, vendo que o homem estava tonto por causa da cachaça, criou coragem e o expulsou. No entanto, os vizinhos perceberam que o cunhado passou a chegar cada vez mais, sempre quando não havia mais ninguém na casa, e o medo que Paulínia dizia ter dele passou a motivar o riso da vizinhança, que comentava a mudança na relação. Interessa notar que não apenas o medo cada vez mais dissimulado de Paulínia motivava o riso, pois, mesmo as menções mais sérias sobre a sensação de uma ‘mulher sozinha’ não excluíam, por vezes, as gargalhadas. Nas situações em que me desloquei à comunidade em um moto-táxi, era comum as mulheres me perguntarem se eu não tinha receio de andar com o moço da moto por caminhos tão ermos quanto aqueles que me levavam da cidade até ali. Os comentários não deixavam de assuntar a reputação de quem opta por andar de moto com desconhecidos, porém suscitava outros sentidos através do riso e dos questionamentos das outras ouvintes: “tem medo, mas na hora dá coragem, né?”.

As marcações do próximo e do distante no contato entre homens e mulheres atualizam os dilemas relacionais do gênero em suas diferentes acepções, refletindo no modo como a tentação arrebata as pessoas conduzindo à vivência dos casos, nos prenúncios do incesto, nos perigos dos desconhecidos (geralmente roubos e violências que pouco se vê na comunidade, mas se sabe por aí, como os assédios e estupros).

Nessa ordem das coisas, as mulheres se destacam como o elo frágil tanto pela violência das iniciativas masculinas quanto pelas coações das reputações associadas às experiências mal faladas. Por sua vez, risos e comentários jocosos flertam com a variação do medo que elas vivenciam. Esta é uma sensação que motiva a evitação e outras atitudes evasivas frente a certas presenças masculinas, mas que não deixa de prever a motivação de ir ao seu encontro, indicando, assim, traços recorrentes a essas relações.

Sabemos que, nos contextos das relações de trabalho (WOORTMANN & WOORTMANN, 1997WOORTMANN, Ellen; WOORTMANN, Klaas. O trabalho da terra: a lógica e a simbólica da lavoura camponesa. Brasília: EDUnB , 1997.; WOORTMANN, 1991______. “Fuga a três vozes”. Anuário Antropológico 91, Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1993.; SEGALEN, 1990SEGALEN, Martine. Mari et femme dans la société paysanne. Paris: Falamarion, 1990. ), cujas dinâmicas conectam as atividades da casa àquelas realizadas no roçado, a subordinação das realizações femininas ao comando masculino atualiza a complementaridade como princípio estrutural das relações de gênero. Sob a ótica das experiências afetivas aqui descritas é possível atentar para outros princípios significativos a essas relações, de modo que as problematizações das ameaças características às aproximações entre homens e mulheres não falam necessariamente de uma guerra dos sexos roceira, à medida que refletem outras qualidades, a exemplo do sortilégio que caracteriza o convívio masculino e feminino.

Os traços ameaçadores, tão destacados nas narrativas, sobressaem nas descrições de Mayblin (2010MAYBLIN, Maya. Gender, Catholicism and Morality in Brazil. Virtuous Husbands, Powerful Wives. Palgrave: Macmillan, 2010.) sobre os dilemas do casamento, quando homens e mulheres falam das dificuldades e dos perigos cotidianos na convivência esposo e esposa. No entanto, as ameaças desses casamentos falam menos em atração e mais em um antagonismo particular às relações entre os gêneros, constantemente materializado na violência vivida pelos casais. Entre os margeenses, as ameaças, além de não estarem associadas à relação marital, traduzem mais uma disposição atrativa do que o traço agônico. Logo, a ideia de sortilégio me parece mais adequada na tradução de motivações, por conter em si malefícios e encantamentos.

É nesse sentido que os princípios relacionais entre os gêneros - comentados nas narrativas margeenses - aproximam os ‘casos’ aos acontecimentos da dor e do amor, destacados por Ana CARNEIRO (2010CARNEIRO, Ana. O povo parente dos Buracos: mexida de prosa e cozinha no cerrado mineiro. 2010. Tese (Doutorado em Antropologia Social) - Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Museu Nacional, UFRJ, Rio de Janeiro.) ao tratar das relações entre homens e mulheres na localidade mineira Buracos. Ali, a associação de determinados afetos ao domínio das influências e das vulnerabilidades não é estranha aos comentários nativos para os quais as relações afetivas são propensas aos volteios da ‘sorte’ e do feitiço, trazendo tanto a promessa do amor e do casamento quanto o sofrimento aos homens e mulheres. Em suas diferentes ênfases, as considerações margeenses remetem a um convívio marcado pela oscilação entre ameaça e atração, principalmente pela possibilidade constante de conversões dessas disposições. Envolvidos nos intercursos extraconjugais, homens e mulheres parecem viver intensamente essa conjugação entre o interesse atrativo e a ameaça que acomete a si mesmo, ao passo que envolve suas relações e suas famílias. Criados em aproximações que anunciam o enlevo e seus riscos, os ‘casos’ refletem de forma potente os princípios das relações entre os gêneros que afirmam as instabilidades emocionais e relacionais que lhes são constitutivas.

Considerações finais

Sobre os coletivos camponeses, se reconhece que o problema do sexo e do gênero é problema da casa, no sentido que a household (SEGALEN, 1990SEGALEN, Martine. Mari et femme dans la société paysanne. Paris: Falamarion, 1990. ) encarna uma vida conjugal, cujo significado é criado a partir das experiências da família e do parentesco (frequentemente expressa no grupo doméstico e na convivência em vizinhança). Assim sendo, com frequência a conjugalidade é descrita a partir dos pressupostos da manutenção da household, de modo que as vivências sexuais e de gênero correspondem às experiências de pais e mães de família, cujas características assinalam a relação determinante entre vivência erótico-sexual e produção material da vida camponesa. É dessa determinação que derivam interpretações e descrições que afirmam o primado da normatividade heterossexual, o controle constante da sexualidade de homens - e ainda mais das mulheres - e a circunscrição das experiências afetivas adequadas ao exercício dos papéis sexuais e sociais referidos ao binômio casa-roçado.

Para falar sobre outras condições de gênero e de sexualidade, foi necessário, a alguns estudos, deixar a casa camponesa a fim de encontrar experiências que pareciam ser inexistentes em meios rurais, visto que gays, travestis, lésbicas surgiam ao senso comum como personagens de ambientes mais rarefeitos, supostamente urbanos (Paulo Rogers FERREIRA, 2008FERREIRA, Paulo Rogers. Os afectos mal-ditos: o indizível nas sociedades camponesas. São Paulo: HUCITEC, 2008.; Fabiano GONTIJO, 2013GONTIJO, Fabiano de Souza. “Diversidade sexual e de gênero no mundo rural brasileiro: esboço de reflexões preliminares”. Revista FSA, v. 10, n. 2, p. 84-100, abr./jun. 2013.; 2014______. “Kátia Tapety: ora mulher, ora travesti? Gênero, sexualidade e identidades em trânsito no Brasil”. Cadernos Pagu, n. 43, p. 299-319, jul./dez. 2014.). No entanto, o olhar sobre essa variação existente nos contextos rurais reflete não apenas novos investimentos etnográficos, à medida que supõe deslocamentos teórico-metodológicos específicos.

Nesse sentido, os estudos antropológicos sobre esse universo trazem para suas análises aspectos de uma discussão que Claudia FONSECA (2003FONSECA, Claudia. “De afinidades a coalizões: uma reflexão sobre a ‘transpolinização’ entre gênero e parentesco em décadas recentes da antropologia”. ILHA, n. 5, v. 2, p. 05-31, dez. 2003.) caracterizou de transpolinização entre os estudos de gênero e parentesco. Essas reformulações evidenciam as confluências e determinações de um campo de estudo sobre o outro, principalmente se tivermos em mente as contribuições das análises críticas de autores como David SCHNEIDER (1968SCHNEIDER, David. American Kinship: a Cultural Account. Englewood Cliffs: Prentice-Hall, 1968.; 1984______. A Critique of Study of Kinship. Ann Arbor: University of Michigan Press, 1984.), Gayle RUBIN (1993), Marylin STRATHERN (2006STRATHERN, Marylin. O gênero da dádiva: problemas com as mulheres e problemas com a sociedade na Melanésia. Campinas: EDUNICAMP, 2006.) e Judith BUTLER (1998BUTLER, Judith. “Fundamentos contingentes: o feminismo e a questão do ‘pós-modernismo’”. Cadernos Pagu, n. 11, p. 11-42, 1998.; 2003a______. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003a.; 2003b______. “O parentesco é sempre tido como heterossexual?”. Cadernos Pagu, n. 21, p. 219-260, 2003b.). Da confluência dessas análises destaco a ideia de que os questionamentos da naturalidade dos vínculos familiares e de parentesco dialogam com os esforços em questionar a naturalidade do sistema sexo-gênero. Os diferentes modos de relacionar famílias e parentes incidem sobre as possibilidades de ser masculino e feminino (e sobre as conversões e transformações de uma condição na outra), do mesmo modo que a proliferação das possibilidades masculino-feminino incide sobre as formas de fazer parentes e de ser família.

Nessa confluência entre a crítica aos estudos de parentesco e a crítica feminista encontro um lugar para falar sobre as experiências afetivas dos moradores da Terceira Margem. Para descrever os momentos em que o desejo excede as expectativas mais hegemônicas da casa, foi necessário olhar não apenas para a variação das experiências afetivas e sexuais de homens e mulheres, mas, também, atentar aos acontecimentos da família e do parentesco que não se limitam ao grupo doméstico e suas determinações. Vimos que casos envolvem amantes e esposos, vizinhos, parentes e conhecidos numa trama entrelaçada pela fofoca em suas várias criações, as quais não se confundem apenas com o controle moral, mas, também, com o ‘descontrole’ criado pela tentação dos amantes, pelos desentendimentos e, por vezes, pelos silêncios e evitações que passam a dar o tom num convívio antes marcado por proximidades e visitas. Por sua vez, das tramas relacionais criadas por esses acontecimentos, encontramos as indicações não apenas da variação dos afetos, dos desejos e da própria conjugalidade vivida por pais e mães de família, como, também, dinâmicas e princípios que orientam as condições e relações entre os gêneros masculino e feminino. Tal como foi destacado nas considerações sobre a modulação da proximidade e da distância entre homens e mulheres e sobre o sortilégio que marca esse convívio.

Logo, embora as descrições tratem de afetos e vivências sexuais que escapam às expectativas da casa camponesa, foi necessário me manter próxima a ela, pois casos, tentações e outras possibilidades erótico-afetivas aqui descritas não são estranhas aos acontecimentos do parentesco e do universo doméstico. Vimos que, por vezes, casos são gestados nesses espaços (a exemplo dos assédios do cunhado à cunhada); quando não, é a casa que as conversas sobre os enlaces extraconjugais chegam e transformam a vida de famílias e de casais ao suscitar as reações de esposos e esposas e daqueles que se sentem envolvidos no assunto.

Na Terceira Margem, a fofoca comenta para controlar, mas comenta, também, porque as possibilidades afetivas e sexuais de pais e mães de família interessam à medida que escapam à sua própria moralização. Bons assuntos são aqueles cuja recorrência prolonga as narrativas, de modo que a fofoca fala sobre aquilo que reconhece. As práticas afetivas mais heterodoxas não são estranhas às tessituras da vida local, pois o que a falação traz a casa são justamente acontecimentos que participam da vida camponesa, não apenas porque são transgressores, mas porque são constitutivos desse modo de vida. Estas são experiências que todo pai ou mãe de família sabe reconhecer e comentar, seja no sentido de evitar as tentações ou de se entregar a elas, seja no sentido de reagir quando seus acontecimentos tomam sua casa. Do mesmo modo, a discrição e a contenção tão valorizadas na Terceira Margem, ainda que estreitamente associada aos valores mais hegemônicos sobre a vida conjugal, não deixam de sugerir caminhos nos quais o desejo pode exceder as ordenações mais ortodoxas da convivência. Nesses caminhos se localizam modos de efetuação para afetos que podem tanto ameaçar a pessoa e suas relações quanto apontar para relações que reconfiguram convívios da casa e do casal.

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    Cabe informar que o município é moradia de 30.000 pessoas, sendo que a densidade populacional se concentra nas dezenove localidades rurais ali existentes. Vizinhas ao núcleo urbano (vizinhança esta que compreende uma distância de 5 até 70 km, a exemplo da comunidade Tijucas, a mais longínqua), nessas localidades, seus moradores se dedicam a atividades diversas, principalmente à produção de leite e derivados (queijo), grãos (feijão, milho) e frutas para subsistência. Em algumas delas também se encontra a produção de café, embora esse cultivo (dado à proporção de investimentos financeiros necessários) seja atividade predominante entre os grandes produtores, que, em sua maioria, residem no núcleo urbano e não nas localidades. Nesse contexto, realizei a pesquisa de campo por nove meses, a qual compreendeu distintos momentos dos anos de 2008 a 2009. Na ocasião, frequentei tanto o núcleo urbano quanto as localidades rurais, porém minha convivência se deu, em boa parte, entre os margeenses. Para um conhecimento mais detalhado da configuração social e econômica desse município e da Terceira Margem, indico minha tese de doutorado (Graziele DAINESE, 2011DAINESE, Graziele. Chegar ao cerrado mineiro: hospitalidade, política e paixões. 2011. Tese (Doutorado em Antropologia Social) - Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Museu Nacional, UFRJ, Rio de Janeiro.); trabalho esse que foi elaborado a partir dessa pesquisa de campo e do qual derivam as considerações tecidas neste texto. A fim de preservar os margeenses, optei por usar denominações geográficas e pessoais fictícias, à exceção das designações regionais e estaduais.
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    Chamo a atenção para os usos que faço do termo gênero, homem e mulher. Estou falando a partir de um contexto no qual o binarismo sexual é um vetor importante para dada definição de gênero enquanto masculino e feminino, tendo em vista que a associação mulher-feminino e homem-masculino pressupõe uma ideia de sexo baseada em atributos naturalizados e discerníveis entre homem e mulher. Por sua vez, veremos que as diferentes experiências que marcam as trajetórias de homens e mulheres na Terceira Margem (principalmente os casos e outros acontecimentos descritos ao longo desse artigo) indicam a proliferação de sentidos e princípios que compõem essa associação sexo/gênero e particularizam um modo de conceber as condições masculinas e femininas como produzidas ou inventadas por este e neste lugar. Sendo assim, os usos dos termos homem e mulher indicam uma aproximação à sinonímia que os margeenses estabelecem entre sexo e gênero. No que concerne ao termo analítico do gênero, portanto, essa opção se faz quando quero destacar tal proliferação de sentidos e princípios relacionais que participam dessa sinonímia nativa.
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    Outros trabalhos (Rosineide CORDEIRO, 2012; Marilda MENEZES e Marcelo SILVA, 2010MENEZES, Marilda; SILVA, Marcelo. “Homens que migram, mulheres que ficam: o cotidiano das esposas, mães e namoradas dos migrantes sazonais no Município de Tavares, PB”. In: SCOTT, Parry et al. (Orgs.). Gênero e geração em contextos rurais. Florianópolis: Mulheres, 2010. p. 279-310.; Valmir STROPASOLAS, 2004STROPASOLAS, Walmir. “O valor (do) casamento na agricultura familiar”. Revista Estudos Feministas, v. 12, n. 1, p. 253-267, jan.-abr. 2004.; Renata MENASCHE & Leila SCHMITZ, 2007MENASCHE, Renata; SCHMITZ, Leila. “Agricultores de origem alemã, trabalho e vida: saberes e prática em mudança em uma comunidade rural gaúcha”. In: MENASCHE, Renata (Org.). A agricultura familiar à mesa: saberes e práticas da alimentação no Vale do Taquari. Porto Alegre: EDUFRGS, 2007. p. 78-99.) abordam essas questões à luz das transformações socioeconômicas, à medida que estão preocupados em discutir como o investimento em anos de estudo, a participação política (militância em movimentos sociais, principalmente), as transformações no acesso a terra e nos modos de reprodução do campesinato afetam as relações entre os gêneros. Trazem esse cenário de mudança social para destacar as transformações de percepções e experiências que vinculam homens e mulheres, bem como as tensões que se criam a partir da vivência desses acontecimentos em seu confronto com as expectativas sobre ser homem e mulher no meio rural.
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    Como argumenta Frederick BAILEY (1971BAILEY, Frederick G. Gifts and Poison: The Politics of Reputation. Oxford: Basil Blackwell, 1971.), o problema da reputação não é necessariamente se ela é boa ou má, à medida que o que importa é ter reputação. Na Terceira Margem, não é incomum que ‘famílias descontroladas’ correspondam a essa fama, criando ainda mais brigas e desentendimentos – seja na situação dos ‘casos’ ou por outras motivações.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    May-Aug 2017

Histórico

  • Recebido
    15 Jun 2015
  • Revisado
    19 Maio 2016
  • Aceito
    21 Maio 2016
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